Gavião CaburéEu atravessei manguezais& estrelassementes espalhadasna voz do olho obscurorépteis abandonados no pó das estradasEsta Serra enforca o horizontenômade do Absoluto. (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 67)A poética de Roberto Piva se constrói na articulação do sonho e da intuição ese move nos campos abertos do imaginário, criando um regime de permanentediálogo com as forças naturais, como podemos observar no poema “Jurema Preta”:Sou alunodas árvoresalma elétricanas veredas maissecretasCatimbó sonâmbulo& seus paláciosmeu crânio virando brasasdesfolhando meu coraçãomananciais transfiguradosna memória. (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 166)Roberto Piva reelabora o material das tradições do imaginárioxamânico/mítico, utilizando-o como magma, como gatilho para sua dicção poética. Nopoema citado, por exemplo, o autor faz referência à jurema sagrada, tradição religiosaremanescente dos índios que habitavam o litoral do Nordeste brasileiro e dos seuspajés, grandes conhecedores dos mistérios do além, das plantas e dos animais.O poeta, ao se aproximar intuitivamente do mundo natural – transfiguradonum xamã visionário –, inaugura uma relação dialógica, não-mecanizada com anatureza. Assim, o poeta-xamã se move dentro das esferas de um mundo naturalprenhe de significados cósmicos. A poesia de Roberto Piva se transforma num espaçopara o encontro vertiginoso entre o poeta e os conteúdos simbólicos/míticos inscritosno mundo natural de maneira cifrada. A poética visionária de Piva busca, então,realizar/materializar uma leitura orgânica da realidade. A poesia opera uma escrituracapaz de colocar em movimento os mananciais simbólicos dos lugares de poder daexistência:A poesia mexecom realidades não-humanasdo planetaprofeciasespíritos animaisvidênciaestrela bailarina650
lugares de poderfogo do céu. (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 82)O autor enfatiza também em seus poemas os desdobramentos socioambientaisperversos da mentalidade mecanicista, como registra no “manifesto da selva maispróxima”, em que se lê um verso como “os produtos químicos, a indústriafarmacêutica & os miasmas roerão teus ossos” (<strong>PIVA</strong>, 2006, p. 148). Piva vai deencontro à lógica ocidental de dominação da natureza e seu consequente processo dedesencantamento do ambiente selvagem. Como diz Mircea Eliade,a experiência de uma natureza radicalmente dessacralizada é umadescoberta recente, acessível apenas a uma minoria das sociedadesmodernas, sobretudo aos homens de ciência. Para o resto daspessoas, a natureza apresenta ainda um “encanto”, um “mistério”,uma “majestade”, onde se podem decifrar os traços dos antigosvalores religiosos. Não há homem moderno, seja qual for o grau desua irreligiosidade, que não seja sensível aos “encantos” da natureza.Não se trata unicamente dos valores estéticos, desportivos ouhigiênicos concedidos à natureza, mas também de um sentimentoconfuso e difícil de definir, no qual ainda se reconhece a recordaçãode uma experiência religiosa degradada (ELIADE, 2008, p. 126).Ancorando-se no reconhecimento desta espécie de nostalgia mágicoreligiosa,inconsciente, latente no homem moderno, Piva vai reinventando os ritmospara novas tribos, anunciando rupturas, brechas no discurso ideológico damodernidade. A poesia, então, se reveste de uma carga profética e de um carátertransgressor, aventando possibilidades míticas para a existência do homem moderno.Ainda no “manifesto da selva mais próxima”, o poeta nos diz:estrelas penduradas na fuligem / Catecismo da PerseverançaIndustrial / Os governos existem pra preparar a sopa do GeneralEsfinge / Os governos existem pra você pensar em política eesquecer o Tesão / Batuque Nuclear Anjo-Fornalha / poesia urbanoindustrialem novo ritmo / Cidade esgotada na feiúra pré-Colapso /recriar novas tribos / renunciar aos trilhos / Novos mapas da realidade/ roteiro erótico roteiro poético / Horácio & Lester Young / Tribos degarotos nas selvas / tambores chamando pra Orgia / fogueiras &plantas afrodisíacas / Abandonar as cidades / rumo às praiassalpicadas de esqueletos de Monstros / rumo aos horizontes bêbadoscomo anjos fora da rota / Terra minha irmã / entraremos na chuva quefaz inclinar à nossa passagem os Guaimbés / Delinqüência sagradados que vivem situações-limite / É do Caos, da Anarquia Social quenasce a luz enlouquecedora da Poesia / Criar novas religiões, novasformas físicas, novos anti-sistemas políticos, novas formas de vida / Irà deriva no rio da Existência (<strong>PIVA</strong>, 2008, p. 148-149).A poesia se situa como um contra-discurso, como um ato de rebeldia, derevolta contra a ideologia cientificista. A poesia se afigura como um elementoprovocador, como um chamado para a convergência dos desertores do projeto651