29.04.2013 Views

Camille Claudel, a suplicante. Reflexões sobre um ... - Saúde Mental

Camille Claudel, a suplicante. Reflexões sobre um ... - Saúde Mental

Camille Claudel, a suplicante. Reflexões sobre um ... - Saúde Mental

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Vol<strong>um</strong>e X Nº1 Janeiro/Fevereiro 2008 Leituras / Readings<br />

socialmente reservado, tinha, segundo esta, comprometido o<br />

bom nome da família.<br />

5- A paranóia de <strong>Camille</strong> <strong>Claudel</strong>: A couve<br />

roída pelas lagartas<br />

Com a informação de que dispomos actualmente, nomeadamente<br />

graças ao acesso à correspondência pessoal, é possível<br />

concluir que <strong>Camille</strong> apresentava na altura do seu internamento<br />

<strong>um</strong> quadro delirante de evolução crónica, caracterizado por<br />

delírios que envolviam a convicção de ser vítima de <strong>um</strong>a perseguição<br />

cujo objectivo exclusivo era o seu prejuízo através de<br />

múltiplas estratégias: tirar-lhe as ideias e esboços, roubar-lhe<br />

as esculturas ou tirar moldes delas, conseguir criar inimizades<br />

contra ela, deixá-la sem recursos económicos, impedir a sua<br />

progressão profissional ou tentar envenena-la através de<br />

terceiras pessoas. Inicialmente, o delírio incluía apenas Auguste<br />

Rodin, mas, finalmente, incorporou diferentes pessoas,<br />

organizadas n<strong>um</strong> complot ou trama dirigida por este, que ela<br />

denominava de “bando de Rodin”.<br />

Há <strong>um</strong> excerto de <strong>um</strong>a carta famosa que exprime de forma<br />

insuperável a convicção de ser vítima do roubo sistemático das<br />

suas obras e ideias: “Formaram-me expressamente para lhes<br />

proporcionar ideias, sabendo que eles têm <strong>um</strong>a imaginação<br />

nula. Estou na situação de <strong>um</strong>a couve roída pelas lagartas; à<br />

medida que me cresce <strong>um</strong>a folha, eles comem-na.” [16]<br />

Esta ideação delirante de prejuízo implicava que a escultora<br />

tinha convicção absoluta de que estas pessoas agiam deliberadamente<br />

para a prejudicar. O delírio tinha as características<br />

típicas da Perturbação Delirante Crónica pois era <strong>um</strong> delírio<br />

bem construído, plausível e aparentemente consistente interiormente<br />

(em termos lógicos), bem sistematizado e hierarquizado.<br />

Quando falamos que o delírio é plausível ou que tem<br />

aparência lógica, estamos a querer dizer que não é absurdo e<br />

que, portanto, não insulta a nossa inteligência a ideia de que<br />

Rodin tentasse apropriar-se das obras da escultora ou que a<br />

tentasse prejudicar na sua carreira profissional ao considerá-la<br />

<strong>um</strong>a rival. É esta plausibilidade que faz com que os doentes que<br />

sofrem deste quadro passem frequentemente desapercebidos<br />

durante muito tempo para as pessoas com quem convivem, e<br />

até possam convencer ou “contagiar” os outros da realidade<br />

dos seus delírios.<br />

Esta perturbação foi denominada classicamente de Paranóia,<br />

mas este termo parece implicar que o conteúdo das ideias de-<br />

lirantes é persecutório em todos os casos, o que nem sempre<br />

é certo, pois as ideias delirantes podem ter outro conteúdo<br />

(grandiosidade, erotomaníaco, celotípico ou somático). No<br />

entanto, é verdade que o subtipo persecutório de Perturbação<br />

Delirante Crónica, do qual sofria <strong>Camille</strong> <strong>Claudel</strong>, é o mais<br />

frequente, e aplica-se, segundo a DSM-IV-TR, quando o tema<br />

central do delírio envolve, como no caso que nos ocupa, a<br />

crença de que o sujeito é objecto de <strong>um</strong>a conspiração, fraude,<br />

espionagem, perseguição, envenenamento, calúnia odiosa,<br />

assedio ou obstrução nos seus objectivos a longo prazo”. [17]<br />

Kraepelin, a quem devemos a nossa visão nosológica dos quadros<br />

psicóticos, definiu a psicose delirante crónica ou paranóia<br />

como “<strong>um</strong> delírio sistematizado, quer dizer, <strong>um</strong> sistema delirante<br />

coerente e lógico, de desenvolvimento insidioso, evolução<br />

crónica e irreversível (…) que se acompanha de clareza e ordem<br />

na consciência, no pensamento e no comportamento”. [18]<br />

Para completar o perfil autónomo da paranóia face aos outros<br />

distritos nosológicos, Kraepelin destacava a “impermeabilidade<br />

do sistema paranóico face às influências psicológicas.” [19]<br />

Segundo a DSM-IV-TR, a característica essencial da Perturbação<br />

Delirante é a presença de <strong>um</strong>a ou mais ideias delirantes não<br />

bizarras que persistem de forma crónica, associadas com a ausência<br />

dos sintomas típicos da esquizofrenia (por exemplo, as<br />

alucinações auditivas ou visuais, que, se estiverem presentes,<br />

não devem ser dominantes), e a preservação do funcionamento<br />

psicossocial e do comportamento, que não deve ser muito<br />

estranho ou bizarro. Quando está presente na Perturbação<br />

Delirante <strong>um</strong> reduzido funcionamento psicossocial, como no<br />

caso em apreço, este surge como consequência das próprias<br />

crenças delirantes. Da mesma forma, <strong>um</strong>a característica com<strong>um</strong><br />

nos sujeitos com Perturbação Delirante Crónica é a sua<br />

aparente normalidade de comportamento e aparência quando<br />

as ideias delirantes não estão a ser discutidas. [20]<br />

A classificação das ideias delirantes como bizarras é especialmente<br />

importante na distinção entre Perturbação Delirante Crónica<br />

e Esquizofrenia. As ideias delirantes são bizarras se forem<br />

claramente implausíveis, não compreensíveis e não dedutíveis<br />

das experiências vivenciais habituais (por exemplo, crença de<br />

que <strong>um</strong> estranho retirou os órgãos internos e os substituiu por<br />

outros, sem deixar feridas ou cicatrizes). Pelo contrário, as<br />

ideias delirantes não bizarras envolvem situações que, como<br />

no caso de <strong>Camille</strong>, podem ocorrer na vida real (por exemplo,<br />

ser perseguido, injustiçado, envenenado, infectado, amado à<br />

distância ou enganado pelo cônjuge ou amante). [21]<br />

49

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!