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A poética da fluidez em Michèle Roberts - UNESP-Assis

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MISCELÂNEARevista de Pós-Graduação <strong>em</strong> Letras<strong>UNESP</strong> – Campus de <strong>Assis</strong>ISSN: 1984-2899www.assis.unesp.br/miscelaneaMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jul./nov.2009A PÓETICA DA FLUIDEZ EM MICHÈLE ROBERTSPolliana Cristina de Oliveira(Mestran<strong>da</strong> ⎯ UnB)RESUMONeste artigo serão discutidos algunsaspectos relevantes na obra de Michèle<strong>Roberts</strong>, escritora inglesa cont<strong>em</strong>porânea.<strong>Roberts</strong> escreve desde 1978 e possui, até omomento, um conjunto de 12 romancesque probl<strong>em</strong>atizam questões de gênero ede estrutura textual. São romances denítido caráter experimental, os quaisgradualmente romp<strong>em</strong> com a noção det<strong>em</strong>po e espaço, b<strong>em</strong> como introduz<strong>em</strong>t<strong>em</strong>áticas inovadoras que merec<strong>em</strong> serquestiona<strong>da</strong>s ou, ao menos, ser<strong>em</strong>observa<strong>da</strong>s sob um novo ponto de vista,além de se aliar à teoria e crítica f<strong>em</strong>inista eao movimento pós-moderno. Esse efêmeroestudo priorizou a análise do el<strong>em</strong>ento <strong>da</strong>ruptura de limites que acontece com tantafreqüência na obra de <strong>Roberts</strong>, para tanto,após um panorama de sua obra, foiescolhido um livro <strong>em</strong> particular, In the RedKitchen, o qual ain<strong>da</strong> não t<strong>em</strong> traduçãopara o português.PALAVRAS-CHAVEF<strong>em</strong>inismos; religião; metaficção; literaturacont<strong>em</strong>porânea.ABSTRACTIn this article will be discussed someimportant aspects about Michèle<strong>Roberts</strong>’ masterpiece, cont<strong>em</strong>poraryEnglish writer. <strong>Roberts</strong> has beenwriting since 1978 and she has, justnow, 12 novels that deals withgender and genre question. Thenovels have a clear experimentalappearance, which gradually breakout with time and space notions, aswell as they introduce new th<strong>em</strong>esthat deserve be questioned or, atleast, observed under a new point ofview; besides of staying togetherwith f<strong>em</strong>inist critic and also the postmodernism. This brief study willd<strong>em</strong>onstrate the limits ruptureel<strong>em</strong>ent that often appear at Robert’snovel, for this purpose, it will beanalyzed one book in particular, Inthe Red Kitchen, which hasn’t nothave yet Portuguese translation.KEY WORDSF<strong>em</strong>inisms; religion; metafiction;cont<strong>em</strong>porary literature.


Polliana Cristina de OliveiraQuanto mais corpo, mais escrita.(Hélène Cixous)Michèle <strong>Roberts</strong> nasceu <strong>em</strong> 1949, <strong>em</strong> Hertforshire ⎯ Inglaterra eescreve desde 1970. Filha de pai inglês protestante e mãecatólica francesa, ela foi educa<strong>da</strong> <strong>em</strong> um sist<strong>em</strong>a bilíngüe num convento antesde ir para Somerville College. Escreveu seu primeiro romance <strong>em</strong> 1978 ⎯ APiece of the Night ⎯ e outros tantos o seguiram: The Visitation (1983), acontroversa The Wild Girl (1984), The book of Mrs. Noah (1987), In the RedKitchen (1990), Daughters of the House (1992) ⎯ vencedor do W.H. SmithLiterary Award, Flesh and Blood (1994), Impossible Saints (1997), FairExchange (1999), The Looking Glass (2000), The Mistressclass (2002) eReader, I married him (2005). <strong>Roberts</strong> também é autora de poesia, <strong>da</strong>antologia All the shelves I was (1995) e dois volumes de contos, During myMother’s Absence (1993) e Playing Sardines (2001). A subjetivi<strong>da</strong>de f<strong>em</strong>inina é,s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, a t<strong>em</strong>ática principal <strong>em</strong> sua escrita, <strong>em</strong>bora esteja s<strong>em</strong>pre alia<strong>da</strong> àreleitura <strong>da</strong> História Normativa e à crítica ao cristianismo e ao poder patriarcal,t<strong>em</strong>as com os quais ela tenta reinvidicar, por meio de suas inúmeras obras, aposição social e cultural <strong>da</strong>s mulheres.Desde a publicação de seu primeiro romance, A piece of the night,Michèle <strong>Roberts</strong> continuamente retoma conteúdos epifânicos <strong>em</strong> sua ficção, osquais suprim<strong>em</strong> as fronteiras de t<strong>em</strong>po e espaço. <strong>Roberts</strong> utiliza sua própriamiríade de vivências, b<strong>em</strong> como as histórias possíveis de outras mulheres, a fimde trazer à tona narrativas que probl<strong>em</strong>atizam as fronteiras ilusórias de história,de cultura e de identi<strong>da</strong>de. Esse trabalho, diante do exposto, fun<strong>da</strong>mentará arelevância dos novos olhares que a escrita de Michèle <strong>Roberts</strong> proporciona noâmbito <strong>da</strong> literatura cont<strong>em</strong>porânea de autoria f<strong>em</strong>inina, especialmente no quediz respeito à fragmentação e à reconstrução <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s mulheres <strong>em</strong>sua diversi<strong>da</strong>de, como também aos desafios às idéias pré-concebi<strong>da</strong>s que assilenciam.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 196


Polliana Cristina de OliveiraAs primeiras três obras de Michèle, A piece of the night (1978), TheVisitation (1983) e The Wild Girl (1984) interrogam as noções estabeleci<strong>da</strong>s dehistória e de identi<strong>da</strong>de por meio <strong>da</strong> estratégia não convencional dobildungsroman 1 . Tratam-se de narrativas desconfortáveis <strong>em</strong> sua configuração,ressignificando o confinamento estrutural do romance, lugar que aspersonagens f<strong>em</strong>ininas tradicionalmente foram insculpi<strong>da</strong>s como esposas,filhas, freiras e prostitutas pela narrativa patriarcal. The Book of Mrs. Noah(1987), The red Kitchen (1990) e Daughters of the House (1992) pod<strong>em</strong> serli<strong>da</strong>s de maneira diferente, como tentativas de escapar <strong>da</strong> noção de ‘fim’ noromance e, para isso, propõ<strong>em</strong>-se reflexões para além deles. O primeiro dessestrês últimos romances citados é construído <strong>em</strong> uma intrica<strong>da</strong> tessituranarrativa, na qual as diversas vozes de Sibilas articulam-se como vozesimaginárias de mulheres silencia<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> metanarrativa 2 fun<strong>da</strong>dora ⎯ aBíblia, produzindo um efeito pluridimensional. Os trabalhos posteriores de1 A criação do termo Bildungsroman aponta tanto para o estabelecimento do romance comogênero “digno” quanto para o processo de aperfeiçoamento do indivíduo burguês nascircunstâncias peculiares do processo histórico e político <strong>da</strong> Al<strong>em</strong>anha dos últimos trinta anosdo século dezoito. O termo teria sido <strong>em</strong>pregado pela primeira vez <strong>em</strong> 1803, pelo professor defilologia clássica Karl Morgenstern, <strong>em</strong> uma conferência sobre “o espírito e as correlações deuma série de romances filosóficos” (Martini, 1961, p. 45). Mais <strong>em</strong> tarde, <strong>em</strong> conferência de1820, o mesmo Morgenstern associará o termo por ele criado ao romance de Goethe Os anosde aprendizado de Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters Lehrjahre, 1795-1796), cunhando assim afórmula paradigmática de definição do gênero:[Tal forma de romance ] poderá ser chama<strong>da</strong> deBildungsroman, sobretudo devido a seu conteúdo, porque ela representa a formação doprotagonista <strong>em</strong> seu início e trajetória <strong>em</strong> direção a um grau determinado de perfectibili<strong>da</strong>de[...]. Como obra de tendência mais geral e mais abrangente <strong>da</strong> bela formação do hom<strong>em</strong>,sobressai-se [...] Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe,obra duplamentesignificativa para nós, al<strong>em</strong>ães, pois aqui o poeta nos oferece, no protagonista e nas cenas epaisagens, vi<strong>da</strong> al<strong>em</strong>ã, maneira de pensar al<strong>em</strong>ã, assim como costumes de nossa época.(Morgenstern, 1988, p. 64-66).2 Na filosofia e na teoria <strong>da</strong> cultura, uma metanarrativa assume o sentido de uma grandenarrativa, uma narrativa de nível superior (“meta-“ é um prefixo de orig<strong>em</strong> grega que significa“para além de”), capaz de explicar todo o conhecimento existente ou capaz de representar umaver<strong>da</strong>de absoluta sobre o universo. A Bíblia e o Alcorão são ex<strong>em</strong>plos de metanarrativasuniversalmente conheci<strong>da</strong>s. É esta crença nas totali<strong>da</strong>des e na capaci<strong>da</strong>de de umametanarrativa para congregar todo o conhecimento possível que levou Jean-François Lyotard àproposição <strong>da</strong> condição pós-moderna como uma reação à confiança nesta utopia: “considera-seque o ‘pós-moderno’ é a increduli<strong>da</strong>de <strong>em</strong> relação às metanarrativas. Esta é, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, umefeito do progresso <strong>da</strong>s ciências, mas este progresso, por sua vez, pressupõe-na. Ao desuso dodispositivo metanarrativo de legitimação corresponde especialmente a crise <strong>da</strong> filosofiametafísica e <strong>da</strong> instituição universitária que dela dependia.” (A Condição Pós-Moderna, 2ª. ed.,trad. de Bragança de Miran<strong>da</strong>, Gradiva, Lisboa, 1989, p. 12).Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 197


Polliana Cristina de Oliveira<strong>Roberts</strong> tentam reinventar as identi<strong>da</strong>des f<strong>em</strong>ininas, propostas, assim, comomais produtivas que restritivas. Sua ampliação ficcional crescente usa omaterial histórico como base romanesca e indica sua fascinação <strong>em</strong> literalmentereescrever a história, reimaginando o passado com o intuito de recriar inúmeraspossibili<strong>da</strong>des.Por meio do contexto amalgâmico sucintamente acima mencionado,<strong>Roberts</strong> desconstrói, na dimensão do imaginário, metanarrativas patriarcais quedefin<strong>em</strong> as mulheres e provoca, desse modo, o repensar acerca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deabsoluta que pregam essas narrativas mestras ocidentais. Os romances deMichèle <strong>Roberts</strong> nos instigam o agir, o questionar, o narrar, de modo areconstruir a identi<strong>da</strong>de f<strong>em</strong>inina, que é fragmenta<strong>da</strong> e multifaceta<strong>da</strong>, diferentedo sujeito unitário do cartesianismo; por conseguinte, eles estimulam o leitor aromper estereótipos de f<strong>em</strong>inili<strong>da</strong>de construídos pela socie<strong>da</strong>de patriarcal aolongo de milênios.Certas protagonistas como Hat, <strong>em</strong> In the Red Kitchen, adotam aautori<strong>da</strong>de masculina na tentativa de se inscrever na História 3 , enquantooutras, Flora Milk, por ex<strong>em</strong>plo, no mesmo romance, produz<strong>em</strong> umaf<strong>em</strong>inili<strong>da</strong>de mascara<strong>da</strong> na tentativa de evadir ou controlar a política masculinado patriarcado, por meio de táticas narrativas lineares e não-lineares. Há umatensão na narrativa de <strong>Roberts</strong> entre a aparente construção linear e a implícitaou explícita construção <strong>da</strong> narrativa. Essa tensão ecoa uma similar com relaçãoà identi<strong>da</strong>de, tal como uni<strong>da</strong>de/fragmentação <strong>da</strong> narrativa a qual se liga àuni<strong>da</strong>de/fragmentação <strong>da</strong> protagonista.As obras de <strong>Roberts</strong> implicitamente propõ<strong>em</strong> um ato de narração com afinali<strong>da</strong>de de reconstruir e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, desconstruir a identi<strong>da</strong>def<strong>em</strong>inina estereotipa<strong>da</strong>. Em todos seus romances, ao menos uma <strong>da</strong>sprotagonistas é uma escritora ou se move para a escrita. Escrever não traz umaresolução simples, no entanto, como Rachel Blau DuPlessis aponta, a mulherescritora representa uma contradição cultural:3 Termo utilizado neste trabalho designar a História sacraliza<strong>da</strong>, que silencia as minorias e criaparadigmas.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 198


Polliana Cristina de OliveiraUtilizar a artista como motivo literário representa e destaca apresente contradição <strong>da</strong> ideologia burguesa entre ideais de<strong>em</strong>penho, aperfeiçoamento e trabalhos com visibili<strong>da</strong>de e aversão f<strong>em</strong>inina dessa fórmula: passivi<strong>da</strong>de, compromissos eatos privados invisíveis (DUPLESSIS, 1985, p. 84). 4A figura <strong>da</strong> escritora que permeia ca<strong>da</strong> romance de <strong>Roberts</strong> representa,desse modo, um conflito do público e do privado, entre o simbólico associado àmasculini<strong>da</strong>de e à f<strong>em</strong>inili<strong>da</strong>de. Nesse âmbito, DuPlessis propõe o métodoWriting Beyond the Ending ⎯ escrever para além do fim ⎯ como um modoprodutivo para além do paradoxo de gênero:Como um padrão de narrativa, o enredo do romance oculta apersonag<strong>em</strong> f<strong>em</strong>inina, reprime esses objetivos, valoriza os laçosheterossexuais <strong>em</strong> oposição aos homossexuais, integraindivíduos como casais perfeitos para sinalizar sucesso pessoale narrativo. […] O enredo romanesco, de uma forma geral, éuma alegoria para o sist<strong>em</strong>a sexo-gênero como um todo.Escrever para além do fim significa uma invenção transgressiva<strong>da</strong> estratégia narrativa que expressa o ressentimento crítico ànarrativa dominante. Essas táticas probl<strong>em</strong>atizam as principaisformas de pilares de organização social e ideológica de gênerotão logo aparec<strong>em</strong> na ficção. Escrever para além do fim produzuma narrativa que nega e reconstrói os paradigmas sedutoresde sentir que são culturalmente d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>dos, internamentepoliciados e heg<strong>em</strong>onicamente envenenados (DUPLESSIS,1985, p. 5).Nos dez romances produzidos por <strong>Roberts</strong> até agora, essa estratégia érepeti<strong>da</strong>mente probl<strong>em</strong>atiza<strong>da</strong>, inicialmente através <strong>da</strong> análise do enredo, mascrescente por meio <strong>da</strong>s inúmeras reflexões que afloram durante todo oromance. Writing Beyond the Ending é revelado nessas narrativas como umprojeto muito difícil, no entanto, não impossível de se corporificar nas obrasficcionais <strong>em</strong> estudo. The Visitation foi, de acordo com <strong>Roberts</strong>, sua tentativade “imaginar um caminho de amar os homens e não excluir as amizadesf<strong>em</strong>ininas” (GARCIA & MAITLAND, 2003, p. 61), não obstante, esse argumentotambém se transforma <strong>em</strong> um debate sobre a linha dura do romanceheterossexual para mulheres e, conseqüent<strong>em</strong>ente, dificul<strong>da</strong>des de romperessa forma tradicional de desfecho. A crítica analítica de DuPlessis acerca de4 Neste trabalho, as traduções dos livros publicados <strong>em</strong> Língua Inglesa são de minha autoria.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 199


Polliana Cristina de Oliveiraestratégias que minam o sist<strong>em</strong>a ficcional opressor é inovadora, ela propõe aestratégia de escrever para além do fim, <strong>em</strong> suma, para que haja a fuga dosist<strong>em</strong>a sexo-gênero. The Visitation e The Wild Girl, <strong>em</strong> suas representações det<strong>em</strong>áticas heterossexuais, que se mostram comprometidos com o ambientesócio-cultural, questionam até quando essa ruptura é possível por meio denarrativas que anseiam por evitar fins convencionais quando reconhec<strong>em</strong> seu<strong>em</strong>puxo social.The Visitation reafirma o conflito entre a uni<strong>da</strong>de e a fragmentaçãoquando narra a história de Helen, uma escritora que tenta construir suaidenti<strong>da</strong>de unitária, categoria cartesiana ilusória (HALL, 2000, p. 67). Quandocomeça a escrever, “Helen s<strong>em</strong>pre sente um cancelamento de seu corpo,tornando-se apenas mente. Não marca<strong>da</strong>, transcendente, como um hom<strong>em</strong>”(Id<strong>em</strong>, p. 99). Ela evoca a idéia de um outro masculino, Félix, olha diáriosantigos, estando ciente de que “ela se tornou uma palavra <strong>em</strong>penha<strong>da</strong> <strong>em</strong> serfala<strong>da</strong>, <strong>em</strong> ser ouvi<strong>da</strong> e compreendi<strong>da</strong>. Ela não sabe, apenas, que palavra éessa” (Id<strong>em</strong>, p. 100). Em todo o romance, Helen tenta alcançar esta palavra,ao passo que isso acontece, fica evidente que ela nunca a encontrará. Helendeseja ser um hom<strong>em</strong>, ser a palavra é uma expressão de si mesma de serinteira, de ser olha<strong>da</strong> e de olhar a si mesma como um sujeito unificado. Adescrição <strong>da</strong> masculini<strong>da</strong>de no livro The Visitation é um pouco mais que umcódigo. Helen não quer ser um Hom<strong>em</strong>, mas como Julie Fanchot <strong>em</strong> A piece ofthe Night, ela almeja ser alguma outra coisa diferente de Mulher. Ao apontar af<strong>em</strong>inili<strong>da</strong>de como t<strong>em</strong>ática central <strong>da</strong>s personagens de Helen e Beth, <strong>Roberts</strong>torna a masculini<strong>da</strong>de um Segundo Sexo 5 <strong>em</strong> The Visitation. As personagensmasculinas ⎯ Steven, George, Robert e o duplo Félix, junto ao abstrato de umamasculini<strong>da</strong>de ⎯ são parte <strong>da</strong> outri<strong>da</strong>de que cerca Helen, uma outri<strong>da</strong>de quenão representa a completude e uni<strong>da</strong>de, mas a ficcionali<strong>da</strong>de dessesconstrutos.5 Alusão ao livro de Simone de Beauvoir, Lançado numa época <strong>em</strong> que o termo "f<strong>em</strong>inismo"n<strong>em</strong> sequer havia sido cunhado, este livro é considerado, hoje, como o marco inicial <strong>da</strong> práticadiscursiva <strong>da</strong> situação f<strong>em</strong>inina.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 200


Polliana Cristina de OliveiraEm The Visitation é necessário que a protagonista construa umaidenti<strong>da</strong>de para ela mesma antes que ela comece a escrever, e essa identi<strong>da</strong>deé processa<strong>da</strong> com “ferramentas”, quais sejam, encorajar/manter seurelacionamento com sua amiga e com seu amante, além de se munir de umsist<strong>em</strong>a de imagens com os quais tenta criar sua própria mitologia. Dess<strong>em</strong>odo, Helen se transforma <strong>em</strong> uma mitóloga, uma escritora ou uma narradorade mitos e sua narrativa mitológica é claramente ficcional, crenças que sãofalsas, mas necessárias. Como <strong>Roberts</strong> coloca <strong>em</strong> resposta à sua escrita “Issonão quer dizer que é falso, mas criado”. 6Se Helen se mitologiza e seu trabalho se torna ambivalente, issotambém se torna inacabável e, portanto, contínuo. No capítulo o qual Beth eHelen exploram um jardim esquecido, The Visitation se transforma <strong>em</strong>anunciação, <strong>em</strong> que ca<strong>da</strong> mulher traz a outra o nascimento <strong>da</strong>s palavras, <strong>da</strong>mesma forma que Alice Walker nos convoca ao jardim de nossas mães parareforçar as imagens silencia<strong>da</strong>s de mulheres que se perderam na imponênciado patriarcado (WALKER, 1983). Beth atua como a parteira espiritual de Helen,coman<strong>da</strong>ndo-a a “cantar por sua redenção, por sua vi<strong>da</strong>, por sua fala e por suaescrita. Ela a ordena: defina-se, agora, se defina mulher. O centro do labirintonão é o final, mas um outro começo. Comece a escrever” (Id<strong>em</strong>, p.173).Já <strong>em</strong> The Wild Girl, o romance é concluído com um final morto, odesaparecimento de Maria Ma<strong>da</strong>lena “com uma bagag<strong>em</strong> de dúvi<strong>da</strong>s” (180),que reaparece <strong>em</strong> In the Red Kitchen, com o relacionamento de Kattie e suaartista de cabelos de fogo. O enredo continua com o <strong>em</strong>puxo social, o qualexerce uma força poderosa na escrita <strong>da</strong>s mulheres cont<strong>em</strong>porâneas com umdestino utópico que tradicionalmente t<strong>em</strong> sido assinado pelas mulheres <strong>da</strong>cultura ocidental. Nos romances de Michèle <strong>Roberts</strong>, o enredo vacila entre umahistória central e outras tantas que surg<strong>em</strong> para competir a atenção do leitor.6 ROBERTS, Michèle. On women, christianity and history: An interview with Michèle <strong>Roberts</strong>.Entrevista concedi<strong>da</strong> à Patrícia Bastide Rodriguez <strong>da</strong> Universitat de les Illes Balears. Disponível<strong>em</strong> Acesso <strong>em</strong>: 20 de set. de2007.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 201


Polliana Cristina de OliveiraDessa forma, tanto The Wild Girl quanto The Visitation experimentam novasformas no romance s<strong>em</strong> prover um desfecho.Steve Cohan e Lin<strong>da</strong> M. Shires descrev<strong>em</strong> a obra Um viajante <strong>em</strong> umanoite de inverno, de Ítalo Calvino, como uma narrativa de strip-tease:Investir na narrativa por meio do início contínuo de novashistórias s<strong>em</strong> fechá-las de forma absoluta, Se um viajante <strong>em</strong>uma noite de inverno inscreve você, leitor, que t<strong>em</strong> aexpectativa de ler livros do início até o fim, ativamente procurao desfecho como uma forma de prazer (COHAN & SHIRES,1988, p. 151).A técnica de Calvino, com “repetição circuitos curtos de conclusão <strong>da</strong>história” (COHAN & SHIRES, 1988, p. 151) foi adota<strong>da</strong> por <strong>Roberts</strong> <strong>em</strong> suasétima obra, Flesh and Blood (1994), a qual oferece uma seqüência denarrativas que se entrelaçam umas com as outras, recusando o desfechoficcional. Ca<strong>da</strong> história é concluí<strong>da</strong> com um ponto e uma vírgula, ao invés doponto final. Flesh and Blood é, até o momento, o romance mais experimentalde <strong>Roberts</strong>, explodindo fronteiras de um enredo linear com sua conclusãoresolutiva. Aqui, o tradicional ponto final do fim do romance é suplantado porum ponto e vírgula, o que sugere que há mais histórias que serão conta<strong>da</strong>s. Asd<strong>em</strong>ais obras de <strong>Roberts</strong> pod<strong>em</strong> ser entendi<strong>da</strong>s como um projeto similar doexposto, uma série de experimentos e não textos herméticos e singulares.Assim, coletivamente, os textos de <strong>Roberts</strong> formam uma narrativa <strong>em</strong> espiralque é claramente dinâmica.A partir do que foi discutido aqui, pode-se eluci<strong>da</strong>r que os romancessugestionam o prazer e a possibili<strong>da</strong>de de escrever e ler para além do fimdeles, estilhaçando o fim e a definição concreta. Se a narrativa e a identi<strong>da</strong>deestão alia<strong>da</strong>s nos debates promovidos nos romances citados, há também umaansie<strong>da</strong>de no que diz respeito à preservação de narrativas particulares e decertas formas de identi<strong>da</strong>des. Patrícia Waugh contribui, de forma brilhante, aocomentar a propensão literária cont<strong>em</strong>porânea de autoria f<strong>em</strong>inina para ostextos ditos evasivos como uma tática preocupa<strong>da</strong> <strong>em</strong> reconstruir ou conservaralgumas formas de identi<strong>da</strong>des:Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 202


Polliana Cristina de OliveiraÉ interessante que mais escritoras estão submersas nastécnicas narrativas pós-modernas ⎯ Carter, Winterson, Wildon,Lessing, Atwood, Tenant, <strong>Roberts</strong> ⎯ de uma forma que resisteà lista de implicações teóricas, utilizando formas desordena<strong>da</strong>spara imaginar o mundo <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong>os (WAUGH, 1990, p.70).Michèle <strong>Roberts</strong> claramente se situa na lista <strong>da</strong>s autoras experimentais<strong>em</strong> seu estilo de narrativa e de ficções históricas. Uma área <strong>em</strong> que a tensãoentre a desconstrução s<strong>em</strong>pre presente e a prática de reconstrução éparticularmente aparente sob retrato <strong>da</strong> mulher escritora. Enquanto essesromances celebram as narrativas que trabalham para além do fim, revelando a<strong>fluidez</strong> <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong>de, elas também levantam questões sobre o que issooferece aos f<strong>em</strong>inismos. O conceito de Barthes do texto como “umentrelaçamento texturizado de uma rede de códigos” (BARTHES, 2001, p. 55)que resiste ao conceito de narrativa como “um monolítico impenetrável e sólidointeiro” (COHAN & SHIRES, 1988, p. 118) é claramente aplicável neste corpus.Essas narrativas produz<strong>em</strong> o barulho e o volume <strong>da</strong> textuali<strong>da</strong>de ao exceder aharmonia e a coerência do todo.Os romances de Michèle <strong>Roberts</strong> se oferec<strong>em</strong> <strong>em</strong> paralelo à teoriaf<strong>em</strong>inista, não os proclamando como uma forma narrativa estritamentef<strong>em</strong>inina, mas brincam com o prevalecimento dos modelos masculinos a fim deimaginar algo diferente, para além <strong>da</strong>s fronteiras. De A Piece of the Night àLooking Glass, <strong>Roberts</strong> t<strong>em</strong> produzido muitas ficções contendo microcosmosficcionais e narrativas com múltiplos narradores que se contradiz<strong>em</strong> entre si,desacreditados deles mesmos e de suas próprias histórias. Crescent<strong>em</strong>ente, otrabalho de <strong>Roberts</strong> t<strong>em</strong> reinventado os personagens e momentos históricospara propor<strong>em</strong> o possível, uma História <strong>da</strong>s Mulheres 7que alude aossilenciamentos e apagamentos dessas personagens. Essa reinvenção é límpi<strong>da</strong>7 T<strong>em</strong>o cunhado por Mary Del Priore, renoma<strong>da</strong> historiadora, que r<strong>em</strong>ete às contribuiçõesdecorrentes <strong>da</strong> explosão do f<strong>em</strong>inismo e <strong>da</strong>s transformações na historiografia a partir <strong>da</strong>déca<strong>da</strong> de 1960. Nesse sentido, ressaltam-se as contribuições <strong>da</strong> História Social, <strong>da</strong> História <strong>da</strong>sMentali<strong>da</strong>des e, posteriormente, <strong>da</strong> História Cultural, articula<strong>da</strong>s ao crescimento <strong>da</strong>antropologia, que tiveram papel decisivo nesse processo, <strong>em</strong> que as mulheres são alça<strong>da</strong>s àcondição de objeto e sujeito <strong>da</strong> História (DEL PRIORE, 1997, p. 78-114).Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 203


Polliana Cristina de Oliveira<strong>em</strong> seu quinto romance, In the Red Kitchen, no qual a narrativa é localiza<strong>da</strong> napré-história do discurso freudiano. A família freudiana do romance se diss<strong>em</strong>inana narrativa de Flora Milk, atingindo seu clímax na cena Flora está na presençade seu pai, um psicanalista moderno, via Charcot.Mamãe t<strong>em</strong> ciúmes de Flora, de seus cachos dourados e laços.Mamãe é feia. Ela não t<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po de brincar com papai comoFlora t<strong>em</strong>. Papai ama Flora mais que tudo. Eles se amam muito.Mamãe é velha. Flora está assusta<strong>da</strong> com a idéia de que ela vámorrer. Flora se esconde atrás <strong>da</strong> porta <strong>da</strong> cozinha e assistesua mãe chorar, sua cabeça apoia<strong>da</strong> sobre as mãos que pairamna mesa. Flora <strong>da</strong>nça para Dr. Charcot e para William <strong>da</strong>mesma forma que <strong>da</strong>nçava para seu pai. (127)Flora performatiza uma histérica para Charcot, copiando as poses deAugustine, a paciente estrela de seu psicanalista, as quais fotografias ela viu<strong>em</strong> seu escritório. Freud é implicitamente presente como os pais para qu<strong>em</strong>Flora, a médium vitoriana, representa a crítica materialista do romance ciênciaversus espiritualismo mediúnico. Enquanto o romance é auto-reflexivo, pós-Freudiano nessa cena, é claro também que é pós-lacaniano na discussão <strong>da</strong>linguag<strong>em</strong> e <strong>da</strong> palavra escrita. A associação de Flora e Hat com a escrita édramatiza<strong>da</strong> por meio <strong>da</strong> relação com seus pais. O pai faraó de Hat oferece aela a língua como um sinal de autori<strong>da</strong>de, enquanto o pai de Flora é um editor,literalmente, instrumental no meio lingüístico de produção. Hat, o espírito guiade Flora Milk é uma rainha egípcia antiga, a predecessora de Akhenaten eTutakhamum:Hat-Shepsut alega que seu pai a declamou sua co-regente napresença de to<strong>da</strong> corte, declarando-a sua sucessora. Égeralmente aceito por estudiosos <strong>da</strong> cultura Egípcia que esseponto de justificação é estritamente ficcional… Elaevident<strong>em</strong>ente pensou que ele aclamaria seu enteado e seriarepresenta<strong>da</strong> por alguma figura masculina liga<strong>da</strong> ao faraó.Depois de 20 anos após sua morte, Tuthmosis III fez de tudopara apagar ca<strong>da</strong> vestígio dela e alterar monumentos ligados aela, a fim de suprimir seu nome. Afinal, não era apropriado queafigura de uma mulher no poder se preservasse assim, <strong>em</strong>boramuitas rainhas Egípcias tentaram usurpar a prerrogativa dotrono masculino (40).Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 204


Polliana Cristina de OliveiraOutro aspecto importante <strong>da</strong> História é que os egípcios são comumenteconsiderados os precursores de uma forma sist<strong>em</strong>ática de escrita com o uso desímbolos hieróglifos. A narrativa de Hat repeti<strong>da</strong>mente enfatiza a importância eo poder <strong>da</strong> escrita na criação <strong>da</strong> História. Enquanto Terence Milk, pai de Flora,simboliza a língua por meio de seu status de patriarca e editor, o pai de Hat aensina a escrever por causa do poder literal <strong>da</strong> palavra escrita e sua relaçãocom o reino. Flora é uma leitora ávi<strong>da</strong> de tudo que está disponível (20) ⎯ paraela a literatura é imaginação e escape ⎯ enquanto Hat aprende essa habili<strong>da</strong>dede um escriba para se inscrever no poder, literalmente. A narrativa de Hatdescreve a hierarquia de poder e linguag<strong>em</strong> que é exclusivamente percebi<strong>da</strong>como masculina: “a profissão do escriba eleva um menino ao caminho dosDeuses. Os escribas de meu pai são homens que dominam a literatura,mat<strong>em</strong>ática, medicina, os segredos <strong>da</strong> religião… escrever é entender omisterioso e poderoso mundo <strong>da</strong>s palavras, partilhar o poder <strong>da</strong>s palavras,fazer isso acontecer para mim” (24). O poder que Hat deseja é o de seu pai:Hat não deseja ser meramente ser deseja<strong>da</strong> por seu pai, <strong>em</strong>bora ela se tornesua esposa e amante, mas para ele:Eu não preciso de uma mãe. Eu tenho meu pai, os caminhos<strong>da</strong>s mulheres são frívolos e estúpidos, Eu os repudio. Eu nãosou uma mulher, como as outras mulheres… Eu sou tão boaquanto um hom<strong>em</strong>. Eu falo com homens; eu falo de coisas dehomens. Eu sou melhor que as outras mulheres… Eu sigo ocaminho de meu pai, o único caminho que quero saber, oúnico” (53).Com o intuito de ter poder, ela t<strong>em</strong> de se tornar hom<strong>em</strong>, ela t<strong>em</strong> derejeitar seu próprio gênero e to<strong>da</strong>s as associações culturais advin<strong>da</strong>s dele parase transformar <strong>em</strong> masculino ou, no mínimo, <strong>em</strong> algo não f<strong>em</strong>inino. N<strong>em</strong> Florae n<strong>em</strong> Hat se aproximam <strong>da</strong> desconstrução dessas definições. Hat tenta serecriar <strong>em</strong> um ser masculino, enquanto Flora adere à f<strong>em</strong>inili<strong>da</strong>de de seut<strong>em</strong>po, negociando algum espaço para ela na socie<strong>da</strong>de vitoriana. Nenhumapersonag<strong>em</strong> é retrata<strong>da</strong> no romance como b<strong>em</strong> sucedi<strong>da</strong> ou feliz com elamesma. As narrativas de Flora e Hat pod<strong>em</strong> ser li<strong>da</strong>s como atuações <strong>da</strong> moralMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 205


Polliana Cristina de Oliveiraf<strong>em</strong>inista: não se pode escapar <strong>da</strong>s definições de gênero s<strong>em</strong> mu<strong>da</strong>r aestrutura social a qual estão essas definições estão incrusta<strong>da</strong>s. Hat tenta sereinventar como masculina, mas as associações culturais de sexo e gêneroviv<strong>em</strong> mais que ela. Flora se inventa como f<strong>em</strong>inino, traindo suas amigas efamília quando ela prioriza os homens <strong>em</strong> sua vi<strong>da</strong>. Se In the Red Kitchenpersonifica a moral f<strong>em</strong>inista, nós pod<strong>em</strong>os considerar a saí<strong>da</strong> desse impasse amulher do século 20, Hattie King? Seria confortável ler In the Red Kitchen comoum texto que propõe uma história f<strong>em</strong>inista progressiva ⎯ com Hat tentando amasculini<strong>da</strong>de e Flora a f<strong>em</strong>inili<strong>da</strong>de e já Hattie King triunfando com aidenti<strong>da</strong>de cont<strong>em</strong>porânea que se move para além dos estereótipos, to<strong>da</strong>via,não são ofereci<strong>da</strong>s aqui conclusões ordena<strong>da</strong>s.Hattie King não é uma mulher que existe fora <strong>da</strong>s definições culturaisde gênero, melhor, ela reconhece essas definições e as manipula com o intuitode atingir seus objetivos, por ex<strong>em</strong>plo, ter sua própria casa. Contrariamente àsuas predecessoras Hat e Flora, Hattie King viaja através de culturas e países,se recriando como chauffer, cozinheira, escritora e prostituta. Sua relação comgênero é, no mínimo, a de um escultor com sua obra de arte, menos constritivaque aquelas exerci<strong>da</strong>s por Flora e Hat, no entanto, os parâmetros ain<strong>da</strong>exist<strong>em</strong>. Hattie não é então um modelo utópico, é sim conseqüência de suasancestrais espirituais. A casa a qual Hattie compra é a casa de Flora Milk,ressoa<strong>da</strong> com os ecos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> vitoriana, um fantasma do passado, visto eouvido apenas por Hattie. Hattie, de certa forma, t<strong>em</strong> acesso a essa móvel eincerta forma de história, mas há também uma história mais concretaescondi<strong>da</strong> na caixa do sótão ⎯ uma história confisca<strong>da</strong> no fim do romance. Umdescendente de Flora chega para levar as duas caixas de fotografias.Pode-se inferir desta passag<strong>em</strong> que pouco mudou: os homens estãoain<strong>da</strong> escondendo a história, fechando as caixas, não querendo que asmulheres saibam <strong>da</strong> história. Os cartões provavelmente têm a história de Flora,<strong>em</strong> suas próprias palavras, nesses pequenos diários. Suas visões de Floracertamente oferec<strong>em</strong> uma história muito mais autêntica que até todos osMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 206


Polliana Cristina de Oliveiradiários <strong>da</strong> médium vitoriana. Se a novela acabasse nesse ponto haveria certochão para este argumento; o final narrativo de Hattie é seguido, to<strong>da</strong>via, porvozes de Flora, Minny, Hat e Rosina.O final <strong>da</strong> narrativa de Flora é cheio de arrependimento e Hatdesaparece enquanto Minny e Rosina escrev<strong>em</strong> cartas para Mamma e Mrs.Redburn, respectivamente, a qual fala eloquent<strong>em</strong>ente de suas traições aoutras mulheres. As mulheres que parec<strong>em</strong> triunfar nesse romance são as quedramatizam a f<strong>em</strong>inili<strong>da</strong>de de forma b<strong>em</strong> sucedi<strong>da</strong>. A comunicação metafísicaentre Hat, Flora e Hattie estabelece uma linha invisível de conexão históricaentre mulheres, entretanto isso pouco subverte as configurações tradicionais degênero e poder.Nesses espaços ⎯ <strong>em</strong> algum lugar entre os discursos do determinismohistórico e a metafísica ⎯ há a esperança de um futuro diferente. Diante disso,é o espaço do possível, do epifânico, do transitório e <strong>da</strong> transformação. Cabe,assim, a comparação entre a ficção de <strong>Roberts</strong> e a descrição de imaginário deLe Doeff, que pensa no imaginário comoUm termo retórico que se refere a figures de imagética nafilosofia e <strong>em</strong> outros textos. Le Doeff vê isso como uma formade pensar <strong>em</strong> imag<strong>em</strong>, o uso <strong>da</strong> narrativa, estruturas deconhecimento pictórico ou alegórico. Nesse sentido, oimaginário é sintomático <strong>da</strong> elisão; aloca os textos filosóficosaonde o discurso não é hábil a admitir suas fun<strong>da</strong>ções, além deas cobri. Isso d<strong>em</strong>onstra, assim, um ponto crítico devulnerabili<strong>da</strong>de com textos e argumentos, um lugar que ain<strong>da</strong>permanece silenciado necessariamente para a função do texto(GROZS, 1989, p. xviii-xix).Desse modo, os romances de <strong>Roberts</strong> se engajam nos debates <strong>da</strong>steorias do f<strong>em</strong>inismo francês, as quais tentam assinalar caminhos para longe dofim com ponto final, elas indicam saí<strong>da</strong>s. Por meio <strong>da</strong> interrogação dosconceitos relativos à escrita de autoria f<strong>em</strong>inina, os romances r<strong>em</strong>ontam apratici<strong>da</strong>de e eficiência dessas saí<strong>da</strong>s aponta<strong>da</strong>s pelo f<strong>em</strong>inismo francês. Essasnarrativas são endereça<strong>da</strong>s e <strong>em</strong>pregam discursos <strong>da</strong> psicanálise <strong>da</strong> teoriaf<strong>em</strong>inista francesa, mas eles não as engole de todo.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 207


Polliana Cristina de OliveiraEm Castration or decaptation?, Hélène Cixous oferece uma definição deescrita f<strong>em</strong>inina:Assim é como eu definiria o corpo textual f<strong>em</strong>inina comouma economia libidinal f<strong>em</strong>inina, um regime, energias, umsist<strong>em</strong>a de desperdício de palavras necessariamenteenxotado pela cultura: um corpo f<strong>em</strong>inino textual éreconhecido pelo fato que é infinito, s<strong>em</strong> fim; não há fim,nunca termina; e é isso que torna a escrita f<strong>em</strong>inina difícilde ler. Nós aprend<strong>em</strong>os a ler livros que basicamentecolocam um final b<strong>em</strong> definido. Mas esse não t<strong>em</strong> umfinal, um texto f<strong>em</strong>inino continua e continua e <strong>em</strong> certomomento volta e a escrita continua e, para o leitor, issosignifica ser lançado para <strong>em</strong> direção ao vazio. Esses sãotextos que buscam o início, mas não as origens. A orig<strong>em</strong>é um mito f<strong>em</strong>inino; Eu s<strong>em</strong>pre quis saber de onde vim. Apergunta “De onde bebês vê<strong>em</strong>?” é, basicamente, umapergunta f<strong>em</strong>inina ao invés de masculina. A busca pelaorig<strong>em</strong>, ilustra<strong>da</strong> por Édipo, não assombra o inconscient<strong>em</strong>asculino. Especialmente, é um começo, um modo deiniciar não imediatamente com o Falo para terminar com oFalo, no entanto, começar por to<strong>da</strong>s as outrasperspectivas que constro<strong>em</strong> a escrita f<strong>em</strong>inina. Ao mesmot<strong>em</strong>po, um texto f<strong>em</strong>inino começa vinte, trinta vezes”(CIXOUS, 1991, p. 53).Aqui, há ecos <strong>em</strong> In the Visitation, conforme ressaltados no início dessebreve estudo, os quais também ressoam com a metodologia <strong>da</strong> prosa ficcionalde Michèle <strong>Roberts</strong> como um todo. Tal qual Cixous, que se repete <strong>em</strong> váriosensaios, ou talvez começando de novo e de novo, o trabalho de <strong>Roberts</strong> écontínuo e continuante. T<strong>em</strong>as e imagens são recorrentes <strong>em</strong> um texto, masreaparec<strong>em</strong> <strong>em</strong> diferentes guisos e contextos no próximo.As narrativas de Michèle <strong>Roberts</strong> evocam um outro lugar mágico, o qualé excitante e inspirado, falha <strong>em</strong> oferecer resoluções práticas.Consequent<strong>em</strong>ente, esses romances auto-reflexivos se aplicam na descrição deCixous de Féminine Écriture, to<strong>da</strong>via, apenas com o intuito de experimentaresta idéia, não para provar sua existência. Os textos aparec<strong>em</strong> conscientesdesta distinção. O confisco <strong>da</strong>s caixas cheias de material histórico de Flora ⎯suas fotografias e diários ⎯ pelo velho hom<strong>em</strong> no fim do romance In the RedMiscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 208


Polliana Cristina de OliveiraKitchen indica que enquanto a conexão entre Flora e Hattie pode ser autêntica,isso ain<strong>da</strong> permanecerá imaterial e privado e, dificilmente, adentrará a esferapública. Similarmente, quando Léonie, protagonista de Daughters of the House,está prestes a trazer a público a identi<strong>da</strong>de do informante nazista no fim doromance, ela admite, “Eu não tenho provas plausíveis de que era um padre”(171). Seu conhecimento privado <strong>da</strong> história pode não ser suportado pelotribunal, esses conhecimentos pod<strong>em</strong> se desintegrar na arena pública.Essas histórias metafísicas pod<strong>em</strong> ser efêmeras, mas também sãolimítrofes; elas pod<strong>em</strong> facilmente desaparecer, e sua presença como“fantasmas de livraria” (The book of Mrs. Noah, 89) não estão garantidos.Esses textos desejam tanto o prazer <strong>da</strong> clausura, que oferece a presença <strong>da</strong>subjetivi<strong>da</strong>de na narrativa, quanto o prazer de exceder fronteiras, oferecendopossibili<strong>da</strong>des infinitas de mol<strong>da</strong>g<strong>em</strong>. Os romances de <strong>Roberts</strong>, como eu os leio,são, dessa forma, textos não estritamente f<strong>em</strong>ininos, de acordo com a teoria deCixous; essas narrativas evad<strong>em</strong> o fim propriamente dito, mas também adesejam. As narrativas de <strong>Roberts</strong> são s<strong>em</strong>pre inscritas pela tradição doromance na cultura ocidental, oferecendo questões que possu<strong>em</strong> finaisinconclusivos, mas finais antes de tudo. O que implica <strong>em</strong> diferentesentendimentos <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de e de como ela é construí<strong>da</strong>. No trabalho de JuliaKristeva, há a visão <strong>da</strong> produção do sujeito <strong>em</strong> processo, a qual é inspira<strong>da</strong>diretamente pelas práticas psicanalíticas. O sujeito de Kristeva é um sujet enprocess, mas um sujeito antes de tudo. Nós o encontramos levandodificul<strong>da</strong>des, equilibrando atos entre oposição que desconstrõ<strong>em</strong> suasubjetivi<strong>da</strong>de e identi<strong>da</strong>de juntas e que as traz<strong>em</strong> de volta, captura<strong>da</strong>s <strong>em</strong> ummundo humanista (MOI, 1986, p. 13).Esse estado de negociação fala eloquent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong> mais produtivateorização pós-moderna inspirando <strong>em</strong> seu reconhecimento ⎯ não é umadescrição <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> diária? ⎯ mais diretamente, isso pode ser lido como umadescrição <strong>da</strong> política f<strong>em</strong>inista ambas na acad<strong>em</strong>ia e <strong>em</strong> diversos outros níveis;para melhor ou para pior, estamos todos morando <strong>em</strong> casas móveis.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 209


Polliana Cristina de OliveiraReferências bibliográficasBARTHES. Roland. Mitologias. 11. ed. Trad. Rita Buongermino e Pedro deSouza. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.CIXOUS, Hélène. Castration or Decapitation? Trans. Annette Kuhn. Signs 7.1(1981), pp. 41–55.COHAN, Steve, and SHIRES, Lin<strong>da</strong> M. Telling Stories: A Theoretical Analysis ofNarrative Fiction. London: Routledge, 1988.DEL PRIORE, Mary. Magia e medicina na colônia: o corpo f<strong>em</strong>inino. In: ______.(org.) História <strong>da</strong>s mulheres do Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1997, pp.78-114.DUPLESSIS, Rachel Blau. Writing Beyond the Ending: Narrative Strategies ofTwentieth-Century Women Writers. Bloomington: Indiana UP, 1985.GROSZ, Elizabeth. Sexual Subversions: Three French F<strong>em</strong>inists. New SouthWales: Allen and Unwin, 1989.HALL, Stuart. A Identi<strong>da</strong>de Cultural na Pós-Moderni<strong>da</strong>de. DP&A Editora, 2005.LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna, 2. ed. Trad. Bragança deMiran<strong>da</strong>, Gradiva, Lisboa, 1989.MOI, Toril. Sexual/Textual Politics: F<strong>em</strong>inist Literary Theory. London: Methuen,1985.______. (ed.) The Kristeva Reader. Oxford: Blackwell, 1986.ROBERTS, Michèle. The Woman Who Wanted to Be a Hero. In: MAITLAND,Sara Walking on the Water: Women Talk About Spirituality. London: Virago,1983.______. The Book of Mrs Noah. London: Methuen, 1987.______. Interview with Ros<strong>em</strong>ary White. Bête Noire 14/15 (1994), pp. 125–40.______. Daughters of the House. London: Virago, 1992.______. Flesh and Blood. London: Virago, 1994.______. In the Red Kitchen. London: Methuen, 1990.______. A Piece of the Night. London: The Women’s Press, 1978.______. The Visitation. London: The Women’s Press, 1983.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 210


Polliana Cristina de Oliveira______. The Wild Girl. London, Methuen, 1984.WALKER, Alice. In: Search of My Mother's Garden: Womanist Prose. London:Virago, 1983.WAUGH, Patricia. Reassessing Subjectivity: Modernity, Postmodernity andF<strong>em</strong>inism. In: ______. Aesthetic Practice. Bête Noire 8/9 (1989/1990), pp. 64–77. 8Artigo recebido <strong>em</strong> 23/03/2009 e publicado <strong>em</strong> 30/09/2009.Miscelânea, <strong>Assis</strong>, vol.6, jun./nov.2009 211

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