Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Marcos Santarrita<br />
– ainda na época <strong>de</strong> minha juventu<strong>de</strong> – os pais mais amantes a mandarem as<br />
filhas “perdidas”, <strong>de</strong>sonradas, povoarem os bordéis, para gran<strong>de</strong> gáudio dos<br />
maganões, às vezes aqueles mesmos que as haviam <strong>de</strong>florado. O adultério, por<br />
sua vez, crime previsto em lei e não aceito (pelos maridos e pela socieda<strong>de</strong>),<br />
grassava como incêndio na caatinga. Já as práticas na cama das casadas (damas<br />
no salão e prostitutas no leito, nupcial ou não) fariam rebentar <strong>de</strong> rubor o coitado<br />
do hindu Vatsyayana. Não era preciso porém o famoso Relatório Kinsey.<br />
No auge da Inglaterra vitoriana, revistas literárias pornográficas bem escritas,<br />
como The pearl, publicavam clan<strong>de</strong>stinamente, nos termos e ilustrações mais<br />
explícitos possíveis, as sacanagens dos britânicos – da classe alta, claro; os<br />
pobres, embora mais liberais que nós então, só faltavam manter as mulheres<br />
aprisionadas em cintos <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>, e muitos pais também mandavam as<br />
filhas para os bordéis.<br />
O brochante nessa literatura erótica dos ingleses era o estranho prazer que<br />
eles sentiam e sentem em ser açoitados nas ná<strong>de</strong>gas – só a dor os faz ter orgasmos.<br />
Depois <strong>de</strong> um ou dois capítulos <strong>de</strong> libidinagens “normais”, digamos<br />
assim, e altamente prurientes, lá vinham os açoites, as dominadoras, os velhos<br />
marmanjos fingindo-se <strong>de</strong> criancinhas travessas e pedindo <strong>de</strong> joelhos perdão<br />
às “mamães”, metidas em sumárias roupas <strong>de</strong> pelica preta e equipadas com<br />
chibatas, torqueses, sutiãs e pulseiras eriçadas <strong>de</strong> pregos afiados – já se imagina<br />
o quadro, mais atual que nunca; é só procurar na Internet.<br />
Somerset Maugham não chegava a tanto, embora, homossexual, fosse também<br />
nesse aspecto um revolucionário, sobretudo numa Inglaterra on<strong>de</strong> isso<br />
era crime sério, constava do Código Penal. Só não era besta <strong>de</strong> sair saracoteando<br />
cheio <strong>de</strong> a<strong>de</strong>manes pelos salões, navios e ilhas que frequentava. Tampouco<br />
se i<strong>de</strong>ntificaram em seus livros, como na Albertine <strong>de</strong> Proust, heróis travestidos<br />
<strong>de</strong> heroínas. Viveu até a morte, publicamente, com um “secretário”, que<br />
ficou com a rica herança.<br />
É, a barra era pesada, meu senhor. Que o digam o pobre Oscar Wil<strong>de</strong><br />
no século XIX, e o criador do computador, Alan Turing, já em 1954. Gênio<br />
da matemática, Turing era pouco menos que um idiota na vida: levou<br />
um marginal explorador <strong>de</strong> gays para casa, e o malandro, claro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
160