12.07.2015 Views

O "ut pictura poesis" e as origens críticas da ... - UNESP-Assis

O "ut pictura poesis" e as origens críticas da ... - UNESP-Assis

O "ut pictura poesis" e as origens críticas da ... - UNESP-Assis

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Sânderson Reginaldo de MelloA pintura é poesia silenciosa,a poesia, pintura que fala.(Simônides de Céos)Oinício d<strong>as</strong> reflexões comparativ<strong>as</strong> interartes ocorre, naAntigui<strong>da</strong>de Clássica, através <strong>da</strong> imbricação de analogi<strong>as</strong>interpretativ<strong>as</strong> entre a poesia e a imagem. Como se sabe, a <strong>as</strong>sociaçãoretórica/poética, originalmente, já denotava um universo de implicaçõesespeculativ<strong>as</strong> que se explicava pelo fato de que amb<strong>as</strong> possuíam uma esteiracomum de interelações, isto é, a palavra como instrumento de comunicação. Noâmbito <strong>da</strong> retórica clássica, comumente se empregavam nos discursos <strong>as</strong>figur<strong>as</strong> ab exemplo e a simile com a finali<strong>da</strong>de de justificar interaçõesinterdiscursiv<strong>as</strong> e analogi<strong>as</strong> semântic<strong>as</strong> entre <strong>as</strong> artes <strong>da</strong> palavra e <strong>da</strong> imagem.Em vista disso, havia teóricos <strong>da</strong> poesia que admitiam possíveis semelhanç<strong>as</strong>entre <strong>as</strong> artes (poesia, pintura, escultura, teatro etc.) em nível de metáfora(RICOEUR, 2000), muito embora não houvesse conhecimento teórico específicosobre a arte pictórica. 1Assim, considerava-se que a produção iconográficadeveria estar subordina<strong>da</strong> à arte poética, que por sua vez <strong>ut</strong>ilizava exemplosd<strong>as</strong> artes visuais a fim de promover a especifici<strong>da</strong>de dos seus própriospreceitos, como mais adiante verificaremos n<strong>as</strong> poétic<strong>as</strong> de Aristóteles eHorácio.Nesse sentido, o paralelo interartístico no Ocidente se originou por meiode uma analogia especulativa de ordem filosófica, estética e moral. O conceitode mimese inaugurado por Aristóteles, 2 que sistematizou o campo <strong>da</strong> crítica d<strong>as</strong>1 Gérard Genette, que analisa a retórica moderna como a arte <strong>da</strong> expressão literária edifica<strong>da</strong>na retórica dos trópos (retórica-prova-persu<strong>as</strong>ão), fun<strong>da</strong>menta-se em Paul Ricoeur, para quema poética de Aristóteles é mais um tratado de criação poética (poiesis-mimesis-catarsis) do quetécnica de ação (elocução-discurso-persu<strong>as</strong>ão). Segundo Genette, “Aristóteles ocupa-se <strong>da</strong>metáfora nos dois tratados, mostrando que a mesma figura pertence aos dois domínios, oraexercendo uma acção retórica, ora desempenhando um papel na criação poética” (GENETTEapud ALEXANDRE JÚNIOR, 1998, p. 21).2 Devemos lembrar desde já que o conceito de mimese (mímesis) de Aristóteles, naturalmenteinclinado à concepção <strong>da</strong> imitação (representação) <strong>da</strong> ‘reali<strong>da</strong>de’ (visível), diferencia-se doidealismo de Platão, para quem a ‘reali<strong>da</strong>de’ é concebi<strong>da</strong> como simulacro (similari<strong>da</strong>de), nãoadmitindo portanto a relação de igual<strong>da</strong>de entre o real e o objeto perceptível pelos órgãossensoriais (Cf. BOSI, 1991).Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 216


Sânderson Reginaldo de Mellosignificar a reprodução seletiva do que parece maiscaracterístico de uma pessoa ou coisa, e ser, portanto, umaoperação que revele <strong>as</strong>pectos típicos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social; nestesentido, o artista escolheria os perfis relevantes do “original”antes de figurá-los: <strong>as</strong>sim seriam os tipos apresentados n<strong>as</strong>comédi<strong>as</strong> de Aristófanes (BOSI, 1991, p. 28).Portanto, deve-se considerar que, <strong>as</strong>sim como na retórica, na poesiaépica e no teatro se representava a ação (movimento, gestual) e o ambiente(descrição, pl<strong>as</strong>tici<strong>da</strong>de cenográfica), <strong>as</strong>sim também na pintura permitia-sefigurar a sequenciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação (planos narrativos) com a mesma intensi<strong>da</strong>de<strong>da</strong> palavra, sendo a primeira a evocar a temporali<strong>da</strong>de, e a segun<strong>da</strong>, aespaciali<strong>da</strong>de. 3Assim, a narrativa progressiva, que se inspirava n<strong>as</strong> ações depersonagens heroicos e na mitologia, também convivia com <strong>as</strong> escultur<strong>as</strong>, coma arquitetura dos espaços públicos e religiosos, com a pintura em madeira,parietal e v<strong>as</strong>cular, que revelavam cen<strong>as</strong> do cotidiano ou históri<strong>as</strong> <strong>da</strong> mitologia,além d<strong>as</strong> inúmer<strong>as</strong> ilustrações nos rolos e nos papiros. No entanto,considerando o ponto de vista <strong>da</strong> prevalência, <strong>as</strong> imagens por muito tempo semantiveram subordinad<strong>as</strong> aos textos verbais. Assim, no contexto do domínio <strong>da</strong>palavra, devemos compreender que a poesia épica e o teatro eram <strong>as</strong> principaismanifestações artístic<strong>as</strong> que primeiramente traduziram o pensamento e ahegemonia do Estado grego, cuja herança cultural nos legará a concepção <strong>da</strong>arte enquanto forma de conhecimento <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, isto é, forma derepresentação social.Sob esse ponto de vista, na Mímesis (1987), Erich Auerbach observa osindícios do discurso ecfrástico 4na Odisseia, de Homero (séc. VIII a.C.). No3 A temporali<strong>da</strong>de e a espaciali<strong>da</strong>de serão valores estéticos que G. E. Lessing retomará, noLaocoonte (século XVIII), para propor <strong>as</strong> diferenç<strong>as</strong> entre literatura e pintura. (Cf. LESSING,1998.4 Em princípio, a ekphr<strong>as</strong>is é um sistema retórico comumente empregado no tipo de poesiadescritiva, como o icon, que designava uma descrição detalha<strong>da</strong> de um objeto real ou fictício.Em decorrência a esses termos, deriva-se a descriptio locorum e a descriptio temporum, que seocorriam na descrição dos monumentos e templos, bem como n<strong>as</strong> estações do ano e suarecorrência mitológica e simbólica. Já a amplificatio, que também tem origem na arte retórica, éuma espécie de descrição metafórica, ou personificação, presente nos textos narrativos(SALDANHA, 1995, p. 78).Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 218


Sânderson Reginaldo de Mellocapítulo intitulado A Cicatriz de Ulisses, Auerbach chama a atenção para amodelização, pormenorização e ligação sintática, temporal e espacial dodiscurso, concernentes à descrição ordena<strong>da</strong>, uniforme e ilumina<strong>da</strong>, maisprecisamente, na cena em que Ulisses impede a antecipação doreconhecimento (sublimemente reservado à ama de Penélope) pela velhaescrava Euricleia, ao ver a cicatriz do seu senhor. Nesse an<strong>da</strong>mento, o discurso(co)ordena contornos plásticos (descritivos) sobre a temporali<strong>da</strong>de dos eventosdispostos na narrativa, com ritmo e enquadramentos b<strong>as</strong>tante precisos, quelembram a espaciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> pintura (mural, cerâmica etc.):Num discurso direto, pormenorizado e fluente, amb<strong>as</strong> <strong>as</strong>mulheres dão a conhecer os seus sentimentos, um poucomesclados a considerações muito gerais acerca do destino doshomens, a ligação sintática entre <strong>as</strong> partes é perfeitamenteclara; nenhum contorno se confunde. Há, também, espaço etempo abun<strong>da</strong>ntes para a descrição bem ordena<strong>da</strong>,uniformente ilumina<strong>da</strong>, dos <strong>ut</strong>ensílios, d<strong>as</strong> manipulações e dosgestos, mostrando tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> articulações sintátic<strong>as</strong>; mesmo nodramático instante do reconhecimento não se deixa secomunicar ao leitor que é com a mão direita que Ulisses pega avelha pelo pescoço, para impedir-lhe que fale, enquanto aaproxima de si com a o<strong>ut</strong>ra mão. Claramente circunscritos,brilhante e uniformemente iluminados, homens e cois<strong>as</strong> estãoestáticos ou em movimento, dentro de um espaço perceptível(AUERBACH, 1987, p. 2, grifos nossos).O motivo provável dessa abor<strong>da</strong>gem imagética <strong>da</strong> narrativa homérica éa concorrência com o amplo universo iconográfico, que igualmente narravam <strong>as</strong>glóri<strong>as</strong> d<strong>as</strong> conquist<strong>as</strong> greg<strong>as</strong> e episódios <strong>da</strong> mitologia. De fato, nos séculos VIe V a.C. a pesquisa do desenho <strong>da</strong> figura humana teria se aperfeiçoadotecnicamente, e encontrado na arte pictográfica a transposição visual doscostumes e dos mitos (Cf. PANOFSKY, 1987). A região <strong>da</strong> Ática eprincipalmente a ci<strong>da</strong>de de Aten<strong>as</strong> tiveram o maior desenvolvimento e liber<strong>da</strong>deartística com relação à pintura, pois n<strong>as</strong> demais ci<strong>da</strong>des-Estados greg<strong>as</strong> oartista (artesão, pintor) era geralmente considerado um simples decorador.Dessa forma, o artista ateniense se consagrou como um dos maioresespecialist<strong>as</strong> do gênero pictórico, dominando <strong>as</strong> técnic<strong>as</strong> <strong>da</strong> representaçãoMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 219


Sânderson Reginaldo de Mellohumana e <strong>da</strong> concatenação sequencial de ações e planos espaciais, pontos queo distinguia <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decorativa.Por o<strong>ut</strong>ro lado, deve-se avaliar que a cultura grega se estr<strong>ut</strong>urava naracionali<strong>da</strong>de e na perspectiva do homem como centro de su<strong>as</strong> especulações,ao mesmo tempo em que a imagem e a imagística se tornavam vetoresideológicos e culturais. Além disso, a preferência iconográfica dos artist<strong>as</strong>visuais gregos era pelos episódios narrativos, cuja transposição <strong>as</strong>sumiu aconsoli<strong>da</strong>ção de linguagens pictográfic<strong>as</strong> b<strong>as</strong>tante específic<strong>as</strong>. Com o tempo, ainstância semântica p<strong>as</strong>sou a superar a tradução intersemiótica (estética) do<strong>as</strong>sunto heroico ou religioso narrado na poesia e no teatro, o que de certomodo explica a equivalência etimológica dos termos escrever e pintar para osgregos.Assim sendo, se a poesia se constituíra como o principal veículo dereminiscência do p<strong>as</strong>sado e <strong>da</strong> solidificação <strong>da</strong> cultura grega, a imagem nãosomente p<strong>as</strong>sou a concorrer com a poesia, m<strong>as</strong> intuir um teor interpretativo <strong>da</strong>essência dos fenômenos históricos mais intrínsecos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, antesdelega<strong>da</strong> ao grupo dos poet<strong>as</strong> (aedo). Em o<strong>ut</strong>r<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, se na poesia (lírica,épica, dramática) havia a evocação imaginativa de algum mito ou fato histórico,deus ou herói (imagem-eidos), com a imagem, os acontecimentos sãovisualmente revelados, e os deuses, os heróis e os homens (inferiores, comunse melhores) p<strong>as</strong>sam a ganhar traços e form<strong>as</strong> (imagem-eidolon, imagemeikones).Consequentemente, a relevância <strong>da</strong> palavra e <strong>da</strong> imagem para a vid<strong>as</strong>ocial (Estado) em termos de reali<strong>da</strong>de, imitação e ver<strong>da</strong>de, será disc<strong>ut</strong>i<strong>da</strong>pelos principais intelectuais gregos, configurando o contexto dos primeirospontos de vista críticos acerca <strong>da</strong> rivali<strong>da</strong>de entre a poesia e a pintura.Note-se que a poesia já vislumbrara a necessitava de proporcionar aoleitor/espectador <strong>as</strong> mesm<strong>as</strong> sensações auferid<strong>as</strong> pel<strong>as</strong> artes visuais (enargeia),configurando a fortuna literária <strong>da</strong> poesia ecfrástica. 5 Assim, desde a Ilía<strong>da</strong>, e5 Segundo Aguiar e Silva, Enargeia é a vivaci<strong>da</strong>de retórica que <strong>as</strong> poétic<strong>as</strong> verbais possuempara se despertar sensações visuais, enquanto que a Ekphr<strong>as</strong>is é o modelo poético de descriçãode obra de arte visual, como a pintura ou a escultura (AGUIAR E SILVA, 1998, p. 163). NoMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 220


Sânderson Reginaldo de Melloposteriormente na literatura latina (por influência <strong>da</strong> escola Alexandrina), pôdesevislumbrar a combinação <strong>da</strong> poetici<strong>da</strong>de plástica com a linguagem poética, oque configura a continui<strong>da</strong>de <strong>da</strong> homologia estética entre o verbal e o visual,que parte <strong>da</strong> cultura clássica grega e se reflete na cultura clássica romana.In Alexadrian poetry the iconic traditions that go back to Homerand Hesiod are united with impulses from a gifted school ofpainters who were decoranting wall and canv<strong>as</strong> artfully anddramatically disposed details from Greek mythology. As thepainters, so also the poets, who characteristically presentedmythic legend pictorially. […] Indeed, in some of the Romanpoets there is the same combination of iconic conventions andthe traditions of mythological genre-painting that so strikinglycharacterized the late Greek m<strong>as</strong>ters. Vergil describes the shildof Aene<strong>as</strong> and paintings in the temple of Juno. Petronius Arbitervisits a public gallery and describes paintings by Zeuxis,Protogenes, and Apelles in the manner of the Greekanthologists, saying of an Apelles that “’tw<strong>as</strong> finished to the life,you’d have sworn it an image of the soul too.” Ovid, longconsidered the most pictorial of poets, describes the temple ofSol soaringaloft on pillars of bronze and gold, its doors made offine metal, of which the figured panels, engraved by Mulciber,show the skill of m<strong>as</strong>ter, for they represent sea, land, and sky(HAGSTRUM, 1987, p. 27-8).Evidentemente, na Ilía<strong>da</strong>, a descrição do escudo de Aquiles, porexemplo, leva o leitor a perceber detalhes do objeto em concomitância com odesenvolvimento d<strong>as</strong> ações. O imaginário é despertado pela movimenta<strong>da</strong>diegese e pela potenciali<strong>da</strong>de visual do uso d<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, que pretendemdespertar a imagem mental do artefato (imagem-eidos). Seguido por Virgílio(Enei<strong>da</strong>) e Camões (Os Lusíad<strong>as</strong>), no que tange à tradição épica ocidental,Homero foi possivelmente o primeiro poeta a empregar a poesia ecfrástica comto<strong>da</strong> sua carga de expressivi<strong>da</strong>de, podendo-se hoje identificá-lo como o grandeprecursor dos poet<strong>as</strong>-pintores, como podemos testemunhar no seguinteexcerto:entanto, no contexto <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong>de Clássica, a ekphr<strong>as</strong>is possuía um sentido mais genérico,pois remetia à descrição de algo presente tanto no âmbito d<strong>as</strong> artes quanto na esfera <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de social. No que tange à literatura, a descrição ecfrástica buscava delinear um objetoausente, fora ou além do texto (metatexto), e por isso se inclinava a transmitir, verbalmente,uma substância visível, ou seja, um objeto que não era necessariamente constituído pelo signoverbal.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 221


Sânderson Reginaldo de MelloFabricou primeiro um escudo grande e forte,lavrado por todos os lados. Põe-lhe uma cercadura lustrosa,tríplice e coruscante, com um talabarte de prata.Cinco eram <strong>as</strong> camad<strong>as</strong> que dispôs, e em ca<strong>da</strong> uma del<strong>as</strong>compõe lavores numerosos, com seus sábios pensamentos.Forjou lá a terra, o céu e o mar,o sol infatigável e a lua na plenitude,<strong>as</strong> Plêiades e <strong>as</strong> Híades, e a força <strong>da</strong> Orion,e a Ursa, conheci<strong>da</strong> igualmente pelo nome de Carro,que gira no mesmo lugar e espreita para o Orion,e é a única a quem não coube tomar banho no Oceano.Forjou também du<strong>as</strong> ci<strong>da</strong>des de homens falantes,mui bel<strong>as</strong>. Numa havia bod<strong>as</strong> e festins:ao luar dos archotes, levam pela ci<strong>da</strong>de <strong>as</strong> noiv<strong>as</strong>saíd<strong>as</strong> do tálamo; elevam-se no ar muitos cantos nupciais.rodopiam os jovens na <strong>da</strong>nça e, no meio deles,fla<strong>ut</strong><strong>as</strong> e cítar<strong>as</strong> erguem a sua melodia(HOMERO apud AGUIAR & SILVA, 1998, p. 163-4, grifosnossos).Por conseguinte, a carência de uma fun<strong>da</strong>mentação teórica maiscontundente sobre <strong>as</strong> Artes, que em princípio se vinculavam aos <strong>as</strong>pectoshistóricos, morais e religiosos, tornou ca<strong>da</strong> vez mais indispensável oestreitamento de su<strong>as</strong> analogi<strong>as</strong>. Quando a consciência estética começa aflorarna Grécia, houve a preocupação de se refletir <strong>as</strong> artes segundo sua natureza,seus meios e form<strong>as</strong> de representação (mecanismos). Nesse contexto, p<strong>as</strong>sa-sea constatar o crescente distanciamento entre a poesia e a pintura, acarretandona ideia de superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> primeira sobre a segun<strong>da</strong>, iniciando criticamente oprocesso de rivali<strong>da</strong>de comparativa entre <strong>as</strong> artes <strong>da</strong> palavra e <strong>da</strong> imagem, quep<strong>as</strong>saram a destacar a essência do seu caráter imitativo em relação à natureza.Assim, <strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> reflexões que tangenciam a consciênciacomparativa entre a poesia e a pintura nos remetem ao poeta grego Simônidesde Céos (séc. VI-V a.C.), citado no De Gloria Atheniensium III (346f-347c) porPl<strong>ut</strong>arco (séc. I-II d.C.), herdeiro de uma alicerça<strong>da</strong> tradição crítica sobre a artepoética. Simônides considerou a pintura uma poesia silenciosa e a poesia umapintura falante (M<strong>ut</strong>a poesis, eloquens <strong>pictura</strong>), imortalizando um dos principaisfun<strong>da</strong>mentos sobre a relação de parentesco entre <strong>as</strong> artes (LEE, 1967, p. 196).Consciente <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> imagem enquanto mimese, Simônides põe emMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 222


Sânderson Reginaldo de Melloequivalência <strong>as</strong> fronteir<strong>as</strong> genológic<strong>as</strong> interartes, através do paralelo literáriopictórico,vindo a se constituir numa ampla tradição especulativa no campo d<strong>as</strong>representações artístic<strong>as</strong>. Com certeza, a interação aproximativa <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gemde Simônides sobre a relação poesia e pintura, procurando evidenciar aimportância <strong>da</strong> imagem, delineia a gravi<strong>da</strong>de que a questão ocupou nocontexto <strong>da</strong> cultura grega.If Pl<strong>ut</strong>arch is right, it w<strong>as</strong> given proverbial expression <strong>as</strong> early<strong>as</strong> the fifth or sixth century B.C. by Simonides of Ceos. It w<strong>as</strong>later formulated into the concept of literary enargeia, first <strong>as</strong> arethorical and then <strong>as</strong> a poetical principle. Long before itscritical formulations it had been expressed in belles-letters.Extending from Homer to Achilles Tatius, the iconic in verbal artcrossed the generic boun<strong>da</strong>ries and appeared in epic, drama,epigram, lyric, romance, and allegory. In so rich and varied anexpression of literary pictorialism, the seeds of f<strong>ut</strong>uredevelopment are virtually all present. Some writers, includingHomer, suggest the value of the difficulté vaincue, which ariseswhenever the frontiers that separate the arts are knowingly andintentionally crossed. Others introduce considerations of totalform and structure. Still others suggest that poetry h<strong>as</strong> derivedtheme and technique from the contemplation of visual art. Allproclaim the values of verbal sensuousness (HAGSTRUM, 1987,p. 34-35).Assim, diante <strong>da</strong> grande difusão <strong>da</strong> arte pictográfica na região <strong>da</strong> Ática,Platão (427-347 a.C.) prefere valorizar o caráter nacionalista, pe<strong>da</strong>gógico ecultural que a representação verbal (literatura) pode suscitar em níveis deEstado, e por isso dá preferência à arte retórica. No Crátilo e maisespecificamente nos livros II, III e X d’A República, Platão busca teorizar sobreos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> imitação, ao orientar poet<strong>as</strong> e pintores nummesmo eixo de realização artística. Para o pensador, a poesia e a pintura sãoobr<strong>as</strong> de imitação, e por isso falseiam a natureza, dificultando o caminho <strong>da</strong>alma ao conhecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. Logo, a poesia e a pintura seriam amb<strong>as</strong>nociv<strong>as</strong> ao bom governo do Estado.A preocupação com ambigui<strong>da</strong>de suscita<strong>da</strong> pela escrita literária e pelaimagem pictórica é justifica<strong>da</strong> pela racionali<strong>da</strong>de e pelo caráter deverossimilhança do pensamento de Platão. Na opinião do a<strong>ut</strong>or de Fédon, tantoMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 223


Sânderson Reginaldo de Mellopoet<strong>as</strong> como pintores julgam representar a ver<strong>da</strong>de, o primeiro pela ilusão dopensamento ao identificar <strong>as</strong> aparentes virtudes de certo personagem àsvirtudes human<strong>as</strong>, o segundo, ao desenhar, faz-se crer ao simples espectadortão bom artífice pelo julgamento <strong>da</strong> articulação de cores e traços, como eluci<strong>da</strong>o episódio de Zêuxis e Parr<strong>as</strong>o. 6 Assim, Platão acredita que o pintor, sendo bomem sua arte, não fará na<strong>da</strong> menos que enganar os espíritos sobre a aparênciareal <strong>da</strong>quilo que representam. Paralelamente, sugere que os poet<strong>as</strong>, compouc<strong>as</strong> afini<strong>da</strong>des com <strong>as</strong> tint<strong>as</strong>, fazem-se crer exímios pintores, ou artesãos,pelo conhecimento <strong>da</strong> imitação ao colorir ca<strong>da</strong> arte pelo correto emprego depalavr<strong>as</strong> e versos. 7 Assim, Platão vê a simetria entre a arte pictórica e a artepoética, pois amb<strong>as</strong> se distanciam <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, suscitando uma compreensão doespírito que turva o ver<strong>da</strong>deiro conhecimento. Por o<strong>ut</strong>ro lado, segundo Platão,o poeta imitador e o pintor devem ser considerados hostis à polis, porquemotivam uma moral perversa à vi<strong>da</strong> social, ao postular num mesmo grau deimportância <strong>as</strong>suntos sublimes e vulgares, podendo <strong>as</strong>sim motivar a crença defant<strong>as</strong>i<strong>as</strong>. 8 Nesse <strong>as</strong>pecto, Platão culpa a ignorância humana como coparticipante<strong>da</strong> aceitação do processo de imitação e fingimento d<strong>as</strong> artes, poisse o homem não for capaz de reconhecer a natureza de determina<strong>da</strong> coisa, caivítima <strong>da</strong> sua própria ingenui<strong>da</strong>de.Porém, devemos considerar o idealismo de Platão sobre o conceito demimese. Para o filósofo, o objeto representado é cópia <strong>da</strong> natureza aparente6 Numa disp<strong>ut</strong>a para se averiguar quem era o melhor pintor, conta-se que, quando Zêuxisapresentou a pintura de um cacho de uv<strong>as</strong> a Parr<strong>as</strong>o, rapi<strong>da</strong>mente dois pássaros tentaram bicar<strong>as</strong> supost<strong>as</strong> fr<strong>ut</strong><strong>as</strong>. Em segui<strong>da</strong>, Zêuxis solicitou que Parr<strong>as</strong>o desfizesse o embrulho dopresente, figurado ao lado, vindo este a descobrir que não só o presente se tratava de umsimulacro, m<strong>as</strong> to<strong>da</strong> a cena retrata<strong>da</strong>. Assim, Parr<strong>as</strong>o admite a superiori<strong>da</strong>de de Zêuxis, quenão apen<strong>as</strong> enganara a natureza, m<strong>as</strong> principalmente os olhos de o<strong>ut</strong>ro artista.7 Lembra-nos Bosi que Platão, igualmente no livro d<strong>as</strong> Leis, ao disc<strong>ut</strong>ir que o conhecimento <strong>da</strong>arte é simulacro, designa pelo termo “ícones” (imagens semelhantes aos objetos) tanto pintur<strong>as</strong>quanto poem<strong>as</strong>, <strong>da</strong>nç<strong>as</strong> e melodi<strong>as</strong>. Artes que produzem simulacros são <strong>as</strong> técnic<strong>as</strong> <strong>da</strong> imagem,téchnai eikástikai (Leis, II, 667 c), com <strong>as</strong> su<strong>as</strong> correspondênci<strong>as</strong> e proporções intern<strong>as</strong>, aharmonia e o ritmo (BOSI, 1991, p. 29-30).8 Platão compreende que, se o imitador encanta o interloc<strong>ut</strong>or pelo encadeamento de imagens,logo são na ver<strong>da</strong>de prod<strong>ut</strong>ores de fant<strong>as</strong>m<strong>as</strong>, porque su<strong>as</strong> criações estão longe do belo ou <strong>da</strong>natureza ideal. Desse modo, defende a idéia de que por mais hábil que possa parecer umartista, artesão etc., não p<strong>as</strong>saria de um falsário, charlatão e enganador (fingidor).Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 224


Sânderson Reginaldo de Mello(material), que aprioristicamente é também cópia na natureza ideal (mundo d<strong>as</strong>idei<strong>as</strong>). Nesse ponto de vista, a ativi<strong>da</strong>de dos pintores e poet<strong>as</strong>, ao imitar anatureza, aguça o mundo dos sentidos e provoca o distanciamento do homem<strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de, isto é, d<strong>as</strong> form<strong>as</strong> (idei<strong>as</strong>) etern<strong>as</strong> e im<strong>ut</strong>áveis, segundo sua Teoriad<strong>as</strong> Idei<strong>as</strong>. 9Nesse mesmo contexto se encontram os a<strong>ut</strong>ores de tragédi<strong>as</strong>, que aexemplo do pintor, af<strong>as</strong>tam-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, na medi<strong>da</strong> em que imitam reis,rainh<strong>as</strong>, deuses etc. Contudo, o pintor é considerado num patamar de maiorgrau de inferiori<strong>da</strong>de em relação aos poet<strong>as</strong> trágicos, porque insistem em imitaralgo em sua aparência, não na sua essência. Platão afirma que os pintoresfiguram o que veem em determinado ponto de visão, ou momento, e não o que<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> ver<strong>da</strong>deiramente são. O filósofo afirma que os pintores ignoram oconhecimento d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong>, 10 que deve estar ligado ao fabrico, à técnica e aotrabalho <strong>da</strong>queles que estão no segundo nível <strong>da</strong> imitação: os prod<strong>ut</strong>ores.Paralelamente, no âmbito <strong>da</strong> poesia, Platão aponta um falseamento dospoet<strong>as</strong>, quando estes não são fieis aos acontecimentos históricos, pela nãorecuperação dos mesmos no tempo e no espaço, bem como pelo falseamentodos personagens postos à semelhança de deuses e heróis. Essa mesmaconcepção é também aplica<strong>da</strong> aos pintores, n<strong>as</strong> pintur<strong>as</strong> históric<strong>as</strong>, ou n<strong>as</strong>narrativ<strong>as</strong> mitológic<strong>as</strong>, cuj<strong>as</strong> imitações distanciam-se muito dos objetos e dosfatos que se pretendem contar. Assim, elencados no mesmo paradigma <strong>da</strong>representação mimética, a pintura e a poesia, segundo Platão, podem acarretarperigos<strong>as</strong> ilusões, com a possibili<strong>da</strong>de de proporcionar diferentes e errône<strong>as</strong>interpretações. Consequentemente, o conjunto desses preceitos teóricos levou9Platão vê na pintura e na escrita, conforme su<strong>as</strong> atribuições mimétic<strong>as</strong>, a sujeição <strong>da</strong> formanatural (natureza divina) à forma real (natureza física), ou seja, os artist<strong>as</strong> traduzem,equivocamente, em termos de objetos materiais (artefatos), o ideal supremo. Assim, a pinturaestaria no último grau triádico de af<strong>as</strong>tamento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, onde, no primeiro grau deimportância se encontra o Absol<strong>ut</strong>o, depois o criador (artesão etc.) e, por fim, o pintor, que porsua vez na<strong>da</strong> cria, m<strong>as</strong> imita. Dessa forma, na República, Platão explica: Deus criou a cama, omarceneiro a produziu no mundo e o pintor copiou-a (PLATÃO, 1997, p. 323-4).10 Platão avalia que o grau de importância <strong>da</strong> arte dos pintores é ain<strong>da</strong> mais dimin<strong>ut</strong>o namedi<strong>da</strong> em que os artist<strong>as</strong> não possuam uma experiência <strong>ut</strong>ilitária com os objetos pelos quaisimitam.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 225


Sânderson Reginaldo de Melloà expulsão dos poet<strong>as</strong> e dos pintores <strong>da</strong> Academia, famosa escola fun<strong>da</strong><strong>da</strong> porPlatão em Aten<strong>as</strong>.Não obstante, ao se referir aos poet<strong>as</strong> trágicos e a Homero, Platãosugere que “são versados em tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> artes, em tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> human<strong>as</strong>relativ<strong>as</strong> à virtude e ao vício e até n<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> divin<strong>as</strong>” (PLATÃO, 1997, p. 326,grifos nossos), e por mais bem saberem, mais sabem imitar e turvar <strong>as</strong> mentes.Assim, sob a enunciação de Sócrates, Platão faz uma relação de m<strong>ut</strong>uali<strong>da</strong><strong>da</strong>deentre a literatura e a pintura, quando questiona se Homero, tal como artífice <strong>da</strong>imagem, por imitar <strong>as</strong> guerr<strong>as</strong> e <strong>as</strong> virtudes heroic<strong>as</strong>, saberia dizer o porquê deuns homens se tornarem bons e o<strong>ut</strong>ros maus, ou qual governador, mediantesua arte, poderia melhor exercer a vi<strong>da</strong> pública, ou, pela mesma arte, pudesseaconselhar o bom sucesso de guerr<strong>as</strong>, e até mesmo fazer virem ao mundoalgum<strong>as</strong> invenções, como é possível verificar através <strong>da</strong> geniali<strong>da</strong>de de Tales deMileto, ou de Pitágor<strong>as</strong>, que teve inúmeros seguidores. Como <strong>as</strong> respost<strong>as</strong> aess<strong>as</strong> in<strong>da</strong>gações se fazem entender de maneira negativa, Platão conclui que ospoet<strong>as</strong>, tal como os pintores, artífices e arquitetos etc., reproduzem a aparênciad<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> sem ter ciência <strong>da</strong> natureza <strong>da</strong>quilo que imitam:O poeta aplica a ca<strong>da</strong> arte cores adequad<strong>as</strong>, com <strong>as</strong> su<strong>as</strong>palavr<strong>as</strong> e fr<strong>as</strong>es, de tal modo que, sem ser competente senãopara imitar, junto <strong>da</strong>queles que, como ele, só veem <strong>as</strong> cois<strong>as</strong>segundo <strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, p<strong>as</strong>sa por falar muito bem, quando fala,observando o ritmo, a métrica e a harmonia, quer de sapataria,quer de arte militar, quer de o<strong>ut</strong>ra coisa qualquer, tal o encantoque esses ornamentos têm naturalmente e em si mesmos!Despojad<strong>as</strong> do seu colorido artístico e citad<strong>as</strong> pelo sentido queencerram, sabes bem, creio eu, que figura fazem <strong>as</strong> obr<strong>as</strong> dospoet<strong>as</strong> (PLATÃO, 1997, p. 328).No âmbito moral, o posicionamento de Platão a respeito d<strong>as</strong> artesimitativ<strong>as</strong> no seio <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de revela que o poeta imitador imita ocomportamento irritável e emocionalmente instável, próprio do homem inferior,dominado por seu caráter ir<strong>as</strong>cível, porque esse tipo de imitação é mais fácil doque o caráter prudente e controlável, difíceis de compreender e manterconstantemente em tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> instânci<strong>as</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Platão analisa que,Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 226


Sânderson Reginaldo de Mellocomo<strong>da</strong>mente, o poeta imitador procura mais agra<strong>da</strong>r à tempestuosi<strong>da</strong>de docomportamento <strong>da</strong> multidão, nos seus estados de alma inferior, do mesmomodo com que o pintor realiza uma obra aquém do valor <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e d<strong>as</strong>uperiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma (razão). Portanto, promovendo a corrupção d<strong>as</strong>ocie<strong>da</strong>de, o poeta e o pintor agem a partir de leis do<strong>ut</strong>rinári<strong>as</strong> dolos<strong>as</strong> à moraldo Estado - que deve sempre proceder segundo os alicerces <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de -,sendo, consequentemente, nocivos à vi<strong>da</strong> pública, pois se o Estado governa apartir de preceitos racionais e os homens são motivados a se tornaremmelhores ao conviverem em socie<strong>da</strong>de, por o<strong>ut</strong>ro lado, <strong>as</strong> artes mimétic<strong>as</strong>trabalham em oposição a essa perspectiva. Enfim, o pensamento crítico dePlatão indica que a poesia, ao suscitar estados de alma, como o ódio, aviolência, a br<strong>ut</strong>ali<strong>da</strong>de, os vícios etc., vergonhosos na vivência social, faz comque os mesmos se instaurem na alma através do pensamento; como também oriso, pela alegria do burlesco e d<strong>as</strong> emoções patétic<strong>as</strong>, cujo público é instigadoa aplaudir na incitação d<strong>as</strong> platei<strong>as</strong>. Nesse sentido, na interpelação de Sócratesa Glauco, Platão adverte: “no que diz respeito ao amor, à cólera e a tod<strong>as</strong> <strong>as</strong>o<strong>ut</strong>r<strong>as</strong> paixões <strong>da</strong> alma, que acompanham ca<strong>da</strong> uma d<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> ações, aimitação poética não provoca em nós semelhantes efeitos?” (PLATÃO, 1997, p.336). Ao invés disso, prossegue Sócrates, a imitação poética (poesia e pintura)“fortalece-<strong>as</strong> regando-<strong>as</strong>, quando o certo seria secá-l<strong>as</strong>, faz com que reinemsobre nós, quando deveríamos reinar sobre el<strong>as</strong>, para nos tornarmos melhorese mais felizes, em vez de sermos mais viciosos e miseráveis” (PLATÃO, 1997, p.326). Enfim, Platão condena rigorosamente a obra de arte à falsi<strong>da</strong>de e aoimaginário nocivo.Por sua vez, Aristóteles (384-322 a.C.), sob um viés distinto dopensamento de Platão, retoma o conceito de mimese na Poética, e o confirmacomo principal alicerce d<strong>as</strong> considerações homológic<strong>as</strong> entre a poesia e apintura. Para Aristóteles, a analogia entre <strong>as</strong> artes se estabelece através doconceito de imitação, e defende a inerência <strong>da</strong> poesia à essência do gêneroMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 227


Sânderson Reginaldo de Mellohumano, considerando que a produção poética deve estar intimamenteintegra<strong>da</strong> às funções pe<strong>da</strong>gógica e hedonística.É importante ressaltar que Aristóteles lança <strong>as</strong> b<strong>as</strong>es de uma teoriapoética (literária) mais sistematiza<strong>da</strong>. Na sua Poética, propõe uma teoria dosgêneros, dividindo <strong>as</strong> form<strong>as</strong> literári<strong>as</strong> produzid<strong>as</strong> até então, tomando comoponto de apoio a concepção <strong>da</strong> arte como mimese, ou seja, imitação <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de. Assim, de acordo com o objeto de imitação, Aristóteles diferencia apoesia épica e trágica (imitação de ações nobres) d<strong>as</strong> poesi<strong>as</strong> satíric<strong>as</strong>, líric<strong>as</strong>etc. (imitação de ações do cotidiano), e, de acordo com o modo de imitação,diferenciava entre si a poesia épica, a poesia lírica e a poesia dramática. Nessesentido, tratando-se sobre <strong>as</strong> disjunções <strong>da</strong> comunicação entre o poeta e osespectadores, com b<strong>as</strong>e n<strong>as</strong> form<strong>as</strong> de representação, a tradição <strong>da</strong> tríadegenológica instaura<strong>da</strong> por Aristóteles apresenta: “o genus narrativum,constituído pelo epos ou “a palavra narra<strong>da</strong>” por um rapsodo perante umauditório; o genus liricum, que é a “palavra canta<strong>da</strong>” pelo próprio poeta,expressão de sua subjetivi<strong>da</strong>de; o genus dramaticum, ou seja, “a palavrarepresenta<strong>da</strong>” por atores para espectadores” (D’ONOFRIO, 1994, p. 10-1).Assim, dentro desse universo, o caráter mimético <strong>da</strong> poesia, conformeAristóteles, proporciona o saber (conhecimento) e o prazer (fruição) ao serhumano. Nesse sentido, através <strong>da</strong> imitação poética (representação verbal), háa promoção <strong>da</strong> informação, tanto a filósofos como a homens comuns; e domesmo modo, na imitação pictórica (representação plástica), os homens podemse deleitar no ornato d<strong>as</strong> imagens, disc<strong>ut</strong>indo-<strong>as</strong>, e até mesmo vindo a sereconhecer nel<strong>as</strong>.A Arte é imitação, segundo os princípios teóricos de Aristóteles. Diantedisso, <strong>as</strong> diferentes representações artístic<strong>as</strong> podem suscitar a imitação <strong>da</strong>reali<strong>da</strong>de, e/ou de si mesm<strong>as</strong>, indicando certo anseio de superação <strong>da</strong> noção demeio de imitação como prescrição genológica d<strong>as</strong> artes imitativ<strong>as</strong>, pois ca<strong>da</strong>arte supõe linguagem e técnica específic<strong>as</strong>, que não se restringem numa únicaarte, uma vez que a representação se configura em torno do meio, do objeto eMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 228


Sânderson Reginaldo de Mello<strong>da</strong> maneira (ARISTÓTELES, 2005, p. 21). O pensador alude que se existeaquele que imite “muit<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> figurando-<strong>as</strong> por meio de cores e traços (umgraç<strong>as</strong> à arte; o<strong>ut</strong>ros, à prática) e o<strong>ut</strong>ros o fazem por meio <strong>da</strong> voz, <strong>as</strong>simtambém ocorre naquel<strong>as</strong> mencionad<strong>as</strong> artes; tod<strong>as</strong> el<strong>as</strong> efetuam a imitaçãopelo ritmo, pela palavra e pela melodia, quer separados, quer combinados”(ARISTÓTELES, 2005, p. 19). Nesse sentido, o que Aristóteles busca cogitar é arelação homológica de todos os artist<strong>as</strong> como imitadores, sejam poet<strong>as</strong> oupintores, músicos ou atores; isto é, afirma que todos, de um modo geral,representam ações: o “drama”. Enfim, na pretensa analogia entre <strong>as</strong> artes <strong>da</strong>palavra e <strong>da</strong> imagem, Aristóteles busca equiparar a poesia não como a simplescombinação de metros, frequentemente usados nos tratados dos naturalist<strong>as</strong>(médicos), m<strong>as</strong> também pela representação do ritmo e <strong>da</strong> melodia, comoelementos fun<strong>da</strong>mentais de tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> Artes. Portanto, conclui que o caráter deuma obra de arte não se define pelo uso do verso (metro), m<strong>as</strong> é <strong>da</strong>doessencialmente pelo que imitam.Assim sendo, na Poética, ao tratar <strong>da</strong> poesia, Aristóteles discorre sobrea epopeia, a tragédia e a comédia, cl<strong>as</strong>sificando-<strong>as</strong> em gêneros distintos, deacordo com os preceitos de meio, modo e objeto de imitação. Ao dirigir umolhar especial sobre a tragédia, a fim de melhor explicitar seu juízo crítico,Aristóteles vem a relacioná-la com a pintura, justificando esse paralelo deacordo com <strong>as</strong> semelhanç<strong>as</strong> entre o caráter mimético <strong>da</strong> arte pictórica e aessência imitativa <strong>da</strong> tragédia. Dessa maneira, para Aristóteles, se <strong>as</strong> artesimitam ações (bo<strong>as</strong> ou más), do mesmo modo a tragédia e a comédia imitam<strong>as</strong> virtudes e os vícios, que diferenciam o caráter de alguém. Desse modo, aomostrar com clara evidência (traços, cores etc.) o que a natureza humana é, apintura se aproxima <strong>da</strong> poesia, visto que igualmente os poet<strong>as</strong> podemrepresentar os homens melhores ou piores, <strong>as</strong>sim como fazem os pintores:melhorando-os, piorando-os e/ou copiando-os.Como aqueles que imitam pesso<strong>as</strong> em ação, est<strong>as</strong> sãonecessariamente ou bo<strong>as</strong> ou más (pois os caracteres qu<strong>as</strong>esempre se reduzem apen<strong>as</strong> a esses, b<strong>as</strong>eando-se no vício ou naMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 229


Sânderson Reginaldo de Mellovirtude a distinção do caráter), isto é, ou melhores do quesomos, ou piores, ou então tais e quais, como fazem ospintores; Polignoto, por exemplo, melhorava os originais;Pausão os piorava; Dionísio pintava-os como eram.Evidentemente, ca<strong>da</strong> uma d<strong>as</strong> dit<strong>as</strong> imitações admitirá ess<strong>as</strong>distinções e diferirão entre si por imitarem <strong>as</strong>sim objetosdiferentes (ARISTÓTELES, 2005, p. 20).Aristóteles compreende que, se na tragédia, a intriga proporciona aoespectador uma espécie de quadro (ou retrato) <strong>da</strong> ação, 11algo semelhantepode ser visualizado no ornamento pictográfico <strong>da</strong> pintura. Por essa razão, omito pode ser interpretado como a fonte cromática <strong>da</strong> tragédia, de onde ospersonagens são inspirados, <strong>as</strong>sim como <strong>as</strong> cores, de modo equivalente, ornam<strong>as</strong> bel<strong>as</strong> form<strong>as</strong> dos desenhos. De maneira <strong>as</strong>sociativa, Aristóteles reflete que,se o conjunto de ações configura uma fábula, e esta corresponde à imitação deações, logo:A fábula é, pois, o princípio, a alma, por <strong>as</strong>sim dizer, <strong>da</strong>tragédia, vindo em segundo lugar os caracteres. É mais oumenos como na pintura; se alguém lambuz<strong>as</strong>se uma tela com<strong>as</strong> mais bel<strong>as</strong> tint<strong>as</strong> em confusão, não agra<strong>da</strong>ria como quemesboç<strong>as</strong>se uma figura em branco e preto. A tragédia é imitaçãoduma ação e sobretudo em vista dela é que imita <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong>agindo (ARISTÓTELES, 2005, p. 26).Contudo, Aristóteles esclarece que a imitação do real, como ideal, não éuma regra rígi<strong>da</strong> a ser obedeci<strong>da</strong> n<strong>as</strong> artes, m<strong>as</strong> é imperativo que se considereinicialmente o efeito de verossimilhança, como preceito fun<strong>da</strong>mental doconhecimento, a ponto do objeto imitado poder ser interpretado como crível,mesmo se fant<strong>as</strong>ioso, e não substancialmente ver<strong>da</strong>deiro. 12 Por conseguinte, se11 Aristóteles, ao tratar a tragédia e a comédia como artes imitativ<strong>as</strong>, propõe a comparação <strong>da</strong>arte do poeta com a do pintor. Evidencia nesse sentido o caráter <strong>da</strong> arte como representação<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, pois a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> arte não é a cópia <strong>da</strong> natureza, porque se deve compreendera reali<strong>da</strong>de segundo <strong>as</strong> ações, como exemplo, “a tragédia é imitação, não de pesso<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> deuma ação, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, <strong>da</strong> desventura” (ARISTÓTELES, 2005, p. 25), isto é, a açãoconcentra em si a felici<strong>da</strong>de e a desventura, <strong>as</strong>sim <strong>as</strong> quali<strong>da</strong>des conferid<strong>as</strong> a um personagemsomente se individualizam pela ação que desempenham.12 Aristóteles entende que a contemplação de uma obra de arte visual proporciona aoespectador o reconhecimento do objeto retratado, através do conhecimento prévio desseobjeto, porém, se não o conhece, irá igualmente sentir prazer em função do trabalho artístico<strong>da</strong> execução <strong>da</strong> obra, e aí encontrará o conhecimento. Logo, sendo a tragédia um objeto derepresentação de homens melhores, a obra dos retratist<strong>as</strong> deve também ser aceita, pois nãoMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 230


Sânderson Reginaldo de Mellohá analogi<strong>as</strong> entre <strong>as</strong> ações e <strong>as</strong> cores para a pintura, há também anecessi<strong>da</strong>de de amb<strong>as</strong> se constituírem estr<strong>ut</strong>uralmente num arranjo harmônico.Nesse sentido, <strong>as</strong> ações devem ser organizad<strong>as</strong>, evitando o ac<strong>as</strong>o, m<strong>as</strong> a partirde ações acabad<strong>as</strong>, isto é, inteir<strong>as</strong>, com começo, meio e fim. 13 Aristótelesexemplifica isso com a visualização de algum objeto dem<strong>as</strong>ia<strong>da</strong>mente grande,ou pequeno, pois, em ambos os c<strong>as</strong>os, o espectador perderia sua compreensão<strong>da</strong> uni<strong>da</strong>de e do todo. 14 Portanto, Aristóteles <strong>as</strong>socia esse mesmo preceito àpintura, pois, comparativamente, contempla que “<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> compost<strong>as</strong> e osanimais precisam ter um tamanho tal que possibilite aos olhos abrangê-losinteiros, <strong>as</strong>sim também é mister que <strong>as</strong> fábul<strong>as</strong> tenham uma extensão que amemória possa abranger inteira” (ARISTÓTELES, 2005, p. 27).Se o imitador (enten<strong>da</strong>-se tanto o poeta quanto o pintor, ou o<strong>ut</strong>roartista visual) imita o original de forma idêntica, similar, ou verossímil, devetomar cui<strong>da</strong>do para não cometer “erro de arte ou erro acidental”(ARISTÓTELES, 2005, p. 48). Aristóteles exemplifica isso com a possibili<strong>da</strong>de deerro cometido por um pintor que retratara um cavalo que parecia mover aomesmo tempo, na dianteira, amb<strong>as</strong> <strong>as</strong> pat<strong>as</strong> do lado direito. Para o filósofo,isso pode ser um erro de arte, porque não houve uma imitação correta, umavez que a imitação difere do original; porém, se houve algum equívoco quantoao conhecimento de alguma ciência por parte do pintor, vindo a representaralgo inverossímil, ou mesmo impossível, este cometera então um erro acidental.Da mesma forma, para se fazer compreender à censura <strong>da</strong> crítica, o poeta, <strong>as</strong>omente imita os mesmos modelos, m<strong>as</strong> também os embelezam. Paralelamente, Aristóteles n<strong>as</strong>considerações sobre a poesia, declara o poeta tão imitador quanto o pintor. A poesia, segundoo filósofo, se distingue <strong>da</strong> história pela imitação <strong>da</strong> natureza e, principalmente, pela criação doimaginário, ao representar <strong>as</strong> cois<strong>as</strong> tal como eram ou são, ou tal como os o<strong>ut</strong>ros disseram serou parecer, ou tal como deveriam ser.13 Mais à frente, Aristóteles irá declarar que a finali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> imitação não é unicamente umaação completa, sobretudo, aquel<strong>as</strong> que suscitam o temor e a pena do espectador. As emoçõesque decorrerem do inesperado serão mais intensamente despertad<strong>as</strong> no público. Essaorientação se inclina para <strong>as</strong> questões do reconhecimento, que, consequentemente, colaborapara a compreensão do que Aristóteles vem denominar de catarse, ou purificação d<strong>as</strong> emoções,por parte dos espectadores.14 De certa forma, essa mesma idéia pode ser também aplica<strong>da</strong> à pintura, e possivelmentegerou o interesse pel<strong>as</strong> regr<strong>as</strong> de proporção e perspectiva na arte <strong>da</strong> ren<strong>as</strong>cença.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 231


Sânderson Reginaldo de Melloquem é permitido criar o impossível, mediante a busca pela tensão do efeito dereconhecimento, deve estar atento aos erros cometidos. C<strong>as</strong>o suce<strong>da</strong> ain<strong>da</strong>quem contrarie a ciência, ou a própria arte poética, deverá entender que o idealseria que não cometesse qualquer tipo de erro, antes respeit<strong>as</strong>se os princípios<strong>da</strong> verossimilhança e <strong>da</strong> imitação, que podem ser alargados para <strong>as</strong> demaisrepresentações artístic<strong>as</strong>.Aristóteles admite que a representação do impossível deva ocorrer deacordo com o efeito poético preterido, a fim de proporcionar a melhora ou oque prescreve o senso comum. To<strong>da</strong>via, no âmbito <strong>da</strong> poesia, Aristótelesconcebe que é muito mais compreensível um impossível (ou irracional) queconvença, que um possível que necessite do convencimento. Assim, no âmbito<strong>da</strong> pintura, dirá que “talvez não haja homens como Zêuxis os pintou; m<strong>as</strong> essescorrespondem ao melhor, e o modelo deve ser superado” (ARISTÓTELES, 2000,p. 73). E, por fim, in<strong>da</strong>ga qual seria o melhor modelo de imitação, se a épica oua trágica. Nesse <strong>as</strong>pecto, chamamos a atenção para os motivos que o levarão adeclarar ser melhor a tragédia:A tragédia é superior porque, além de todos os méritos <strong>da</strong>epopeia (chega a valer-se do metro épico), conta também coma música e o espetáculo cênico, partes que lhe aumentam oprazer peculiar. De mais a mais, apresenta quali<strong>da</strong>des tantoquando li<strong>da</strong> como quando encena<strong>da</strong> (ARISTÓTELES, 2000, p.74, grifos nossos).Assim, como o próprio Aristóteles deixa entender, podemos supor quehá nessa preferência <strong>da</strong><strong>da</strong> à tragédia questões acerca d<strong>as</strong> relações entrepalavra (escrita literária) e imagem (espetáculo cênico). Isto é, além do caráterfabular, d<strong>as</strong> partes, dos tipos e d<strong>as</strong> espécies de tragédi<strong>as</strong>, <strong>da</strong> organização <strong>da</strong>trama e d<strong>as</strong> peripéci<strong>as</strong>, ou também d<strong>as</strong> questões do reconhecimento, doenredo, do racional, do maravilhoso e do verossímil, há a preocupação com aarticulação dos sentidos, através do espetáculo cênico (representação plástica)e <strong>da</strong> música, que conferem ao espectador maior deleite que n<strong>as</strong> epopei<strong>as</strong>(ARISTÓTELES, 2000, p. 75). Esse prazer, reiteramos, é suscitado tanto nafruição rítmica do texto, no ato de exposição verbal, quanto na fruição rítmicaMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 232


Sânderson Reginaldo de Mello<strong>da</strong> encenação, no ato de exibição visual do espetáculo. A tragédia para opensamento racional de Aristóteles é arte por excelência, pois conseguealcançar a sua finali<strong>da</strong>de, e, acima de tudo, por não propiciar deleitedesnorteado, supera a epopeia por atingir exclusivamente seu prazer específico(ARISTÓTELES, 2000, p. 75).Posteriormente, na Epistola ad Pisones (Ars Poetica), Horácio (séc. Ia.C.) tece considerações circunscrit<strong>as</strong> ao paralelo entre poesia e pintura sob oprisma <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> imitação. Em continui<strong>da</strong>de com <strong>as</strong> idei<strong>as</strong> de Aristóteles, opoeta romano atribui à poesia a capaci<strong>da</strong>de de instrução (docere) e fruição(delectare), vendo na arte um compromisso singular com a vi<strong>da</strong>, pois avalia que (afacul<strong>da</strong>de de ousar de tudo sempre foi atribuí<strong>da</strong> tanto a pintores como apoet<strong>as</strong>). To<strong>da</strong>via, Horacio, já no princípio <strong>da</strong> Poética, remetendo aos possíveisexcessos de liber<strong>da</strong>de criativa com os quais os poet<strong>as</strong> e os pintores tendem aproduzir su<strong>as</strong> obr<strong>as</strong>, julga que correm o risco de cair no ridículo, por idealizarimagens ou textos de form<strong>as</strong> fant<strong>as</strong>ios<strong>as</strong>, sem originali<strong>da</strong>de, harmonia,uni<strong>da</strong>de, coerência, etc., isto é, “quais sonhos de enfermo” (HORÁCIO, 2005, p.55). Por essa razão, divergindo aparentemente <strong>da</strong> símile aristotélica, com b<strong>as</strong>eno racionalismo e no preceito <strong>da</strong> verossimilhança, Horácio orienta poet<strong>as</strong> epintores a evitarem a representação do impossível ou inexistente, ou doimprovável, como permitia a Poética de Aristóteles.De fato, Horácio não se opõe categoricamente ao uso <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de,porque sabe que ela faz parte <strong>da</strong> essência <strong>da</strong> criação artística, porque acreditaque “essa licença nós a pedimos e <strong>da</strong>mos m<strong>ut</strong>uamente” (HORÁCIO, 2005, p.55), contudo, adverte que lhe parece incoerente reunir num plano discursivo“animais mansos com fer<strong>as</strong>, emparelhar cobr<strong>as</strong> com p<strong>as</strong>sarinhos, cordeiros comtigres” (HORÁCIO, 2005, p. 55). Dessa forma, Horácio busca nortear umtrabalho artístico que não lev<strong>as</strong>se a cabo os excessos <strong>da</strong> invenção, e sepreocupa mais com o conteúdo imitado do que com <strong>as</strong> form<strong>as</strong> ou modos deimitar ou exec<strong>ut</strong>ar uma obra, como contrariamente distingue Aristóteles. NesseMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 233


Sânderson Reginaldo de Mellosentido, o poeta concor<strong>da</strong> que uma obra artística, além de possuir umafinali<strong>da</strong>de, deve também possuir uma coerência interna, como princípioprimeiro de simplici<strong>da</strong>de. Os objetos representados deveriam também possuiruma íntima ligação com o tema, ou com a dinâmica do cenário proposto, ou <strong>da</strong>composição textual, pois sustenta que a licença poética d<strong>as</strong> artes deve serregi<strong>da</strong> por preceitos de coerência e uni<strong>da</strong>de:Não raro, a uma introdução solene, prenhe de promess<strong>as</strong>grandios<strong>as</strong>, cosem um ou dois retalhos de púrpura, que brilhemde longe, quando se descreve um bosque sagrado e um altarde Diana, os meandros de uma fonte a correr apressa<strong>da</strong> poramena campina, o Reno ou o arco-íris; m<strong>as</strong> esses quadros nãotinham lugar ali. Você talvez pinte muito bem um cipreste, m<strong>as</strong>que importa isso, se está na<strong>da</strong>ndo, sem esperanç<strong>as</strong>, entre osdestroços dum naufrágio, o freguês que pagou para serpintado? Começou-se a fabricar uma ânfora; por que, ao girar otorno do oleiro, vai saindo um pote? (HORÁCIO, 2005, p. 55,grifos nossos).Horácio deseja, afinal, o entendimento de que o belo e o perfeitopodem ser facilmente persu<strong>as</strong>ivos numa falsa aparência de perfeição,enganando-nos os olhos. Por conseguinte, expõe Horácio, quando alguém, aodesejar ser claro, caísse na obscuri<strong>da</strong>de d<strong>as</strong> idei<strong>as</strong>, é como o artista que, ao sedeliciar com o maravilhoso, a fim de superabun<strong>da</strong>r a uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> obra, enfi<strong>as</strong>seos pés pel<strong>as</strong> mãos e pint<strong>as</strong>se “golfinhos no mato e javalis n<strong>as</strong> ond<strong>as</strong>”(HORÁCIO, 2005, p. 56). Assim, segundo o poeta, a Arte deve possuir umpropósito estético coerente com sua natureza constr<strong>ut</strong>iva e temática. O artista,<strong>da</strong> mesma forma, deve se dispor a trabalhar uma arte que realmente possa sercapaz de ser produzi<strong>da</strong>. Deve também se af<strong>as</strong>tar <strong>da</strong> força d<strong>as</strong> convenções,evitando produzir um trabalho qualquer, que se direcione a disfarçar o defeitoao se esconder na falta de aptidão artística. De maneira semelhante, no âmbito<strong>da</strong> iconografia, Horácio exemplifica que até mesmo na escola dos gladiadoresse representa tão bem a suavi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> cabeleira de um modelo, no bronze,quanto se imita a sua silhueta. Da mesma forma, quem escreve deve escolher“um tema adequado à sua capaci<strong>da</strong>de poética”, ou seja, precisa ponderarlongamente o que seus ombros se recusam a carregar, não insistindo naquiloMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 234


Sânderson Reginaldo de Melloque sua arte não possa suportar, pois, segundo Horácio, “a quem domina o<strong>as</strong>sunto escolhido não faltará eloquência, nem lúci<strong>da</strong> ordenação” (HORÁCIO,2005, p. 56).Nesse contexto, o poeta avalia que ca<strong>da</strong> a<strong>ut</strong>or deve saber respeitar anatureza e o tom de determinado gênero artístico, por exemplo, “um temacômico repugna ser desenvolvido em versos trágicos” (HORÁCIO, 2005, p. 57).To<strong>da</strong>via, Horácio aceita uma imitação que não perdesse sua coerência com areali<strong>da</strong>de, como anteriormente aconselhara aos poet<strong>as</strong>: “não se atribua aojovem o quinhão <strong>da</strong> velhice, nem a um menino o dum adulto, a personagemmanterá sempre o feitio próprio e conveniente a ca<strong>da</strong> quadra <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”(HORÁCIO, 2005, p. 55), ou ain<strong>da</strong>, “não se distanciem <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de <strong>as</strong> ficçõesque visam o prazer” (HORÁCIO, 2005, p. 65), e, por o<strong>ut</strong>ro lado, adverte que éconveniente ao leitor não creditar como real em tudo o quanto se narra numafábula. Diante disso, Horácio sublima que o escritor irá receber todos os elogios<strong>da</strong> crítica e será o júbilo dos livreiros na medi<strong>da</strong> em que “mistura o útil e oagradável, deleitando e ao mesmo tempo instruindo o leitor” (HORÁCIO, 2005,p. 65), e portanto afirma, justamente nesse contexto, que <strong>as</strong>sim como secostuma praticar na arte <strong>da</strong> pintura, a arte poética deve proceder:Ut <strong>pictura</strong> poesis: erit quae, si proprius stes,te capiat magis, et quae<strong>da</strong>m, si longius abstes;haec amat obscurum, volet haec sub luce videri,iudicis arg<strong>ut</strong>um quae non formi<strong>da</strong>t acumen;haec placuit semel, haec deciens placebit. 15Entretanto, ao contrário do que a tradição crítica p<strong>as</strong>sou a generalizar,o <strong>ut</strong> <strong>pictura</strong> poesis de Horácio não supõe a correspondência integral d<strong>as</strong>relações homólog<strong>as</strong> entre <strong>as</strong> artes imitativ<strong>as</strong>, sobretudo em se tratando <strong>da</strong>poesia e <strong>da</strong> pintura. Horácio não pretende postular a respeito d<strong>as</strong> semelhanç<strong>as</strong>15 Citação a partir de TRIMPI, Wesley. The meaning of horace’s <strong>ut</strong> <strong>pictura</strong> poesis. Journal of theWarburg and Courtauld Instit<strong>ut</strong>es, 1973, p. 1-34. Vol. 36. HORACIO, 2005, p. 65: “Poesia écomo pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto; o<strong>ut</strong>ra, se te pões mais longe; estaprefere a penumbra; aquela quererá ser contempla<strong>da</strong> em plena luz, porque não teme o olharpenetrante do crítico; essa agradou uma vez; essa o<strong>ut</strong>ra, dez vezes repeti<strong>da</strong>, agra<strong>da</strong>rá sempre”(Tradução de Jaime Bruna).Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 235


Sânderson Reginaldo de Melloestr<strong>ut</strong>urais ou sobre os paralelos processuais do campo interartístico emquestão, nem visa estabelecer o rompimento d<strong>as</strong> fronteir<strong>as</strong> de identi<strong>da</strong>de, oupromover a imbricação d<strong>as</strong> artes dentro de um plano uníssono derepresentação, como explica Aguiar e Silva:A fórmula <strong>ut</strong> <strong>pictura</strong> poesis não possui, na Arte poética deHorácio, um sentido de ordem ontológica, como seestabelecesse uma comparação estr<strong>ut</strong>ural entre <strong>as</strong> du<strong>as</strong> artes,pois que se limita a significar que alguns poem<strong>as</strong> são lidos comagrado uma só vez, m<strong>as</strong> que o<strong>ut</strong>ros poem<strong>as</strong> podem ser lidoscom agrado muit<strong>as</strong> vezes, como acontece com obr<strong>as</strong> <strong>da</strong>pintura; que alguns poem<strong>as</strong> devem ser lidos e apreciados n<strong>as</strong>su<strong>as</strong> minudênci<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> que o<strong>ut</strong>ros ganham em ser lidos eapreciados no seu significado global, tal como acontece comobr<strong>as</strong> de pintura (AGUIAR E SILVA, 1998, p. 164).De forma incisiva, a apreciação <strong>da</strong> poesia e <strong>da</strong> pintura à qual Horáciofaz menção é realiza<strong>da</strong> sob o ponto de vista <strong>da</strong> crítica, ou seja, na perspectiva<strong>da</strong> recepção <strong>da</strong> arte e não do fazer artístico. Podemos inferir que Horáciopretende chamar a atenção para o fato de que algum<strong>as</strong> obr<strong>as</strong> resistem aotempo, já o<strong>ut</strong>r<strong>as</strong> não. O motivo, nesse c<strong>as</strong>o, leva em conta que algum<strong>as</strong> obr<strong>as</strong>,em obediência a determinad<strong>as</strong> regr<strong>as</strong>, podem proporcionar uma medi<strong>da</strong> justaentre a natureza e a imitação, e <strong>as</strong>sim resistem ao olhar agudo <strong>da</strong> crítica. Noentanto, Eunice Ribeiro esclarece que o comentário de Horácio se b<strong>as</strong>eia num<strong>as</strong>ímile, isto é, na capaci<strong>da</strong>de de amb<strong>as</strong> (literatura e pintura) suscitarem umreferencial visível <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de:Em Horácio, como em Aristóteles, não está em causa umaidentificação entre a poesia e a pintura, m<strong>as</strong> apen<strong>as</strong> umaaproximação de amb<strong>as</strong> com b<strong>as</strong>e, fun<strong>da</strong>mentalmente, no seupoder de presentificação visual, na sua capaci<strong>da</strong>de de produzira natural vivaci<strong>da</strong>de d<strong>as</strong> cois<strong>as</strong> e dos seres existentes, ou seja,com b<strong>as</strong>e na sua enargeia ⎯ termo retórico que Pl<strong>ut</strong>arco(séculos I-II d.C.) <strong>ut</strong>ilizará mais tarde no De gloriaAtheniensium e pelo qual também ele relacionará <strong>as</strong> du<strong>as</strong> artes(RIBEIRO, 2002, p. 37).A atmosfera de intemporali<strong>da</strong>de que o tópico <strong>ut</strong> <strong>pictura</strong> poesis p<strong>as</strong>sou aconstituir, provavelmente não imagina<strong>da</strong> por seu a<strong>ut</strong>or, comprova aimportância <strong>da</strong> tradição crítica consoli<strong>da</strong><strong>da</strong> pelos tratados de arte poética eMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 236


Sânderson Reginaldo de Melloretórica, dos quais Horácio se tornara herdeiro e sucessor. Por o<strong>ut</strong>ro lado, ocontexto social vivido por Horácio, denominado como o Século de Augusto(ZANKER, 1987), apresentava o apogeu <strong>da</strong> arte iconográfica em consonânciacom os alicerces <strong>da</strong> cultura helênica, possibilitando <strong>as</strong>sim um campo abertopara <strong>as</strong> discussões comparativ<strong>as</strong> entre <strong>as</strong> artes poétic<strong>as</strong> e <strong>as</strong> artes visuais.Curiosamente, distanciando-se do envoltório de gravi<strong>da</strong>de retórica que osmodelos clássicos dos tratados de poesia e teoria poética buscavam distinguir,m<strong>as</strong> margeando o cômico, Horácio cria uma atmosfera ficcional de apreciaçãoestética, introduzindo a Ars Poetica através de uma comparação entre ambosos desajustes inusitados de uma pintura e de um poema:Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeçahumana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de to<strong>da</strong>procedência e cobri-los de pen<strong>as</strong> variegad<strong>as</strong>, de sorte que afigura, de mulher formosa em cima, acab<strong>as</strong>se num hediondopeixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocêsconteriam o riso? Creiam-me, Pisões, bem parecido com umquadro <strong>as</strong>sim seria um livro onde se fant<strong>as</strong>i<strong>as</strong>sem form<strong>as</strong> semconsistência (HORÁCIO, 2005, p. 55).Dessa forma, como comentamos, a preocupação do a<strong>ut</strong>or se concentraem torno <strong>da</strong> organização coerente de um texto poético e visual, analogamente.Induz-se que a concepção horaciana do caráter artístico de uma obra estivesseintimamente relaciona<strong>da</strong> com o ingenium (engenho), ou seja, com acapaci<strong>da</strong>de do artista, por eficácia do conhecimento e do esforço, em idealizaruma obra de valor. Portanto, o ponto de vista crítico de Horácio reside na ideiade que o valor <strong>da</strong> poesia se encontra além do preceito de inspiração, m<strong>as</strong> nodomínio <strong>da</strong> técnica por parte do poeta. Do mesmo modo, o desmerecimento deuma obra de arte visual não está na falha <strong>da</strong> arte, m<strong>as</strong> na ausência do talentodo artista, que almeja uma arte em desconformi<strong>da</strong>de com su<strong>as</strong> competênci<strong>as</strong>,como apontamos anteriormente. Assim, nessa mesma linha comparativa, tantoo poeta quanto o pintor, ou falando de modo geral, todo artista deve conheceros limites de sua arte, e exemplifica que tal procedimento deve ser encontradon<strong>as</strong> artes visuais do oleiro e do escultor, n<strong>as</strong> artes musicais do tocador de cítarae de fla<strong>ut</strong>a, n<strong>as</strong> artes verbais do copista, do advogado e do pregoeiro, bemMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 237


Sânderson Reginaldo de Mellocomo n<strong>as</strong> artes bélic<strong>as</strong>, desportiv<strong>as</strong> e culinári<strong>as</strong>. To<strong>da</strong>via, não se podedepreender nessa exposição a símile que a crítica p<strong>as</strong>sou a compreender comoo objeto do suposto tópico horaciano (<strong>ut</strong> <strong>pictura</strong> poesis), mesmo porque talenunciado faz parte de uma obra que versa estritamente a respeito <strong>da</strong> artepoética.Em contraparti<strong>da</strong>, vendo-se herdeiro de uma tradição que reporta àanalogia de Simônides de Céos, Horácio talvez <strong>as</strong>pire promover umacorrespondência semântica do latim com o grego, cujo vocábulo denotavaambos os sentidos de escrever e pintar. M<strong>as</strong>, se a comparação entre literaturae pintura fosse a presumível intenção de Horácio, como se verifica que de fatonão o é, o vocábulo poesis não apareceria somente uma única vez em to<strong>da</strong> aArs Poetica, nem mesmo <strong>da</strong> maneira como é representado, isto é, ao lado dovocábulo <strong>pictura</strong>. O instigante é que nem o tópico em questão, nem mesmo otermo poesis poderá ser encontrado na totali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fortuna poética horaciana.Assim, podemos deduzir que Horácio se configura apen<strong>as</strong> como herdeiro econtinuador de uma tradição artística ampara<strong>da</strong> pela concepção mimética <strong>da</strong>arte.Thus, a completely a<strong>ut</strong>onomous interpretive tradition, whichactually reversed the evaluative meaning of Horace’s firstcomparison, could offer to succeeding centuries the usefulphr<strong>as</strong>e <strong>ut</strong> picture poesis in defence of nearly any preoccupationwith pictorial or poetic techniques. The early loss of the originalcontext of the lines h<strong>as</strong> led to many specific applications ofthem in later periods which, despite the consistency of theinterpretation transmitted though commentaries, should alwaysbe discussed with care (TRIMPI, 1973 p. 24-5).Horácio concentra seu senso crítico acerca <strong>da</strong> poesia (techné),abdicando-se <strong>da</strong> arte retórica e <strong>da</strong> oratória, que não permite os embustes(fingere) <strong>da</strong> imaginação (fant<strong>as</strong>ia). Horácio, através de uma restrita focalizaçãoanalítica, também busca abranger a pintura, porque reconhece nel<strong>as</strong> a singularreceptivi<strong>da</strong>de de valores estéticos, suporte do deleite (delectere) e do saber(docere), o que descarta <strong>as</strong> artes de conjuntura <strong>ut</strong>ilitarista, em função de seucaráter funcional, como a olaria, a escultura etc.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 238


Sânderson Reginaldo de MelloEnfim, se na I<strong>da</strong>de Média, a pintura (imagem) procurou se emancipardo patamar de sujeição à literatura (palavra), no âmbito <strong>da</strong> prevalência de umacultura religiosa, como analisamos em A relação texto-imagem na culturamedieval; 16 porém, no início <strong>da</strong> I<strong>da</strong>de Moderna (séculos XV e XVI), haveráinúmer<strong>as</strong> recorrênci<strong>as</strong> ao ‘<strong>ut</strong> <strong>pictura</strong> poesis’ de Horácio e ao ‘m<strong>ut</strong>a poeis,eloquens <strong>pictura</strong>’ de Simônides de Céos, a fim de fun<strong>da</strong>mentar grande parted<strong>as</strong> argumentações tratadist<strong>as</strong> (ab auctorit<strong>as</strong>). Após o longo processo dediscussões no âmbito <strong>da</strong> teoria do paragone, 17 poderemos verificar nosOitocentos o percurso inverso no status de importância dessa tradiçãoespeculativa, quando se tentará instaurar a superiori<strong>da</strong>de <strong>da</strong> palavra sobreimagem e a tentativa de distanciamento do parentesco interartes. To<strong>da</strong>via, noalvorecer do século XX, podemos notar o crescente contexto <strong>da</strong> crise <strong>da</strong> palavraescrita, quando aos poucos a imagem terá a posse de pleno prestígio em tod<strong>as</strong><strong>as</strong> esfer<strong>as</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de social.Referênci<strong>as</strong> bibliográfic<strong>as</strong>AGUIAR E SILVA, V. M. Teoria e metodologia literári<strong>as</strong>. Lisboa: Universi<strong>da</strong>de Aberta,1998.ALEXANDRE JÚNIOR, Manuel. Introdução. In: ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: INCM,1998.ARISTÓTELES. Arte poética. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poéticaclássica. Introdução por Roberto de Oliveira Brandão; tradução direta do grego e dolatim por Jaime Bruna. 12. ed., São Paulo: Cultrix, 2005.______. Poética. Organon. Política. Constituição de Aten<strong>as</strong>. São Paulo: Nova Cultural,2000.______. Retórica. Lisboa: INCM, 1998.AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de na literatura ocidental. SãoPaulo: Perspectiva, 1987.16 Cf. MELLO, 2009. p. 471-481.17 Cf. CALDWELL, 2000, v. 63, p. 277-286.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 239


Sânderson Reginaldo de MelloBOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. 4. ed. São Paulo: Ática, 1991BRINK, C. O. Horace on poetry. The ars poetica. Cambridge: The University ofCambridge Press, 1971.BUTCHER, S. H. Aristotle’s theory of poetry and fine art. 4. ed. New York: Dover.1951.CALDWELL, Dorigen. The paragone between word and image in impresaliterature. Journal of the Warburg and Courtauld Instit<strong>ut</strong>es, 2000, v. 63, p. 277-286.CUNHA, Antônio Geraldo <strong>da</strong>. Dicionário etimológico nova fronteira <strong>da</strong> línguaportuguesa. 2. ed. revista e acresci<strong>da</strong> de suplemento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1997, p. 677.D’ONÓFRIO, S. Literatura ocidental ⎯ a<strong>ut</strong>ores e obr<strong>as</strong> fun<strong>da</strong>mentais. São Paulo: Ática,1994.HAGSTRUM, Jean H. The sisters arts: The tradition of literay pictorialism and englishpoetry from dryden to gray. Chicago & London: The University of Chicago Press, 1958.HORÁCIO. Arte poética. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica.Introdução por Roberto de Oliveira Brandão; tradução direta do grego e do latim porJaime Bruna. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.LEE, R. W. Ut <strong>pictura</strong> poesis: the humanistic theory of painting. New York, 1967.LESSING, G. E. Laocoonte. Ou sobre <strong>as</strong> fronteir<strong>as</strong> <strong>da</strong> poesia e <strong>da</strong> pintura. São Paulo:Iluminur<strong>as</strong>, 1998.LEVI-STRAUSS, Claude. Olhar, esc<strong>ut</strong>ar, ler. São Paulo: Cia d<strong>as</strong> Letr<strong>as</strong>, 1997.MARTINS, Paulo. Polignoto, Páuson, Dionísio e Zêuxis: uma leitura <strong>da</strong> pintura antigaclássica grega. Revista Phaos: Campin<strong>as</strong>, 2009.MELLO, Sânderson Reginaldo. A relação texto imagem na cultura medieval. In:Encontro Nacional de Estudos <strong>da</strong> Imagem, II, 2009, Londrina. Anais, Londrina:UEL, 2009. p. 471-481.MURRAY, Chris. Key writers on art: from antiquity to the nineteenth century. London-New York: Ro<strong>ut</strong>ledge, 2003.PANOFSKY, Essais d’iconologie. Paris: Gallimard, 1995.PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1997.PRAZ, Mario. Literatura e artes visuais. São Paulo: Cultrix, 1982.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 240


Sânderson Reginaldo de MelloREIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 7. ed. Porto:Almedina, 2000.RIBEIRO, Eunice. Ver. Escrever ⎯ José Régio, o texto iluminado. Braga: Universi<strong>da</strong>dedo Minho, 2002.RICHTER, Gisela M. A. A handbook of greek art. A survey of the visual arts of ancientgreece. London: Phaidon, 1987.RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2000.SALDANHA, Nuno. Poétic<strong>as</strong> <strong>da</strong> imagem: a pintura n<strong>as</strong> idei<strong>as</strong> estétic<strong>as</strong> <strong>da</strong> i<strong>da</strong>demoderna. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.TRIMPI, Wesley. The meaning of horace’s <strong>ut</strong> <strong>pictura</strong> poesis. Journal of the Warburgand Courtauld Instit<strong>ut</strong>es, 1973, p. 1-34. vol. 36ZANKER, P. Augusto y el poder de l<strong>as</strong> imágenes. Madrid: Aliança, 1987. 18Artigo recebido em 04/07/2009 e publicado em 13/04/2010.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.7, jan./jun.2010 241

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!