DA LITERATURA AO CINEMA: UM ESTUDO SOBRE O ... - Unesp
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II Colóquio da Pós-Graduação em Letras<br />
UNESP – Campus de Assis<br />
ISSN: 2178-3683<br />
www.assis.unesp.br/coloquioletras<br />
coloquiletras@yahoo.com.br<br />
<strong>DA</strong> <strong>LITERATURA</strong> <strong>AO</strong> <strong>CINEMA</strong>: <strong>UM</strong> <strong>ESTUDO</strong> <strong>SOBRE</strong> O TEMPO NO ROMANCE E<br />
NO FILME LAVOURA ARCAICA<br />
96<br />
Flávia Giúlia Andriolo Pinati<br />
(Graduanda – UNESP/Assis – FAPESP)<br />
RES<strong>UM</strong>O: Pretende-se examinar a questão da representação do tempo, mais precisamente no<br />
romance Lavoura arcaica, de Raduan Nassar (1935) e na sua adaptação para o cinema,<br />
realizada por Luiz Fernando Carvalho (1960) no filme homônimo de 2001, com o objetivo de<br />
descrever e mostrar uma correlação entre as representações do tempo contidas na narrativa<br />
literária e sua possível transcrição/adaptação para o meio audiovisual.<br />
PALAVRAS-CHAVE: Literatura, cinema, tempo, Lavoura arcaica, Raduan Nassar, Luiz<br />
Fernando Carvalho.<br />
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me<br />
perguntar eu o sei; se eu quiser explicá-lo a quem me<br />
fizer essa pergunta, já não saberei dizê-lo.<br />
(AGOSTINHO, 1948, p.346).<br />
É indiscutível que toda narrativa conte uma história sobre um grupo de<br />
personagens localizados em um determinado tempo e espaço, sendo estes elementos<br />
indissociáveis para a construção do significado do texto. Pensar em uma narrativa é,<br />
portanto, pensar na fusão desses três elementos para a construção da história.<br />
Para que ocorra o desenvolvimento dos acontecimentos, há um elemento<br />
fundamental: o tempo. As formas narrativas, sejam elas literárias ou fílmicas, estão<br />
ligadas por segmentos temporais, não importando de que maneira se dê essa<br />
articulação. Assim, o tempo quase sempre está ligado à fluidez da ação, o que mostra<br />
sua inseparabilidade dos acontecimentos que o ocupam.<br />
Desta forma é que toda narrativa tem como base a representação de uma<br />
ação, que se constitui por meio de um determinado enredo e se desenvolve no tempo,<br />
o que mostra que há uma série de enunciados em sequência que está submetida à<br />
percepção de um narrador. Como observa Finazzi-Agrò, “cria-se um microcosmo em<br />
função do qual vão se definindo as condições históricas e sociais das personagens,
onde é possível detectar a correlação funcional entre os ambientes, as coisas e os<br />
comportamentos” (2001, p.79).<br />
A questão do tempo, portanto, “não pode ser evitada por nenhum escritor<br />
devido à sua estreita relação com a organização textual” (VERÍSSIMO, 2006 p.2), pois<br />
como a teoria da literatura defende, o tempo é uma categoria literária que<br />
desempenha um papel fundamental, principalmente na própria estrutura narrativa.<br />
Como declara Finazzi-Agrò:<br />
A narrativa mantém um vínculo com o tempo enquanto dimensão<br />
externa à linguagem. Toda narrativa tende a representar, de algum<br />
modo, o tempo – ou seja, elege o tempo como um elemento<br />
fundamental para situar e identificar aquilo que se narra (toda<br />
narrativa cria tempos ficcionais). (2001, p.53)<br />
No cinema, ao contrário do que acontece na literatura, as sequências de<br />
tempo não se fazem por meio de palavras, mas sim pelo uso sequencial das imagens.<br />
O desenvolvimento da tecnologia por meio da imagem é que estabelece essa<br />
distinção, e que marcou, gradativamente, sua influência na narrativa literária. “O<br />
cinema com suas imagens em movimento mostrou a relatividade entre tempo e<br />
espaço, marcando assim a inseparabilidade entre esses dois elementos e<br />
preenchendo o invisível com o visível” (ZEMINIAN, 2008, p.48), ou seja, o tempo é<br />
notado por meio de uma sequência de imagens visíveis, compreendendo o fluxo das<br />
ações, como observa Nunes:<br />
O movimento da imagem cinematográfica revelaria a inseparabilidade<br />
do espaço e do tempo, confirmada pela teoria da relatividade de<br />
Einstein, o que mostrou o imbricamento dessas duas categorias,<br />
separadas no início da época moderna pela Crítica da razão pura<br />
(1781) de Kant, segundo a qual o tempo, imperceptível e invisível, é<br />
forma de sensibilidade (forma ou intuição a priori), graças ao qual as<br />
percepções se organizam numa ordem interna, sucessiva, oposta ao<br />
espaço, também intuição a priori, que as organiza numa ordem<br />
exterior e coextensiva. (1988, p.12)<br />
A partir da montagem, as imagens ganham movimento, não apenas dos<br />
atores ou dos objetos em cena, mas, como declara Costa, adquire-se o poder de criar<br />
“significações a partir das junções e dos vazios gerados pelos cortes” (2009, p.52), os<br />
quais possibilitam um movimento contínuo com significação. Assim, os cortes e a<br />
sucessão das cenas, gerados a partir das imagens, possibilitam a descrição das ações<br />
em forma de causa e efeito, ou, como quer Costa, “ação e reação, anterioridade e<br />
posterioridade” (2005, p.52) fornecendo ao espectador uma sensação de imediatez.<br />
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Porém, apesar do “efeito de realidade” que produz, talvez o cinema seja a<br />
arte que mais tenha a capacidade de mostrar os temas relacionados ao espaço e ao<br />
tempo entre todos os modos de representação artística,<br />
O uso serial de imagens, bem como a capacidade de fazer cortes no<br />
tempo e no espaço em qualquer direção, liberta-o das muitas<br />
restrições normais, embora ele seja, em última análise, um<br />
espetáculo projetado num espaço fechado numa tela sem<br />
profundidade. (HARVEY, 1989, p.277)<br />
É importante observar como o tempo recebe destaque no pensamento teórico<br />
atual. Considerando o tempo como condição da existência humana, “é o elemento da<br />
narrativa, assim como é o elemento da vida; está inseparavelmente ligado a ela, como<br />
aos corpos no espaço” (MANN, 1980, p.601). Desde o início das civilizações, tem sido<br />
sempre motivo de grandes questionamentos. Atualmente, entretanto, mudou-se a<br />
forma de se conceber o tempo no que diz respeito à sua relação com o homem e à<br />
valorização do momento. Constantemente encontramos a representação desse<br />
fenômeno nas diversas manifestações artísticas; “embora o tema da irreversível<br />
passagem do tempo e da brevidade da vida remonte às suas origens, a experiência<br />
interna do tempo agora começa a ocupar o primeiro plano na obra de vários autores”<br />
(MATOS, 2007, p.6). Ou seja, o tempo sempre figura-se de forma implícita na<br />
narrativa, exibindo sua problemática que não aparece mais apenas nas reflexões de<br />
algumas personagens, mas como tema, “tornando-se o tempo um dos personagens<br />
centrais” (MATOS, 2007, p.6).<br />
Um dos escritores que refletiu sobre a representação do tempo foi Raduan<br />
Nassar em sua obra máxima Lavoura arcaica (1975), obra esta na qual mistura<br />
aversão e paixão, cruza o eterno com a sensação de descoberta, enfim, desprende-se<br />
do que é estabelecido pela sociedade através de uma construção que mistura o<br />
presente, o passado e a eternidade.<br />
Assim é que Lavoura arcaica, seja o romance como o filme, dá atenção<br />
particular à conceituação a aos significados de tempo. Como afirma Liberato (2007),<br />
“às ambiguidades das palavras de André confrontadas com suas atitudes somam-se<br />
as ambiguidades do tempo construídas na narrativa”. Através desta luta, Nassar<br />
constrói uma narrativa em que há o cruzamento de uma aventura romântica e um<br />
destino trágico. Ou seja, a aventura romântica vem representada no discurso de<br />
André, marcado pela vontade de descoberta e pelo desejo de correr o mundo e viver o<br />
acaso. Por outro lado, encontramos também um destino trágico apresentado por uma<br />
história ancestral, existente muito antes de André ter consciência dela, na qual<br />
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percebemos certo domínio do destino sobre as vontades. Liberato (2007) ainda<br />
declara que na aventura romântica, o tempo é que se abre aos acasos e às ações<br />
humanas. Já no destino trágico, o tempo para, deixando de existir, confundindo-se<br />
com o tempo mítico (da vida pobre na costa do Mediterrâneo), que é aquele em que o<br />
destino retorna incessantemente, num tempo cíclico.<br />
Luiz Fernando Carvalho afirma que o paradigma de André é ele mesmo,<br />
submetendo-se às leis do tempo. Assim, “a partir daí você precisa de um olhar que<br />
traduza as voltas que o tempo dá, um olhar que seja ao mesmo tempo lírico e trágico,<br />
mas distanciado, um olhar cinematográfico sobre os acontecimentos do passado”<br />
(2002, p.55).<br />
Quando André decide guiar a sua história e vivência, o tempo que predomina<br />
é o da aventura; mas quando o mundo lhe responde negativamente às suas ações, o<br />
tempo retorna àquele que é determinado pelo destino, que se converte em uma<br />
desgraça, atuando sempre como um ciclo repetitivo.<br />
As palavras do narrador representam um tempo que quer explodir e tomar<br />
conta do mundo que baniu André de sua família, e no qual ele se sente jogado. Pois,<br />
para André, aos que não recebem do mundo a sua parte, o seu espaço, cabem a eles<br />
duas opções: desistir de tudo ou manter uma esperança em destruir este mundo, este<br />
em que as regras se mantêm rígidas e presentes. É assim que o tempo no romance<br />
de Nassar não se deixa aprisionar, parecendo sempre sugerir algo ao longo do<br />
romance, indicando diferentes possibilidades de interpretação e “sendo a principal<br />
mola para dissolvê-las” (IEGELSKI, 2007, p. 83). Como afirma Carvalho,<br />
[...] no caso de André, seu inimigo invencível é o próprio tempo,<br />
irremediável. A narração, a meu ver, recupera esta constatação do<br />
irrecuperável, do tempo que não volta mais. Portanto, é no tempo do<br />
narrador que, no meu modo de sentir, a tragédia maior se instala. A<br />
dor maior é a dor do tempo. (2002, p.65)<br />
Este tempo cíclico, que se apresenta como o antagonista, é representado no<br />
filme de Carvalho por meio de diversas maneiras, seja por imagens simbólicas que<br />
mostrem o tempo e o ritual litúrgico praticado pela família de André, seja pelo próprio<br />
desenrolar da narrativa, que exibe a constante luta daquele que conta sua história<br />
para vencer o tempo decorrido e o destino trágico que o arrebatou.<br />
Essa retrospecção à situações anteriores, ou até mesmo alguns momentos<br />
que são antecipados pelo discurso de André, são ferramentas anacrônicas, as quais<br />
realizam uma desorganização na ordem natural em que ocorrem os fatos e que são<br />
nomeadas por Genette, respectivamente de analepse e prolepse, como “formas de<br />
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discordância entre duas ordens temporais” (1972, p. 82). Suas correspondentes<br />
fílmicas se dão através dos recursos de flashback para as analepses e de flashforward<br />
para as prolépses, os quais se realizam na moderna indústria cinematográfica dando a<br />
possibilidade da narrativa “desenvolver-se na ordem inversa à cronológica, deixando<br />
em aberto sequências posteriormente completadas num movimento para trás”<br />
(NUNES, 1988, p.32).<br />
Desse modo, Lavoura arcaica é construído pela fusão de vários tempos numa<br />
mesma narrativa e também pela presença de vários tempos que parecem não entrar<br />
em harmonia, a não ser pelo final arrasador. A ausência de conciliação entre os<br />
tempos significa, sobretudo, o conflito que o homem vive entre as diferenças e<br />
imposições de uma tradição versus sua individualidade, o que questiona a “existência<br />
da própria humanidade” (IEGELSKI, 2007, p.83).<br />
Pretendendo, portanto, estabelecer correlações entre os dois meios<br />
expressivos, o literário e o fílmico, e considerando toda a significação que o aspecto<br />
temporal ocupa no romance e no filme, buscaremos analisar a importância da sua<br />
construção e o modo como se liga às demais categorias narrativas, influenciando e<br />
sendo influenciado por elas.<br />
Referências bibliográficas<br />
AGOSTINHO. Confissões. Livro XI. Porto, 1948.<br />
LAVOURA ARCAICA. Direção de Luiz Fernando Carvalho. Produção de Donald K.<br />
Ranvaud e Luiz Fernando Carvalho. Adaptação do romance homônimo de Raduan<br />
Nassar. 2001. Rio de Janeiro: Riofilme distribuidora, 2001. 1 bobina cinematográfica<br />
(163 min), son., color., 35mm.<br />
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Editorial, 2002.<br />
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Dissertação de mestrado, Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas<br />
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