12.07.2015 Views

VISÕES DA NATUREZA CÓSMICA: ROBERTO PIVA ... - UNESP-Assis

VISÕES DA NATUREZA CÓSMICA: ROBERTO PIVA ... - UNESP-Assis

VISÕES DA NATUREZA CÓSMICA: ROBERTO PIVA ... - UNESP-Assis

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

II Colóquio da Pós-Graduação em Letras<strong>UNESP</strong> – Campus de <strong>Assis</strong>ISSN: 2178-3683www.assis.unesp.br/coloquioletrascoloquiletras@yahoo.com.brVISÕES <strong>DA</strong> <strong>NATUREZA</strong> CÓSMICA: <strong>ROBERTO</strong> <strong>PIVA</strong>, XAMANISMO E POESIAJosé Juvino da Silva Júnior(Mestrando – UFPE/Recife – CAPES)RESUMO: O artigo “visões da natureza cósmica: Roberto Piva, xamanismo e poesia” faz umaanálise das imagens do mundo natural engendradas pelos poemas do autor nos livros Ciclonese Estranhos Sinais de Saturno. O texto investiga ainda os posicionamentos biopoéticos doautor em relação ao processo de mecanização da vida humana e desencantamento do mundomoderno perpetrado pelo sistema do capitalismo global. Este artigo procura deslindar asarticulações que o poeta Roberto Piva faz da mitologia e do xamanismo como plataformas paraa gestação de uma poesia que conduza ao êxtase (ao sagrado) e que renove as possibilidadesde contato com o acervo do imaginário humano ancestral e seja, ainda, palavra deenfrentamento ao discurso hegemônico do racionalismo do pensamento ocidental.PALAVRAS-CHAVE: poesia; xamanismo; mundo natural; visões.Visões e vertigens, delírios, transes e êxtases: a poética de Roberto Piva,como uma fábula do imaginário radical, enxerga o mundo natural como umapossibilidade para a realização de um devir cósmico-poético, uma possibilidade dedesenvolvimento do sujeito em contato fecundo e fértil com a pulsação da natureza. Opoeta busca incorporar em sua dicção e palavra o acervo de sabedoria presente naspráticas xamanísticas. Assim, a poesia se transmuta num lugar para o exercícioorgânico de aproximação entre o ser humano e o mundo natural, como observamosnum trecho final do poema “A oitava energia”, do livro Estranhos sinais de saturno[...] Que você conheça manguezais& realidades não-humanasQue são a essência da PoesiaQue você conheça o sussurro do SolNa água ferruginosa dos seus olhos. (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 69)A natureza passa a ser vista como um organismo ativo, permeado designificados que transcendem os limites da razão humana. E o poeta abandona apretensão de criar um poema que seja um discurso sobre a natureza; antes, a poesiase manifesta como o lugar onde a natureza se materializa, apresenta a si mesma, fala,em suma, torna-se presença, verdadeira presença:649


Gavião CaburéEu atravessei manguezais& estrelassementes espalhadasna voz do olho obscurorépteis abandonados no pó das estradasEsta Serra enforca o horizontenômade do Absoluto. (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 67)A poética de Roberto Piva se constrói na articulação do sonho e da intuição ese move nos campos abertos do imaginário, criando um regime de permanentediálogo com as forças naturais, como podemos observar no poema “Jurema Preta”:Sou alunodas árvoresalma elétricanas veredas maissecretasCatimbó sonâmbulo& seus paláciosmeu crânio virando brasasdesfolhando meu coraçãomananciais transfiguradosna memória. (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 166)Roberto Piva reelabora o material das tradições do imaginárioxamânico/mítico, utilizando-o como magma, como gatilho para sua dicção poética. Nopoema citado, por exemplo, o autor faz referência à jurema sagrada, tradição religiosaremanescente dos índios que habitavam o litoral do Nordeste brasileiro e dos seuspajés, grandes conhecedores dos mistérios do além, das plantas e dos animais.O poeta, ao se aproximar intuitivamente do mundo natural – transfiguradonum xamã visionário –, inaugura uma relação dialógica, não-mecanizada com anatureza. Assim, o poeta-xamã se move dentro das esferas de um mundo naturalprenhe de significados cósmicos. A poesia de Roberto Piva se transforma num espaçopara o encontro vertiginoso entre o poeta e os conteúdos simbólicos/míticos inscritosno mundo natural de maneira cifrada. A poética visionária de Piva busca, então,realizar/materializar uma leitura orgânica da realidade. A poesia opera uma escrituracapaz de colocar em movimento os mananciais simbólicos dos lugares de poder daexistência:A poesia mexecom realidades não-humanasdo planetaprofeciasespíritos animaisvidênciaestrela bailarina650


lugares de poderfogo do céu. (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 82)O autor enfatiza também em seus poemas os desdobramentos socioambientaisperversos da mentalidade mecanicista, como registra no “manifesto da selva maispróxima”, em que se lê um verso como “os produtos químicos, a indústriafarmacêutica & os miasmas roerão teus ossos” (<strong>PIVA</strong>, 2006, p. 148). Piva vai deencontro à lógica ocidental de dominação da natureza e seu consequente processo dedesencantamento do ambiente selvagem. Como diz Mircea Eliade,a experiência de uma natureza radicalmente dessacralizada é umadescoberta recente, acessível apenas a uma minoria das sociedadesmodernas, sobretudo aos homens de ciência. Para o resto daspessoas, a natureza apresenta ainda um “encanto”, um “mistério”,uma “majestade”, onde se podem decifrar os traços dos antigosvalores religiosos. Não há homem moderno, seja qual for o grau desua irreligiosidade, que não seja sensível aos “encantos” da natureza.Não se trata unicamente dos valores estéticos, desportivos ouhigiênicos concedidos à natureza, mas também de um sentimentoconfuso e difícil de definir, no qual ainda se reconhece a recordaçãode uma experiência religiosa degradada (ELIADE, 2008, p. 126).Ancorando-se no reconhecimento desta espécie de nostalgia mágicoreligiosa,inconsciente, latente no homem moderno, Piva vai reinventando os ritmospara novas tribos, anunciando rupturas, brechas no discurso ideológico damodernidade. A poesia, então, se reveste de uma carga profética e de um carátertransgressor, aventando possibilidades míticas para a existência do homem moderno.Ainda no “manifesto da selva mais próxima”, o poeta nos diz:estrelas penduradas na fuligem / Catecismo da PerseverançaIndustrial / Os governos existem pra preparar a sopa do GeneralEsfinge / Os governos existem pra você pensar em política eesquecer o Tesão / Batuque Nuclear Anjo-Fornalha / poesia urbanoindustrialem novo ritmo / Cidade esgotada na feiúra pré-Colapso /recriar novas tribos / renunciar aos trilhos / Novos mapas da realidade/ roteiro erótico roteiro poético / Horácio & Lester Young / Tribos degarotos nas selvas / tambores chamando pra Orgia / fogueiras &plantas afrodisíacas / Abandonar as cidades / rumo às praiassalpicadas de esqueletos de Monstros / rumo aos horizontes bêbadoscomo anjos fora da rota / Terra minha irmã / entraremos na chuva quefaz inclinar à nossa passagem os Guaimbés / Delinqüência sagradados que vivem situações-limite / É do Caos, da Anarquia Social quenasce a luz enlouquecedora da Poesia / Criar novas religiões, novasformas físicas, novos anti-sistemas políticos, novas formas de vida / Irà deriva no rio da Existência (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 148-149).A poesia se situa como um contra-discurso, como um ato de rebeldia, derevolta contra a ideologia cientificista. A poesia se afigura como um elementoprovocador, como um chamado para a convergência dos desertores do projeto651


moderno de dominação da natureza. A poética de Piva tem em mente o processomoderno de esvaziamento e desencantamento do mundo e é consciente de quea visão do universo como uma grande máquina, enunciada, entreoutros, por Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650)e Isaac Newton (1642-1727), representou o golpe decisivo contra ouniverso orgânico habitado por nossos ancestrais. Se, como afirmaWesteling, os povos do Paleolítico veneravam uma figura fecunda deMagna Mater ou Grande Mãe, esses homens completaram oprocesso de aniquilação dela, iniciado com o domínio do deus celestemasculino judaico-cristão. Em vez da terra como mãe nutriz, osfilósofos naturais postularam um universo redutível a uma montagemde peças que funcionam de acordo com leis regulares, as quais oshomens, em princípio, poderiam conhecer em profundidade(GARRARD, 2006, p. 91).A consciência deste processo de mecanização das relações do homem com omundo natural se traduz na poética de Roberto Piva numa produção de escritos queprocuram desconstruir a lógica cartesiana, ocidental, secular de domínio edessacralização da natureza ao postular um contato dinâmico, afetuoso e delirantecom as estruturas míticas, simbólicas do mundo selvagem. Este dualismo de visões(visão mecanicista VS xamânica/vitalista) pode ser expresso pelo esquema conceitualdo filósofo Peter Sloterdijk: a mobilização copernicana (processo de racionalizaçãooperado pela modernidade) e o desarmamento ptolomaico (processoscontemporâneos de reencantamento do mundo, restabelecimento de uma visãoorgânica). De acordo com Sloterdijk,quem sentir vertigem total face à representação moderna do mundopoderia, talvez, perceber que no sujeito copernicano contemporâneosobrevive um Ptolomeu eterno; para este o mundo da ilusão antiganunca deixou de ser uma pátria – uma morada sensorial. Continuarepresentando para ele a ordem vagarosa de sincronias entre o corpoe a terra, de proporções entre gestos e realidades. O Ptolomeumovimenta-se na ilusão autêntica dos esquemas antigos que nosorientaram em relação à natureza do mundo antes da revoluçãocopernicana. Se os habitantes de sistemas explosivos sentem falta dealgum tipo de orientação estética concreta, precisam de umaconscientização ptolomaica. Chamo de “desarmamento ptolomaico”esta volta consciente da vertigem copernicana de representação paraa nova consciência antiga (SLOTERDIJK, 1992, p. 62-63).Ao processo de desencantamento do mundo natural engendrado pelamodernidade, Piva contrapõe um projeto calcado na apreensão mágica doambiente/realidade, operando uma espécie de desarmamento ptolomaico, umasabotagem poética contra a ideologia dominante, contra a lógica hegemônica doprojeto moderno. O poeta adentra a sua “Floresta Sacrílega” como quem reinaugurauma ritualização orgânica da relação/aproximação entre o homem e a natureza.652


apresenta, via linguagem, as visões dos frutos simbólicos da árvore cósmica,reencenando um rito xamânico, poiso xamã opera sempre atento aos sinais que possam ser lidos à suavolta; ele ouve as pulsações da terra, compreende o caráter dosventos e tempestades, entende o que lhe dizem os animais, extraiconhecimento de plantas sagradas, vale-se das propriedadesmedicinais dos reinos mineral, vegetal e animal que o cerca, e prevêem razão de eventos observados a tendência das coisas vindouras. 1A criação poética de Roberto Piva se abre ao encontro das forças naturais.Este encontro instaura uma escritura atravessada por irrupções de uma energia domundo natural situada para além do entendimento do racionalismo redutor emecanicista. A natureza se transmuta numa fonte de poder cósmico, um ambientemítico, um texto sagrado:O poder do xamã decorre do entendimento que se estabelece entreele e as hostes espirituais que o rodeiam, visto que não se discuteque o xamã possa perceber a realidade sutil disfarçada por detrásdos eventos corriqueiros da vida, como por exemplo, o vôo rasantede um pássaro, a passagem de um morcego em hora de sagraçãoritualística, o rugir de uma fera, a queda de uma árvore, etc. Apercepção intuitiva não se limita, obviamente, à esfera animal; todanatureza pode servi-lhe de texto sagrado, e o xamã interage com oespírito da lagoa, com a força da montanha, com as entidades dofogo e assim por diante. 2O poeta, num devir alucinatório, se joga ao diálogo com os elementos domundo natural, numa aproximação cheia de energia e delírio. A escrita poética de Pivacondensa os traços cósmicos do universo que permeiam os aspectos sutis da vida,transfigurando-os num magma criativo e inovador para a sua poesia. O poetareverbera as atitudes do xamã em comunicação com a ordem natural/cósmica e opoema se configura como uma aproximação do mundo natural, uma relação deaprendizagem:Espinheira Santaplanta de cabeceirada Deusasubstânciado tempo& suas coresritos lunaresepifanias da seivaensinou meu coração a ficarem estado de Raiosó sabemos quem somosdepois de vocêse mover (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 168).654


Na escrita poética de Piva, o homem se põe em permanente e vital contatocom a natureza, que passa a ser vista numa configuração renovada de proximidade –como numa re-atualização da figura da terra como Terra Mater (Terra Mãe). O serhumano, no lugar de uma relação conflituosa e bélica com o ambiente natural, dispõesenuma abertura dialógica e existencial para com a natureza. O homem se aproximapara um diálogo afetuoso, um diálogo entre duas verdadeiras presenças, um diálogonuma dimensão cósmica.Assim entendida, a poesia se converte na possibilidade renovada para ohomem moderno de uma relação imersiva, próxima com o mundo natural, eliminandoa visão mecanicista que aventa a suposta separação do homem (conceitualmentedefinido como apartado em seu mundo cultural) do meio natural. Essa poética se fianuma visão do mundo natural como organismo, como ser que se desdobra numaespécie de companheirismo, de co-presença. O homem deixa de praticar o credo desua exclusão existencial/conceitual do ambiente natural. Assim, torna-se consciente desua imersão na rede orgânica que atravessa e reúne os seres vivos e o ambiente. Opróprio planeta passar a ser visto como um organismo, um ente, um ser. O diálogoentre ser humano e outras espécies se reafirma como uma realidade possível.Segundo John Berger,seguidamente se encontra a convicção de que foi o homem quemnão teve capacidade de falar com os animais – daí histórias e lendasde seres excepcionais, como Orfeu, que podiam falar com animais nalinguagem deles (BERGER, 2003, p. 14).Com a poesia como configuração de um lócus xamânico, Roberto Pivaapresenta a ideia de uma reversão da excepcionalidade em relação à capacidade defalar com animais, demonstrando que este diálogo não só é possível, como seinstaura, se fundamenta no terreno criativo/criador da linguagem poética:o amorgrita na minha gargantaa serpenteo gaviãoo jaguarme vêemcomo seu Duplo. (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 29)A ideologia moderna efetuou a marginalização dos animais, retirando-os donosso cotidiano e impossibilitando uma relação afetiva/efetiva entre humanos eanimais. No seu lugar, criou zoológicos, bichos de pelúcia, documentários da vidaselvagem e animais domésticos que são a face exposta do processo de afastamento emecanização da vida animal. Como nos diz John Berger,655


[...]estamos sendo destruídos em nosso núcleo biológico,nosso espaço vital & dos animais está reduzido aproporções ínfimasquero dizer que o torniquete da civilização estáprovocando dor no corpo & baba histérica [...] (<strong>PIVA</strong>, 2006, p.143).A escritura transgressora e rebelde de Roberto Piva constrói seu discursocomo foco de resistência ontológica contra a visão cartesiana da vida. Ao invés deconceber o homem como um ser alienado dos processos naturais, isolado, a poesiaxamânica do autor engendra uma senda de permanente conexão entre o homem e asdiversas manifestações da rede da vida. O poeta, em sua intuição visionária, vitalista,reconhece quenão existe nenhum organismo individual que viva em isolamento. Osanimais dependem da fotossíntese das plantas para ter atendidas assuas necessidades energéticas; as plantas dependem do dióxido decarbono produzido pelos animais, bem como do nitrogênio fixadopelas bactérias em suas raízes; e todos juntos, vegetais, animais emicroorganismos, regulam toda a biosfera e mantêm as condiçõespropícias à preservação da vida (CAPRA, 2002, p. 23).O autor encara a visão da sacralidade cósmica da natureza como alternativa aomundo moderno, cujo projeto de consumo reduziu o mundo natural às noções demercadoria e recursos. A poética xamânica de Roberto Piva transforma-se numelemento que concorre para a recuperação do sagrado e do mágico enquanto forçasnaturais, caminhando para aproximar-se de visões não-mecanicistas do mundonatural, recolocando questões a respeito do diálogo não-hierárquico entre o homem eos outros seres. Segundo Capra,a visão unificada, pós-cartesiana, da mente, da matéria e da vidatambém implica uma reavaliação radical da relação entre os sereshumanos e os animais. A filosofia ocidental, na grande maioria dassuas manifestações, sempre concebeu a capacidade de raciocinarcomo uma característica exclusivamente humana, que nos distinguiriade todos os animais. Os estudos de comunicação com chimpanzésdemonstraram de maneira dramática a falácia dessa crença. Deixamclaro que entre a vida cognitiva e emocional dos seres humanos e ados animais só há uma diferença de grau; que a vida é um todo semsolução de continuidade, no qual as diferenças entre as espécies sãogradativas e evolucionárias. A lingüística cognitiva confirmouplenamente essa concepção evolutiva da natureza humana. Naspalavras de Lakoff e Johnson, “a razão, mesmo em suas formas maisabstratas, não transcende a nossa natureza animal, mas faz uso dela[...] Assim, a razão não é uma essência que nos separa dos outrosanimais; antes, coloca-nos no mesmo nível deles (CAPRA, 2002, p.79).Neste quadro pós-cartesiano, repleto de brechas para a irrupção de um novoimaginário e uma nova visão de mundo, contraposta à moderna, Piva passou a657


estudar e praticar o xamanismo, recorrendo a teóricos como Mircea Eliade e o acervodas práticas culturais indígenas e afro-brasileiras. O poeta, a partir de sua poesiaxamânica, acessa uma dimensão mágica do mundo natural, como nos rituais deinvocação de seu animal totêmico/xamânico, o gavião:Ritual dos 4 ventos & 4 gaviõesAli onde o gavião do Norte resplandecesua sombraAli onde a aventura conserva os cascosdo vodu da auroraAli onde o arco-íris da linguagem estácarregado de vinho subterrâneoAli onde os orixás dançam na velocidadede puros vegetaisRevoada das pedras do rioOlhos no circuito da Ursa Maiorna investida loucaOlhos de metabolismo floralAlmofadas de florestaFocinho silencioso da suçuarana compassos de sabotagemCarne rica de Exu nas couraças da noiteGavião-preto do oeste na tempestade sagradaIncendiando seu crânio no frenesi das açucenas.(<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 72)Para o poeta, a natureza é um mundo cósmico que o projeto moderno tematacado e reduzido a movimentos e leis mecânicas, numa voragem destrutiva. E ascidades passam a constituir o cenário/espaço efetivo para a destruição do mundonatural. O projeto poético de Roberto Piva, então, aponta para a contradição entre onatural, como campo do poético, e o urbano, encarnação do projeto modernomecanicista. Esta contradição se acentua em versos como “eu caminho seguindo/ osol/ sonhando saídas/ definitivas da/ cidade-sucata”, (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 58) ou “a rua émuito estreita/ para o exército/ de folhas/ & seu AXÉ” (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 65).O projeto poético de Piva atenta para as reduções, para as domesticações dohomem efetuadas pela modernidade. A sua poesia, como criação de um ambiente, ritoe linguagem xamânica, encarna a imagem do confronto, da recusa da ideologiamoderna e seu projeto diminuidor do ser humano. Um processo que pode serexemplificado na relação do homem com animais de estimação:A pequena unidade onde vive a família carece de espaço, terra,outros animais, estações do ano, temperaturas naturais, e assim pordiante. O animal de estimação é esterilizado ou sexualmente isolado,extremamente limitado em seus exercícios, privado de quase todooutro contato animal, e alimentado com comida artificial. Esse é oprocesso material que está por trás do truísmo de que animais deestimação passam a se assemelhar a seus donos ou donas. Eles são658


esultados do modo de vida do seu proprietário (BERGER, 2003, p.20).As críticas de Roberto Piva, ventiladas por suas declarações e posturas,poemas e manifestos, dirigem-se à mecanização dos gestos, à domesticação ealienação inscritas na ordem da vida moderna, à normatização do desejo, etc. Opoema, afigurado como um ritual xamânico, vai de encontro à ordem imposta doprojeto moderno e seus perpetuadores. Piva, por exemplo, num texto recolhido naseção “Sindicato da Natureza”, chega a identificar o movimento falacioso dacristandade ao tentar associar a figura de São Francisco a um discurso ecológico,demonstrando como as posturas, ideias e concepções cristãs são antiecológicas. Opoeta, ainda, recupera a figura do deus Dioniso, situando-o como uma espécie depatrono da ecologia:É importante lembrar Dionysos neste momento em que a igrejaCatólica nos impõe São Francisco de <strong>Assis</strong> como patrono daEcologia. [...] No Brasil, quando chegaram as caravelas de Cabral, oprimeiro ato dos padres foi um ato antiecológico: cortaram a primeiraárvore para fazer a cruz da primeira missa. [...] Nos anos 60 quandoeu falava de Ecologia, a resposta das pessoas, que se amontoavamem bandos à direita & à esquerda, era sempre uma profissão de fé naprópria mediocridade: “com tanta gente passando fome, esse caravem falar da natureza.” Como se a vida do cretino não dependesseexatamente do equilíbrio ecológico. Os trabalhadores têm a CUT, aCGT. A onça pintada não tem sindicato. Os rios não têm sindicato. Omar não tem sindicato (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 178).O poeta se erige como um visionário contra as posturas redutoras da vidamaterial/natural. Para Piva, a visão de mundo cristã (e sua forma de relacionar-se coma terra) tolheu o ânimo e extraiu a vitalidade dos homens, criando uma mentalidadecujo foco está descolado da imanência da natureza, situando-se num além, numatranscendência fechada:De fato, a visão do mundo judaico-cristão, com seu Deus situado forado Tempo & do Espaço imobilizado na Eternidade, representa aconcepção mais antiecológica de que temos notícia. “Meu reino não édeste mundo” significa que o mundo poderá estar entregue a todotipo de devastação, quer por bombas, agrotóxicos, industrializaçãoetc., pois para este ponto de vista o planeta Terra é um lugar depassagem, um “vale de lágrimas”, um lugar de expiação [...] Com oadvento do Cristianismo, ocorreu a dessacralização do mundo, quepara os pagãos era povoado de deuses. “O que for feito à Terra,recairá sobre os filhos da Terra” diz o ditado dos índios pelesvermelhas,adoradores do peiote, do Sol, da Lua, do coiote & dofalcão. Amnésico & anestesiado pela civilização urbana industrial,robotizado em seus sentimentos, limitado em sua visão pelosedifícios & muros das cidades o homem moderno não sente mais aalegria cósmica & pagã de participar de um nascer do sol de umcrepúsculo, do silêncio das ilhas perfumadas, do instinto, da659


imensidão dos mares silenciosos, das estrelas. Reprimindo a criançaque existe nele, o homem moderno aniquila os deuses do júbilo emseu coração. Deixa de improvisar sua vida, enquadrando-se namarcha uniforme da sociedade organizada & vestida ” (<strong>PIVA</strong>, 2008, p.181-182)O diagnóstico realizado por Piva do mundo urbano-industrial aproxima-se deuma leitura sociológica efetuada por Max Weber sobre o desenvolvimento docapitalismo levado às suas últimas consequências:Ainda ninguém sabe quem habitará essa estrutura vazia no futuro ese, ao cabo desse desenvolvimento brutal, haverá novas profecias ouum renascimento vigoroso de antigos pensamentos e ideais. Ou se[...] tudo desembocará numa petrificação mecânica, coroada por umaespécie de auto-afirmação convulsiva. Nesse caso, para os “últimoshomens” dessa fase da civilização tornar-se-ão verdade as seguintespalavras: “especialistas sem espíritos, folgazões sem coração – estesnadas pensam ter chegado a um estádio da humanidade nunca antesatingido” (WEBER, 1990, p. 130-140).A poesia de Roberto Piva, em sua criação de uma linguagem imanenteinscrita nas energias cósmicas da natureza, configura-se como uma tomada de partidopor uma revolução nos hábitos, na mentalidade e no modo de vida do homemmoderno. A poesia, como linguagem faiscante e encantada, convida a participaçãonum rito de imersão na natureza selvagem. A poesia, como palco/espaço de recriaçãoda cena xamânica, recoloca o homem moderno em face da possibilidade de suaconexão com o sagrado e as repercussões do mundo mítico. A poesia xamânica deRoberto Piva atua como geradora de novas profecias e registro de vidências, pondoem movimento os “cometas vivos do êxtase”.O poeta - trabalhando com os mananciais do imaginário e dos ritos ancestrais- cria um cenário simultaneamente sereno e delirante para um convívio fraterno ealucinado entre os diversos seres da rede da vida. A poesia de Roberto Piva abriga nomesmo peito as visões e as vertigens da natureza cósmica, povoada por rios,montanhas, pássaros, espíritos etc.O poeta-xamã mobiliza os sentidos para uma reinvenção da existência dohomem moderno. A poesia atua numa operação de guerrilha psíquica contra a ordemestabelecida do capitalismo. O poeta retrabalha o imaginário a favor de umareeducação das posturas dos sujeitos contemporâneos e seus modos de serelacionarem com a Terra. A poesia, criada num regime de vivência dos devaneios,repercute uma dimensão mágica e alucinada no nosso corpo mamífero. Roberto Pivaescreve:come teu cogumelo660


no coração do sagradofazendo sinais arcaicosprocura entre praias, montanhas& manguesa mutação das formassonha o mundo num só tempoo cogumelo mostrará o caminhosó o predestinado falaa luz lilás do cogumelolevará ao rio das imagensSombras dançam neste incêndio.(<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 111)Referências bibliográficasBERGER, J. Sobre o olhar. São Paulo: Editorial Gustavo Gili, 2003CAPRA, F. As conexões ocultas. São Paulo: Editora Cultrix, 2002ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2008______. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes,2002GARRARD, G. Ecocrítica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006<strong>PIVA</strong>, R. Mala na mão & asas pretas. São Paulo: Globo, 2006______. Estranhos sinais de saturno. São Paulo: Globo, 2008SLOTERDIJK, P. Mobilização copernicana e desarmamento ptolomaico. Rio deJaneiro: Tempo Brasileiro, 1992.URBAN, Paulo. Animais de poder. Disponível em:http://www.amigodaalma.com.br/conteudo/artigos/xamanismo_animaispoder.htmAcesso em 27 out. 2009.URBAN, Paulo. Animais de poder. disponível em:http://www.amigodaalma.com.br/conteudo/artigos/xamanismo_animaispoder.htmAcesso em 27 out. 2009.WILLER, Claudio. A poética de Roberto Piva. disponível em:http://adiu.multiply.com/reviews/item/6 Acesso em 1 nov. 2009.WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Lisboa: Presença, 1990.661

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!