ESSE TREM CHAMADO DESEJO - Encontros de Dramaturgia
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<strong>ESSE</strong> <strong>TREM</strong><br />
<strong>CHAMADO</strong><br />
<strong>DESEJO</strong><br />
De Luis Alberto <strong>de</strong> Abreu
CENA 1 – DO AMOR AO TEATRO E DE OUTROS AMORES.<br />
SEU COISINHA ENTRA, ARRUMA ALGUNS OBJETOS DE CENA, DÁ OS<br />
TRÊS SINAIS CARACTERÍSTICOS DO INÍCIO DO ESPETÁCULO E SAI<br />
PARA QUASE IMEDIATAMENTE ENTRAR ALTIVO, TRANSMUTADO EM<br />
UM PERSONAGEM NOBRE E DRAMÁTICO. CAMINHA EM PASSOS LAR-<br />
GOS EM DIREÇÃO À PLATÉIA, ESTACA E DECLAMA COM INUSITADA<br />
FORÇA DRAMÁTICA.<br />
COISINHA (DECLAMA): Pu<strong>de</strong>sse eu parar a roda do tempo<br />
E fazer retornar os minutos fugidios<br />
Juntar os fios do passado<br />
À eternida<strong>de</strong> do presente momento;<br />
Ah!, pu<strong>de</strong>sse eu retornar à minha juventu<strong>de</strong>,<br />
Àqueles serenos dias!<br />
E sorver agora aquele sincero amor <strong>de</strong> ontem<br />
Que em minh‟alma como fonte se abria.<br />
(PÕE A MÃO EM PALA) Mas quem vem lá? (CORRE A OU-<br />
TRO LUGAR E COMPÕE A PERSONAGEM E A VOZ DE<br />
UMA MULHER. A PARTIR DE AGORA COISINHA ENTRA<br />
EM FRENESI INTERPRETANDO NUM ÚNICO FLUXO TO-<br />
DOS OS PERSONAGENS.) Não me reconhece, pústula! Vim<br />
do passado fazer justiça! (PAI) Não creio em meus olhos! (FI-<br />
LHA) Pai! Pai! (PAI) Não entre aqui, Madalena! (FILHA) Quem<br />
é essa mulher? (MULHER) Sou sua mãe. Sua verda<strong>de</strong>ira mãe!<br />
(PAI) Meu Deus! (MULHER) É em nome <strong>de</strong>sse mesmo Deus,<br />
que não <strong>de</strong>via estar em sua boca, que estou aqui. (FILHA) Então<br />
era verda<strong>de</strong>? Era verda<strong>de</strong> o que a velha ama me contou?<br />
(PAI) Posso explicar! (MULHER) Negue se tem coragem!<br />
(PAUSA DRAMÁTICA) (PAI) Filha! (FILHA) Saio hoje <strong>de</strong>ssa<br />
casa pra nunca mais lhe ver! (BATE PALMAS) (MENSAGEI-<br />
RO) Trago más notícias, senhor! Seu sócio <strong>de</strong>u <strong>de</strong>sfalque em<br />
sua empresa! (PAI) Fui traído! As <strong>de</strong>sgraças caem sobre mim<br />
como chuva! (CAI AO CHÃO) (MULHER) Vai, tenha uma longa<br />
vida para que nela rasteje até o fim <strong>de</strong> seus dias! (PAI) Infâmia!<br />
Deus sabe que não fui culpado! (COISINHA RETOMA SEU<br />
PRÓPRIO CARÁTER E VIBRA.) Lindo! Lindo! Lindo! Me emociona...<br />
(VÊ A CAIXA DO TROMBONE DE GRACINHA E A<br />
TOMA) me emociona como isso! (ABRE A CAIXA) Gracinha!<br />
Fosse eu um ator e lhe amaria como meu maior personagem!<br />
2
(CANTA): Antes, bem antes do elenco chegar<br />
E começar a ensaiar<br />
Me ponho logo a arrumar<br />
Pois tudo tem seu lugar<br />
Os objetos <strong>de</strong> cena pra lá<br />
Os figurinos pra cá<br />
Só que eu me <strong>de</strong>ixo levar<br />
E então começo a sonhar<br />
Meu esfregão se transforma<br />
Na espada <strong>de</strong> um cavaleiro<br />
Ou minhas roupas se tornam<br />
Os trajes <strong>de</strong> um rei justiceiro<br />
Eu me imagino em lugares<br />
Bem longe, on<strong>de</strong> eu nunca pisei<br />
E até me vejo nos braços<br />
Do amor que eu nunca terei.<br />
(COISINHA RETOMA O PERSONAGEM DO PAI, SE CON-<br />
FRANGE E COMEÇA A SOLUÇAR. ERGUE-SE, COM EX-<br />
PRESSÃO DETERMINADA) Repudiado, rejeitado, envilecido!<br />
À minha frente só se abre o caminho negro da morte! Mas, não!<br />
(NUM CRESCENDO) Hei <strong>de</strong> mudar o <strong>de</strong>stino que as estrelas<br />
me querem impor. Hei <strong>de</strong> recobrar o respeito <strong>de</strong> minha família<br />
e recuperar o amor <strong>de</strong> outrora. Brando armas, luto agora e<br />
venço. Ou hei <strong>de</strong> morrer tentando.<br />
(CANTA.): Mas logo retorno à vida real<br />
Pois tudo volta ao normal<br />
Não posso me transformar<br />
Num Cin<strong>de</strong>relo a sonhar.<br />
A contra-regra eu vou preparar<br />
As roupas eu vou passar<br />
Pois tenho que me lembrar<br />
Que tudo tem seu lugar.<br />
Mas quando sobe o pano<br />
E abre mais uma sessão<br />
Eu sinto um frio na espinha<br />
Um aperto no coração<br />
3
(ENTRA LOPES)<br />
Me sinto como se eu fosse<br />
Mais um no palco a atuar<br />
Mas sei que a coxia<br />
Sempre será meu lugar<br />
Antes do elenco chegar<br />
Tudo retorna ao normal<br />
Tudo eu arrumo<br />
Tudo eu ajeito<br />
Antes <strong>de</strong> dar o sinal.<br />
Ah!, o teatro! Quero morrer neste palco!<br />
LOPES Eu, não, Seu Coisinha! Quero morrer bem longe <strong>de</strong>sse tabladinho<br />
fuleiro!<br />
COISINHA Ah, seu Lopes! Faz tempo que o senhor está aí?<br />
LOPES Cheguei agora. Nem vi sua ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> amor ao<br />
trombone <strong>de</strong> dona Gracinha. Vou dizer uma coisa, seu Coisinha:<br />
Falar sozinho leva à loucura.<br />
COISINHA Não falo sozinho. Só relembro cenas.<br />
LOPES E esse palco já teve cena que prestasse?<br />
COISINHA Como não, seu Lopes? Cada ca<strong>de</strong>ira, cada velha cortina, cada<br />
objeto... Até o suor das pare<strong>de</strong>s, até o ar, tudo aqui lembra os<br />
velhos atores e as gran<strong>de</strong>s atrizes.<br />
LOPES O ar me traz cheiro <strong>de</strong> mofo!<br />
COISINHA Esse lugar têm vida, seu Lopes. À noite, as vigas estalam, as<br />
tábuas do palco rangem e mais <strong>de</strong> uma vez eu já vi naquele<br />
canto o fantasma do diretor Furtado Coelho, acredita?<br />
LOPES Acredito. Eu também tenho visto, à noite, durante o espetáculo,<br />
muito fantasma... lá na platéia. Gente viva que é bom, que paga<br />
ingresso, nada!<br />
COISINHA É, a coisa vai mal, o público anda sumido. Mas a estréia <strong>de</strong> hoje<br />
vai ser sucesso!<br />
LOPES Amém pra nós todos que estamos precisados!<br />
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COISINHA É, uns mais outros menos. Sucesso, casa cheia, fila na bilheteria,<br />
ingressos vendidos... O senhor por acaso não teria algum<br />
pra me emprestar por conta do nosso sucesso <strong>de</strong> hoje à noite?<br />
LOPES Estou liso, seu Coisinha. E dona Abigail? O senhor po<strong>de</strong>ria dar<br />
uma mão...<br />
COISINHA Ih, não tem por on<strong>de</strong>! Já tentei facilitar Dona Abigail para o Meireles,<br />
para o Praxe<strong>de</strong>s, até pra mim eu tentei!<br />
LOPES (RI) Pro senhor, seu Coisinha?<br />
COISINHA (MALICIOSO) É, o homem per<strong>de</strong> os <strong>de</strong>ntes, mas nem por isso<br />
per<strong>de</strong> a fome.<br />
LOPES Ontem à noite... Quase, seu Coisinha, quase!<br />
COISINHA Ah!, “Quase” não sai no jornal.<br />
COISINHA É. E pensar que <strong>de</strong>ixei uma ótima companhia mambembe, <strong>de</strong><br />
casa sempre cheia, pra entrar nessa companhia. O que um<br />
homem não faz por um par <strong>de</strong> olhos <strong>de</strong> uma mulher.<br />
COISINHA Principalmente quando o par <strong>de</strong> olhos tem atrás um corpo daqueles!<br />
LOPES O senhor respeite Abigail, seu Coisinha!<br />
COISINHA Respeito, meu filho! Contra minha mais íntima vonta<strong>de</strong> e minha<br />
mais expressa intenção, respeito! De uns tempos pra cá não<br />
tenho feito outra coisa senão respeitar toda e qualquer mulher.<br />
LOPES On<strong>de</strong> meu coração foi amarrar minha égua, seu Coisinha! (SAI)<br />
COISINHA Em pasto que não brota água nem nasce capim, seu Lopes.<br />
Vai por mim.<br />
(REINICIA A CANTAR. ENTRA MADEIRA).<br />
CENA 2 – SOBRE AMANTES E SOBRE UMA HIPERBÓLICA<br />
CENA MUSICAL.<br />
MADEIRA Bom dia, Seu Coisinha! Meireles já chegou?<br />
COISINHA Não, mas dona Florisbela já está se trocando.<br />
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MADEIRA Ótimo.<br />
COISINHA Ah, seu Ma<strong>de</strong>ira... E sobre Gracinha?<br />
MADEIRA Pensei bem e resolvi que não. Gracinha é um pedaço <strong>de</strong> mulher,<br />
mas está envolvida com o Sandoval, o produtor. Não é<br />
bom mexer nem com mulher <strong>de</strong> patrão nem <strong>de</strong> <strong>de</strong>legado.<br />
COISINHA O senhor é que sabe.<br />
MADEIRA Me diz uma coisa: Por que o senhor que já trabalhou pra me<br />
juntar com Florisbela quer agora me juntar com Gracinha?<br />
COISINHA É que eu amo o teatro dramático, as atrizes e as gran<strong>de</strong>s histórias,<br />
seu Ma<strong>de</strong>ira. Gracinha é especial, foi feita para os gran<strong>de</strong>s<br />
amores. Eu mesmo se ainda tivesse competência para esses<br />
assuntos ousaria sonhá-la pra mim.<br />
MADEIRA O senhor é um perigo, Seu Coisinha!<br />
COISINHA Fui. Mas ela merece uma história melhor do que a que tem com<br />
o Sandoval.<br />
MADEIRA E o que é que eu tenho com isso?<br />
COISINHA Na vida e na arte os amantes são gran<strong>de</strong>s personagens.<br />
MADEIRA Obrigado pela consi<strong>de</strong>ração, mas estou satisfeito com meu caso<br />
com Florisbela.<br />
COISINHA Pois eu, não! Seu caso se transformou num ramerrão insosso.<br />
Está faltando na sua vida o risco das gran<strong>de</strong>s histórias! O risco<br />
é o alimento da paixão, seu Ma<strong>de</strong>ira! O que seria <strong>de</strong> Romeu e<br />
Julieta sem o risco da tragédia? Um casamentinho trivial!<br />
MADEIRA E eu vou correr risco para o seu divertimento? Ser amante é<br />
uma coisa séria, seu Coisinha. É um trabalho árduo, atribulado,<br />
cansativo.<br />
COISINHA Eu também acho, mas qual é o interesse que tem o seu caso<br />
com a Florisbela se o Meireles nunca <strong>de</strong>scobrir?<br />
MADEIRA Que é que o senhor está querendo? Ver minha caveira no necrotério,<br />
seu Coisinha?<br />
COISINHA Só quero um pouco <strong>de</strong> ação, uma história que possa ser lembrada,<br />
contada, talvez até escrita e representada!<br />
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MADEIRA O senhor é contra-regra não é dramaturgo, seu Coisinha!<br />
COISINHA A paixão é a mesma na vida e no palco!<br />
MADEIRA Só que na vida um corno furioso faz um estrago bem maior. E<br />
quieta que esse assunto me dá arrepios.<br />
COISINHA Está bem, mas será que o senhor não teria uns <strong>de</strong>z mil réis...<br />
MADEIRA Não, não tenho!<br />
COISINHA Está bem, <strong>de</strong>ixa estar! Vou falar com o Meireles ...<br />
MADEIRA (ASSUSTADO) Falar o que?<br />
COISINHA Talvez ele se mostre mais amigo e me empreste.<br />
MADEIRA (RECONSIDERA) Não tenho <strong>de</strong>z, mas dois posso lhe adiantar<br />
no momento.<br />
COISINHA Serve, obrigado. Quem encontra um amigo, encontra um tesouro!<br />
(PEGA O DINHEIRO E SAI. SURGE FLORISBELA VESTIDA DE ODALIS-<br />
CA).<br />
FLORIS Meu suspiro!<br />
MADEIRA Meu Bombom!<br />
FLORIS Não, não me toque!<br />
MADEIRA Meireles ainda não chegou!<br />
FLORIS Então, me toque, me toque! Agora chega, que eu também não<br />
sou uma qualquer! Não é hora nem lugar!<br />
MADEIRA Você me enlouquece! Porque não veio ontem ao nosso encontro?<br />
FLORIS Não pu<strong>de</strong>. O Meireles me requisitou para ensaios dramáticos<br />
<strong>de</strong> morte morrida e morte matada. Morte morrida repentina, aci<strong>de</strong>nte,<br />
longa agonia e enfarte. Morte matada a punhal, a tiro,<br />
suicídios variados por envenenamento, enforcamento, ai! Eu<br />
não agüento mais o Meireles!<br />
MADEIRA Amanhã, então?<br />
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FLORIS Não vai dar! Ele me requisitou para ensaio <strong>de</strong> riso louco, riso<br />
trágico, riso irônico, riso satânico e sardônico!<br />
MADEIRA Deixa o Meireles para lá. Você está linda! Esse número ainda<br />
vai fazer sucesso no Rio <strong>de</strong> Janeiro!<br />
FLORIS Ah, o meu sonho! Estrelar um musical no Rio <strong>de</strong> Janeiro! (MA-<br />
DEIRA TENTA BEIJÁ-LA) Depois! Depois, quantos beijos quiser,<br />
meu Sultão!<br />
(CANTA) Eu sou uma princesa<br />
Uma princesa oriental<br />
Dos homens a fraqueza<br />
Maliciosa e fatal.<br />
Se tantas concubinas<br />
O meu sultão já satisfez<br />
Desperte os seus instintos<br />
Agora é a minha vez<br />
Vim do oriente médio<br />
Pra livra-lo <strong>de</strong>sse tédio<br />
Nem mesmo Sheraza<strong>de</strong><br />
Po<strong>de</strong> encanta-lo como eu<br />
Na dança do meu ventre<br />
Muito vizir já se per<strong>de</strong>u<br />
Mas só para o meu amo<br />
Meus sete véus vou revelar<br />
E meu gran<strong>de</strong> segredo<br />
Só para ti vou revelar<br />
Eu sou mais que uma princesa<br />
Sou mulata com certeza<br />
Mulata brasileira<br />
Fogosa e faceira<br />
É esse meu segredo<br />
Eu só vou contar pro meu sultão<br />
Fizeram-me <strong>de</strong> escrava<br />
Na América do Norte<br />
Ven<strong>de</strong>ram-me aos persas<br />
A peso <strong>de</strong> ouro num leilão<br />
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Mas hoje, já liberta<br />
Respiro outros ares<br />
E nunca mais porei<br />
O meu pé em Valadares<br />
PRAXEDES ENTRA, VÊ A CENA E SE ENFURECE. ATRAPALHA A CENA<br />
COM UM ALTÍSSIMO SOLO DE FLAUTA.<br />
CENA 3 - O INÍCIO DE UMA LONGA DISCUSSÃO<br />
PRAXEDES Não, não, não! Essa cena foi cortada!<br />
MADEIRA Mas, Praxe<strong>de</strong>s, tem exotismo, sensualida<strong>de</strong>, música ligeira.<br />
Tudo o que o público quer e <strong>de</strong>seja! Vai vibrar!<br />
PRAXEDES O texto é meu, a direção é minha e o público vibra on<strong>de</strong> eu <strong>de</strong>terminar!<br />
FLORIS... Não po<strong>de</strong> subir num tijolo que já pensa que tem dois metros!<br />
PRAXEDES Que é que foi?<br />
FLORIS... (TENTANDO CONTER A RAIVA) Nada! Estou só remoendo,<br />
ruminando, resmungando...<br />
MADEIRA Segura a cabeça...<br />
FLORIS... Eu seguro e você soca!<br />
MADEIRA Segura a sua cabeça! Ele é o ensaiador.<br />
PRAXEDES E o autor.<br />
FLORIS... Magias do teatro! Até a semana passada era ponto!<br />
PRAXEDES Com muito orgulho! O ponto é o esteio, o fundamento do teatro.<br />
Sem o ponto metido naquela caixa, soprando o texto, vocês,<br />
atores, não existem.<br />
FLORIS... Só porque sabe ler <strong>de</strong> carreirinha...<br />
PRAXEDES Não me culpe por ser culto! E, <strong>de</strong>pois, quem é que dá a inflexão,<br />
o tom, o ritmo do espetáculo?<br />
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MADEIRA Está bem, Praxe<strong>de</strong>s, você é autor, ensaiador, ponto, mas não é<br />
músico! Fiz a cena baseada nos maiores sucessos do teatro<br />
musicado do Rio <strong>de</strong> Janeiro! Tem alegria, veneno, <strong>de</strong>scontração...<br />
Um entreato exótico com samba, maxixe, animação...<br />
PRAXEDES Até no Rio o teatro musicado está em crise. A nossa saída é<br />
um musical baseado nos nossos costumes. Falar <strong>de</strong> nossas<br />
montanhas repletas <strong>de</strong> ouro, <strong>de</strong> nossa infância, da brisa que<br />
sopra em nossos ouvidos trazendo o bimbalhar dos sinos <strong>de</strong><br />
nossas igrejas. Para o público se i<strong>de</strong>ntificar...<br />
FLORIS Um musical com garimpeiros, boia<strong>de</strong>iros, muita vaca, queijo,<br />
cuscuz <strong>de</strong> milho, costelinha com couve, ora pro nobis...<br />
PRAXEDES Não tripudia sobre a arte alheia!<br />
FLORIS Tem paciência, Praxe<strong>de</strong>s!<br />
MADEIRA Musical no Brasil, seja em Minas seja na Amazônia, tem <strong>de</strong> ter<br />
mulata, pan<strong>de</strong>iro e Morro da Urca! É disso que o público gosta!<br />
Você quer reinventar o musical?<br />
PRAXEDES Quero.<br />
MADEIRA Não dá pra discutir.<br />
FLORIS... A cena está tão bonita.<br />
MADEIRA E está pronta. Ainda está em tempo...<br />
PRAXEDES Foi com a minha idéia <strong>de</strong> um musical mineiro que o Sandoval<br />
se sensibilizou.<br />
FLORIS... Se sensibilizou foi em não ter <strong>de</strong> gastar um tostão. Se comoveu<br />
foi com sua idéia <strong>de</strong> usar figurinos <strong>de</strong> todas os musicais que a<br />
companhia já fez! A blusa não combina com a saia, que não<br />
combina com a meia que não combina com nada!<br />
PRAXEDES É uma peça não é <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong> moda!<br />
FLORIS Mas vaqueiro com chapéu <strong>de</strong> pluma? Garimpeiro com calça <strong>de</strong><br />
meia <strong>de</strong> nobre francês?<br />
MADEIRA Tem gente com um sapato <strong>de</strong> cada cor.<br />
PRAXEDES Primeiro que a gente precisa <strong>de</strong> um espetáculo. Segundo que a<br />
gente precisa <strong>de</strong> um espetáculo que tenha público. Terceiro<br />
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que gente precisa <strong>de</strong> um espetáculo que tenha público que pague<br />
ingresso! É só isso! Nem amigo vem ver nossos espetáculos,<br />
nem parente. Nem minha mãe veio na última estréia!<br />
MADEIRA Então põe a cena das arábias.<br />
PRAXEDES Nossa chance é um espetáculo genuinamente mineiro!<br />
MADEIRA Então, eu saio da companhia.<br />
FLORIS (AGARRA O BRAÇO DE MADEIRA) E eu vou junto!<br />
(ENTRA COISINHA E MEIRELES. ESTE CARREGA UM BEBÊ DE COLO)<br />
CENA 4 – O QUE O TEATRO DEVE SER?<br />
MEIRELES Vai aon<strong>de</strong> com o Ma<strong>de</strong>ira, Florisbela?<br />
FLORIS... (SOLTA-SE DE MADEIRA, ASSUSTADA) Vou? On<strong>de</strong>? Vou<br />
aon<strong>de</strong> eu ia. E eu ia no sentido figurado! No sentido figurado,<br />
Meireles! Era uma discussão nossa, aqui. (PEGA A CRIANÇA<br />
DE MEIRELES E LHE DÁ DE MAMAR)<br />
PRAXEDES (MALICIOSO) Sempre que dona Florisbela vai com Ma<strong>de</strong>ira é<br />
no sentido figurado. (COISINHA RI).<br />
FLORIS Você trouxe o Otelo. Aconteceu alguma coisa?<br />
MEIRELES A ama-seca escafe<strong>de</strong>u-se.<br />
FLORIS Também, coitada, há um mês sem receber um tostão... Trouxe<br />
as fraldas?<br />
MEIRELES Esqueci no café.<br />
FLORIS Café... Bebeu <strong>de</strong> novo na frente do menino.<br />
MEIRELES Ele nem percebeu. Precisava ver como ele chorava enquanto<br />
eu recitava o ápice do culto cívico <strong>de</strong>dicado a Tira<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> J.<br />
Mariano <strong>de</strong> Oliveira.<br />
FLORIS O menino está ensopado!<br />
MEIRELES Lágrimas brotavam nos olhos do pimpolho.Tão pequeno e já<br />
tão sensível!<br />
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FLORIS Era fome, <strong>de</strong>snaturado!<br />
MADEIRA Voltando ao assunto.<br />
PRAXEDES Àquele assunto não volto, Ma<strong>de</strong>ira!<br />
MEIRELES Que assunto?<br />
COISINHA O senhor Ma<strong>de</strong>ira e dona Florisbela estavam...<br />
MADEIRA (PREOCUPADO, CORTANDO COISINHA) Estávamos discutindo<br />
com o senhor Praxe<strong>de</strong>s os rumos <strong>de</strong> nosso teatro.<br />
MEIRELES (PROFESSORAL) Os rumos do nosso teatro são as comediazinhas<br />
inconseqüentes, a grosseria, mas <strong>de</strong>veriam ser as altas<br />
emoções, os refinados sentimentos. Que trajes sumários são<br />
esses, Florisbela?<br />
PRAXEDES Ela e o Ma<strong>de</strong>ira estavam...<br />
MADEIRA (CORTANDO) Estávamos ensaiando a cena que...<br />
MEIRELES Ela, assim? Seminua?<br />
FLORIS... Não sou eu, Meireles, é a personagem.<br />
COISINHA Ela está seminua no sentido figurado.<br />
MADEIRA (EMBARAÇADO) É... Como toda atriz ela... Empresta seu talento,<br />
sua voz, seu corpo... a um personagem!<br />
MEIRELES Sim, mas... a que tipo <strong>de</strong> personagem? (AUTOMATICAMEN-<br />
TE COISINHA, PRAXEDES E FLORISBELA OLHAM PARA<br />
MADEIRA QUE OLHA PREOCUPADO PARA MEIRELES.<br />
ESTE NADA PERCEBE. ESTÁ PERDIDO EM SEU RACIOCÍ-<br />
NIO) Eu também tenho emprestado meu corpo e talento... mas<br />
a um i<strong>de</strong>al artístico mais elevado...<br />
COISINHA (DIVERTINDO-SE, MEDE MADEIRA COM O OLHAR) O <strong>de</strong>la<br />
não é tão elevado assim!<br />
(MADEIRA FAZ GESTO IRRITADO A COISINHA)<br />
MEIRELES Não! Parece mais um personagenzinho ralé, rampeiro, ridículo<br />
e grosseiro, (ARRANCA A PERUCA DE FLORISBELA) bom<br />
<strong>de</strong> fazer figura em circo e nesses tabladinhos mambembes por<br />
aí!<br />
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LOPES (ENTRANDO) O que o senhor tem contra o circo e os mambembes?<br />
Eu sempre fui ator <strong>de</strong> teatro mambembe com muito<br />
orgulho.<br />
MEIRELES O teatro tem um papel civilizador, requintado que não se coaduna<br />
com o caráter selvagem e nôma<strong>de</strong> dos circos e dos<br />
mambembes!<br />
FLORIS... Eu, pelo menos, estou aqui dando o duro, suando... e não enxugando<br />
cachaça em balcão, enchendo a caveira em botecos...<br />
MEIRELES Eu bebo porque...<br />
FLORIS... Porque cachaça não dá pra comer! Se <strong>de</strong>sse, bebia no copo e<br />
comia na cuia!<br />
MEIRELES Bebo porque o teatro mais e mais per<strong>de</strong> a consistência artística!<br />
As comédias se multiplicam e temas vis como o adultério é<br />
o que lhes dá sustentação! On<strong>de</strong> estão os gran<strong>de</strong>s personagens?<br />
As gran<strong>de</strong>s emoções humanas?<br />
COISINHA Do ponto <strong>de</strong> vista do marido traído o adultério é uma gran<strong>de</strong><br />
emoção humana!<br />
(AS PESSOAS RIEM, MENOS MADEIRA, FLORISBELA E MEIRELES. ESTE<br />
FAZ UM GESTO DE ENFADO).<br />
MADEIRA O senhor não tem nada pra fazer, seu Coisinha? (COM UM<br />
GESTO IRRITADO ORDENA A COISINHA QUE SAIA. ESTE<br />
PERMANECE).<br />
MEIRELES A gran<strong>de</strong> emoção se ausentou dos palcos! É por causa disso<br />
que o público <strong>de</strong>sertou do teatro e as salas estão vazias.<br />
LOPES Estão vazias porque ninguém quer ir atrás do público!<br />
MADEIRA Tem é que saber o que o público gosta. E o público gosta é <strong>de</strong><br />
um bom musical.<br />
PRAXEDES Um musical novo, diferente! Reflexo <strong>de</strong> nossa própria cultura!<br />
MEIRELES Alta cultura, Praxe<strong>de</strong>s! Não esse pastiche musical...<br />
MADEIRA Pastiche, não! Queria o que? Um musical baseado na obra <strong>de</strong><br />
Lobo <strong>de</strong> Mesquita? Em canto gregoriano? Musical tem <strong>de</strong> ter<br />
mulata! E on<strong>de</strong> coloco uma cabrocha num musical sacro? Daqui<br />
a pouco vão querer montar uma Via Sacra!<br />
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LOPES Não interessa se é musical, drama ou tragédia, tem <strong>de</strong> sair, ir<br />
atrás do público! Isso o teatro <strong>de</strong>ve ser.<br />
TODOS: (CANTAM.) Digam-me, senhores,<br />
O porque da discussão?<br />
Estamos a <strong>de</strong>bater<br />
Assunto muito importante<br />
Mas meu interlocutor<br />
Não sabe ser elegante<br />
Tentava eu esclarecer<br />
Um músico equivocado<br />
Que apenas quer copiar<br />
O que já está empoeirado<br />
De fato, o teatro procura um caminho<br />
Que faça os aplausos voltarem a soar<br />
Os clássicos serão sempre minha escolha<br />
Comédias ligeiras não quero encenar<br />
A voz da nossa cultura<br />
O nosso jeito <strong>de</strong> ser<br />
Um gran<strong>de</strong> espelho das Minas Gerais<br />
É o que o teatro <strong>de</strong>ve ser!<br />
Um show <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s<br />
Convite ao pleno prazer<br />
Como se faz em outras capitais<br />
É o que o teatro <strong>de</strong>ve ser!<br />
Morada <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s tragédias<br />
Que nutrem e elevam nosso ser<br />
Valores que sempre serão imortais<br />
É o que o teatro <strong>de</strong>ve ser!<br />
PRAXEDES (IRRITADO) Está muito bom! Todo mundo já disse como a peça<br />
<strong>de</strong>ve ser! Agora eu digo como a peça vai ser: vai ser exatamente<br />
como a gente ensaiar! E a gente vai ensaiar a peça como<br />
eu concebi!<br />
(A DISCUSSÃO SE ACENDE MAIS FORTE. ENTRA GRACINHA E TOCA O<br />
TROMBONE FAZENDO SILÊNCIO)<br />
GRACINHA Vão fazer essa discussão em outro lugar que eu preciso ensaiar.<br />
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FLORIS... Era só o que faltava! Ainda assustou o menino!<br />
GRACINHA Mas ele tem <strong>de</strong> se acostumar, não é Hamlet?<br />
FLORIS Otelo!<br />
MEIRELES Hamlet! Um bonito nome para nosso próximo pimpolho.<br />
PRAXEDES Ah, dona Gracinha, estava mesmo esperando a senhora para o<br />
ensaio.<br />
FLORIS Até parece que já é a dona da Companhia.<br />
MEIRELES A concentração é farol que conduz o artista em sua travessia<br />
pelo mar obscuro e turbulento da criação!<br />
FLORIS Não gosto <strong>de</strong>ssas intimida<strong>de</strong>s com Dona Gracinha. (A GRACI-<br />
NHA) Todo mundo precisa ensaiar, querida, até quem não é<br />
amiguinha do produtor. A senhora é uma péssima companhia<br />
para os homens casados.<br />
GRACINHA E a senhora para os solteiros. E todo mundo tem <strong>de</strong> ensaiar<br />
até quem não é amante do compositor. (COISINHA RI. MEI-<br />
RELES OLHA SEM ENTENDER, MAS MADEIRA LOGO<br />
TRATA DE MUDAR DE ASSUNTO).<br />
MADEIRA Gracinha tem razão! Temos estréia logo mais, precisamos <strong>de</strong><br />
ensaio! Praxe<strong>de</strong>s, resolvi abrir não da minha cena!<br />
PRAXEDES Dentro <strong>de</strong> <strong>de</strong>z minutos, ensaio da cena do bar! Abigail já chegou?<br />
ABIGAIL (ENTRANDO) Estou chegando!<br />
PRAXEDES Finalmente! Rápido!<br />
(SAEM ABIGAIL, PRAXEDES E LOPES)<br />
MEIRELES Então, pelo que presumo, você está com amante, Ma<strong>de</strong>ira?<br />
(MADEIRA PARALISA A EXPRESSÃO, FLORISBELA DÁ<br />
UM GRITO) Que foi?<br />
FLORIS... (DÁ UM CASCUDO NO BEBÊ) Me mor<strong>de</strong>u! Quase me arranca<br />
o bico! (ESTENDE O BEBÊ A MEIRELES) Toma! Vai com o<br />
papai. (INSTINTIVAMENTE MADEIRA ABRE OS ABRAÇOS<br />
E DÁ UM PASSO NA DIREÇÃO DE FLORISBELA. ESTA,<br />
LANÇA-LHE UM OLHAR FURIOSO) Idiota!<br />
15
MEIRELES (OLHA-A PERPLEXO ENQUANTO MADEIRA DISFARÇA<br />
CRUZANDO OS BRAÇOS) Que foi que eu fiz?<br />
FLORIS... (IRRITADA) Nada! Você não fez nada! (DÁ O BEBÊ A MEI-<br />
RELES) Vamos! Cuida <strong>de</strong>le enquanto me apronto!<br />
MEIRELES (AO PASSAR POR MADEIRA) A <strong>de</strong>legada é fogo! Ainda mais<br />
no período das regras. Feliz você que não tem esposa, só amante.<br />
(SAEM MEIRELES E FLORISBELA)<br />
COISINHA Ao amante a mulher dá suas melhores horas!<br />
MADEIRA E o marido dá seus melhores tiros! Eu ainda tenho um colapso.<br />
COISINHA Gran<strong>de</strong>s riscos para gran<strong>de</strong>s paixões! Eu admiro os amantes.<br />
MADEIRA Pára com isso, seu Coisinha! Pensa que é fácil? Às vezes eu<br />
penso que é melhor ser corno. Ou não ter mais competência<br />
nas partes como o senhor. Ser amante é sina triste, exige cuidados,<br />
esforço, estratégia, tirocínio, planos <strong>de</strong> ataque e rotas<br />
<strong>de</strong> fuga! É uma árdua vocação, seu Coisinha! E, no final <strong>de</strong> tudo,<br />
uma besta como o Meireles ainda me dá um tiro na cara e a<br />
opinião pública vai arrastar meu nome na lama, me chamar <strong>de</strong><br />
safado e lhe dar razão!<br />
(SAEM. FICA SÓ GRACINHA QUE ENSAIA COM O TROMBONE. COISINHA<br />
FICA A OBSERVÁ-LA).<br />
CENA 5 – A CENA DE AMOR ESCONDE UM AMOR REAL.<br />
GRACINHA Que é?<br />
COISINHA Posso observar a senhora tocar? A senhora tem muito talento,<br />
a senhora tem a aura dos gran<strong>de</strong>s artistas. A senhora...<br />
GRACINHA Posso ensaiar, seu Coisinha?<br />
COISINHA Po<strong>de</strong>, claro. (FICA OLHANDO GRACINHA ATÉ QUE ELA<br />
FAZ UM SINAL PARA QUE ELE SAIA.) Desculpe. (<br />
COISINHA SAI. SANDOVAL ENTRA E COBRE, COM AS MÃOS, OS O-<br />
LHOS DE GRACINHA).<br />
16
GRACINHA Quem é?<br />
SANDOVAL (IRRITADO) Quem po<strong>de</strong>ria ser a não ser eu, Sandoval!<br />
GRACINHA Sandoval! Que é que está fazendo com essa camisa horrorosa<br />
que aquela sujeita te <strong>de</strong>u?<br />
SANDOVAL É que a sujeita é minha mulher. Ela quis que eu usasse...<br />
GRACINHA E <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando ela manda em você?<br />
SANDOVAL Não é bem mandar... ela <strong>de</strong>sejou, eu pon<strong>de</strong>rei, ela insistiu, eu<br />
argumentei, ela gritou. Foi isso!<br />
GRACINHA Sandoval, Sandoval! Você não sabe do que eu sou capaz!<br />
SANDOVAL Eu sou louco por você!<br />
GRACINHA Só acredito com o papel do <strong>de</strong>squite!<br />
SANDOVAL Mas não é assim, minha santa, isso <strong>de</strong>mora...<br />
GRACINHA Eu espero. Só que você vai ter <strong>de</strong> esperar também, amor! De<br />
agora em diante, só <strong>de</strong>squitando!<br />
SANDOVAL Mas...<br />
GRACINHA Mas, nada! Vai embora e não pense que, <strong>de</strong>sta, vez vai comprar<br />
minha boa vonta<strong>de</strong> com aqueles presentinhos michos...<br />
SANDOVAL E um anel <strong>de</strong> diamante?<br />
GRACINHA (PAUSA) De quantos quilates?<br />
SANDOVAL Muitos.<br />
GRACINHA Você roubou? Achou? On<strong>de</strong> está, meu amor?<br />
SANDOVAL Na loja, mas logo vai estar no seu <strong>de</strong>do. Estou em entendimentos<br />
com financistas para uma gran<strong>de</strong> jogada. É segredo. Se tudo<br />
<strong>de</strong>r certo ao final do espetáculo venho com a gran<strong>de</strong> notícia.<br />
GRACINHA E você produz aquele musical?<br />
SANDOVAL Produzo, Gracinha. Você vai ser a estrela e vamos viajar para o<br />
Rio, Buenos Aires... Um sucesso!<br />
17
GRACINHA Ah, Sandoval! Você já sentiu uma platéia <strong>de</strong> mil, mil e duzentas<br />
pessoas, todas te aplaudindo?<br />
SANDOVAL Não.<br />
GRACINHA Eu também não... Mas quero sentir! O público aplau<strong>de</strong> porque<br />
não po<strong>de</strong> abraçar, beijar quem lhe abriu o riso ou tocou seu coração.<br />
É isso que eu sinto quanto estou lá, do outro lado, assistindo<br />
na platéia o final <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> espetáculo. Acho que<br />
sou atriz para sentir isso: esse carinho momentâneo, mas forte,<br />
intenso, coletivo. (SUSPIRA E MUDA TOM). E dá pra ter isso<br />
neste teatrinho fuleiro?<br />
SANDOVAL Me espere e verá! A Cia Alcantil das Alterosas vai conquistar<br />
novos públicos. Novas ca<strong>de</strong>iras, novos equipamentos...<br />
GRACINHA Lustres <strong>de</strong> cristal!<br />
SANDOVAL Um novo saguão!<br />
GRACINHA Um guarda roupa inteirinho novo.<br />
SANDOVAL Espelhos, veludos.<br />
GRACINHA Uma máquina <strong>de</strong> lavar roupas.<br />
SANDOVAL Pra que máquina <strong>de</strong> lavar aqui no teatro?<br />
GRACINHA Que teatro? Estou falando da nossa casa! Casamos no Uruguai<br />
e passamos a lua <strong>de</strong> mel em Buenos Aires...<br />
SANDOVAL Preciso ir.<br />
GRACINHA Não me enrola, Sandoval.<br />
SANDOVAL Se tudo <strong>de</strong>r certo volto com boas notícias. (À SAÍDA.) E avisa<br />
o elenco pra ninguém ficar espiando o público pela cortina. Ator,<br />
antes do espetáculo quando vê a platéia vazia, xinga: “Produtor<br />
“fiadaputa”, nem pra trazer público presta!”. Quando olha<br />
e vê a platéia cheia, xinga <strong>de</strong> novo: “Produtor fiadaputa”, vai<br />
acabar rico nas minhas costas!”<br />
GRACINHA E produtor não é assim?<br />
SANDOVAL Po<strong>de</strong> ser, mas não gosto que falem! (SAI ).<br />
18
GRACINHA (GRITA) Abigail! (ENTRA ABIGAIL ATRAPALHADA AINDA<br />
SE VESTINDO) Me acompanhe no meu número.<br />
ABIGAIL Eu também preciso ensaiar o meu.<br />
GRACINHA Depois do meu. Vestido <strong>de</strong> “pois”, moda da última estação.<br />
ABIGAIL Mo<strong>de</strong>ração é uma virtu<strong>de</strong> e virtu<strong>de</strong> não saiu <strong>de</strong> moda para alguns...<br />
GRACINHA “Bota um <strong>de</strong>cote melhorzinho no vestido, não tenha medo que<br />
a feiúra não é nada”.<br />
ABIGAIL “Mulher feia encontrou marido enquanto a bonitona ficou encalhada”.<br />
GRACINHA “Castiga um pano mais legal no couro”.<br />
ABIGAIL Esta não é a música. E o tom é mi bemol<br />
GRACINHA “Castiga um pente que também ajuda”.<br />
ABIGAIL “Faz um solfejo que Deus nos acuda”.<br />
GRACINHA Vá ao piano ou se entenda com Sandoval!<br />
ABIGAIL (SENTA-SE AO PIANO. ERRA AS NOTAS PARA IRRITA-<br />
ÇÃO DE GRACINHA). É que eu só peguei a música ontem.<br />
GRACINHA Você tem cinco minutos pra apren<strong>de</strong>r a música. (SAI).<br />
ABIGAIL Mas eu também tenho <strong>de</strong> ensaiar minha cena! Que raiva! Abigail,<br />
faz isso! Abigail, faz aquilo! Me dá um nervoso e eu não<br />
quero obe<strong>de</strong>cer, mas obe<strong>de</strong>ço e aí me dá um nervoso porque<br />
eu obe<strong>de</strong>ci, aí erro tudo! Abigail, sua burra, você errou tudo!<br />
Ouvir isso, revolta. Aí, quero gritar <strong>de</strong>saforo, falar palavrão,<br />
plantar a mão na cara <strong>de</strong> quem me xingou. Mas você grita, você<br />
xinga, você faz, Abigail? Faz nada, você não tem é coragem!<br />
Sou educada! Você é frouxa! Aí eu me revolto por ser<br />
frouxa, fico nervosa, vermelha, tremo como agora que eu <strong>de</strong>via<br />
ir lá e dizer umas poucas e boas para a Gracinha, mas vou?<br />
Vou nada, aí...(GRITA A SI MESMA) Cala a boca, Abigail, que<br />
eu, a própria Abigail, já não estou te agüentando mais! (TENTA<br />
TOCAR A MÚSICA, MAS ERRA. TENTA NOVAMENTE, ER-<br />
RA). Tem horas que eu quero morrer! E tem horas que eu quero<br />
te matar, Abigail!<br />
19
(ENTRA LOPES)<br />
LOPES Não faz isso ou você será culpada também da minha morte.<br />
ABIGAIL (LEVANTA-SE ASSUSTADA) Ah, é você, Lopes? (UMA MÃO<br />
COMEÇA A TORCER NERVOSAMENTE A BLUSA. A OU-<br />
TRA MÃO DESFERE UM TAPA NA MÃO NERVOSA. ABIGA-<br />
IL RESPIRA FUNDO. ACALMA-SE). Sobre ontem à noite...<br />
LOPES (ESPERANÇOSO) Diz!<br />
ABIGAIL Sobre ontem à noite... O senhor lembra?<br />
LOPES Cada momento.<br />
ABIGAIL Então esqueça!<br />
LOPES Nunca! Você dançava maxixe como uma <strong>de</strong>usa grega.<br />
ABIGAIL Deusa grega dança maxixe?<br />
LOPES Uma <strong>de</strong>usa escandinava, latina, celta, mas uma <strong>de</strong>usa.<br />
ABIGAIL Foi o rabo <strong>de</strong> galo! Só tomei para esquentar o frio.<br />
LOPES Se tivesse aceitado meu beijo não sentiria frio.<br />
ABIGAIL Se não sentisse tanto frio acho que iria para sua casa.<br />
LOPES E se fosse, nunca mais voltaria para sua.<br />
ABIGAIL Ainda bem que tomei o rabo <strong>de</strong> galo. Ai, já não sei<br />
mais...Esquece a noite <strong>de</strong> ontem, seu Lopes.<br />
LOPES Não posso, Abigail. Sou apenas um homem <strong>de</strong>sesperado, prisioneiro<br />
dos seus olhos, perdido em seus caminhos, náufrago<br />
em seu oceano, mergulhado no abismo do que amo...<br />
ABIGAIL (SUFOCADA) Pára! Pára!<br />
LOPES Abigail, você sabe, eu era o primeiro palhaço <strong>de</strong> um circoteatro<br />
<strong>de</strong> fama que percorria essa região. O circo se foi e fiquei<br />
aqui pelos seus olhos. E por eles estou nessa Companhia sem<br />
futuro, há meses, comendo palha, jantando grama e cozinhando<br />
capim pra merenda.<br />
ABIGAIL O senhor não ficou porque o seu circo faliu?<br />
20
LOPES A falência me impediu <strong>de</strong> partir, a paixão me obrigou ficar. São<br />
duas coisas completamente diferentes!<br />
ABIGAIL Oh, seu Lopes, um artista como o senhor mereceria coisa melhor.<br />
LOPES Você é o melhor que eu mereço.<br />
ABIGAIL (PARA SI) Não, Abigail, nem pense! Você tem um noivo! (IR-<br />
RITADA) Que nunca lhe falou essas coisas, sua tonta!<br />
LOPES Agora eu sou só um palhaço triste, sem circo, sem público...<br />
ABIGAIL (PARA SI) Não escorrega que você cai, Abigail. E aí você não<br />
vai querer levantar que eu lhe conheço!<br />
LOPES Sem riso, sem graça, sem a graça do seu favor.<br />
ABIGAIL O senhor tem é lábia, seu Lopes, uma língua afiada, vermelha,<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> dois lábios tão...tão... (PARA SI) Sossega o pito, Abigail!<br />
Quieta o facho!<br />
LOPES Aceita minha proposta? Vou lhe dar a aventura <strong>de</strong> um circoteatro...<br />
ABIGAIL Ele tem emprego fixo.<br />
LOPES Horizontes nunca alcançados, estradas a serem percorridas...<br />
ABIGAIL Vou ter uma casa minha, um lugar no mundo.<br />
LOPES Lugares novos, paisagens <strong>de</strong> qualquer lugar... o mundo largo...<br />
ABIGAIL Ele quer me tirar <strong>de</strong>ssa vida <strong>de</strong> teatro, cheia <strong>de</strong> riscos, imprevistos...<br />
LOPES Eu quero te dar um tablado, uma paixão e o risco <strong>de</strong> viver com<br />
os olhos cheios e o coração em paz.<br />
ABIGAIL (MAIS INDECISA) Mas ele vai me dar um futuro!<br />
LOPES Só posso lhe dar o presente. O amor sempre presente, o sonho<br />
e a aventura. E assim, dia a dia, até chegar o futuro e até ir além<br />
do futuro.<br />
ABIGAIL (SUFOCADA) Mas ele é caixa do Banco do Brasil!<br />
21
LOPES (SENTE QUE PERDEU A PARADA). Aí a competição é <strong>de</strong>sleal.<br />
Desisto!<br />
ABIGAIL Não! (ELE FAZ MENÇÃO DE SAIR) Ainda não. (SUFOCADA)<br />
Eu já <strong>de</strong>cidi! Decidi que não vou <strong>de</strong>cidir nada agora! Depois.<br />
LOPES Depois quando?<br />
ABIGAIL Um dia.<br />
LOPES De que ano?<br />
ABIGAIL Não sei! Não quero falar sobre isso, não quero isso. Quer dizer,<br />
quero... Outra hora! (PARA SI) Per<strong>de</strong>u a oportunida<strong>de</strong> sua burra!<br />
Cala boca, que eu sei o que faço! Não faço nada sem pensar!<br />
Mas só pensa besteira, Abigail!<br />
LOPES Desculpa me intrometer na conversa das duas...<br />
ABIGAIL Não fala mais nada! Me ajuda a ensaiar minha cena. Ainda não<br />
sei direito e o Praxe<strong>de</strong>s me mata!<br />
(SENTA-SE E COMEÇA A TOCAR. LOPES, UM TANTO INCONFORMADO<br />
COMPÕE O PERSONAGEM E COMEÇA A DECLAMAR O TEXTO DA CENA<br />
COM FORTE ACENTO MELODRAMÁTICO. NO MEIO DA CENA ENTRA<br />
PRAXEDES).<br />
LOPES Fui boia<strong>de</strong>iro, homem <strong>de</strong> respeito e fama<br />
O meu nome está na lama por causa <strong>de</strong>ssa mulher!<br />
Sou um qualquer, perdi riqueza, orgulho, amigos,<br />
O céu tenho por abrigo, meus irmãos são a ralé!<br />
ABIGAIL Fui flor do campo, do sertão, lá dos confins<br />
Mas, na Capital, enfim, conheci o meu <strong>de</strong>stino<br />
Gosto mais fino, esqueci velhos amores<br />
Preferi novos sabores, outra vida não atino.<br />
LOPES Boca pintada, a fumar, vai pelas ruas<br />
Bebida, risos, palavras cruas, beijos, rasgam meu coração<br />
De mão em mão, ingrata!, tece a minha <strong>de</strong>sgraça<br />
Deus permita que eu não faça, o que me manda a paixão.<br />
(TIRA UM PUNHAL DA CINTURA, OLHA-O E TORNA A<br />
GUARDÁ-LO).<br />
ABIGAIL Às vezes, contra a vonta<strong>de</strong>, uma dor bate no peito<br />
Sauda<strong>de</strong> sem muito jeito, um coração que <strong>de</strong>scompassa<br />
22
Vonta<strong>de</strong> escassa <strong>de</strong> voltar ao que fui antes<br />
E assim eu sigo avante, bebo um gole e a dor passa.<br />
LOPES (CANTA). De bar em bar vivo vagando pelas ruas<br />
Qual mariposa em <strong>de</strong>sespero atrás <strong>de</strong> luz<br />
A lamentar a triste sina, o tormento<br />
Ao qual o meu cruel <strong>de</strong>stino me reduz<br />
Eu já passei por privações em minha vida<br />
Eu senti frio e fome e sei o que é a dor<br />
Mas nada po<strong>de</strong> comparar-se ao sofrimento<br />
Que é não ver retribuído o meu amor.<br />
Por que ela não foge comigo?<br />
Por que ela me maltrata assim?<br />
Por que não trilhar o meu caminho<br />
Eu sei que ela nasceu pra mim.<br />
(PRAXEDES COMEÇA A TOCAR E, COM UM GESTO, CHAMA OS OUTROS<br />
ATORES QUE TOCAM E SE INTEGRAM À CENA. LOPES E ABIGAIL DAN-<br />
ÇAM E OS PRÓXIMOS VERSOS SERÃO DECLAMADOS COM DUPLO<br />
SENTIDO).<br />
LOPES Vem comigo e eu esqueço o seu passado<br />
Caminhemos lado a lado, volte, flor, ao meu sertão!<br />
ABIGAIL Quem me guia é outra mão, em outra estrada vou, portanto,<br />
Quebrou-se o encanto, quem controla o coração?<br />
(ABIGAIL E LOPES CANTAM E DANÇAM A SEGUNDA PARTE DA MÚSICA<br />
DE FORMA MUITO MAIS “CALIENTE”. OS OUTROS ATORES SE ENTRE-<br />
OLHAM. AO FINAL OS DOIS PARAM QUASE A SE BEIJAR. LOPES INSIS-<br />
TE.)<br />
LOPES Aceita minha proposta?<br />
ABIGAIL (QUASE CEDENDO). Ah! Seu Lopes... Eu...<br />
COISINHA (TORCENDO) Vai, seu Lopes! Inaugura o monumento!<br />
(SÃO INTERROMPIDOS PELA ENTRADA INTEMPESTIVA DE FOFINHA E<br />
LINDINHA QUE ATRAVESSAM A CENA BRIGANDO, INCONSCIENTES DA<br />
INTERRUPÇÃO).<br />
23
CENA 6 – AS GÊMEAS<br />
LINDINHA (GRITA) Juro que não tive culpa, Fofinha!<br />
FOFINHA Que ódio! Que vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> te esganar! Vem aqui!<br />
LINDINHA (COMO CRIANÇA MEDROSA) Não vou!<br />
FOFINHA Vem!<br />
LINDINHA Vou, mas você não esgana! (APROXIMA-SE RECEOSA)<br />
FOFINHA Nunca mais! Nunca mais você joga charme pra cima do Aragão!<br />
LINDINHA Eu não jogo, Fofinha! Charme, em mim, <strong>de</strong>sborda, sai sem esforço<br />
cai sem intenção, <strong>de</strong> forma natural!<br />
PRAXEDES (GRITA) Isso são horas?<br />
LINDINHA (ASSUSTADA) Ái, Praxe<strong>de</strong>s! O senhor me mata a criança!<br />
LOPES (PARA LINDINHA) Tinha que entrar agora?<br />
ABIGAIL (PARA LINDINHA) Não sei se te soco ou te agra<strong>de</strong>ço!<br />
LINDINHA Nossa, gente! Que está acontecendo aqui?<br />
PRAXEDES (GRITA) Ensaio! A senhora lembra que pertence a uma troupe<br />
teatral?<br />
FOFINHA Não, essa <strong>de</strong>snaturada nem lembra que tem uma irmã gêmea!<br />
LINDINHA Não fala assim, Fofinha! Não tenho culpa se as minhas formas<br />
povoam a imaginação dos homens!<br />
PRAXEDES Basta! Daqui a pouco o público chega. Temos pouco tempo para<br />
acertar o espetáculo.<br />
MADEIRA Pela última vez, Praxe<strong>de</strong>s...<br />
PRAXEDES Pela última vez, Ma<strong>de</strong>ira, não! A cena da odalisca, não!<br />
FLORIS... (SAI PISANDO DURO) É bom que dê certo, Praxe<strong>de</strong>s, se não<br />
eu estou fora!<br />
MADEIRA E eu vou junto!<br />
24
PRAXEDES Vamos todos juntos! A gente vem <strong>de</strong> fracasso em fracasso.<br />
Nossa única chance é mudar!<br />
MEIRELES Então, por que não uma mudança radical? Algo consistente, <strong>de</strong><br />
verda<strong>de</strong>iro conteúdo cultural?<br />
PRAXEDES Estreamos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> meia hora, Meireles!<br />
MEIRELES Tenho um opúsculo, um pequeno monólogo em versos...<br />
(ATORES COMEÇAM A SAIR. LINDINHA COME UMA QUEIJADINHA).<br />
PRAXEDES Dentro <strong>de</strong> <strong>de</strong>z minutos passamos a cena do curral!<br />
MEIRELES Seu Praxe<strong>de</strong>s, eu gostaria <strong>de</strong> discutir...<br />
PRAXEDES Seu Meireles, não!<br />
MEIRELES E nem seria possível...<br />
PRAXEDES Nem!<br />
MEIRELES E se...<br />
PRAXEDES Não!<br />
MEIRELES (IRRITADO E SOLENE) Fora dos clássicos, do bom gosto, da<br />
alta cultura, só resta o achincalhe e a barbárie! (SAI, FURIO-<br />
SO)<br />
LINDINHA O que faz a bebida, né, seu Praxe<strong>de</strong>s! (PRAXEDES VOLTA-<br />
SE PARA LINDINHA, FURIOSO. LINDINHA RECEOSA OFE-<br />
RECE). O senhor quer um pedaço <strong>de</strong> queijadinha?<br />
PRAXEDES Não! Queria <strong>de</strong> vocês um pouco <strong>de</strong> disciplina, profissionalismo,<br />
como na Europa!<br />
FOFINHA Dizem que lá não tem mais ponto! Pro seu bem, é melhor a<br />
coisa ficar como está!<br />
PRAXEDES Não po<strong>de</strong> ficar como está porque no ensaio <strong>de</strong> ontem nenhuma<br />
das duas acertou a coreografia!<br />
FOFINHA Culpa da Lindinha que fica comendo no ensaio. E não é só no<br />
ensaio!<br />
LINDINHA (OFENDIDA) Acusa! Delata, sua Silvério dos Reis! Depois, eu<br />
é que sou a gêmea <strong>de</strong>snaturada! Se mamãe fosse viva!<br />
25
PRAXEDES (A FOFINHA) E a senhora, dona Fofinha, a senhora quer sempre<br />
aparecer tanto que estraga o número!<br />
FOFINHA Olha o meu tamanho! Eu preciso aparecer <strong>de</strong> algum jeito!<br />
LINDINHA (OFENDIDA) A inveja matou Abel, viu Fofinha! Que culpa eu<br />
tenho <strong>de</strong> ter muito mais centímetros quadrados <strong>de</strong> carne e volúpia<br />
do que você?<br />
PRAXEDES Essa é a questão. Quando entrou para a companhia a senhora<br />
tinha 55 quilos! Aumentou em largura, altura e profundida<strong>de</strong>,<br />
menos em habilida<strong>de</strong> para dançar!<br />
LINDINHA Precisa <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> quem não tem corpo!<br />
FOFINHA (SENTIDA) Tripudia, Lindinha! Não tenho corpo, mas tenho cabeça,<br />
„viu!<br />
LINDINHA E pra que uma corista precisa <strong>de</strong> cabeça?<br />
FOFINHA (DRAMÁTICA) Des<strong>de</strong> o ventre materno, seu Praxe<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
o ventre materno! Ela nasceu com três quilos e oitocentos, eu<br />
com novecentos e cinqüenta gramas! Nasci toda amassada,<br />
meio torta, porque não me sobrava espaço no útero <strong>de</strong> mamãe!<br />
LINDINHA Isso é coisa <strong>de</strong>sse negócio <strong>de</strong> trauma <strong>de</strong> neurose, Fofinha!<br />
Não é culpa minha!<br />
(ENTRA COISINHA).<br />
COISINHA O telão da apoteose não está pronto, a ribalta não acen<strong>de</strong>, a<br />
corda do contrapeso da cortina quebrou!<br />
PRAXEDES Obrigado, seu Coisinha! Qualquer problema no teatro tem solução,<br />
menos atores! (DESACORÇOADO) Que estréia, Santo<br />
Cristo, que estréia! (SAI).<br />
LINDINHA Você viu, Fofinha? Não tem competência e quer botar a culpa<br />
na gente!<br />
FOFINHA É mesmo. Como quer estrear bem se nem ensaiar ele ensaia?!<br />
(GRITA) Ah!, estou <strong>de</strong> mal <strong>de</strong> você!<br />
LINDINHA Estou pouco ligando, invejosa!<br />
FOFINHA Então, se vira com a coreografia!<br />
26
(DANÇA OS PASSOS DA COREOGRAFIA. LINDINHA SE EMBARAÇA EM<br />
VÁRIAS TENTATIVAS DE ACOMPANHÁ-LA. PARA E FAZ UMA POSTURA<br />
HUMILDE).<br />
LINDINHA Fofinha. (FOFINHA FAZ-SE DE SURDA) Fofinha, você me<br />
<strong>de</strong>sculpa? (IDEM) Me ensina.<br />
FOFINHA Quem tem corpo não precisa nem <strong>de</strong> cabeça nem <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>.<br />
LINDINHA Temos ligação, somos irmãs como Dircinha e Linda Batista!<br />
FOFINHA Como Caim e Abel, Esaú e Jacó...<br />
LINDINHA Somos gêmeas!<br />
FOFINHA (ESCANDINDO AS SÍLABAS) Bi vi te li nas! Óvulos separados,<br />
lembra? Cada embrião que siga o seu caminho!<br />
LINDINHA Mesmo ventre, mesma carne, mesmo sangue! Mamãe falou<br />
pra você cuidar <strong>de</strong> mim!<br />
FOFINHA (GRITA) Cruz! Cruz que eu <strong>de</strong>vo carregar! Que ódio! Lindinha,<br />
a próxima vez...<br />
LINDINHA Eu juro que não! Nunca, nunca mais e jamais!<br />
(FOFINHA SUSPIRA DESALENTADA E COMEÇA A ENSINAR OS PASSOS<br />
DA COREOGRAFIA À IRMÃ. ENTRA COISINHA).<br />
CENA 7 – ENSAIO IMPOSSÍVEL<br />
COISINHA (GRITA) Elenco no palco! Elenco no palco em dois minutos!<br />
LINDINHA Ai, eu não vou apren<strong>de</strong>r! Não vai dar tempo! Eu não tenho cabeça!<br />
FOFINHA Presta atenção que é a última vez que eu ensino!<br />
(FAZEM A COREOGRAFIA QUE TERMINA COM UM MUGIDO DADO POR<br />
LINDINHA E FOFINHA. MADEIRA PÕE MEIO CORPO EM CENA, IRRITA-<br />
DO).<br />
MADEIRA Semitonou, Lindinha! Subiu meio tom no mugido! (MUGE NO<br />
TOM PARA ELA APRENDER) Nem mugir você sabe?<br />
27
LINDINHA E vaca entra, lá, em conservatório <strong>de</strong> música pra mugir? Vaca<br />
tem <strong>de</strong> estudar canto? Só aqui que vaca tem <strong>de</strong> mugir no tom!<br />
MADEIRA Isso é um musical, não é um pasto! Tem <strong>de</strong> mugir afinado!<br />
(SAI).<br />
LINDINHA (PARA O PÚBLICO, EM APARTE) Depois <strong>de</strong> tudo, com meu<br />
currículo, a essa altura da vida, representar vaca <strong>de</strong>safinada!<br />
Só por muito amor à arte! (MUGE).<br />
FOFINHA Já é alguma coisa. Mugido é quase fala. Depois do mugido<br />
vem miado, grasnado, onomatopéias <strong>de</strong> várias espécies, interjeições<br />
variadas, monossílabos e finalmente falas.<br />
(ENTRA PRAXEDES).<br />
PRAXEDES Fala <strong>de</strong> figurante. Em teatro é assim: se começa é por baixo!<br />
Elenco! Quem não estiver aqui, agora, vai pra tabela!<br />
(ELENCO COMEÇA A ENTRAR INOPINADAMENTE).<br />
LINDINHA Sabe o que é, Fofinha? É medo! O público já nos adora. Imagina<br />
se além do meu corpo e da sua habilida<strong>de</strong> ainda tivéssemos<br />
fala?<br />
FOFINHA Mas eu quero. Quero ser uma atriz, Lindinha!<br />
LINDINHA Eu, não. Meu sonho é ser um corpo na imaginação do público!<br />
Toda a fama <strong>de</strong> Heddy Lammar está naquela cena <strong>de</strong> filme,<br />
naquele corpo nu. Porque não eu?<br />
FOFINHA Eu proíbo, Lindinha! Nu, não!<br />
LINDINHA Ah! E coberta só com um véu, dançando rumba?<br />
FOFINHA Não se atreva!<br />
(PRAXEDES QUE CONVERSAVA COM COISINHA, RECLAMA INCONFOR-<br />
MADO).<br />
PRAXEDES É uma porqueira! Uma porqueira estrear assim! Eu precisava<br />
<strong>de</strong> mais quinze dias! Ia ser o espetáculo perfeito!<br />
COISINHA Liga, não! Toda estréia <strong>de</strong> teatro sempre precisa <strong>de</strong> mais quinze<br />
dias!<br />
PRAXEDES Todo mundo presente? Então, vamos lá!<br />
28
ABIGAIL Seu Praxe<strong>de</strong>s, vai passar a música da Gracinha pra mim?<br />
GRACINHA Como é que é?<br />
PRAXEDES A gente andou pensando se não seria melhor para o espetáculo...<br />
GRACINHA Não seria!<br />
ABIGAIL Já <strong>de</strong>corei toda a coreografia.<br />
FLORIS Se quiser minha opinião...<br />
GRACINHA Ninguém quer!<br />
FLORIS A voz da Abigail fica bem melhor na música.<br />
PRAXEDES Só por experiência... A senhora não tem se dado muito bem<br />
nos agudos...<br />
MEIRELES A gente podia fazer uma votação. Quem acha que a música<br />
<strong>de</strong>ve passar para Abigail?<br />
(TODOS LEVANTAM A MÃO MENOS GRACINHA).<br />
GRACINHA Eu e o Sandoval somos contra! Ganhamos!<br />
PRAXEDES (INCONFORMADO) Ao ensaio!<br />
FLORIS Assim é fácil. Tem um produtor por baixo!<br />
GRACINHA Mais fácil ainda é ter um músico por cima!<br />
MEIRELES O que a senhora preten<strong>de</strong> dizer com tal ilação que não consigo<br />
apreen<strong>de</strong>r todo o sentido?<br />
GRACINHA Quer mesmo saber?<br />
MADEIRA (DESESPERADO) Chega <strong>de</strong>ssa discussão!Temos uma estréia<br />
e o público já <strong>de</strong>ve estar na porta! Ao ensaio! (PRAXEDES O<br />
ENCARA) Desculpe, Praxe<strong>de</strong>s! (PEDE, AFLITO) Por favor!<br />
PRAXEDES As coisas ficam como estão! Vamos à cena da construção da<br />
cida<strong>de</strong>. Nas posições!<br />
(ENQUANTO OS ATORES SE APRESSAM, COISINHA OLHA SEU RELÓ-<br />
GIO DE BOLSO E MENEIA A CABEÇA NEGATIVAMENTE. VAI À CAMPAI-<br />
29
NHA E DÁ O PRIMEIRO SINAL. TODOS SE IMOBILIZAM E OLHAM NA DI-<br />
REÇÃO DELE).<br />
COISINHA Não vai dar.<br />
PRAXEDES Eu preciso <strong>de</strong> tempo!<br />
COISINHA Isso não é comigo. Atrasamos a estréia?<br />
PRAXEDES Não! Não são <strong>de</strong>z minutos que vão resolver nosso problema.<br />
(COISINHA FAZ UM GESTO IRÔNICO DE CONCORDÂNCIA.<br />
OS ATORES OLHAM ALARMADOS, EM SUSPENSE, PARA<br />
PRAXEDES). Vamos estrear na unha!<br />
(A AFLIÇÃO SE INSTALA. CORREM PARA UM LADO E OUTRO, TENTAM<br />
TROCAR-SE, COISINHA COSTURA O FIGURINO DE MADEIRA.)<br />
GRACINHA (A ABIGAIL) Não me erre a música! (AFASTA-SE)<br />
ABIGAIL Não me erre a voz! (PARA SI) Era o que você <strong>de</strong>via dizer a ela,<br />
Abigail!<br />
FLORIS Segura dois minutinhos pra eu dar <strong>de</strong> mamar à criança senão<br />
ela chora no meio do espetáculo.<br />
(SAI. COISINHA DÁ O SEGUNDO SINAL. A AFLIÇÃO CRESCE DE INTEN-<br />
SIDADE.)<br />
MEIRELES (PARA SI) Preciso <strong>de</strong> um conhaque para caminhar ao calvário<br />
que vai ser esse espetáculo!<br />
(LINDINHA E FOFINHA COLOCAM AS CABEÇAS DE VACA).<br />
LINDINHA Me ensina os passos <strong>de</strong> novo, Fofinha.<br />
(FOFINHA ENSINA, LINDINHA TENTA ACERTAR OS PASSOS. MUGE).<br />
MADEIRA Acerta o tom, Lindinha!<br />
(ATORES VESTEM-SE, REPASSAM MARCAS, EXPRESSÕES, POSTU-<br />
RAS.)<br />
PRAXEDES (ENTRA NA CAIXA DO PONTO) Atenção! Muita calma e concentração!<br />
Tenho certeza que vai dar tudo certo pela simples<br />
razão que até agora só <strong>de</strong>u tudo errado! Só nos resta subir do<br />
fundo do poço! Muita animação! Merda pra todos nós!<br />
30
FLORIS (ENTRA, PARA SI) Pelo andar do carro <strong>de</strong> boi vai dar merda<br />
mesmo. E muita!<br />
(PRAXEDES DÁ O TERCEIRO SINAL. A UM GESTO DE PRAXEDES INICIA-<br />
SE O PRELÚDIO MUSICAL E ABREM-SE AS CORTINAS).<br />
CENA 08 – ADEUS CURRAL DEL REI<br />
MEIRELES TOMA UM GOLE DE UMA GARRAFA DE BOLSO, COMPÕE-SE,<br />
VIRA-SE PARA O PÚBLICO FICTÍCIO AO FUNDO E INICIA UMA GRANDI-<br />
LOQÜENTE DECLAMAÇÃO.<br />
MEIRELES Muitos pe<strong>de</strong>m favor, outros imploram perdão e, assim, todos<br />
seguem pedindo amor, carinho, prata ou pão! Eu, no entanto,<br />
peço apenas um pouco <strong>de</strong> sua imaginação. Imaginem o vale<br />
<strong>de</strong> luxuriante vegetação que se per<strong>de</strong> <strong>de</strong> vista até o horizonte<br />
das montanhas. Imaginem estranhas fragrâncias, perfumes <strong>de</strong><br />
raras essências que evolam das matas ao ar aquecido pelo sol<br />
sempre presente. Imaginem mais! Cristais <strong>de</strong> luz, nobres águas<br />
lustrais! E no meio <strong>de</strong> tudo, o homem ru<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sconfiado e mudo,<br />
nobre e digno como um pastor da augusta e antiga grécia.<br />
Esse é nosso solo, aquele é nosso homem.<br />
(ENTRA CAIPIRA E MULHER.)<br />
ATORES (CANTAM). O vale é cercado por montanhas<br />
Os rios têm peixes a nadar<br />
As árvores têm mil passarinhos<br />
E os frutos não param <strong>de</strong> brotar<br />
O vento é quem sopra a melodia<br />
Que então faz cantar os animais<br />
É tudo uma gran<strong>de</strong> sinfonia<br />
A paz que Curral <strong>de</strong>l Rey nos traz<br />
Mu-mu-mu-mu-um<br />
Curral <strong>de</strong>l Rey<br />
Mu-mu-mu-mu-um<br />
É o meu rincão<br />
Mu-mu-mu-mu-um<br />
É o luar<br />
Mu-mu-mu-mu-um<br />
Do meu sertão<br />
31
Agua<strong>de</strong>iros tem<br />
Violeiros tem<br />
Cachoeiras aqui tem também<br />
Tem tropeiros, tem<br />
Tem vaqueiros, tem<br />
E nascentes aqui tem também<br />
Mu-mu-mu-mu-um...<br />
Aguar<strong>de</strong>nte tem<br />
Boa gente tem<br />
Amiza<strong>de</strong> aqui tem também<br />
Tem minérios, tem<br />
Tem pomares, tem<br />
Paisagens bonitas também<br />
Curral <strong>de</strong>l Rey é o próprio paraíso<br />
Deus fez e pôs a gente pra cuidar<br />
E quando for o dia do juízo<br />
Bem junto <strong>de</strong>le nós vamos ficar.<br />
MEIRELES E o nosso campônio, livre e <strong>de</strong>scuidado, espera. Um novo tempo,<br />
nova era, como um lavrador egípcio, um bucólico camponês<br />
romano ele espera. (NUM CRESCENDO) Do alto das alcantiladas<br />
montanhas ele franze o cenho e vislumbra o futuro<br />
que vem, o engenho, a força humana, as máquinas, o trem!<br />
Cruzam os ares <strong>de</strong> Curral <strong>de</strong>l Rey os secos sons do trabalho, a<br />
bigorna, o malho, os estalidos do ferro, or<strong>de</strong>ns, alarido, o frêmito<br />
do progresso como vozes <strong>de</strong> a<strong>de</strong>us! A<strong>de</strong>us Curral <strong>de</strong>l Rey!<br />
(CAMPONÊS TANGE OS BOIS PARA FORA. TEM ALGUMA DIFICULDADE<br />
EM TIRAR AS CORISTAS DE CENA QUE INSISTEM EM APARECER).<br />
CAMPONÊS Num turtuvia, num turtuvia, maiada! Aqui num tem mais nada<br />
pro bico d‟ocês! Isso aqui tá tudo virando uma borresca!<br />
CAMPONESA Óia, lá embaixo! Como cresce casa, prédio mais <strong>de</strong> carreira<br />
que pé <strong>de</strong> milho!<br />
CAMPONÊS E as rua, então? Tudo retin, retin, tudo às direita, feito linha esticadinha!<br />
Tudo coisa <strong>de</strong> genheiro!<br />
CAMPONESA Ma, óia! Eita, povo! Já tão <strong>de</strong>rrubando o que levantaram prá<br />
erguer <strong>de</strong> novo.<br />
32
CAMPONÊS Progresso é assim. Daqui a pouco eles põem tudo abaixo pra<br />
fazê <strong>de</strong> travêis!<br />
CAMPONESA Vigia, home! Óia aquela ruona cheia <strong>de</strong> curva! Lá, on<strong>de</strong> cabaro<br />
co‟as cerca dos currá! É ela que tá cercano todo o Currá <strong>de</strong>l<br />
Rey!<br />
(ENTRA ALEGORIA DA AVENIDA DO CONTORNO).<br />
COMPONÊS Nossa! Que bitelona! Ieu vou lá perto pra vê mió os recurvado<br />
<strong>de</strong>la!<br />
CAMPONESA Ai <strong>de</strong> ocê, se poisá um <strong>de</strong>do minguinho naquelas curva!<br />
CAMPONÊS Ieu vô! Oi, lá! Todo mundo <strong>de</strong>ssas paragem tá ino! Ó, lá, os cabôco<br />
se per<strong>de</strong>ndo nas curva <strong>de</strong>la! Até cabôco mais “nhampam”<br />
que ieu já passiô nos contorno <strong>de</strong>la! Ieu vô! Toda novinha,<br />
lisinha, <strong>de</strong>ve <strong>de</strong> tê até os matinho tudo aparadim!<br />
CAMPONESA Ocê num inventa moda, seu traste!<br />
CAMPONÊS Só vô cunhecê!<br />
CAMPONESA Vai cunhecê relho! Ocê fica aqui e se contenta com esse seu<br />
grotão véio! (CORRE ATRÁS DO CAMPONÊS QUE FOGE)<br />
AVENIDA Que o Rio <strong>de</strong> Janeiro tem praias e montanhas<br />
Isso ninguém vai po<strong>de</strong>r negar<br />
Que São Paulo tem progresso e viadutos em excesso<br />
Isso eu nem preciso comentar<br />
Pois toda cida<strong>de</strong> sempre tem sua belda<strong>de</strong><br />
Tem seu “it”, seu “bijou”, seu “sex appeal”<br />
Eu aqui sou símbolo da tal mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
A mais curvilínea via do Brasil<br />
Eu vivo abraçando esta cida<strong>de</strong><br />
Isso só me dá satisfação<br />
Nos morros <strong>de</strong>safio a gravida<strong>de</strong><br />
E <strong>de</strong>ixo as outras vias sem ação<br />
Seii que <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra<br />
Todos vão em mim <strong>de</strong>sembocar<br />
Eu sou a guia, sou o horizonte<br />
Aos olhos <strong>de</strong> quem nunca vê o mar<br />
33
Avenida do Contorno<br />
Quantas curvas tu terás<br />
Nelas sempre nos per<strong>de</strong>mos<br />
Mas sem ti nós não vivemos<br />
E a queremos sempre mais<br />
Eu serei o vosso adorno<br />
Venham, po<strong>de</strong>m transitar<br />
Mas não gosto <strong>de</strong> exageros<br />
De quem é veloz <strong>de</strong>mais<br />
E só pneus põe pra cantar<br />
Avenida do contorno<br />
Teus escravos vamos ser<br />
Tendo em troca tuas curvas<br />
Tuas regras, teus sinais<br />
Pois aqueçam seus motores<br />
Sou todinha <strong>de</strong> vocês<br />
Mas sem engarrafamentos<br />
Quero um <strong>de</strong> cada vez<br />
(COISINHA ENTRA EM CENA PARA ESPANTO DOS ATORES).<br />
COISINHA Po<strong>de</strong> parar que o público foi todo embora!<br />
PRAXEDES Como é que é?<br />
MEIRELES Embora como? Quem mandou?<br />
(CORREM TODOS AO PROSCÊNIO).<br />
LINDINHA Nem o meu gabiru ficou!<br />
GRACINHA (ATARANTADA) Saíram na minha cena? Como?<br />
COISINHA Eu <strong>de</strong>via ter trancado a porta.<br />
LINDINHA Não quiseram saber do Contorno. Pegaram a Amazonas direto<br />
e chisparam.<br />
MADEIRA Se a gente tivesse colocado a cena das arábias...<br />
FLORIS É verda<strong>de</strong>, cansamos <strong>de</strong> falar.<br />
LOPES Como é que eu fui entrar nessa?<br />
34
MEIRELES O público está cansado. As gran<strong>de</strong>s paixões tem <strong>de</strong> voltar ao<br />
teatro!<br />
GRACINHA Fica quieto, Meireles! Como é que ficamos, hein, Praxe<strong>de</strong>s?<br />
PRAXEDES (ACABRUNHADO) Eu não entendo! Eu tinha certeza que...<br />
MADEIRA (CORTANDO) Tinha certeza, uma pílula! Você foi cabeça dura!<br />
PRAXEDES Fui e continuo sendo! Sua cena é uma porqueira e não entra<br />
no meu espetáculo...<br />
MADEIRA Entrouxa o seu espetáculo!<br />
LINDINHA Calma, gente!<br />
FLORIS... Tudo bem, vamos ficar calmos, mas o Praxe<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse<br />
vexame, podia <strong>de</strong>scer <strong>de</strong> cima do tijolinho <strong>de</strong>le! Como é que a<br />
gente fica? Tenho um recém-nascido pra sustentar!<br />
FOFINHA E eu tenho uma irmã crescida!<br />
PRAXEDES A gente não teve divulgação... A gente <strong>de</strong>via ir aos jornais, fazer<br />
cartazes... Tenho um amigo na rádio...<br />
LOPES O público até que veio. O problema é como impedir que ele se<br />
vá antes <strong>de</strong> acabar o espetáculo!<br />
PRAXEDES O que o senhor quer dizer?<br />
MADEIRA Quer dizer o que disse! O espetáculo é uma bomba!<br />
MEIRELES Acho que falta consistência!<br />
PRAXEDES Amanhã vou mudar, vou ensaiar <strong>de</strong> novo todo o espetáculo!<br />
FLORIS É trocar seis por meia dúzia!<br />
MADEIRA Pra mim, chega! Estou fora <strong>de</strong>sse espetáculo! A<strong>de</strong>us!<br />
LOPES Isso não resolve!<br />
FLORIS Assim também, não, Ma<strong>de</strong>ira! Pular fora agora, não!<br />
MADEIRA E fazer o que? Esse é nosso terceiro fracasso seguido!<br />
FOFINHA Sei lá, gente! Remontar uma peça, sair em viagem com o espetáculo,<br />
não sei! A gente não po<strong>de</strong> é ficar assim!<br />
35
LOPES Viajar não está fácil. Ultimamente não conheço uma só companhia<br />
que chegou melhor do que saiu.<br />
PRAXEDES Eu não sei o que fazer. Alguém sabe?<br />
MADEIRA Se tivesse colocado a minha cena...<br />
PRAXEDES (EXPLODINDO) Se tivesse, se tivesse! Depois que a coisa aconteceu<br />
todo mundo sabe o que ia acontecer! Quer saber?<br />
Se, há vinte anos, eu tivesse algum juízo, não tinha entrado<br />
nessa vida! Isso é uma arte ingrata!<br />
ABIGAIL Que é isso, seu Praxe<strong>de</strong>s?<br />
PRAXEDES Nada, só estou cansado. Foram anos, dona Abigail, anos metido<br />
naquela caixa dizendo texto, ensaiando, gastando a vida a<br />
troco <strong>de</strong> dinheirinho minguado, pouco mais que nada. Isso é<br />
uma arte ingrata.<br />
COISINHA Não fala isso, Praxe<strong>de</strong>s! Houve muito aplauso, houve até sucesso...<br />
PRAXEDES Isso não paga, Coisinha! Não paga a tristeza <strong>de</strong> hoje nem o<br />
cansaço <strong>de</strong> todos esses anos.<br />
LINDINHA (EMOCIONADA) Não fala assim, Praxe<strong>de</strong>s!<br />
PRAXEDES Todo mundo em cima <strong>de</strong> mim, mas quantos teatros na cida<strong>de</strong><br />
estão lotados? Os teatros têm sempre muitas ca<strong>de</strong>iras e pouco<br />
público. Alguma coisa está errada com o teatro ou com a gente<br />
ou com o público. Não sei o que é. Talvez o teatro esteja acabando.<br />
Acho que o que a gente faz não interessa mais ao público.<br />
LOPES O que o senhor quer dizer? A companhia vai se dissolver?<br />
FLORIS Como dissolver?<br />
MEIRELES Tem <strong>de</strong> ter uma solução! Faz anos que trabalhamos juntos!<br />
FOFINHA Vai dissolver? Eu ainda não consegui fala!<br />
PRAXEDES Para ser frio e franco, acho que vai! O Sandoval não vai querer<br />
produzir outra peça. Que acha, Gracinha?<br />
GRACINHA Bem, ele me falou que estavam negociando... (PAUSA) Não,<br />
eu acho que não.<br />
36
PRAXEDES Repito a pergunta: alguém sabe o que fazer?<br />
MADEIRA (BAIXO, PARA FLORISBELA) A gente po<strong>de</strong> ir tentar a sorte<br />
no Rio <strong>de</strong> Janeiro, eu e você...<br />
FLORIS Mas, tenha paciência, Ma<strong>de</strong>ira. Você não percebeu o que está<br />
acontecendo?<br />
(FLORIS AFASTA-SE E SENTA-SE PERTO DE MEIRELES. ABIGAIL LE-<br />
VANTA-SE. ELA E LOPES SE OLHAM. APÓS UM MOMENTO DE INDECI-<br />
SÃO ABIGAIL CORRE PARA OS BASTIDORES).<br />
COISINHA Vai atrás <strong>de</strong>la, seu Lopes.<br />
LOPES Artista só po<strong>de</strong> oferecer ilusão e aventura, seu Coisinha. Sem a<br />
Companhia não tenho chance. Ela vai escolher o bancário. E<br />
ela está certa.<br />
LINDINHA Teatro acaba, Fofinha?<br />
FOFINHA Sei lá, acho que acaba. E eu nem consegui fala, Lindinha! Quero<br />
saber como vamos pagar o aluguel.<br />
LINDINHA Olha, tem um fotógrafo, aí, que anda ambicionando uns retratos<br />
meus, assim, bem à vonta<strong>de</strong>...Quer fazer uns cartões pra<br />
ven<strong>de</strong>r lá em São Paulo...<br />
FOFINHA Nunca, Lindinha, nunca!<br />
MADEIRA Bem, vamos esfriar a cabeça. Amanhã a gente conversa melhor.<br />
Vou andando.<br />
GRACINHA Eu também... Eu preciso...<br />
(NÃO SE MOVEM. AS PESSOAS FICAM EM SILÊNCIO, SEM AÇÃO, ENSI-<br />
MESMADAS. AOS POUCOS COMEÇAM A CANTAR ALGO RELACIONADO<br />
À CONDIÇÃO DO ARTISTA OU SOBRE A PERPLEXIDADE D<strong>ESSE</strong>S MO-<br />
MENTOS QUE PARECEM SEM SAÍDA. DEPOIS DE CANTAR AS PESSOAS<br />
SE ENTREOLHAM EM SILÊNCIO.)<br />
LINDINHA Gente, alguém diz alguma coisa se não eu vou chorar!<br />
(SANDOVAL ENTRA EUFÓRICO).<br />
37
CENA 9 – A ILUSÃO E A AVENTURA<br />
SANDOVAL Boa noite!<br />
LINDINHA (DESOLADA) Explica melhor o que o senhor quer dizer.<br />
SANDOVAL Que é isso? Ânimo! Eu consegui!<br />
FLORIS Nós, não!<br />
SANDOVAL Vamos! Que é isso? Vamos comemorar!<br />
GRACINHA (IRRITADA) A peça foi um fracasso, Sandoval, não dá pra perceber?<br />
LOPES Uma semana inteira <strong>de</strong> trabalho, expectativa...<br />
PRAXEDES (INCONFORMADO) Eu tinha certeza que ia dar certo, seu<br />
Sandoval! Que diacho que o público quer? Streap-tease?<br />
FOFINHA (A LINDINHA QUE SE INTERESSOU) Quieta o facho, Lindinha!<br />
SANDOVAL O público quer imagens em movimento, o público quer cinema!<br />
Nada <strong>de</strong> palco! Nada <strong>de</strong> ator em carne e osso! Tela, projetor,<br />
imagens em movimento! Isso é o futuro!<br />
GRACINHA E o teatro, Sandoval!<br />
SANDOVAL O público não quer mais teatro. Vocês mesmo acabaram <strong>de</strong><br />
perceber. Os tempos mudam...<br />
PRAXEDES Isso quer dizer que o senhor não vai produzir mais teatro.<br />
SANDOVAL Exatamente. No que me diz respeito o teatro acabou, morreu!<br />
Quero cinema! Milhares, milhões <strong>de</strong> espectadores!<br />
GRACINHA E nós? O que vamos fazer, Sandoval?<br />
SANDOVAL Cinema! Vocês são atores, não são? O que está morrendo é o<br />
teatro, não os atores. Consegui investidores para criar a Companhia<br />
Cinematográfica Alcantil das Alterosas!<br />
FLORIS Nós vamos fazer cinema?<br />
(ABIGAIL RETORNA)<br />
38
SANDOVAL Exato! Vocês vão ser nossos Rodolfo Valentino, Pola Negri,<br />
Mary Pickford... Filas <strong>de</strong> quinhentos, oitocentos, mil espectadores<br />
todos os dias! Que me dizem? Que me dizem?<br />
(OS ATORES GRITAM DE CONTENTAMENTO).<br />
MEIRELES Clássicos! As gran<strong>de</strong>s paixões humanas na tela! Hamlet!<br />
SANDOVAL Por enquanto, não, Meireles. Eu estava pensando em algo<br />
mais ao gosto do público... Um tema como... traição conjugal!<br />
MEIRELES Mas isso é vulgar, rasteiro!<br />
MADEIRA Engano seu, Meireles! Sob a aparência da traição conjugal po<strong>de</strong>mos<br />
louvar as características sedutoras da mulher brasileira,<br />
enaltecer a árdua e útil função que exerce o amante no equilíbrio<br />
do casal monogâmico! Discutir a sensualida<strong>de</strong> tropical...<br />
SANDOVAL Isso, isso mesmo, Ma<strong>de</strong>ira! Você pegou bem o espírito da coisa!<br />
Faremos muitas fitas, Meireles! Comecemos por baixo, mas<br />
se prepare, pois logo chegaremos a Hamlet! Ma<strong>de</strong>ira, o senhor<br />
podia se encarregar da história. O mundo gira e muda, meus<br />
amigos, e nós <strong>de</strong>vemos acompanhar as mudanças! (BEIJA AS<br />
MÃOS DE GRACINHA) A<strong>de</strong>us, minha diva, minha Marlene Dietrich.<br />
Estou pensando num papel <strong>de</strong> arromba pra você. Haverá<br />
gran<strong>de</strong>s papéis pra todo mundo! (PERCEBE PRAXEDES E<br />
COISINHA) Bem, pra quase todo mundo! (A PRAXEDES) Infelizmente<br />
o cinema não usa ponto...<br />
PRAXEDES Entendi, seu Sandoval! Hoje eu entendi muita coisa! (APERTA<br />
A MÃO DELE) Obrigado por tudo e a<strong>de</strong>us!<br />
SANDOVAL É fantástico, pessoal! Vocês vão viajar por todo o Brasil!<br />
LINDINHA Vamos?<br />
SANDOVAL Vocês ficam, a arte <strong>de</strong> vocês vai. Sem gastos <strong>de</strong> hospedagem,<br />
transporte, alimentação...Só duas latas <strong>de</strong> celulói<strong>de</strong>! Isso é o<br />
futuro!<br />
(SANDOVAL SAI OVACIONADO. OS ATORES EUFÓRICOS SE ABRAÇAM<br />
E SAEM RUIDOSAMENTE. FICAM APENAS PRAXEDES E COISINHA QUE<br />
SE OLHAM, DESOLADOS).<br />
COISINHA Não sei o que dizer.<br />
39
PRAXEDES Quando a gente não sabe o que dizer é porque não há nada a<br />
ser dito, seu Coisinha. Um dia as coisas acabam.<br />
COISINHA Mas o Teatro?<br />
PRAXEDES O mundo está mudando ligeiro e <strong>de</strong> vez! Não duvido <strong>de</strong> mais<br />
nada!<br />
COISINHA Que vai fazer?<br />
PRAXEDES Beber, beber muito. Parece que estou acordando <strong>de</strong> um sonho<br />
<strong>de</strong> muitos anos. No sonho eu estava vivo, tenho certeza. Acordo<br />
na ari<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um dia comum e já não tenho certeza <strong>de</strong> nada.<br />
Po<strong>de</strong> parecer doido, mas eu amo essa arte ingrata.<br />
COISINHA Vamos fazer o que? Viver do que?<br />
PRAXEDES A gente acaba se arranjando. Posso voltar pra minha cida<strong>de</strong> no<br />
interior e ser tropeiro. Ou ficar por aqui e ser motorneiro <strong>de</strong><br />
bon<strong>de</strong>. Não é gran<strong>de</strong> coisa, mas pelo menos são profissões<br />
que nunca vão acabar! Até qualquer dia.<br />
(SAI COISINHA FICA SÓ OUVINDO A BULHA DOS ATORES DENTRO).<br />
LINDINHA Nem acredito, Fofinha, nós na fita! Qual será meu papel?<br />
FOFINHA No cinema eu vou ter fala, tenho certeza! Vou ser uma atriz!<br />
GRACINHA Milhões <strong>de</strong> pessoas vão me ver. Até na mais pequena cida<strong>de</strong>zinha.<br />
LOPES Uma vez, representava um drama num lugarejo nos confins da<br />
beirada do mundo, na curva do vento, quando uma mulher se<br />
levanta na platéia, sobe ao tablado, inva<strong>de</strong> a cena e me esten<strong>de</strong><br />
a mão num cumprimento: “A<strong>de</strong>scurpe ir embora in ante <strong>de</strong><br />
terminá, ela disse, mas careço <strong>de</strong> fazer janta p‟r‟um marido que<br />
tenho, mei doentado, num sabe? Gostei muito <strong>de</strong>ssas proeza<br />
<strong>de</strong> artista <strong>de</strong> ocês!” Olhou com raiva para o vilão e arrematou:<br />
“Fé em Deus, meu filho, que seu sofrimento há <strong>de</strong> acabar! Ele<br />
há <strong>de</strong> lhe ajudá na <strong>de</strong>manda contra aquele traste malino, sem<br />
alma, sem lei nem regra!” E, sem cerimônia, saiu <strong>de</strong> cena. É a<br />
melhor sauda<strong>de</strong> que conservo do teatro.<br />
ABIGAIL No filme eu podia ter uma cena <strong>de</strong> beijo com o Lopes! Esfria,<br />
Abigail, esfria! Esfria, nada, <strong>de</strong>ixa pegar fogo, criatura!<br />
40
MEIRELES Eu bebo porque o tempo está passando... e eu sou um talento<br />
dramático mal aproveitado, perdido em meio a comediazinhas!<br />
Se Deus quiser, no cinema vou falar à alma do ser humano!<br />
Isso merece um conhaque pra comemorar!<br />
FLORIS Não sei o que faria sem a Companhia!<br />
MADEIRA Finalmente vou fazer a história que quero com as cenas que<br />
quero, com as músicas que quero.<br />
FLORIS E com a estrela que você quer!<br />
MADEIRA Não, nesse filme a estrela ainda vai ter <strong>de</strong> ser a Gracinha, mas<br />
logo, logo...<br />
LINDINHA Viva o cinema! Viva o Sandoval!<br />
(GRITAM. UM ACORDEON COMEÇA A TOCAR.)<br />
COISINHA Lá vão eles correndo atrás <strong>de</strong> ilusão e aventura. Artista é assim:<br />
não po<strong>de</strong> ouvir um canto <strong>de</strong> sereia, um projeto novo, um<br />
aceno <strong>de</strong> produtor. Ah, eu invejo os artistas. Que é que você<br />
vai fazer, Coisinha, sem essas velhas cortinas, esse velho tablado,<br />
essas coisas todas que trazem a lembrança dos velhos<br />
atores e atrizes? Sem os fantasmas que atestam que o teatro<br />
já foi vivo? “Apaga-te débil facho que a vida não é mais que<br />
uma sombra passageira”. O teatro passa como a vida, mas no<br />
teatro a vida parece tão mais longa e tão mais intensa. Não é,<br />
mas como é bom parecer que é! Um teatro não <strong>de</strong>via acabar<br />
antes da gente!<br />
(CANTA EMOCIONADO A MESMA CANÇÃO QUE ABRIU A PEÇA.)<br />
FIM DA PRIMEIRA PARTE<br />
41
SEGUNDA PARTE<br />
CENA 01 – ESTRÉIA FRUSTRADA<br />
(UM FOCO DE LUZ SE ACENDE NO PALCO E NELE ENTRA SANDOVAL,<br />
VESTIDO COMO MESTRE DE CERIMÔNIA, FALA A UM MICROFONE).<br />
SANDOVAL Boa noite e bem-vindos. É com prazer que recebo as senhoras<br />
e os senhores em nosso antigo teatro, agora, <strong>de</strong>dicado a gran<strong>de</strong>s<br />
realizações da Companhia Cinematográfica Alcantil das Alterosas.<br />
A concretização do filme, o primeiro do que esperamos<br />
ser uma longa série <strong>de</strong> sucessos, não seria possível sem o entusiasmo<br />
e a <strong>de</strong>dicação <strong>de</strong> nosso elenco que agora chamamos<br />
ao palco para seu justo e merecido aplauso.<br />
(ELENCO ENTRA CONDUZIDO POR COISINHA, VESTIDO COMO VAGA-<br />
LUME INDICA O CAMINHO COM UMA LANTERNA. TODOS SE COMPOR-<br />
TAM COMO GRANDES ESTRELAS. FOFINHA CUMPRIMENTA ALGUÉM<br />
DO PÚBLICO).<br />
LINDINHA Uma atriz <strong>de</strong> cinema não <strong>de</strong>ve ter intimida<strong>de</strong>s com o público,<br />
Fofinha. Deve pairar sobre a multidão <strong>de</strong> fãs!<br />
FOFINHA Você se tornou uma diva rápido, hein?<br />
LINDINHA E não? Aqui é só o começo da escalada. Os “Esteites” são o<br />
limite!<br />
MEIRELES (TOMANDO O MICROFONE DE SANDOVAL) Inspirado no<br />
personagem Marco Antonio, da peça Júlio César, <strong>de</strong> Shakespeare,<br />
gostaria <strong>de</strong> dizer duas palavras: Não vim para enterrar o<br />
teatro, vim para louvá-lo. E louvo-o através da representação<br />
cinematográfica anunciando que em breve levaremos Hamlet<br />
às telas!<br />
42
SANDOVAL (RETOMA O MICROFONE) Isso não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser verda<strong>de</strong>,<br />
mas temos planos e priorida<strong>de</strong>s. Hamlet, <strong>de</strong> fato, está em nossos<br />
planos.<br />
GRACINHA Foi uma experiência fascinante meu primeiro filme como primeira<br />
atriz.<br />
FLORIS Foi uma experiência fascinante, que exigiu um gran<strong>de</strong> talento<br />
já que eu não era a primeira atriz.<br />
LINDINHA Quero falar também!<br />
SANDOVAL (MAIS RÁPIDO, ASSUME O MICROFONE) O público tem<br />
pressa, Lindinha. Vamos ao filme que é a razão do nosso encontro.<br />
LINDINHA (IRRITADA COM SANDOVAL) Se continuar assim largo tudo e<br />
vou pro Rio, trabalhar na Cinédia!<br />
SANDOVAL Foi uma ótima e fascinante experiência para todos. Queria avisar<br />
ao público e também ao elenco que por motivos <strong>de</strong> força<br />
maior, muito próprios da produção cinematográfica, fomos<br />
compelidos a fazer algumas pequenas alterações...<br />
MADEIRA Que alterações?<br />
SANDOVAL Nada <strong>de</strong> muito significativo, questões <strong>de</strong> montagem... Algumas<br />
opções tiveram <strong>de</strong> ser feitas no sentido <strong>de</strong> dar ritmo, agilida<strong>de</strong>...<br />
MEIRELES Po<strong>de</strong>ria ser mais explícito?<br />
SANDOVAL Bem... não! Melhor vermos o filme. Nossos talentosos atoresmúsicos<br />
improvisarão o acompanhamento musical. Praxe<strong>de</strong>s,<br />
po<strong>de</strong> projetar!<br />
LINDINHA É aquela improvisação que ensaiamos dois meses?<br />
FOFINHA É, fala baixo!<br />
(INICIA-SE A PROJEÇÃO DO FILME. OS ATORES FAZEM ACOMPANHA-<br />
MENTO INSTRUMENTAL. AOS POUCOS, O ELENCO VAI PERCEBENDO<br />
QUE SOMENTE LHE SOBROU FIGURAÇÃO. A INDIGNAÇÃO DO ELENCO<br />
VAI CRESCENDO).<br />
FLORIS Que que é isso, Sandoval? Cadê a cena musical em que canto<br />
pra fazer o Otelinho dormir?<br />
43
GRACINHA Agora eu apareço. Cadê eu? Quem é essa que está fazendo<br />
meu papel?<br />
FOFINHA Cadê a cena on<strong>de</strong> eu danço até <strong>de</strong>sfalecer <strong>de</strong> paixão?<br />
LINDINHA Cadê minha cena lânguida e sensual?<br />
SANDOVAL Calma, gente! Cinema é montagem!<br />
MADEIRA O meu roteiro não é esse!<br />
SANDOVAL Algumas poucas modificações... Precisávamos <strong>de</strong> nomes que<br />
chamassem o público!<br />
MEIRELES E o meu solilóquio da última cena <strong>de</strong> Macbeth? O senhor tinha<br />
concordado!<br />
SANDOVAL A gente discute isso <strong>de</strong>pois. Os outros produtores resolveram...<br />
GRACINHA Só apareci como a irmã siamesa? Só isso, Sandoval?<br />
MEIRELES Prá gente só sobrou figuração!<br />
LOPES E no escuro!<br />
SANDOVAL Vocês não tinham experiência... Estão só começando... Logo,<br />
logo...<br />
COISINHA Eles tem anos <strong>de</strong> teatro!<br />
SANDOVAL Estamos falando <strong>de</strong> cinema. Cinema é corte, é montagem, é<br />
indústria! Cinema é Selznick, é produtor! Hollywood faz atores,<br />
atores não fazem Hollywood!<br />
MEIRELES (PERPLEXO) Que é aquilo, Florisbela, no fundo da tela?<br />
FLORIS O que? (FLORISBELA PERDE A VOZ AO SE VER AOS BEI-<br />
JOS COM MADEIRA. RECOMPÕE-SE) É uma cena, uai! O diretor<br />
pediu para compor com a cena principal.<br />
(MADEIRA PREPARA-SE PARA ESCAPULIR).<br />
MEIRELES Pediu que você beijasse o Ma<strong>de</strong>ira?<br />
FLORIS Não é o Ma<strong>de</strong>ira, é um personagem! E o beijo foi <strong>de</strong> ficção!<br />
MEIRELES (PARA MADEIRA) Parece real...<br />
44
MADEIRA Parece “realista”. O diretor pediu realismo...<br />
(MEIRELES CALA-SE SOMBRIO)<br />
GRACINHA (A SANDOVAL) Como teve coragem <strong>de</strong> fazer isso comigo!<br />
Conosco!<br />
SANDOVAL Não confunda, Gracinha! Uma coisa sou eu, o seu Sandoval,<br />
outra é o produtor Sandoval.<br />
GRACINHA Uma coisa sou eu, Gracinha, e a mesma coisa sou eu, atriz! E<br />
as duas estão com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> lhe meter a mão!<br />
MADEIRA Tanto trabalho pra nada!<br />
MEIRELES Fomos ludibriados!<br />
LOPES Cinema assim a gente não quer!<br />
LINDINHA Vamos rasgar a tela<br />
FOFINHA A gente <strong>de</strong>via picar o filme!<br />
FLORIS Picar o Sandoval!<br />
SANDOVAL Vamos ser razoáveis! Não sou o único produtor. Existem interesses...<br />
Isso é o futuro! A arte vai ser a técnica, a máquina.<br />
(OUVE UM FORTE BARULHO VINDO DO PROJETOR PARALISA O FILME).<br />
PRAXEDES Quebrou a geringonça! Não fui eu!<br />
SANDOVAL Mas que aconteceu?<br />
PRAXEDES Sei lá! A vilmicranha <strong>de</strong>via encaixar com a estrovenga, mas soltou<br />
o pino da grampôla! Não tive culpa!<br />
SANDOVAL Dá pra arrumar?<br />
PRAXEDES Pelo jeito, não tem jeito!<br />
SANDOVAL O que é que a gente faz?<br />
FOFINHA Ah!, meu Deus, outra vez! Depois que entrei para o teatro as<br />
perguntas que mais tenho ouvido são “e agora? O que a gente<br />
faz?”.<br />
45
SANDOVAL (AO PÚBLICO) Senhoras e senhores, enquanto provi<strong>de</strong>nciamos<br />
o reparo do nosso equipamento <strong>de</strong>ixo aos nossos criativos<br />
atores o encargo <strong>de</strong> vosso entretenimento. (AFASTA-SE)<br />
MADEIRA Que é que a gente faz, Sandoval?<br />
SANDOVAL Cantem, dancem, sapateiem, tirem a roupa, façam qualquer<br />
coisa, pelo amor <strong>de</strong> Deus.<br />
LINDINHA Posso tocar, se quiser.<br />
SANDOVAL Tocar, não, Lindinha! O público não vai querer que a senhora<br />
toque!<br />
LINDINHA Como é que o senhor sabe?<br />
SANDOVAL Premonição! (SAI)<br />
LINDINHA (IRRITADA) Pois então vou contar o que foi fazer o filme!<br />
CENA 2 – COMO NASCE UMA REPRESENTAÇÃO<br />
LINDINHA Me <strong>de</strong>ram várias personagens para interpretar, e todas muito<br />
importantes na trama: a mulher que passa, a mulher que olha,<br />
a mulher que levanta a sobrancelha direita! Além da aranha,<br />
claro! Chegar a essa altura da carreira pra isso!<br />
FOFINHA Eu ainda tentei interpretar, dar dramaticida<strong>de</strong> à minha personagem<br />
que era “a mulher muda, imóvel, com o olhar perdido<br />
numa perplexida<strong>de</strong> neutra”. (INTERPRETA) Mas o diretor dizia:<br />
Menos! (MUDA A EXPRESSÃO) Menos! (MUDA) Menos!<br />
(MUDA. IRRITADA) Menos que isso é nada! Assim? (FAZ EX-<br />
PRESSÃO NATURALÍSSIMA)<br />
MADEIRA Ótimo! Corta!, ele dizia.<br />
LOPES Menos movimento! Menos gestos! Menos expressivida<strong>de</strong>!<br />
ABIGAIL “Cinema é a arte das gran<strong>de</strong>s intensida<strong>de</strong>s nas pequenas coisas”,<br />
ele explicava.<br />
LINDINHA E quem disse que eu entendia? Me pedia pra fazer cara <strong>de</strong> nada!<br />
Chegar a essa altura da vida, entrar no cinema nacional,<br />
pra isso!<br />
46
MADEIRA Seja neutro, seja neutro! Poxa, passei a vida tentando apren<strong>de</strong>r<br />
a ser expressivo!<br />
MEIRELES (GRAVE) Antes que chamassem outros atores para fazer os<br />
protagonistas eu seria Aristi<strong>de</strong>s Junqueira, o marido do filme.<br />
Preparei-me por meses a fio, estudando personagens como<br />
Otelo, <strong>de</strong> Shakespeare, rei Marco, <strong>de</strong> Tristão e Isolda, e outros.<br />
Tudo para representar a exata e intensa dimensão humana <strong>de</strong><br />
um homem traído!<br />
MADEIRA (RESSABIADO) Na verda<strong>de</strong>, quando escrevi o roteiro pensei<br />
num simples... corno, um personagem cômico...<br />
MEIRELES (IRRITADO) Nunca faria um reles corno! Um personagem <strong>de</strong><br />
farsa, <strong>de</strong> fancaria! (COM DRAMATICIDADE) “Vou matar-te...<br />
MADEIRA (ASSUSTADO) Que é isso, Meireles?<br />
MEIRELES (VOLTA-SE PARA SI NO MESMO TOM) ...e te amar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
morta... Um beijo mais... mais um... (AS PESSOAS OLHAM<br />
MEIRELES PERPLEXAS) Nunca um beijo tão doce terá sido<br />
tão fatal! Otelo, ato cinco, cena dois. (A MADEIRA) É <strong>de</strong>ssa<br />
gran<strong>de</strong>za humana que falo. (MADEIRA SUSPIRA ALIVIADO.<br />
AO PÚBLICO) Vou representar pra vocês em cores nítidas, Aristi<strong>de</strong>s<br />
Junqueira, uma alma dilacerada pelo ciúme! Coisinha!<br />
Mesa, revólver, figurinos!<br />
COISINHA (EMOCIONADO) Ah, meu Deus! Vai representar mesmo?<br />
MEIRELES Dona Gracinha, a senhora me ajuda? Vamos representar tal e<br />
qual ensaiamos o roteiro, antes das alterações, da edição e antes<br />
que Sandoval chamasse outros atores, “mais experientes”.<br />
SANDOVAL (QUE JUNTO COM PRAXEDES TENTA ARRUMAR O PRO-<br />
JETOR) Premido pelas circunstâncias!<br />
MEIRELES (COM AUTORIDADE) Praxe<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ixa disso! Seu lugar é aqui.<br />
Pegue o roteiro e nos dê o texto! Florisbela! Ma<strong>de</strong>ira! Todos! À<br />
cena!<br />
(TOMADOS DE SURPRESA E ALEGRIA OS ATORES CORREM PARA SE<br />
PREPARAR. COISINHA PREPARA A MESA, PÕE O REVÓLVER SOBRE<br />
ELA E FAZ ENTRAR EM CENA UMA ARARA COM FIGURINOS. PRAXE-<br />
DES, DE TEXTO NA MÃO, VAI ORGANIZAR A ENCENAÇÃO. LOPES, ABI-<br />
GAIL, FOFINHA E LINDINHA SAEM. PRAXEDES ENTREGA A COISINHA<br />
UM ROBE PARA QUE ELE AJUDE GRACINHA A VESTI-LO.)<br />
47
- PROPONHO QUE A MOVIMENTAÇÃO DE PRAXEDES E COISINHA VÁ,<br />
COM O TRANSCORRER DO ESPETÁCULO TORNANDO-SE CADA VEZ<br />
MAIS FRENÉTICA, POIS CABE AOS DOIS PREPARAR RAPIDAMENTE<br />
TODA AMBIENTAÇÃO CONFORME O RITMO DA NARRAÇÃO DOS ATO-<br />
RES. O JOGO É INFINITO: ATORES QUE ENTRAM EM CENA ERRADO,<br />
COISINHA QUE TRAZ ELEMENTO CENOGRÁFICO DIFERENTE DO QUE<br />
FOI PEDIDO, NARRAÇÃO QUE NÃO BATE COM O ROTEIRO, COISINHA<br />
QUE ENTREGA ELEMENTO ERRADO, ETC. A IDÉIA É QUE A MOVIMEN-<br />
TAÇÃO DOS DOIS SE TORNE CADA VEZ MAIS INTENSA E CONFUSA<br />
COMO, POR EXEMPLO, NO FINAL HAVER CONFUSÃO DE AMBIENTES<br />
COMO A MESA DE BAR APARECER NA CASA DE MEIRELES E UMA<br />
POSSÍVEL POLTRONA DE MEIRELES APARECER NO BAR OU NO MEIO<br />
DA RUA, COISAS D<strong>ESSE</strong> TIPO -<br />
GRACINHA (DESCABELA-SE E COMPÕE O PERSONAGEM NEURAS-<br />
TÊNICO DE ESTELINHA. OLHA O PÚBLICO COM IRRITA-<br />
ÇÃO) Sou Estelinha, casada, do lar, especialista em prendas<br />
domésticas: piloto tanque, dirijo fogão, manobro vassoura e faço<br />
coreografias com o escovão. Vocês já viram no filme que<br />
sou irritadiça e mal-humorada, mas parece que não se contentaram,<br />
quiseram ver isso pessoalmente. Azar, conta e risco <strong>de</strong><br />
vocês! Aviso que hoje não estou bem e informo que aquele banana<br />
é um marido, o meu!<br />
MEIRELES O banana, Aristi<strong>de</strong>s Junqueira, que sou eu, era um humil<strong>de</strong> e<br />
paciente funcionário público que só tinha um pavor na vida: ser<br />
traído pela mulher. Jamais serei corno, ele jurava!<br />
(PRAXEDES FAZ UM GESTO PARA FOFINHA ENTRAR. ELA RECEBE UM<br />
XALE OU OUTRO ELEMENTO QUALQUER DE FIGURINO QUE A IDENTI-<br />
FICA COMO SELMA.)<br />
FOFINHA (ENTRANDO) Eu sou Selma, vizinha <strong>de</strong> cerca, da Estelinha.Vizinha<br />
da esquerda, aquela casa amarela com pé <strong>de</strong> dália<br />
na frente, cinqüenta metros <strong>de</strong>pois do bar do Zuza, conhece?<br />
PRAXEDES Entra, Lindinha!<br />
(LINDINHA ENTRA POR LADO CONTRÁRIO DE ONDE PRAXEDES INDI-<br />
COU E FOFINHA ESPERAVA).<br />
FOFINHA A vizinha da direita é essa zinha aí, a Salma. (A ALGUÉM DA<br />
PLATÉIA) A senhora tem marido? Então, não confia! Sabe, olhar<br />
<strong>de</strong>rretido? É o que ela joga pra qualquer calça comprida<br />
que passa aqui na rua. Viúva inconformada dá nisso!<br />
48
LINDINHA Selma, querida! Sabe a Estelinha? Vai pedir <strong>de</strong>squite!<br />
MEIRELES Desquite, Estelinha?! Não, nunca! Só por causa <strong>de</strong> um beijo?<br />
GRACINHA E na boca, Aristi<strong>de</strong>s! Beijo, não, principalmente na boca!<br />
MEIRELES Mas somos casados!<br />
GRACINHA Por isso mesmo. Sou sua mulher, não sou uma marafona nem<br />
marafaia, nem Maria Bagageira, nem Maria Catraia!<br />
MEIRELES Tem janta?<br />
GRACINHA Esquenta! Se quiser camisa, passe! Se quiser sapato, engraxe!<br />
MEIRELES Vou sair!<br />
GRACINHA Não tenha pressa em voltar!<br />
MEIRELES (PARA SI) Minha vida é um inferno! (MEIRELES VAI SE SEN-<br />
TAR À UMA PEQUENA MESINHA QUE COISINHA ACABOU<br />
DE TRAZER E COLOCAR EM CENA. COISINHA ENCHE UM<br />
CÁLICE DE BEBIDA. MEIRELES TOMA DE UM GOLE SÓ.)<br />
Põe mais um!<br />
COISINHA (BAIXO, DISFARÇANDO) “É só um cálice por sessão, seu<br />
Meireles”.<br />
MEIRELES Põe mais um, estou pagando! (COISINHA, DEPOIS DE O-<br />
LHAR PARA PRAXEDES, SERVE RAPIDAMENTE, POIS<br />
TEM DE AJUDAR NA ENTRADA DE LOPES.) Ela quer <strong>de</strong>squite!<br />
Mulher que se <strong>de</strong>squita quer se guardar para o próximo.<br />
Mas não vou ser corno, muito menos um corno em perspectiva!<br />
PRAXEDES (COM GESTOS E VOZ BAIXA CHAMA) Lopes!<br />
LOPES (ENTRA) É verda<strong>de</strong>! A vida <strong>de</strong> Aristi<strong>de</strong>s tornou-se um inferno.<br />
Sou Osório, colega <strong>de</strong> sessão e sei o que digo. Entre um memorando,<br />
uma petição e um formulário carimbado em três vias,<br />
eu disse: Aristi<strong>de</strong>s, isso é “esprito”, carrêgo brabo!<br />
ABIGAIL (ENTRA AJUDANDO A COISINHA MONTAR A CENA) Pois<br />
foi o Osório que <strong>de</strong>u o cartão da minha patroa: Madame Zoroastra,<br />
professora <strong>de</strong> artes mediúnicas. Búzios, tarô, cristais,<br />
banho e sete ervas, energização, advinhação ortomolecular,<br />
lavagens intestinais, copromancia, florais. Resolve problemas<br />
49
<strong>de</strong> amor, dinheiro e tira multas no Detran. Lembro que Aristi<strong>de</strong>s<br />
chegou aqui transtornado.<br />
FLORIS (ENTRA COMO ZOROASTRA.) Que quieres usted?<br />
MEIRELES Quero saber se sou corno, se fui corno, se serei corno.<br />
FLORIS (PREOCUPADA) Que puedo dizer senon la verdad. E la verdad<br />
es que todo es possible.<br />
(MEIRELES SE LEVANTA FURIOSO AO MESMO TEMPO EM QUE FLO-<br />
RISBELA QUE GRITA LEVANTANDO AS MÃOS).<br />
MEIRELES (TENSO) Aristi<strong>de</strong>s, com o <strong>de</strong>sespero ditado pela fúria, não sabia<br />
se morria. Ou se matava!<br />
FLORIS (ASSUSTADA) En primeiríssimo lugar non mate! En segundo,<br />
también non precisa morir! Yo dicho “todo es possible”. Es possible<br />
si y es possible non. Deja-me ver mejor: (LIMPA A BOLA<br />
DE CRISTAL E OLHA AS CARTAS) Es possible non. Yo non<br />
vedo muerte en su futuro, enten<strong>de</strong>s? Nem su morte, nem, principalmente,<br />
la muerte <strong>de</strong> su mujer. Está escrito e las cartas non<br />
mentem!<br />
MEIRELES Mas o homem muda o <strong>de</strong>stino! (BRADA) Não serei corno jamais!<br />
FLORISBELA AFASTA-SE AMEDRONTADÍSSIMA E MEIRELES SAI.)<br />
ABIGAIL Eu mantive segredo profissional, somos um consultório <strong>de</strong> respeito!<br />
Por isso não sei como a história do encontro entre Aristi<strong>de</strong>s<br />
e Madame Zoroastra correu <strong>de</strong> boca em boca.<br />
LINDINHA Eu não fui.<br />
FOFINHA Muito menos eu! Mas o fato é que correu na vizinhança o juramento<br />
que Aristi<strong>de</strong>s fez:<br />
MEIRELES Não serei corno jamais!<br />
LOPES Pra que ele foi dizer isso?! Conselho que eu dou aos homens e<br />
rapazes aqui presentes: nunca façam afirmações irretratáveis<br />
como esta. Aconselho a colocar sempre antes um “talvez”, um<br />
“se Deus quiser”, “se a sorte ajudar”.<br />
ABIGAIL Como era para o Lopes dizer, e não disse, a vizinhança começou<br />
a rir, apontar Aristi<strong>de</strong>s pela rua. Ele se tornou não só moti-<br />
50
vo <strong>de</strong> motejo e piada como o bairro profetizou: um sujeito assim<br />
só po<strong>de</strong> acabar corno.<br />
LOPES E começaram a apostar quando e como Aristi<strong>de</strong>s ia ser traído.<br />
Principiaram, inclusive, a assediar Estelinha que não era <strong>de</strong> se<br />
jogar fora.<br />
ABIGAIL E ela que começou até a lançar um olhar mais comprido para<br />
um e outro mocetão taludo, moreno, <strong>de</strong> pestana grossa.<br />
(ABIGAIL LANÇA OLHARES INTENCIONAIS PARA LOPES QUE OS DE-<br />
VOLVE RALENTANDO A CENA. PRAXEDES ESTALA OS DEDOS SOLICI-<br />
TANDO RITMO. LOPES ACORDA).<br />
LOPES Desesperado Aristi<strong>de</strong>s vai procurar um amigo, Oduvaldo.<br />
(A UM CANTO MADEIRA E FLORISBELA CONVERSAM, PREOCUPADOS,<br />
ALHEIOS À REPRESENTAÇÃO. PRAXEDES DÁ A DEIXA.)<br />
PRAXEDES Arrogância...<br />
(MADEIRA NÃO ENTRA EM CENA. COISINHA O AVISA. EMBARAÇADO<br />
MADEIRA ENTRA)<br />
MADEIRA (DEDO EM RISTE PARA MEIRELES) Arrogância, Aristi<strong>de</strong>s!<br />
Arrogância!<br />
MEIRELES E <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando é arrogância não querer ser corno?<br />
MADEIRA Arrogância, sim! E à exemplo <strong>de</strong> todos personagens dramáticos<br />
a arrogância leva à tragédia! Por que você quer ser diferente?<br />
Em que você é melhor que os outros homens? Ser corno,<br />
Meireles, é a vocação natural do ser humano!<br />
PRAXEDES (CORRIGINDO) Aristi<strong>de</strong>s, Aristi<strong>de</strong>s Junqueira!<br />
MADEIRA (RETIFICANDO) Repito: ser corno, Aristi<strong>de</strong>s, é a vocação do<br />
homem. O adultério é uma fatalida<strong>de</strong> e é melhor não remar<br />
contra a correnteza.<br />
MEIRELES Você está louco!<br />
MADEIRA Não, você é que está cego! Marido não é o último a saber, <strong>de</strong>ve<br />
ser o primeiro a não querer saber! É melhor acreditar sempre<br />
no que a mulher diz! Acreditar sempre!<br />
MEIRELES (FURIOSO) Não me repita isso!<br />
51
MADEIRA Dói no coração ver o amigo pa<strong>de</strong>cendo tal sofrimento moral.<br />
Sabe por que o homem, ao contrário dos animais, sofre a dor<br />
moral que é mais intensa que qualquer dor física? O homem<br />
sofre por que tem consciência, Aristi<strong>de</strong>s! Tanto quanto a consciência<br />
da morte traumatiza o ser humano, a consciência da<br />
traição conjugal faz o homem sofrer. (CONCLUI GRANDILO-<br />
QUENTE) E já que o adultério é inevitável, é melhor que <strong>de</strong>le<br />
não tenhamos consciência! (MEIRELES COMEÇA A SOLU-<br />
ÇAR LONGA E PROFUNDAMENTE, COM ÓBVIOS RESUL-<br />
TADOS CÔMICOS. MADEIRA O ABRAÇA) Vou ajudá-lo, meu<br />
amigo. Sua mulher se tornará um doce.<br />
MEIRELES (SE SOLTA) Aristi<strong>de</strong>s saiu não muito convencido da casa do<br />
amigo Oduvaldo. E o tempo passou.<br />
FOFINHA E assim foi. Correram dias, semanas... A dona Alice casou a filha<br />
grávida <strong>de</strong> três meses, o seu Alonso, da rua <strong>de</strong> baixo, <strong>de</strong>u<br />
pra beber por causa da mulher, que não valia nada, peguei a<br />
Salma batendo boca na feira por causa do marido da Geni.<br />
Tudo contado passaram-se não mais que três meses. O bairro<br />
continuava em expectativa, esperando a notícia, para todos inevitável,<br />
do mau passo <strong>de</strong> Estelinha.<br />
LINDINHA Nada ainda?<br />
FOFINHA Nada.<br />
LINDINHA Diacho! Se passar <strong>de</strong> amanhã eu perco a aposta que fiz! Já<br />
tem gente apostando no que vai acontecer <strong>de</strong>pois do flagrante.<br />
Estão apostando alto: Casa, carro, fazenda.<br />
FOFINHA Eu <strong>de</strong>via apostar meu marido, mas só se fosse pra per<strong>de</strong>r!<br />
LINDINHA Se quiser rifar compro três números. (FOFINHA A OLHA COM<br />
RAIVA) Brinca<strong>de</strong>ira! (PARA SI) Não vale a pena apostar mais<br />
<strong>de</strong> um número nele.<br />
FOFINHA Um dia, subitamente, o comportamento <strong>de</strong> Estelinha mudou. E<br />
dia a dia seu caráter foi amansando. (ENTRA ESTELINHA<br />
BAILANDO)<br />
ESTELINHA Tornou-se dócil, suave como seda da China, gentil como tafetá<br />
francês. (MEIRELES SE APROXIMA) Querido, como <strong>de</strong>morou!<br />
Quer um refresco? Vou buscar seus chinelos. Antes, dê-me um<br />
beijo. (SURPRESO MEIRELES SE APROXIMA PARA BEIJÁ-<br />
52
LA NO ROSTO) Na boca! (LASCA UM BEIJO NA BOCA DE<br />
MEIRELES)<br />
MEIRELES Que mudança! Que surpresa feliz! De uns tempos pra cá você<br />
tem mudado muito!<br />
ESTELINHA Prá pior?<br />
MEIRELES Prá muito melhor.<br />
ESTELINHA (ABRAÇA-O) Entre em seu lar e <strong>de</strong>scanse. Vou sair, mas retorno<br />
logo para seus braços.<br />
MEIRELES On<strong>de</strong> vai, querida?<br />
ESTELINHA Vou visitar mamãe. (SAI)<br />
MEIRELES E foi <strong>de</strong>ixando Meireles atordoado e feliz. Mas subitamente Aristi<strong>de</strong>s<br />
sentiu uma pontada <strong>de</strong> ciúme. Estelinha nunca se <strong>de</strong>u<br />
com a mãe!<br />
ABIGAIL E o ciúme cresceu, avolumou, <strong>de</strong>vorou a alma daquele homem.<br />
O ciúme indicava apenas um caminho para aquele homem torturado.<br />
MEIRELES (QUE DURANTE A FALA ANTERIOR APOSSOU-SE DRA-<br />
MÁTICAMENTE DO REVÓLVER SOBRE A MESA) Traição!<br />
Traição! Traição!<br />
ABIGAIL E, cego, foi para o fatal <strong>de</strong>sfecho!<br />
PRAXEDES (VOLTA-SE PARA O PÚBLICO E EXPLICA) Nesse momento<br />
imaginem, numa panorâmica, as ruas <strong>de</strong> Belo Horizonte, repletas<br />
<strong>de</strong> gente. A seqüência seria no entar<strong>de</strong>cer, quase no crepúsculo,<br />
na volta do trabalho. (LÊ, INTERPRETANDO) Com o<br />
olhar turvo, Aristi<strong>de</strong>s segue Estelinha, sem ser visto, pelas ruas<br />
da cida<strong>de</strong>. De vez em quando a mão apalpa o revólver no bolso.<br />
(AO PÚBLICO) Deu prá sentir? A confusão da cida<strong>de</strong>, gente,<br />
bon<strong>de</strong>, carros e aquele homem alucinado, um Otelo dos<br />
nossos dias, não conseguindo aplacar seu <strong>de</strong>sespero. Deu?<br />
Legal! Corta! Casa <strong>de</strong> Oduvaldo. Exterior. Entar<strong>de</strong>cer. Ponto <strong>de</strong><br />
vista <strong>de</strong> Aristi<strong>de</strong>s que chega. Corta! Quarto <strong>de</strong> Oduvaldo. Interior.<br />
Um abajur lança a alcova na penumbra. Oduvaldo e Estelinha<br />
se beijam. (ATORES SE BEIJAM)<br />
53
MEIRELES Pulha! Messalina! Só a morte vai reparar a traição, a <strong>de</strong>slealda<strong>de</strong><br />
e a <strong>de</strong>sonra! (APONTA A ARMA ORA PARA MADEIRA,<br />
ORA PARA GRACINHA).<br />
MADEIRA Que é isso, Aristi<strong>de</strong>s, ficou maluco? É assim que paga a ajuda<br />
que lhe dou?<br />
MEIRELES Que ajuda, cínico?<br />
MADEIRA Baixa essa arma, amigo ingrato! Meses atrás você veio aqui<br />
corroído pelo ciúme e dizendo que sua mulher o maltratava. E<br />
agora? Estelinha não está doce como mel? Graças aos meus<br />
conselhos!<br />
MEIRELES Conselhos? Mas vocês estavam...<br />
GRACINHA O que? Como tem coragem <strong>de</strong> dizer uma coisa <strong>de</strong>ssas!<br />
MEIRELES Mas eu ainda não disse...<br />
MADEIRA Nem ouse pensar o que quer que seja!<br />
GRACINHA Justo agora que comecei a gostar <strong>de</strong> você, Aristi<strong>de</strong>s, você me<br />
lança na cara essas acusações... (SOLUÇA)<br />
MADEIRA Talvez você queira a Estelinha <strong>de</strong> antes.<br />
MEIRELES Não! Mas é que... eu vi! (APONTA NOVAMENTE A ARMA)<br />
MADEIRA Então atira, se você viu! Você per<strong>de</strong> um amigo sincero, per<strong>de</strong><br />
uma mulher enamorada, ganha ca<strong>de</strong>ia e o resto da vida <strong>de</strong> remorsos.<br />
(PUXA ARISTIDES PELO BRAÇO PARA LONGE DE<br />
ESTELINHA) Mas, se você nada viu, o ciúme se esvai e seu<br />
coração fica em paz. E, <strong>de</strong>pois, se fosse verda<strong>de</strong> o que você,<br />
injustamente, está pensando <strong>de</strong> mim e <strong>de</strong> Estelinha, você teria<br />
não só uma mulher culpada querendo lhe compensar como<br />
também uma mulher agra<strong>de</strong>cida por você ter-lhe permitido tal<br />
aventura. De qualquer ângulo que você analise a questão é<br />
melhor que você nada tenha visto.<br />
MEIRELES Não sei, Oduvaldo.<br />
MADEIRA Eu sei. Não é todo homem que aprecia ser traído. Só os normais.<br />
Vai, Aristi<strong>de</strong>s. No que me diz respeito você nem esteve<br />
aqui.<br />
54
MEIRELES Aristi<strong>de</strong>s foi-se pensativo. E uma coisa ele não podia negar:<br />
não carregava mais o peso do medo <strong>de</strong> ser traído. E nos últimos<br />
dias sua vida conjugal, <strong>de</strong> fato, havia mudado para melhor.<br />
CENA 03 – INESPERADA REVIRAVOLTA<br />
(MEIRELES ANDA PENSATIVO PELO PALCO. PRAXEDES VOLTA-SE PA-<br />
RA O PÚBLICO).<br />
PRAXEDES Nesta seqüência do filme, fechem os olhos e imaginem novamente,<br />
Aristi<strong>de</strong>s caminhando solitário pelas ruas da cida<strong>de</strong>. Já<br />
é noite, as ruas estão vazias, as pessoas já se recolheram às<br />
suas casas para o terço ou para conversar com amigos que<br />
sempre visitam. A cida<strong>de</strong> está mergulhada num silêncio calmo.<br />
Algumas luminárias quebram a escuridão e iluminam o vulto <strong>de</strong><br />
Aristi<strong>de</strong>s que, em paz, se distancia subindo a rua Bahia. Fa<strong>de</strong><br />
out. (ANUNCIA) Seqüência 85. Casa <strong>de</strong> Madame Zoroastra. Interior.<br />
Dia. (SOPRA O TEXTO PARA MEIRELES) Estou aqui<br />
<strong>de</strong> novo, Madame...<br />
MEIRELES Estou cansado! Sempre fui um ator que segue o texto e um<br />
homem que segue a vida.<br />
PRAXEDES (SOPRA) Segue o texto. Estou aqui <strong>de</strong> novo, Madame...<br />
MEIRELES (FORTE, SINCERO) Devo continuar seguindo mesmo sendo o<br />
espetáculo, do palco ou da vida, uma comediazinha <strong>de</strong> baixa<br />
categoria?<br />
(O ELENCO OBSERVA PERPLEXO A MEIRELES QUE LENTAMENTE FI-<br />
XANDO FLORISBELA COLOCA BALAS NO TAMBOR DO REVÓLVER)<br />
PRAXEDES (PROCURANDO NO TEXTO) Esta cena não está no script.<br />
(MEIRELES APONTA A ARMA PARA O ELENCO. LINDINHA, FOFINHA E<br />
ABIGAIL GRITAM E TENTAM SE ESCONDER. OS OUTROS OU TENTAM<br />
CONTEMPORIZAR OU OBSERVAM PERPLEXOS A CENA DE MEIRELES.<br />
SÓ COISINHA EMOCIONA-SE.)<br />
COISINHA Que lindo, seu Meireles! Que drama!<br />
LOPES Calma, Meireles, você bebeu <strong>de</strong>mais.<br />
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MEIRELES Não o suficiente. Aristi<strong>de</strong>s volta ao bar e bebe. (SENTA-SE<br />
SEM PERDER DE VISTA O ELENCO E COM GESTO PEDE<br />
BEBIDA A COISINHA. ESTE SERVE BEBIDA A MEIRELES)<br />
Bebe. (COISINHA SERVE DE NOVO ALHEIO AOS APELOS<br />
E ACENOS AFLITOS DO ELENCO PARA QUE ELE NÃO DÊ<br />
MAIS BEBIDA A MEIRELES) Bebe. (COISINHA ENCHE O<br />
COPO)<br />
PRAXEDES (BAIXO) Segue o texto, seu Meireles!<br />
MEIRELES (BAIXO PARA PRAXEDES) Estou improvisando! (PARA O<br />
PÚBLICO) Irão ver que tanto um homem foge ao <strong>de</strong>stino traçado<br />
quanto um personagem foge à escrita do autor! (CHAMA<br />
FLORISBELA AO PALCO COM UM GESTO. PARA FLORIS-<br />
BELA) Estou aqui <strong>de</strong> novo, Madame...<br />
LOPES Vai, Florisbela.<br />
FLORIS Mas nem que eu fosse doida varrida e escovada!<br />
GRACINHA É só uma improvisação.<br />
LINDINHA É melhor não contrariar.<br />
(ATORES RECEOSOS VÃO EMPURRANDO FLORISBELA).<br />
FLORIS Está bem, eu vou, não precisa empurrar! (ENTRA NA ÁREA<br />
DE REPRESENTAÇÃO) Que <strong>de</strong>sea usted?<br />
(MEIRELES ESQUECE A FALA E PEDE DEIXA A PRAXEDES).<br />
PRAXEDES Veja o meu futuro...<br />
MEIRELES Veja o meu futuro mais claramente.<br />
FLORIS Vedo um gran futuro <strong>de</strong> paz y concórdia. Gran<strong>de</strong>s realizaciones!<br />
Una inolvidable representación <strong>de</strong> Hamlet! Vedo también<br />
usted hacendo conferência en los Alcoólicos Anônimos!<br />
PRAXEDES (BAIXO) Segue o script. Fala sobre a sombra escura no futuro<br />
<strong>de</strong> Aristi<strong>de</strong>s!<br />
FLORIS (BAIXO) Você parece que bebe, Praxe<strong>de</strong>s! Quer ver a cena<br />
pegar fogo? Estou improvisando também!<br />
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MEIRELES (PARA O PÚBLICO) Batem palmas na porta da casa <strong>de</strong> Madame<br />
Zoroastra. É Oduvaldo que chega para também saber<br />
seu futuro.<br />
MADEIRA (ASSUSTADÍSSIMO) Eu?<br />
(O ELENCO O EMPURRA PARA A ÁREA DE REPRESENTAÇÃO. MADEIRA<br />
PEDE DEIXA PARA PRAXEDES)<br />
PRAXEDES Improvisa também porque nada disso está no roteiro.<br />
MADEIRA (APAVORADO) A única coisa que eu queria é que um dia, lá<br />
no futuro, a gente risse disso!<br />
MEIRELES Não gosto <strong>de</strong> representar papel <strong>de</strong> tolo!<br />
MADEIRA Se você não gostou do personagem eu mudo a história, ou escrevo<br />
outra, Aristi<strong>de</strong>s, mas você não é o tolo! O tolo, <strong>de</strong> fato,<br />
sou eu, Oduvaldo. O tolo é o amante, Aristi<strong>de</strong>s! O marido é que<br />
tem a mulher <strong>de</strong> fato. O amante só a tem por poucos e furtivos<br />
momentos e (AMEDRONTADÍSSIMO) está sempre sob risco,<br />
como agora que não sei suas reais intenções!<br />
MEIRELES Minha intenção é um novo final. Um novo final para esta peça,<br />
para o teatro e para a vida. Esse é meu motivo! “É o motivo,<br />
minha alma, é o motivo...”<br />
FLORIS (RECEOSA) Ah, meu Deus, começou com o Otelo, <strong>de</strong> Shakespeare,<br />
<strong>de</strong> novo!<br />
MEIRELES Mas improviso sobre a escrita <strong>de</strong> Shakespeare e brado: “É o<br />
motivo... Verterei, sim, seu sangue, ferirei, sim, sua pele mais<br />
alva do que a neve, mais macia que o alabastro dos túmulos...”<br />
(MEIRELES ATIRA EM FLORISBELA QUE DÁ UM GRITO E CAI. O ELENCO<br />
FICA PERPLEXO. LINDINHA QUEBRA A PERPLEXIDADE)<br />
LINDINHA Porque o Aristi<strong>de</strong>s matou a madame Zoroastra? Devia ter matado<br />
a Estelinha, que é a adúltera!<br />
GRACINHA Lindinha! (MEIRELES APONTA O REVÓLVER PARA GRA-<br />
CINHA. GRACINHA VAI AO SEU ENCONTRO) Calma. (A<br />
LINDINHA) Se eu sair <strong>de</strong>ssa eu te esgano, Lindinha!<br />
LINDINHA Que foi que eu fiz? Até uma improvisação tem <strong>de</strong> ter coerência!<br />
FOFINHA Cala a boca, Lindinha!<br />
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GRACINHA Seu Meireles, não confunda ficção e realida<strong>de</strong>.<br />
MEIRELES Eu nunca confundo. Elas são uma única e mesma coisa. Lindinha<br />
está certa: até uma mera improvisação tem <strong>de</strong> ter coerência.<br />
(MEIRELES ATIRA NA DIREÇÃO DE GRACINHA QUE CAI. MADEIRA TEN-<br />
TA FUGIR, MAS MEIRELES TAMBÉM O ALVEJA. DEPOIS APONTA O RE-<br />
VÓLVER PARA SI. ATIRA E CAI. O QUE SOBROU DO ELENCO OLHA A<br />
CENA BESTIFICADO).<br />
LINDINHA E agora? O que a gente faz?<br />
FOFINHA Ah, meu Deus! Sempre as mesmas perguntas!<br />
(SUBITAMENTE MEIRELES SE LEVANTA E SE CURVA EM DIREÇÃO AO<br />
PÚBLICO NUM AGRADECIMENTO. VOLTA-SE PARA O ELENCO AINDA<br />
PARALISADO)<br />
MEIRELES E então? Gostaram das modificações que introduzi no personagem<br />
e na história?<br />
(FLORISBELA ACORDA, DÁ UM GRITO DE SUSTO E SE APALPA TRÊ-<br />
MULA)<br />
FLORIS Crápula! Assassino! O que pretendia, Meireles?<br />
MEIRELES Só <strong>de</strong>monstrar o po<strong>de</strong>r do teatro dramático! (A MADEIRA QUE<br />
TAMBÉM COMEÇAR A SE LEVANTAR) Principalmente para<br />
você, Ma<strong>de</strong>ira.<br />
MADEIRA (TRÊMULO) Bastante convincente.<br />
FLORIS Podia ter avisado, criminoso! (PARTE PARA CIMA DE MEI-<br />
RELES. É CONTIDA PELOS OUTROS) Quer me matar <strong>de</strong><br />
susto?<br />
MEIRELES Não seria capaz <strong>de</strong> tocar num fio <strong>de</strong> seu cabelo, minha querida.<br />
E <strong>de</strong>pois, a idéia me veio na hora. E se avisasse ninguém<br />
<strong>de</strong>ixaria.<br />
GRACINHA (SE LEVANTA TAMBÉM TRÊMULA) Que foi que houve, meu<br />
Deus?<br />
MEIRELES Vocês estiverem perfeitos. Só levaram a coisa a sério <strong>de</strong>mais!<br />
MADEIRA Era tudo encenação, mesmo?<br />
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MEIRELES E qual o motivo eu teria para atirar em você? Você é meu amigo!<br />
ABIGAIL (AFLITA) E assim, com o congraçamento <strong>de</strong> atores, personagens<br />
e amigos termina a história do filme, a história da peça, a<br />
história do grupo e todas as outras histórias que porventura existirem<br />
nessa representação. Vamos acabar logo com isso antes<br />
que algo ainda mais inusitado aconteça. Fim, boa noite, a<strong>de</strong>us!<br />
SANDOVAL (AO FUNDO COMEÇA A PUXAR APLAUSOS) Magnífico!<br />
Fantástico! Bravo! Bravíssimo! (SANDOVAL VAI ATÉ A ÁREA<br />
DE REPRESENTAÇÃO E CUMPRIMENTA OS ATORES)<br />
Quero, <strong>de</strong> público, cumprimentar os atores pelo espetáculo e<br />
anunciar, aqui e agora, a criação da Companhia <strong>de</strong> Cine-Teatro<br />
Alcantil das Alterosas. (O ELENCO SE MANIFESTA FELIZ E<br />
SURPRESO) Cinema e teatro duas artes irmãs que não po<strong>de</strong>m<br />
viver separadas. Estaremos em temporada neste cine-teatro<br />
com este espetáculo enquanto o público nos prestigiar. Praxe<strong>de</strong>s,<br />
re-assuma a companhia que nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser sua!<br />
PRAXEDES (AO ELENCO) Amanhã vamos fazer tim-tim por tim-tim o que<br />
fizemos hoje.<br />
(ELENCO AGRADECE AO PÚBLICO E SAI. RESTAM SÓ MADEIRA E COI-<br />
SINHA)<br />
MADEIRA Fazer tudo igual! Um dia <strong>de</strong>sses, seu Coisinha, Meireles ainda<br />
me dá um tiro na cara , <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, com o aplauso e aprovação<br />
do público. Ser amante é um pesado e perigoso encargo,<br />
seu Coisinha!<br />
(SAI)<br />
CENA 04 – CURTO EPÍLOGO<br />
(O CLIMA É O MESMO DO INÍCIO DA PEÇA. COISINHA COMEÇA A APA-<br />
GAR AS LUZES.)<br />
COISINHA “Primeiro apagarei esta luz...(APAGA) <strong>de</strong>pois, esta...(APAGA)<br />
Se extinguir o clarão <strong>de</strong>sta chama (APAGA) e, após, me arre-<br />
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pen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> tê-lo feito, po<strong>de</strong>rei reavivá-lo... Mas se apagar a tua<br />
luz, a ti, Desdêmona, - criação mo<strong>de</strong>lar da natureza! Que Prometeu<br />
po<strong>de</strong>rá com seu fogo, reacendê-la?” Otelo, ato cinco,<br />
cena dois. Só uma atriz, só um ator para, <strong>de</strong> novo, dar-lhe vida.<br />
O teatro revive com atores, um tablado, o público e uma paixão<br />
entre eles. Eu amo os atores, atrizes e o público por esse po<strong>de</strong>r.<br />
E quero morrer nesse palco, on<strong>de</strong> se dá essa viva alquimia.<br />
E peço mais, meu Deus! Que quando meu corpo <strong>de</strong>scer à<br />
terra minha alma não suba aos céus. Fique aqui, perambulando<br />
por essas cortinas, sentada numa <strong>de</strong>ssas ca<strong>de</strong>iras, fazendo<br />
estalar o tablado quando meu espírito andar sobre ele, até o final<br />
dos tempos. Como Furtado Coelho, Procópio Ferreira, Benjamin<br />
<strong>de</strong> Oliveira, Conchita <strong>de</strong> Moraes, Henriqueta Brieba, Rubens<br />
Correa e tantos e tantos. E, no fim do fim, meu Deus, que<br />
eu saia <strong>de</strong>sse palco direto para o seu seio, se é que estando<br />
palco já não estarei nele, meu Deus. (COMEÇA A CANTAR A<br />
MÚSICA INICIAL. APAGA A ÚLTIMA LUZ E CONTINUA A<br />
CANTAR NO ESCURO ATÉ SUA VOZ DESAPARECER TE-<br />
ATRO A DENTRO).<br />
FIM<br />
Qualquer utilização <strong>de</strong>ste texto, parcial ou total,<br />
<strong>de</strong>ve ter a autorização do autor:<br />
Luis Alberto <strong>de</strong> Abreu<br />
Telefone: (0xx11) 48287230<br />
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