Kléos, Revista de Filosofia Antiga - Programa de Estudos em ...
Kléos, Revista de Filosofia Antiga - Programa de Estudos em ...
Kléos, Revista de Filosofia Antiga - Programa de Estudos em ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
É POSSÍVEL SER CORAJOSO E JUSTO SEM SER SÁBIO?<br />
i<strong>de</strong>ntitários. Posso efetivamente afirmar, quanto aos “pacotes” <strong>de</strong> canais<br />
televisivos enviados, pelo cabo ou pelo satélite, que “é necessário que possuamos<br />
todos eles <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tenhamos um”. N<strong>em</strong> por isso eu afirmo que Paris<br />
Pr<strong>em</strong>ière é idêntico a Cinétoile, ou LCI a RMC. Do mesmo modo, o que faz um<br />
bom carro é certamente sua potência, mas é também seu conforto, sua segurança<br />
e seu aspecto econômico. Em outras palavras, é um conjunto <strong>de</strong> canais<br />
que compõe um pacote, é um conjunto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s técnicas que faz um bom<br />
carro. Assim se dá com a corag<strong>em</strong>, a t<strong>em</strong>perança, a justiça, a sabedoria e a<br />
pieda<strong>de</strong>, que constitu<strong>em</strong> esse todo que <strong>de</strong>nominamos “virtu<strong>de</strong>”, e que o constitu<strong>em</strong><br />
não <strong>em</strong> razão <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> sua intercambialida<strong>de</strong> mas <strong>de</strong> sua<br />
inseparabilida<strong>de</strong> 35 .<br />
Assim fica patente que, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ou inseparabilida<strong>de</strong>, a posição <strong>de</strong><br />
Platão no livro IV da República (é possível ser t<strong>em</strong>perante e justo s<strong>em</strong> ser corajoso;<br />
é possível ser corajoso s<strong>em</strong> ser sábio) parece b<strong>em</strong> distante da <strong>de</strong> Sócrates.<br />
Resta saber o que realmente diz Platão na passag<strong>em</strong> evocada pelos<br />
comentadores. Trata-se, l<strong>em</strong>bramo-nos, <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> se encontrar<br />
a justiça na cida<strong>de</strong> que acaba <strong>de</strong> ser estabelecida, on<strong>de</strong> encontrar a injustiça,<br />
o que diferencia uma da outra e qual das duas é preciso obter para ser feliz<br />
(427d). É portanto a partir <strong>de</strong> 427d que a resposta para essa questão (a natureza<br />
da justiça) começa a ser t<strong>em</strong>atizada, e isso por meio <strong>de</strong> uma virada<br />
argumentativa tão eficaz quanto injustificada à primeira vista. Graças à<br />
reestruturação das funções sociais e ao projeto educativo que a sustenta, a<br />
nova cida<strong>de</strong> se tornará “perfeitamente boa” (agathé). Not<strong>em</strong>os que convém<br />
darmos aqui a esse termo toda a extensão s<strong>em</strong>ântica que lhe é própria, que vai<br />
dos valores tradicionais da eficiência político-militar a uma acepção propriamente<br />
moral. Daí, <strong>de</strong> modo quase analítico e com o assentimento espontâneo<br />
do interlocutor, <strong>de</strong>corre imediatamente a afirmação segundo a qual na medida<br />
<strong>em</strong> que for “boa” uma cida<strong>de</strong> será sábia, corajosa, mo<strong>de</strong>rada e justa (427e). Três<br />
coisas <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser sublinhadas s<strong>em</strong> <strong>de</strong>longas.<br />
Em primeiro lugar, não estamos diante <strong>de</strong> uma lista das quatro “virtu<strong>de</strong>s<br />
car<strong>de</strong>ais”, mas <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s inerentes a uma cida<strong>de</strong> “boa”, como<br />
prova a forma adjetiva dos termos; <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> se falará apenas mais tar<strong>de</strong><br />
(432b, 433d), e ainda assim no singular.<br />
Segunda observação: a lista das virtu<strong>de</strong>s que encontramos na Re-<br />
35<br />
Sobre a inseparabilida<strong>de</strong> das virtu<strong>de</strong>s que está no fundamento <strong>de</strong> sua unida<strong>de</strong>, cf. VLASTOS, 1994, p. 109-126.<br />
K LÉOS N.5/6: 9-22, 2001/2<br />
16