Interações biomecânicas entre a organização postural ... - Fiocruz
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<strong>Interações</strong> <strong>biomecânicas</strong> <strong>entre</strong> a <strong>organização</strong><br />
<strong>postural</strong> global e a respiração: um olhar ampliado<br />
sobre a fisioterapia dirigida a crianças com doença<br />
respiratória<br />
Renata Ungier<br />
Rio de Janeiro, 2005
<strong>Interações</strong> <strong>biomecânicas</strong> <strong>entre</strong> a <strong>organização</strong> <strong>postural</strong><br />
global e a respiração: um olhar ampliado sobre a<br />
fisioterapia dirigida a crianças com doença respiratória<br />
Renata Ungier<br />
Orientadoras: Prof a Dr a Susana Maciel Wuillaume<br />
Prof a Dr a Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso<br />
Co-orientadora: Prof a Moana Cabral de Castro Mattos<br />
Dissertação apresentada ao programa de pós-<br />
graduação em saúde da criança e da mulher<br />
IFF/FIOCRUZ, como exigência parcial para<br />
obtenção do título de mestre.<br />
Rio de Janeiro, 2005
Para os protagonistas da<br />
minha história
Agradecimentos<br />
Ao meu marido Alexandre, por suportar, com inabalável bom humor, os fins<br />
de semana perdidos, as crises de ansiedade e a luz acesa de madrugada,<br />
fornecendo a base de carinho e segurança que me permitiram chegar até aqui.<br />
Aos meus pais Celso e Aida, por despertarem, em mim, desde criança, o<br />
encanto pelos livros e por estarem sempre aplaudindo na primeira fila.<br />
Ao meu irmão Thiago, por ser uma fonte inesgotável de amizade e por não<br />
desistir de me convidar para sair nos fins de semana, mesmo recebendo respostas<br />
sistematicamente negativas. Também à sua namorada Lia, por formar conosco um<br />
quarteto tão divertido...<br />
À minha orientadora, Profa. Dra. Susana Wuillaume, por me conduzir do mar<br />
aberto das idéias desordenadas para o rio navegável da produção acadêmica. E<br />
também ao Claude, pela participação ativa e pela acessoria tecnológica!<br />
À minha orientadora Profa. Dra. Maria Helena Cardoso, por compartilhar o<br />
gosto por um bordado bem acabado e pelo carinho maternal com que corrigiu meus<br />
arremates.<br />
À minha co-orientadora Profa. Moana Cabral, com quem tive o prazer e o<br />
privilégio de discutir a fisioterapia, e que compartilha comigo a idéia de que nossa<br />
atuação pode ser uma tarefa bastante divertida...<br />
Ao meu primo, irmão, amigo Kiko, por estar presente sempre que precisei.<br />
Aos meus tios Dagoberto e Maria da Graça e aos meus primos, Fernanda (e<br />
Léo) e Filipe, pelo eterno incentivo e por ajudarem a tornar a família, para mim, um<br />
gênero de primeira necessidade...
Ao querido grupo do “Mega-Terê”, pela segurança das amizades e por me<br />
proporcionar intervalos de diversão em meio a tanto trabalho!<br />
Às amigas Babi, Aninha, Pat e Moa (de novo!), por dividirem alegrias,<br />
tristezas, sucessos e aflições ao longo do percurso. Enfim, a todos os “parentes”, de<br />
sangue ou do coração.<br />
À Nicinha, por ser uma segunda mãe.<br />
À Profa. Márcia Castro, por acreditar no meu trabalho e iniciar comigo a<br />
parceria <strong>entre</strong> abordagens fisioterapêuticas que originou esta pesquisa.<br />
Aos colegas fisioterapeutas com quem tive a honra de trabalhar no<br />
Ambulatório de Fisioterapia Respiratória do IFF.<br />
À Dra. Márcia Boechat, Dr. Paulo Roberto Boechat e Dr. Pedro Daltro, pela<br />
valiosa ajuda prestada.<br />
percorridos.<br />
À família Zucchi - Castiel, pelo incentivo e pelo carinho.<br />
Aos professores da pós-graduação, que me mostraram caminhos nunca antes<br />
Aos colegas de turma do mestrado, com quem naveguei no mesmo barco.<br />
Aos profissionais da secretaria de ensino do IFF, por tornarem simples e ágil<br />
o que, muitas vezes, é lento e árduo.<br />
À Capes, pelo financiamento desta pesquisa.<br />
Aos meus professores Godelieve Denys-Struyf, Marie-Madeleine Béziers (in<br />
memorium), Philippe Campignion, Yva Hussinger, Ivaldo Bertazzo e todos os outros,<br />
do I.C.T.G.D.S. e do Centro Brasileiro de Cadeias Musculares, pela transmissão do<br />
conhecimento que me construiu como profissional.<br />
Aos meus pacientes, por me permitirem concretizar minhas convicções.
Resumo<br />
A partir de uma fundamentação teórica que evidencia a íntima relação <strong>entre</strong> a<br />
<strong>organização</strong> <strong>postural</strong> global e a mecânica da respiração, esta pesquisa busca<br />
discutir a relevância de uma abordagem fisioterapêutica que contemple a totalidade<br />
do sistema locomotor da criança com doença respiratória. Para tanto, procedeu-se<br />
ao estudo narrativo do tratamento de quatro meninos com síndrome de prune belly,<br />
dentro de um modelo inovador a que chamamos “dupla abordagem” (na mesma<br />
ocasião, cada criança recebia, concomitantemente, atendimento fisioterapêutico<br />
<strong>postural</strong> e respiratório).<br />
A opção por uma metodologia qualitativa se justifica pela valorização dos<br />
aspectos sociais e psico-comportamentais que, necessariamente, interferem no<br />
processo de tratamento, permitindo perceber como uma abordagem centrada no<br />
vínculo <strong>entre</strong> terapeuta e paciente e na presença do caráter lúdico viabilizou a<br />
adesão espontânea das crianças à terapia.<br />
Este trabalho se situa no contexto da “nova saúde pública”, corroborando com<br />
os princípios da integralidade e distanciando-se do paradigma biomédico<br />
mecanicista e reducionista, pela valorização das subjetividades e singularidades<br />
inerentes a cada paciente. Os resultados satisfatórios obtidos com os pacientes<br />
deste estudo apontam para a relevância da construção de um modelo ampliado de<br />
fisioterapia, que vise problematizar o papel deste profissional no âmbito da saúde<br />
coletiva e lance luz sobre sua responsabilidade, não apenas quanto à melhora do<br />
quadro pulmonar, mas no que diz respeito à promoção da autonomia e da qualidade<br />
de vida da criança com doença respiratória.
Abstract<br />
From a theoretical background which supports the close relation between<br />
global <strong>postural</strong> organization and breathing mechanics, the present study discusses<br />
the relevance of a physiotherapeutic approach which comprehends the totality of the<br />
locomotor system of children with breathing disorders. To this purpose, this study<br />
investigates the treatment of four children with prune belly syndrome from the<br />
perspective of an innovative model we have called “double approach”, which implies<br />
that each child received at the same time <strong>postural</strong> and respiratory physiotherapeutic<br />
treatment.<br />
The option for a qualitative approach is justified due to the fact that it covers<br />
social and psycho-behavioural aspects which necessarily interfere with the treatment.<br />
In addition, such methodological paradigm allows the perception of how an approach<br />
centered on the link between therapist and patient and in the ludic aspect has made<br />
the children spontaneously adhere to therapy.<br />
This work is situated in the context of a “new public health system”, in line with<br />
the principles of integrality and distancing itself from a reductionist and mechanistic<br />
biomedical paradigm. It also values subjectivities and the uniqueness of each patient.<br />
The satisfactory results obtained with the patients of the present study point towards<br />
the relevance of the construction of an expanded model of physiotherapy, aiming at<br />
questioning the role of such professional in the area of public health and focusing on<br />
their responsibility as regards not only the improvement of lung function but also the<br />
promotion of the autonomy and the life quality of children with respiratory disease.
Lista de figuras Pág.<br />
Figura 1: Musculatura ventral do tórax e do abdômen, face interna .......................... 5<br />
Figura 2: Cavidade torácica, diafragma, musculatura lombar e pelve, vista ventral .. 6<br />
Figura 3: O equilíbrio tóraco-abdominal a partir da relação <strong>entre</strong> os três diafragmas 12<br />
Figura 4: As tipologias de Godelieve Denys-Struyf e as cadeias musculares<br />
correspondentes ......................................................................................................... 28<br />
Figura 5: Esquema da relação das atitudes posturais descritas por Denys-Struyf<br />
com a linha da gravidade ........................................................................................... 29<br />
Figura 6: Direções das torções ósseas nos membros inferiores e músculos<br />
condutores .................................................................................................................. 58<br />
Figura 7: Tipologia com predominância da cadeia póstero-mediana, evidenciando<br />
horizontalização do esterno e do sacro e trabalho em corda de arco dos para-<br />
vertebrais .................................................................................................................... 77
Lista de fotografias Pág.<br />
Foto 1: Alongamento dos músculos pelvi-trocanterianos - “O Caracol” ...................... 56<br />
Foto 2: Mobilização das articulações coxofemorais e alongamento da musculatura<br />
periarticular – “Borboleta voa” ..................................................................................... 57<br />
Foto 3: Associação do alongamento da musculatura paravertebral – “A borboleta<br />
dormiu” ......................................................................................................................... 58<br />
Foto 4: Exercício abdominal (“elevador”) ..................................................................... 60<br />
Foto 5: “Elevador” - detalhe da <strong>organização</strong> dos braços para facilitação do trabalho<br />
abdominal .................................................................................................................... 60<br />
Foto 6: Exercício de ereção da coluna vertebral: A “marionete” desmontou ............... 62<br />
Foto 7: Kiko, vista anterior, março de 2001 ................................................................. 75<br />
Foto 8: Kiko, perfil direito, março de 2001 ................................................................... 75<br />
Foto 9: Abordagem lúdica, fevereiro de 2002 .............................................................. 84<br />
Foto10: Kiko, radiografia do quadril em vista antero-posterior (AP), junho de 2002 ... 85<br />
Foto 11: Kiko, vista anterior, agosto de 2003 .............................................................. 87<br />
Foto 12: Kiko, agosto de 2003, observação da cintura escapular e pescoço ............. 87<br />
Foto 13: Kiko tem dificuldades com o exercício do “elevador” .................................... 88<br />
Foto 14: Dificuldade na adaptação da cinta elástica ................................................... 89<br />
Foto 15: Léo sentado, sem conseguir cruzar as pernas, março de 2001 .................... 96<br />
Foto 16: Léo brinca sentado, março de 2001 .............................................................. 96
Foto 17: Léo, vista posterior, março de 2001 .............................................................. 97<br />
Foto 18: Léo, vista posterior, março de 2001 .............................................................. 97<br />
Foto 19: Léo, perfil, março de 2001 ............................................................................. 98<br />
Foto 20: Léo em “posição de brincadeira” e de perfil, novembro de 2001 .................. 101<br />
Foto 21: Léo em “posição de brincadeira” e de perfil, novembro de 2001 .................. 101<br />
Foto 22: Léo mobiliza sua articulação coxofemoral, novembro de 2001 ..................... 101<br />
Foto 23: Léo alonga sua cadeia póstero-mediana, setembro de 2003 ....................... 102<br />
Foto 24: Radiografia do quadril de Léo, evidenciando displasia bilateral de cabeças<br />
femorais e acetábulos, maio de 2002 .......................................................................... 103<br />
Foto 25: Léo sentado, julho de 2003 ........................................................................... 106<br />
Foto 26: Léo, vista posterior, julho e setembro de 2003 .............................................. 107<br />
Foto 27: Léo, vista posterior, julho e setembro de 2003 .............................................. 107<br />
Foto 28: Léo, perfil, julho de 2003 ............................................................................... 107<br />
Foto 29: Thiago, maio de 2001 .................................................................................... 115<br />
Foto 30: Thiago de pé, novembro de 2001 .................................................................. 116<br />
Foto 31: Thiago, radiografia do quadril em vista ântero-posterior (AP), outubro de<br />
2001 ............................................................................................................................. 117<br />
Foto 32: Thiago realiza exercícios de mobilização e alongamento, agosto de 2003 .. 119<br />
Foto 33: Thiago realiza exercícios de mobilização e alongamento, agosto de 2003 .. 119<br />
Foto 34: Thiago, vistas posterior e anterior, agosto de 2003 ...................................... 121<br />
Foto 35: Thiago, vistas posterior e anterior, agosto de 2003 ...................................... 121<br />
Foto 36: Thiago, perfil, agosto de 2003 ....................................................................... 121<br />
Foto 37: Alex, fevereiro de 2002 .................................................................................. 124<br />
Foto 38: Alex, fevereiro de 2002 .................................................................................. 124
Foto 39: Alex, decúbito dorsal, fevereiro de 2002 ....................................................... 131<br />
Foto 40: Alex sentado, perfil, fevereiro de 2002 .......................................................... 132<br />
Foto 41: Alex de pé, perfil, fevereiro de 2002 .............................................................. 132<br />
Foto 42: Radiografia do quadril de Alex, junho de 2002 .............................................. 133<br />
Foto 43: Alex de pé, vista frontal, setembro de 2003 .................................................. 135<br />
Foto 44: Alex, exercício da “borboleta”, setembro de 2003 ......................................... 136<br />
Foto 45: Alex, exercício da “borboleta”, setembro de 2003 ......................................... 136
Lista de siglas<br />
ACBT – Ciclo ativo de técnicas respiratórias<br />
AIG – adequado para a idade gestacional<br />
AL – [cadeia] ântero-lateral<br />
AM - [cadeia] ântero-mediana<br />
AP - [cadeia] ântero-posterior<br />
DC – defeitos congênitos<br />
G.D.S. – Godelieve Denys-Struyf<br />
IFF – Instituto Fernandes Figueira<br />
IPG/CF – Grupo Internacional de Fisioterapia / Fibrose Cística<br />
ITU – infecção do trato urinário<br />
PA - [cadeia] póstero-anterior<br />
PL - [cadeia] póstero-lateral<br />
PM - [cadeia] póstero-mediana<br />
SPB – síndrome de prune belly<br />
TEF – técnica de expiração forçada<br />
UPG – unidade de pacientes graves
Sumário Pág.<br />
Introdução .................................................................................................................. xvii<br />
Parte 1 – Considerações Teóricas ............................................................................. 1<br />
Capítulo 1 - Considerações sobre a biomecânica tóraco-abdominal e sua relação<br />
com a atitude <strong>postural</strong> global .................................................................................. 2<br />
1. 1 - Considerações anatômicas ........................................................................ 3<br />
1. 2 - Considerações <strong>biomecânicas</strong> sobre a respiração ..................................... 6<br />
1. 3 - <strong>Interações</strong> <strong>biomecânicas</strong> ........................................................................... 12<br />
1. 4 - Considerações sobre a <strong>organização</strong> <strong>postural</strong> global ................................. 21<br />
Capítulo 2 - Considerações sobre a abordagem fisioterapêutica <strong>postural</strong> ............. 33<br />
Capítulo 3 – Considerações sobre a síndrome de prune belly ............................... 44<br />
3.1 – Etiologia e patogênese ............................................................................... 45<br />
3.2 – Aspectos motores e respiratórios ............................................................... 48<br />
Parte 2 - Narrativa do tratamento fisioterapêutico de quatro crianças portadoras de<br />
síndrome de prune belly ............................................................................................. 52<br />
Capítulo 4 – A conduta fisioterapêutica direcionada a portadores de síndrome de<br />
prune belly no IFF ................................................................................................... 53<br />
4. 1 - A abordagem <strong>postural</strong> ................................................................................ 54<br />
4. 2 - A abordagem respiratória .......................................................................... 63<br />
Capítulo 5 - Borrachinha, não! ................................................................................ 71<br />
5. 1 – Breve história clínica ................................................................................. 71<br />
5. 2 - Vou contar uma história! ............................................................................ 73<br />
Capítulo 6 - Ele faz sozinho .................................................................................... 91<br />
6. 1 – Breve história clínica ................................................................................. 93
6. 2 - Eu solto pipa, sabia? .................................................................................. 94<br />
Capítulo 7 - Com a tia rê, eu brinco ........................................................................ 109<br />
7. 1 - Breve história clínica .................................................................................. 110<br />
7. 2 - Canta, tia, canta! ........................................................................................ 113<br />
Capítulo 8 – A casa da tia Rê ................................................................................. 124<br />
8. 1 - Breve história clínica .................................................................................. 127<br />
8. 2 - Estava com saudades ................................................................................ 130<br />
Conclusão .................................................................................................................. 138<br />
Referências Bibliográficas .......................................................................................... 142<br />
Anexos ....................................................................................................................... 159<br />
Anexo 1 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ....................................... 160
“(...) Respirar, em toda a plenitude, já é dançar.”<br />
“(…) Respirer dans toute la plenitude, c’est déjà danser.”<br />
Denys-Struyf, 1985<br />
FICHA CATALOGRÁFICA NA FONTE<br />
CENTRO DE INFORMAÇÃO CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA<br />
BIBLIOTECA DO INSTITUTO FERNANDES FIGUEIRA
INTRODUÇÃO<br />
U57i Ungier , Renata<br />
<strong>Interações</strong> <strong>biomecânicas</strong> <strong>entre</strong> a <strong>organização</strong> <strong>postural</strong> global e a<br />
respiração: um olhar ampliado sobre a fisioterapia dirigida a crianças<br />
com doença respiratória / Renata Ungier . - 2005.<br />
xxxiii, 161f.<br />
Dissertação (Mestrado em Saúde da Criança e da Mulher)-Instituto<br />
Fernandes Figueira, Rio de Janeiro , 2005.<br />
Orientadoras : Wuillaume , Susana Maciel<br />
Cardoso, Mª Helena Cabral de Almeida<br />
1. Fisioterapia (Especialidade). 2. Postura. 3. Respiração. 4. Síndrome<br />
de Prune Belly. I .Título.<br />
CDD -20ªed - 615.82<br />
A criança com doença respiratória demanda, em geral, cuidados que não se restringem<br />
à atuação do médico. A fisioterapia respiratória tem contribuído significativamente para a<br />
redução da morbidade de tais casos e para a melhora de sua qualidade de vida.<br />
Abordagens fisioterapêuticas mais globais, <strong>entre</strong>tanto, vêm se mostrando efetivas, não<br />
apenas no sentido do reequilíbrio do aparelho locomotor do paciente, mas também da<br />
potencialização dos resultados benéficos alcançados pela abordagem respiratória.<br />
A respiração inclui essencialmente dois aspectos: visceral e biomecânico. A medicina<br />
e a fisioterapia respiratória se ocupam primordialmente da questão visceral (remoção de<br />
secreções, trocas gasosas, volumes pulmonares, etc.). Entretanto, a fisiologia respiratória
depende igualmente de uma mecânica satisfatória, dado que o jogo pressórico e as<br />
possibilidades de expansão dos pulmões estão ligados a mecanismos ósteo-mio-articulares,<br />
notadamente a mobilidade da caixa torácica e o equilíbrio da musculatura especificamente<br />
envolvida na respiração (Souchard, 1989; West, 1996).<br />
Por outro lado, a biomecânica da caixa torácica não funciona de maneira isolada. Ela<br />
está inserida na mecânica corporal global. Todos os músculos do corpo humano estão ligados<br />
<strong>entre</strong> si através das fáscias e aponeuroses, que os ligam também ao esqueleto, às vísceras e<br />
aos demais tecidos. Estas fáscias e aponeuroses agrupam os músculos em cadeias, que<br />
interagem continuamente em cada articulação do corpo. Assim, no momento em que um<br />
desequilíbrio muscular desorganiza determinado segmento corporal, esta des<strong>organização</strong> se<br />
estenderá necessariamente ao sistema locomotor em sua globalidade (Bienfait, 1989; Denys-<br />
Struyf, 1997; Souchard, 1989). Desta forma, entende-se que a atuação sobre a mecânica<br />
respiratória não pode se desvincular de uma abordagem sobre a <strong>organização</strong> da totalidade do<br />
corpo, assim como uma interferência sobre disfunções ósteo-musculares em regiões<br />
periféricas pode produzir efeitos benéficos sobre o equilíbrio global, aí incluída a respiração.<br />
Da mesma maneira, um acometimento respiratório altera inevitavelmente sua mecânica, o que<br />
trará reflexos sobre a <strong>organização</strong> global.<br />
Tais conceitos encontram um paralelo na concepção de uma proposta integrada de<br />
saúde, em que o aspecto reducionista e fragmentário do tradicional modelo biomédico dá<br />
lugar a uma valorização da totalidade do indivíduo, não apenas no que tange à sua<br />
subjetividade e singularidade, mas também no que diz respeito à não divisão do corpo em<br />
partes isoladas. Esta perspectiva se situa no contexto de promoção de saúde da “nova saúde<br />
pública”, em que a questão da autonomia e da integralidade ocupam lugar de destaque. Ao<br />
ampliar o campo da saúde a um universo que abrange elementos físicos e psico-sociais,<br />
levando em conta a globalidade e voltando sua atenção para a qualidade de vida (e não mais
somente para a erradicação das doenças), o debate da promoção da saúde se insere na<br />
conjuntura da transição paradigmática, na tentativa de criar um marco teórico que abra espaço<br />
para possibilidades inovadoras de atendimento (Czeresnia, 2003; Mattos, 2001; Paim e<br />
Almeida Filho, 2000).<br />
A questão da integralidade, no que diz respeito às práticas da fisioterapia no âmbito da<br />
saúde coletiva, foi amplamente discutida no VII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva<br />
(2003). Entre os problemas levantados, pode-se destacar:<br />
“(...) o acesso universal ainda não garantido na maioria das experiências<br />
relatadas, nítidas limitações para atender o princípio da integralidade da<br />
atenção à saúde, devido à carência de profissionais para compor equipes de<br />
trabalho, dificuldade do trabalho interdisciplinar, <strong>entre</strong> outras, além das<br />
limitações políticas da categoria que se refletem em entidades<br />
representativas com escasso poder de negociação” (p. 3).<br />
Ainda assim, o encontro apontou caminhos para a consolidação da figura do<br />
fisioterapeuta no cenário da equipe de saúde, apostando em modificações no processo de<br />
formação do profissional, em uma participação mais ativa na gestão dos serviços e em uma<br />
postura de maior interação <strong>entre</strong> os diversos profissionais e em relação aos órgãos<br />
governamentais e às entidades representativas das demais disciplinas da área da saúde.<br />
Tendo em vista um conceito ampliado de assistência, foi iniciado, em fevereiro de<br />
2001, no Ambulatório de Fisioterapia Respiratória do Instituto Fernandes Figueira (IFF) – Rio<br />
de Janeiro, um trabalho de associação de duas abordagens fisioterapêuticas em crianças e<br />
adolescentes com asma, fibrose cística e síndrome de prune belly (SPB), <strong>entre</strong> outras doenças.<br />
A observação de tais pacientes permite verificar claramente a íntima relação <strong>entre</strong> a questão<br />
<strong>postural</strong> e o acometimento respiratório propriamente dito, fato que motivou a realização deste<br />
estudo. Seu acompanhamento, de 2001 a 2003, vem mostrando a efetividade da associação
<strong>entre</strong> as abordagens fisioterapêuticas <strong>postural</strong> e respiratória no cuidado de crianças e<br />
adolescentes com enfermidades que, direta ou indiretamente, acometem a respiração.<br />
A SPB foi escolhida para exemplificar as questões aqui discutidas, por ser uma doença<br />
em que o acometimento respiratório é secundário a um distúrbio do sistema locomotor<br />
(agenesia / hipoplasia da musculatura abdominal), como se poderá verificar no capítulo 3 (pp.<br />
44), o que a torna de certo modo emblemática no âmbito desta pesquisa. Nestes casos<br />
específicos, a questão ósteo-muscular se mostrava particularmente evidente, refletida não<br />
somente no atraso no desenvolvimento motor dos pacientes, mas também na des<strong>organização</strong><br />
<strong>postural</strong> que se instalava a partir do momento em que conquistavam a posição sentada, o<br />
ortostatismo ou a marcha (Burns, 1999; Hausdorff et al., 1999; Okamoto et al., 2003). Tais<br />
dificuldades parecem ser devidas a desequilíbrios musculares encontrados não apenas na<br />
região diretamente atingida pela doença, mas também possivelmente nos demais segmentos<br />
corporais. A abordagem fisioterapêutica <strong>postural</strong> se faz então indubitavelmente necessária, no<br />
sentido de promover a reestruturação corporal global de tais crianças, além de criar condições<br />
favoráveis para a atuação da abordagem respiratória. Cabe ressaltar que a otimização da<br />
<strong>organização</strong> psicomotora destes pacientes contribui sobremaneira para a construção de sua<br />
autonomia, corroborando com a perspectiva da integralidade. Valenzuela e Benguigui (1997)<br />
ponderam que:<br />
“Dado que os enfoques convencionais no setor de saúde se concentram na<br />
doença, o conceito de desenvolvimento integral da criança pode representar<br />
uma oportunidade única para nos aproximarmos de uma concepção positiva<br />
da saúde (...)”. (p. 45).<br />
Horovitz (2003) chama a atenção para a carência de estratégias específicas nas<br />
políticas públicas direcionadas a crianças com defeitos congênitos (DC). Sua percepção é de<br />
que:
“No contexto atual do SUS, com a municipalização radical da gestão da<br />
saúde, é pouco provável que seja possível atender à questão dos DC de<br />
forma integrada. Para a efetivação de um sistema de atenção voltado aos DC<br />
deverá ser formulada política específica, de âmbito nacional, que inclua<br />
mecanismos de financiamento diferentes dos atualmente utilizados. Apenas<br />
com a participação ativa do Ministério de Saúde, utilizando como espinha<br />
dorsal os serviços de genética existentes, será possível a estruturação de uma<br />
rede regionalizada, hierarquizada e funcional voltada à atenção aos defeitos<br />
congênitos no Brasil” (resumo).<br />
Os avanços tecnológicos e a evolução da medicina e da própria<br />
fisioterapia respiratória vêm progressivamente reduzindo a morbi-<br />
mortalidade das mais diversas doenças, trazendo para a saúde pública<br />
uma importante discussão: como garantir aos “sobreviventes” uma<br />
qualidade de vida satisfatória? A questão músculo-esquelética não deve<br />
ser negligenciada no que tange às doenças que acometem a respiração,<br />
em especial à síndrome de prune belly. O funcionamento satisfatório do<br />
aparelho locomotor é fator determinante para a boa função respiratória e<br />
motora dos pacientes acometidos, contribuindo decisivamente para a<br />
melhora de sua qualidade de vida. É neste debate que se pode<br />
vislumbrar a possibilidade de um modelo ampliado de fisioterapia, no<br />
qual a interação <strong>entre</strong> abordagens distintas, como a <strong>postural</strong> e a<br />
respiratória, possam propiciar ao paciente não apenas a sobrevida, mas<br />
condições de viver com funcionalidade, autonomia e prazer.<br />
Assim, as relações existentes <strong>entre</strong> a <strong>organização</strong> global do aparelho locomotor da<br />
criança e a mecânica respiratória constituem o objeto deste estudo, visando permitir a
discussão do intercâmbio <strong>entre</strong> abordagens de tratamento, dentro do campo da fisioterapia.<br />
Tal debate convida a problematizar o papel do fisioterapeuta no âmbito da saúde pública, em<br />
especial no que diz respeito à assistência à criança que sofre de doença respiratória.<br />
No que concerne especificamente a este objeto de estudo, a literatura mundial não é<br />
muito abundante. De fato, uma busca na PubMed / Medline, por exemplo, com termos como<br />
posture, respiration ou biomechanics, embora forneça um grande número de artigos, não<br />
contribui de forma tão significativa com fontes efetivamente úteis para esta pesquisa, por<br />
oferecer trabalhos majoritariamente referentes a assuntos como, por exemplo, posicionamento<br />
(no caso da palavra-chave posture), cirurgias ortopédicas e implantação de próteses (no caso<br />
de biomechanics) e aspectos da respiração que não incluem a questão músculo-esquelética,<br />
sem mencionar aqueles que tratam de pesquisas em animais (cuja biomecânica difere bastante<br />
da humana, especialmente no que diz respeito aos quadrúpedes) e com pacientes idosos. A<br />
pesquisa nas bases de dados virtuais, então, termina por se configurar como uma espécie de<br />
“garimpo”.<br />
Quanto a abordagens mais globais em termos de postura, não restam dúvidas de que<br />
uma riqueza muito maior de material pode ser encontrada nos livros, ao invés dos periódicos.<br />
As décadas de 60 e 70 do século XX presenciaram o aparecimento de inúmeros métodos<br />
terapêuticos que transitam na fronteira da fisioterapia, da psicologia e das artes,<br />
caracterizando-se primordialmente pela proposta globalista e pela ênfase na conscientização<br />
corporal e participação ativa do paciente no processo terapêutico (Russo, 1993). Embora<br />
nunca tenham passado por processos de validação dentro dos padrões científicos clássicos,<br />
alguns destes métodos, assim como seus derivados, norteiam a prática fisioterapêutica atual,<br />
em especial as técnicas posturais. É o caso, por exemplo, das Cadeias Musculares de<br />
Godelieve Denys-Struyf (1997); das técnicas de Françoise Mézières (relatadas por Denys-<br />
Struyf em 1996, <strong>entre</strong> outros autores); da Reeducação Postural Global de Philippe-Emmanuel
Souchard (2001); da Coordenação Motora de Piret e Béziers (1992); das pesquisas de Rudolf<br />
Laban (1978); da Consciência pelo Movimento de Moshe Feldenkrais (1988, 1994); da<br />
Técnica de Alexander, de Mathias Alexander (1992); e da Eutonia de Gerda Alexander<br />
(1991). Tais autores não são encontrados na literatura científica tradicional, contudo sua<br />
contribuição é inegavelmente preciosa para o campo da fisioterapia. De fato, somente na<br />
década de 80 se inicia um movimento em direção a um maior rigor científico, que se reflete<br />
no ingresso de profissionais da área em programas de pós-graduação strictu-sensu e no<br />
surgimento incipiente de periódicos especializados. Bons exemplos são o Gait and Posture<br />
(indexado à Medline e editado desde 1993), o Manual Therapy (indexado à Medline) e o<br />
Journal for Bodywork and Movement Therapies (indexado ao Embase), estes últimos editados<br />
somente a partir de 2002, constituindo um dos poucos espaços onde se pode localizar artigos<br />
sobre os métodos supracitados. A exceção, em termos de longevidade, é a revista Physical<br />
Therapy, publicação oficial da American Physical Therapy Association desde 1921,<br />
verdadeiro “ícone” em termos de periódicos científicos em fisioterapia, que no entanto pouco<br />
contempla assuntos da área <strong>postural</strong> e dedica-se primordialmente à fisioterapia de adultos (o<br />
Pediatric Physical Therapy só começou a ser publicado em 1989).<br />
Por outro lado, importantes contribuições acerca das relações <strong>entre</strong> postura e<br />
respiração, notadamente sobre as funções dos músculos diafragma e transverso do abdômen<br />
nesta dinâmica, provêm das pesquisas conduzidas pelo fisioterapeuta Paul W. Hodges, na<br />
University of New South Wales, em Sidney – Austrália (Hodges, 1999; Hodges et al., 1997a,<br />
1997b, 2001a, 2001b ; Hodges e Gandevia, 2000a, 2000b; Hodges e Richardson, 1997, 1999).<br />
Outros pesquisadores, como Cholewicki et al. (1997, 1999a, 1999b, 2000a, 2000b, 2002a,<br />
2002b), Janda et al. (2003) e Lecoq et al. (2000), exploram a relação mecânica pélvico-<br />
torácica, acrescentando a esta discussão uma gama mais ampla de elementos. Periódicos<br />
como o Journal of Biomechanics e o Journal of Applied Physiology parecem ser os
“preferidos” pelos pesquisadores que lidam com este tipo de assunto. Um artigo de McGill et<br />
al. (2003) toca particularmente no papel da fisioterapia em relação a tais fatores. Não foi<br />
encontrado, todavia, nenhum trabalho que aborde a possibilidade de concomitância de<br />
diferentes abordagens fisioterapêuticas.<br />
No que tange às questões posturais especificamente envolvidas na SPB, a literatura é<br />
ainda mais escassa. Embora a busca na mesma base de dados, no mesmo período, proveja 224<br />
artigos para o termo prune belly, o resultado cai para somente um artigo se acrescentada a<br />
palavra-chave posture e quatro se esta for trocada para respiration, dos quais em apenas dois<br />
o assunto se aproxima das questões abordadas por esta pesquisa. De fato, ocorre uma absoluta<br />
predominância de abordagens dos aspectos urológicos e cirúrgicos, além de algum material<br />
tratando das questões respiratórias. D<strong>entre</strong> os poucos artigos e estudos que tratavam da área<br />
ortopédica, a abordagem limitava-se em geral às anormalidades congênitas associadas<br />
geralmente à síndrome, como luxação congênita de quadril, espinha bífida oculta, torcicolo<br />
congênito, etc. Mesmo a escoliose e o pectus excavatum são geralmente relatados como<br />
eventos apenas concomitantes, sem relação biomecânica direta com a agenesia muscular<br />
abdominal inerente à doença em questão (Brinker et al., 1995; Green et al., 1993; Loder et al.,<br />
1992). Entretanto, Lam e Mehdian (1999), autores do único artigo encontrado a tratar<br />
diretamente da postura na referida síndrome (apesar de consistir no relato do caso de um<br />
paciente adulto), consideram o desequilíbrio crônico da musculatura espinhal como possível<br />
responsável pela instalação de uma escoliose em casos de SPB. Não foi encontrado nenhum<br />
material que descreva alterações posturais adquiridas ao longo do desenvolvimento destes<br />
pacientes, relacionando-as aos distúrbios ósteo-musculares característicos.<br />
Dado que a observação dos pacientes com SPB, no IFF, demonstra que tais alterações<br />
estão presentes e, em alguns casos, surgem subseqüentemente à conquista do ortostatismo e
da marcha, torna-se importante estabelecer um panorama de tais distúrbios e de sua relação<br />
com a morfologia específica da síndrome.<br />
No contexto da saúde pública brasileira, é nítida a ausência da fisioterapia na literatura<br />
especializada. A busca na base de dados LILACS, com os termos fisioterapia AND saúde<br />
pública OR saúde coletiva só fornece dois artigos (Cecatto et al., 1992; Martins et al., 1999) e<br />
uma dissertação de mestrado (Camargo, 2001) de interesse para este estudo, apesar de mais<br />
ligados à fisioterapia de adultos, por discutirem o papel do fisioterapeuta na saúde pública,<br />
porém nenhum deles contempla a saúde coletiva. A busca na SCIELO não fornece resultados<br />
relevantes. A questão da possível complementaridade <strong>entre</strong> as abordagens <strong>postural</strong> e<br />
respiratória não consta de nenhum dos trabalhos encontrados, tema que deverá ser discutido<br />
nesta pesquisa com base no relato da experiência vivenciada no Ambulatório de Fisioterapia<br />
Respiratória do IFF.<br />
A íntima relação <strong>entre</strong> a <strong>organização</strong> global do sistema locomotor e a biomecânica<br />
respiratória permite assumir a hipótese de que a concomitância <strong>entre</strong> abordagens<br />
fisioterapêuticas distintas – <strong>postural</strong> e respiratória - seja de fundamental importância para a<br />
efetividade do tratamento de doenças que acometem a respiração da criança.<br />
Assim, esta pesquisa pretendeu atingir os seguintes objetivos:<br />
• Analisar a importância da intervenção <strong>postural</strong> sobre a função respiratória.<br />
• Discutir a relevância da dupla assistência à criança (postura – respiração), dentro de<br />
uma concepção de atenção integral ao portador de doença respiratória.<br />
• Proceder ao estudo narrativo do tratamento fisioterapêutico de quatro casos de SPB.<br />
Neste sentido, o trabalho se desenvolveu a partir de duas vertentes metodológicas<br />
distintas: a pesquisa exploratória da literatura, tendo em vista a carência de fundamentação<br />
teórica dos assuntos aqui abordados; e o estudo narrativo do tratamento fisioterapêutico de<br />
quatro casos de SPB.
Esta divisão metodológica se revela na própria divisão da presente dissertação em duas<br />
partes. A primeira parte constitui um conjunto de exposições teóricas, baseadas em pesquisa<br />
bibliográfica, compreendendo os três primeiros capítulos. O primeiro trata, em última análise,<br />
do próprio objeto deste estudo, ou seja, da relação <strong>entre</strong> a mecânica tóraco-abdominal e a<br />
atitude <strong>postural</strong> global. O segundo tece considerações acerca da abordagem fisioterapêutica<br />
<strong>postural</strong>. O terceiro situa o leitor no contexto da SPB, facilitando a compreensão do quadro<br />
apresentado nos capítulos subseqüentes. A exploração da literatura se deu segundo os<br />
seguintes métodos:<br />
• Pesquisa em periódicos indexados nas bases de dados Pubmed / Medline e<br />
Highwire, de 1990 a 2004. Artigos mais antigos puderam ser incluídos, por<br />
serem recorrentemente citados e apresentarem inegável valor histórico para a<br />
pesquisa.<br />
• Pesquisa em livros: especialmente na área da <strong>organização</strong> <strong>postural</strong>, os livros<br />
são a principal fonte de referências. Foram utilizados os autores mais<br />
amplamente difundidos no âmbito da fisioterapia.<br />
• Em relação à SPB, não foram considerados os artigos que se atinham<br />
exclusivamente ao aspecto cirúrgico e/ou genito-urinário.<br />
A segunda parte desta dissertação seguiu um modelo epistemológico narrativo, em que<br />
se procedeu ao relato da experiência de assistência a quatro crianças do sexo masculino, <strong>entre</strong><br />
oito meses e cinco anos, com SPB, acompanhadas no Ambulatório de Fisioterapia<br />
Respiratória do IFF. Constitui-se de um conjunto de cinco capítulos, em que o primeiro<br />
(capítulo 4) descreve a conduta fisioterapêutica adotada em relação às referidas crianças,<br />
explicitando os procedimentos de ambas as abordagens, e os demais (capítulos cinco a oito) se<br />
referem à narrativa da história do tratamento de cada uma delas, individualmente.
Os critérios de inclusão dos pacientes no estudo foram: terem diagnóstico de SPB;<br />
terem prontuário no IFF; e terem freqüentado assiduamente o ambulatório de fisioterapia<br />
respiratória do IFF <strong>entre</strong> 2001 e 2003, recebendo atendimento em fisioterapia respiratória e<br />
<strong>postural</strong>. O relato dos casos se baseou no prontuário do IFF e nas fichas de atendimento<br />
clínico da fisioterapia <strong>postural</strong>. Ao longo do tratamento, foram realizados registros<br />
fotográficos para acompanhamento clínico, para o que se obteve a autorização para uso de<br />
imagem, por escrito, assinada pelos responsáveis por todas as crianças. Foi obtido, ainda, o<br />
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (anexo 1).<br />
A história clínica dos quatro casos se desenvolveu a partir de uma narrativa 1 , que<br />
envolve não somente aspectos essencialmente clínicos, mas também aqueles ligados à relação<br />
terapeuta-paciente-pais, relatos trazidos pelos pais e pela própria criança, observações<br />
referidas pelos outros profissionais implicados, questões psico-sociais, etc.<br />
Castiel (1999) chama a atenção para as limitações do conhecimento estritamente<br />
biomédico e para o equívoco da fragmentação dos saberes, no que tange à compreensão do<br />
fenômeno de adoecimento, em especial nas doenças crônicas (como é o caso da síndrome de<br />
prune belly). Segundo o autor:<br />
“(...) o objeto das disciplinas do campo da saúde é o humano em sua<br />
singularidade e em suas formas de sentir e manifestar seus mal-estares<br />
diante de si, de seu entorno, de seu psiquismo, de seu corpo ou, de modo<br />
sintético, de seu ‘corpsiquismo’ em seu respectivo contexto. Enfim,<br />
compreender a experiência do adoecer envolve o entendimento do processo<br />
de produção de conhecimento e dos idiomas e narrativas mediante os quais<br />
tal conhecimento é apresentado e assimilado, as representações lingüísticas<br />
1 É imperativo ressaltar que tal narrativa se construiu a partir do relato retrospectivo do tratamento em<br />
fisioterapia <strong>postural</strong> e respiratória das referidas crianças, incluindo informações contidas no prontuário e nas<br />
fichas de atendimento fisioterapêutico. Além de aspectos essencialmente clínicos e terapêuticos, foram incluídas<br />
falas dos pais, das crianças ou de outras pessoas envolvidas (demais profissionais de saúde, por exemplo),<br />
extraídas de conversas informais travadas no decorrer das sessões de atendimento.
que devem ser compartilhadas pelo maior número possível de pessoas<br />
envolvidas na questão” (p. 140).<br />
Caprara e Franco (1999) criticam o fato de que o principal modelo financiado pelo<br />
recurso público seja a perspectiva biomédica mecanicista, que despreza as dimensões humana,<br />
vivencial, psicológica e cultural da doença. Os autores defendem um modelo comunicacional,<br />
em que a relação médico-paciente se dê de forma a possibilitar uma melhor compreensão do<br />
sofrimento, assim como a maior participação e adesão do paciente ao processo de tratamento.<br />
De fato, foi possível constatar, ao longo desta pesquisa, a importância desta comunicação<br />
bidirecional, que se reverteu em resultados inegavelmente positivos para as crianças<br />
envolvidas.<br />
Assim, este estudo pretende “contar a história” do tratamento fisioterapêutico <strong>postural</strong><br />
de quatro meninos com SPB, da maneira mais abrangente possível. Nossos parâmetros<br />
metodológicos se distanciam do clássico estudo de caso clínico, exatamente pelo fato de que:<br />
“(...) o paradigma biomédico não inclui uma compreensão integral sobre o<br />
que as pessoas sentem e vivem em torno de seu adoecer. Apesar disso, é a<br />
partir da experiência que os pacientes constroem as narrativas de doenças<br />
com as quais se comunicam com os profissionais de saúde. Mesmo que os<br />
médicos não estejam voltados para a construção de uma abordagem<br />
analítica, eles, de uma certa forma, precisam (...) buscar os significados<br />
associados à experiência da doença para que possam construir uma<br />
terapêutica diferenciada para cada um de seus pacientes, mesmo que estes<br />
sejam por ele classificados num único quadro patológico” (Gomes e<br />
Mendonça, 2002, p. 119).<br />
Assim, a posição privilegiada que se conferiu aos aspectos subjetivos não remove, em<br />
absoluto, a dimensão científica da narrativa, considerando-se que a cientificidade pode se<br />
concretizar segundo múltiplos critérios (Deslandes e Assis, 2002). A construção do<br />
conhecimento pode se dar a partir da <strong>organização</strong> narrativa da observação clínica que,
segundo Castiel (1999), “constitui o principal instrumento da sabedoria prática na clínica”<br />
(p. 148). Esta noção vai ao encontro da perspectiva de que a medicina – tanto quanto as<br />
demais disciplinas do campo da saúde - seja uma atividade interpretativa e narrativa,<br />
caracterizada por Hunter (1991) como “(...) a arte de ajustar abstrações científicas ao caso<br />
individual” 2 (p. xvii). A autora comenta que a busca incessante por uma suposta<br />
cientificidade, baseada primordialmente nos avanços tecnológicos e em uma atitude de<br />
“neutralidade”, compromete a prática médica, no que diz respeito à percepção das<br />
subjetividades envolvidas e, conseqüentemente, à relação médico-paciente. Ela sustenta a<br />
premissa de que a narrativa dos casos constitua peça fundamental para que a prática clínica<br />
seja bem sucedida. Cardoso et al. (2002) igualmente se opõem a este cientificismo<br />
reducionista. Os autores discutem a relevância da epistemologia narrativa para o processo de<br />
diagnose e tratamento, lembrando que:<br />
“(...) os corpos humanos são portadores não só de agentes patogênicos como<br />
também de histórias que explicam suas vidas. A necessidade de se construir<br />
essas histórias / narrativas sublinha os modos pelos quais as noções de saúde<br />
e doença são culturalmente produzidas” (p. 556).<br />
A fisioterapia, como refere Iyer e colaboradores (2003), tende atualmente a priorizar<br />
ganhos funcionais no processo de reabilitação, ainda que de pouca repercussão em scores<br />
tradicionais de mensuração de resultados terapêuticos, observados tanto no âmbito da clínica<br />
como fora dele, sendo assim relatados pelos pais, professores, profissionais de saúde ou por<br />
outras pessoas que se ocupem da criança. Tal perspectiva reforça a opção por uma vertente<br />
epistemológica narrativa, valorizando as subjetividades e singularidades inerentes às questões<br />
envolvidas.<br />
Desta forma, na construção dos relatos constituintes desta pesquisa, as informações<br />
extraídas dos prontuários (dados clínico-cirúrgicos, intercorrências, internações hospitalares,<br />
2 “(...) the art of adjusting scientific abstractions to the individual case” (tradução livre).
etc.) foram resumidamente apresentadas, no sentido de estabelecer um cenário diagnóstico e<br />
histórico, sobre o qual se desenrola a narrativa dos acontecimentos do período em questão<br />
(2001 a 2003), com ênfase no que se passava dentro do Ambulatório de Fisioterapia<br />
Respiratória. Esta concepção atribui, inegavelmente, um valor maior às fichas de atendimento<br />
clínico da fisioterapia <strong>postural</strong> do que ao prontuário geral do paciente. As narrativas foram<br />
continuamente confrontadas com os pressupostos teóricos desenvolvidos na primeira parte<br />
deste trabalho, estabelecendo-se um diálogo <strong>entre</strong> a experiência do campo e a literatura.<br />
Embora os quatro pacientes incluídos no estudo sofram da mesma enfermidade,<br />
tenham idades semelhantes, pertençam ao mesmo gênero e tenham sido submetidos a<br />
procedimentos terapêuticos equivalentes, suas histórias se mostram absolutamente distintas,<br />
tanto do ponto de vista psico-social quanto na própria evolução de seus quadros clínicos.<br />
Compreender cada um deles em sua individualidade pode permitir a percepção de que, de<br />
fato, as abordagens terapêuticas não podem ser uniformizadas e, muito menos, fragmentadas.<br />
A dimensão narrativa fornece um suporte metodológico capaz de acolher a multiplicidade de<br />
fatores envolvidos na idéia da integralidade e da individualização do atendimento. Esta<br />
valorização da singularidade encontra paralelo na reflexão de Cardoso (2002):<br />
“Há um mundo de acordo com cada um e cada um destes mundos abarca<br />
todo o universo, só que de uma particular e inteiramente única perspectiva.<br />
Se não se podem achar duas folhas exatamente iguais em uma mesma árvore,<br />
como é possível encontrar duas pessoas que experimentam o mundo da<br />
mesma maneira?” (p. 150).<br />
Assim, esta dissertação conta a história única e original de quatro “folhas” de um<br />
mesmo tipo de “árvore”, como forma de situar a abordagem fisioterapêutica <strong>postural</strong> em um<br />
modelo ampliado de assistência a crianças acometidas por doença respiratória, a partir de<br />
concepções <strong>biomecânicas</strong> e terapêuticas que, inevitavelmente, se caracterizam pelos preceitos<br />
norteadores deste estudo: globalidade, interação e individualidade.
PARTE 1<br />
CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Capítulo 1 - CONSIDERAÇÕES SOBRE A BIOMECÂNICA TÓRACO-ABDOMINAL<br />
E SUA RELAÇÃO COM A ATITUDE POSTURAL GLOBAL<br />
Respiração e estática são inegavelmente ligadas. O diafragma, ator principal da respiração,<br />
depende da estática. Ele é também ator no empilhamento vertebral correto 3 (Campignion, 1996, p.<br />
41).<br />
Em linhas gerais, a biomecânica é a aplicação de conceitos da<br />
mecânica clássica – como estática, cinética, cinemática, etc. – aos<br />
sistemas biológicos e fisiológicos (Lehmkuhl e Smith, 1989; Özkaya e<br />
Leger, 2003). Dutton (2002) resume que “vendo o corpo humano de<br />
forma simplista, trata-se de um sistema mecânico controlado por um<br />
sistema elétrico. Como tal, obedece às mesmas leis físicas universais de<br />
todos os outros sistemas” 4 (p. 33). No que concerne ao sistema<br />
locomotor, este campo estuda as diferentes forças que agem no sentido<br />
de promover o equilíbrio corporal, tanto estático quanto dinâmico, ou<br />
seja, a forma como ações musculares, superfícies articulares, direções<br />
ósseas e outras estruturas se inter-relacionam, organizando – ou<br />
desorganizando – a atitude <strong>postural</strong> e a motricidade.<br />
3 “Respiration et statique sont indéniablement liées. Le diaphragme, acteur principale de la respiration, dépend<br />
de la statique. Il est aussi acteur dans l’empilement vertebral correct.”(tradução livre)<br />
4 “If one views the human body simplistically, it is a mechanical system controlled by an electrical system. As<br />
such, it obeys the same physical laws of the universe that every other system does.” (tradução livre)
Tendo em vista o objeto deste estudo, o objetivo deste capítulo<br />
será discutir a mecânica da respiração, exclusivamente do ponto de<br />
vista ósteo-mio-articular, além da relação desta mecânica específica<br />
com a da totalidade do sistema locomotor, notadamente no que<br />
concerne à <strong>organização</strong> <strong>postural</strong>. Aspectos relacionados às<br />
propriedades elásticas do pulmão, resistência das vias aéreas, medição<br />
de trabalho, d<strong>entre</strong> outros fogem ao escopo desta pesquisa.<br />
1. 1 - Considerações anatômicas<br />
Anatomicamente, o diafragma é descrito como um músculo<br />
assimétrico, que tem a forma de uma abóbada côncava para baixo e<br />
separa as cavidades torácica e abdominal. Constitui-se de “finos<br />
músculos digástricos justapostos cujos tendões centrais, imbricados,<br />
formam o centro tendíneo” (Souchard, 1989, p. 13). Esta parte central<br />
tendinosa é conhecida como centro frênico. A parte muscular, periférica,<br />
pode ser dividida, de cada lado, em porções esternal, costal e vertebral<br />
(Kahle et al., 1996). Zin e Rocco (1999) assumem que o diafragma seja,<br />
na verdade, constituído por dois músculos distintos – o costal e o crural<br />
– ambos originando-se no centro tendíneo, sendo as inserções, do<br />
primeiro, no apêndice xifóide e, do segundo, na porção superior de L3 5 .<br />
Segundo a descrição de Kahle et al. (1996), a porção esternal é a mais<br />
5 Serão sempre adotadas as abreviações: L para a coluna lombar, D para a dorsal ou torácica e C para a cervical.<br />
Neste caso, por exemplo, L3 corresponde à terceira vértebra lombar.
delgada, inserindo-se na face posterior do processo xifóide, onde se<br />
mistura às fibras do músculo triangular do esterno. A porção costal,<br />
também chamada zona de aposição, origina-se sobre a face interna da<br />
sétima à 12 a cartilagem costal (de cada lado), por digitações<br />
<strong>entre</strong>meadas com as do músculo transverso do abdômen. A porção<br />
vertebral, mais interna e conhecida como pilares do diafragma, constitui<br />
um pilar medial (podendo ainda subdividir-se, gerando o pilar acessório)<br />
e um pilar lateral. Kahle et al. (1996) consideram que, à direita, o pilar<br />
medial se insere nos corpos vertebrais de L1 a L4, enquanto que, à<br />
esquerda, as inserções vão apenas de L1 a L3. O pilar lateral se origina<br />
das arcadas do psoas e do quadrado lombar, sob as quais passam os<br />
respectivos músculos, na altura de L1 e da 12 a costela. Esta concepção<br />
difere um pouco da do clássico Atlas de Anatomia Humana Sobotta<br />
(Ferner e Staubesand, 1984), que situa as inserções do pilar medial nos<br />
corpos de L2 a L4, sem diferenciação de lateralidade, e do pilar lateral<br />
nas mesmas arcadas, porém nos processos transversos de L1 e L2. O<br />
diafragma compreende ainda diversos pontos de menor resistência, por<br />
onde passam estruturas vasculares, nervosas e viscerais. É o caso dos<br />
hiatos costo-lombar e costo-xifoidiano, dos orifícios aórtico e esofagiano<br />
e do forâmen da veia cava inferior.<br />
Através das figuras 1 e 2 pode-se visualizar a situação do<br />
diafragma em relação aos demais músculos envolvidos na respiração,
permitindo vislumbrar as conexões mecânicas que complexificam o<br />
processo, tornando-o um fenômeno global. É particularmente<br />
interessante observar a continuidade <strong>entre</strong> as fibras deste músculo com<br />
as do transverso do abdômen (transversus abdominis) e do triangular do<br />
esterno (transversus thoracis), bem como a comunicação <strong>entre</strong> a<br />
musculatura tóraco-abdominal e a pelve / membros inferiores, mediada<br />
pelos músculos psoas maior e menor e ílio-psoas.<br />
Uma descrição detalhada do seu posicionamento nas diferentes<br />
fases da respiração pode ser obtida através da obra de Kahle et al.<br />
(1996). Segundo estes autores, na posição ortostática, <strong>entre</strong> a expiração<br />
máxima e a inspiração, a cúpula diafragmática direita se projeta sobre a<br />
face anterior da parede torácica, à altura do quarto espaço intercostal,<br />
enquanto a esquerda vai apenas até o quinto espaço intercostal. Ambas<br />
as cúpulas se elevam um pouco mais durante a expiração máxima,<br />
chegando à quarta costela, à direita, e ao quarto espaço intercostal, à<br />
esquerda. Na inspiração máxima, o diafragma desce de um a dois<br />
espaços intercostais, utilizando-se das inserções de sua porção esternal<br />
como ponto fixo para este movimento.
Figura 1: Musculatura ventral do tórax e do abdômen, face interna (Sobotta, in Ferner e<br />
Staubesand, 1984, p. 101)
Figura 2: Cavidade torácica, diafragma, musculatura lombar e pelve, vista ventral (Sobotta, in<br />
Ferner e Staubesand, 1984, p. 100)<br />
1. 2 - Considerações <strong>biomecânicas</strong> sobre a respiração<br />
Classicamente, considera-se a inspiração como a etapa ativa da<br />
respiração, em que a contração do diafragma promove a descida de seu<br />
centro tendíneo. A expiração é tida como essencialmente passiva, salvo<br />
durante o exercício, tosse, vômito ou defecação. Os músculos<br />
intercostais externos auxiliam o aumento dos diâmetros torácicos na
inspiração, favorecendo o movimento em “alça de balde” das costelas,<br />
enquanto que a musculatura acessória (especialmente escalenos,<br />
serráteis anteriores e esterno-cleido-mastóideos) só é requisitada ao<br />
esforço. A musculatura abdominal se faz presente na expiração forçada,<br />
aumentando a pressão intra-abdominal (o que empurra o diafragma para<br />
cima), auxiliada pelos músculos intercostais internos (Guyton e Hall,<br />
1996; West,1996).<br />
No que diz respeito à inspiração, West (1996) descreve que, com a<br />
contração do diafragma,<br />
“(...)o conteúdo abdominal é forçado para baixo e para frente, e a<br />
dimensão da cavidade torácica é aumentada. Além disso, as margens<br />
costais são levantadas e movidas para fora, causando um aumento<br />
no diâmetro transverso do tórax” (p. 83).<br />
Kapandji (1999) trouxe importantes contribuições para a<br />
biomecânica aplicada, que incluem uma leitura mais detalhada dos<br />
mecanismos envolvidos na respiração. Em primeiro lugar, o autor<br />
descreve a sucessão de pequenos deslocamentos ocorridos na caixa<br />
torácica no momento da inspiração, que são de extrema utilidade para<br />
sua elasticidade. Ele afirma que a primeira costela se eleva a partir de<br />
um movimento em torno da articulação costo-vertebral, que promove a<br />
elevação do esterno, gerando uma abertura do ângulo esterno-costal,<br />
acompanhada de uma rotação longitudinal da cartilagem costal. Esta<br />
rotação se observa em cada cartilagem, até a décima costela, que
efetua, como a primeira, um movimento de elevação em torno de seu<br />
próprio eixo.<br />
Quanto aos músculos que interferem diretamente na respiração, o<br />
autor os divide em quatro grupos (p. 142, vol 3):<br />
- os inspiradores principais, primordialmente o diafragma, mas<br />
também os supracostais 6 e os intercostais externos;<br />
- os inspiradores acessórios, compreendendo os mesmos grupos<br />
da descrição clássica (escalenos, esterno-cleido-mastóideos 7 e serráteis<br />
anteriores 8 ), porém acrescentando ao conjunto os peitorais maiores e<br />
menores, grandes dorsais, serráteis póstero-superiores e as fibras<br />
superiores do sacro-lombar;<br />
- os expiradores principais, representados tão-somente pelos<br />
intercostais internos, concordando com a premissa tradicional de que “a<br />
expiração normal é um fenômeno puramente passivo de recolhimento<br />
do tórax pela simples elasticidade dos elementos ósteo-cartilaginosos e<br />
do parênquima pulmonar“ 9 (p. 148), ressaltando a importância da<br />
elasticidade das cartilagens costais e lembrando que a própria gravidade<br />
atua no sentido do abaixamento das costelas;<br />
6 Os Atlas de Anatomia Humana Sobotta (Ferner e Staubesand, 1984) e Spence (1990) não mencionam tais<br />
músculos, que estão presentes em Kapandji (1999), Kahle et al. (1996), Campignion (1996) e Souchard (1989).<br />
7 Fazendo a ressalva de que estes dois grupos somente são inspiradores quando a coluna cervical se enrijece, por<br />
ação de outros músculos, servindo-lhes de ponto de apoio.<br />
8 O autor considera apenas os feixes inferiores deste músculo neste contexto.<br />
9 “(...) l´expiration normale est un phénomène purement passif de retour sur lui-même du thorax par simple<br />
élasticité des éléments ostéo-cartilagineux et du parenchyme pulmonaire” (tradução livre).
- os expiradores acessórios, responsáveis pela expiração forçada,<br />
representados pelos músculos abdominais (retos abdominais,<br />
oblíquos externos e internos), mas também pela porção inferior do<br />
sacro-lombar, pelo longo dorsal, serráteis póstero-inferiores,<br />
quadrados lombares e triangular do esterno.<br />
Na mesma época da publicação da obra de Kapandji 10 , Kahle et al.<br />
(1996) descrevem os mesmos deslocamentos ósteo-articulares,<br />
sustentando que:<br />
“(...) a forma da caixa torácica não é determinante para a capacidade<br />
respiratória. O elemento decisivo é unicamente a mobilidade, ou seja,<br />
a diferença <strong>entre</strong> as posições de inspiração e expiração máximas.<br />
Lesões, não apenas das cartilagens, mas também das articulações,<br />
podem entravar o conjunto da função respiratória” 11 (p. 70).<br />
Apesar de todo este conjunto de músculos envolvidos, Kapandji<br />
(1999) comenta que o diafragma, por si só, é capaz de aumentar os três<br />
diâmetros torácicos, pelo abaixamento do centro frênico (diâmetro<br />
vertical), elevação das costelas inferiores (diâmetro transverso) e<br />
elevação das costelas superiores, por intermédio do esterno (diâmetro<br />
ântero-posterior).<br />
10 A primeira edição, tanto da obra de Kapandji como da de Kahle et al. data de 1975. O diferencial da Anatomia<br />
de Kahle et al para os tratados clássicos, como o “Rouvière”, o “Sobotta” e o “Gray” é um maior direcionamento<br />
para a aplicação clínica da anatomia, em detrimento de um excesso de detalhes morfológicos sem grande<br />
utilidade prática.<br />
11 “(...) la forme de la cage toracique n’est pas déterminante pour la capacité respiratoire. L’élément décisif est<br />
uniquement la mobilité, c’est-à-dire la différence <strong>entre</strong> les positions d’inspiration et d’expiration maximale. Des<br />
lesions, non seulement des cartilages, mais aussi des articulations, peuvent entraver l’ensemble de la fonction<br />
respiratoire.” (tradução livre)
Angelillo et al. (1997) ressaltam a influência da forma do diafragma<br />
sobre sua função, comentando que a pressão diafragmática (força<br />
contrátil produzida por este músculo, resultante da diferença <strong>entre</strong> a<br />
pressão intra-abdominal e a pressão pleural), é muito maior na região<br />
em contato com os pulmões, dado que a zona de aposição precisa se<br />
moldar à forma do tórax. Por outro lado, a peculiar geometria<br />
diafragmática e a disposição de suas fibras fazem com que a contração<br />
muscular ocorra predominantemente na zona de aposição, sem que<br />
haja um encurtamento muscular proporcional à magnitude de tal<br />
contração, o que permite uma diminuição do gasto energético<br />
inspiratório (Wait e Johnson, 1997). Ricci et al. (2002) atribuem às<br />
características mecânicas da caixa torácica e do compartimento<br />
abdominal - juntamente com a força dos músculos torácicos, abdominais<br />
e do diafragma - a possibilidade de determinarem as pressões intra-<br />
abdominal e pleural. A ação coordenada do diafragma com os músculos<br />
abdominais e do assoalho pélvico promove a modulação <strong>entre</strong> estas três<br />
pressões (diafragmática, intra-abdominal e pleural), tornando-o capaz de<br />
promover, simultaneamente, a deflagração da inspiração (com a<br />
correspondente mobilização da caixa torácica) e a participação no<br />
mecanismo de estabilização da coluna (Hodges e Gandevia, 2000b;<br />
Hodges et al., 1997a, 1997b).
O assoalho pélvico é um conjunto de músculos que fecha a<br />
cavidade abdominal em sua extremidade inferior e posterior, formando<br />
os chamados diafragma pélvico (músculos elevador do ânus, ísquio-<br />
coccígeo e, complementarmente, obturadores internos e piriformes 12 ) e<br />
diafragma urogenital (predominantemente fascial, inclui os músculos<br />
transversos profundo e superficial do períneo e ligamento transverso do<br />
períneo). O diafragma pélvico tem a função de sustentar a pressão<br />
exercida pelas vísceras abdominais. Na respiração, a descida do centro<br />
frênico e a correspondente co-contração da musculatura abdominal<br />
tendem a empurrar caudalmente as vísceras, provocando um<br />
estiramento do períneo. Este realiza, por sua vez, uma contração,<br />
sinérgica aos músculos supracitados, deflagrada pelo reflexo miotático,<br />
que, ao impedir a descida do conteúdo abdominal, aumenta ainda mais<br />
a pressão intra-abdominal, facilitando tanto a função respiratória quanto<br />
a estabilização <strong>postural</strong> (Campignion, 1996, 2004; Janda et al., 2003;<br />
Kahle, 1996; Schmeiser e Putz, 2000).<br />
É preciso lembrar, ainda, a existência de um “diafragma superior<br />
[que] dispõe das cordas vocais e da glote, verdadeiros esfíncteres para<br />
a cavidade torácica 13 ” (Campignion, 1996, p. 103). O chamado<br />
diafragma faringiano é formado pelos músculos hioidianos, em especial<br />
12<br />
Estes dois últimos músculos podem ser considerados integrantes tanto do diafragma pélvico quanto do grupo<br />
dos pelve-trocanterianos, assumindo, desta forma, uma função de elos de ligação <strong>entre</strong> a mecânica pélvica e a<br />
dos membros inferiores.<br />
13<br />
“Le diaphragme supérieur dispose donc des cordes vocales et de la glotte, véritables sphincters pour la cavité<br />
thoracique” (tradução livre).
o milohióide, e exerce um papel crucial em funções como a ventilação, a<br />
tosse, a mastigação, a deglutição e a fonação (Van Eijden e Koolstra,<br />
1998; Kahle, 1996; Kapandji, 1999). Doual et al. (2003) situam o osso<br />
hióide em uma verdadeira “encruzilhada” músculo-tendinosa que<br />
mantém, simultaneamente, o equilíbrio <strong>entre</strong> tais funções, além de<br />
influenciar diretamente a estática cefálica. Campignion (1996) ressalta<br />
que a liberdade dos três diafragmas, ou seja, sua sinergia harmônica,<br />
depende do equilíbrio <strong>entre</strong> as tensões das cadeias musculares<br />
anteriores e posteriores (fig. 3).<br />
Figura 3: O equilíbrio tóraco-abdominal a partir da relação <strong>entre</strong> os três diafragmas<br />
(Campignion, 1996, p. 104)<br />
1. 3 - <strong>Interações</strong> <strong>biomecânicas</strong>
Campignion (2004, 1996) ressalta a relação íntima <strong>entre</strong> o<br />
diafragma e os órgãos subjacentes, através de conexões aponeuróticas,<br />
fasciais e ligamentares. Quanto aos órgãos abdominais, o vínculo se<br />
manifesta pela aderência <strong>entre</strong> o peritôneo parietal e a fáscia inferior do<br />
diafragma. No que diz respeito ao tórax, o coração repousa sobre o<br />
folículo anterior do centro frênico. Ele está contido no saco pericárdico,<br />
cuja base adere fortemente ao diafragma e se liga às fáscias que<br />
recobrem os elementos do mediastino posterior, formando “(...) uma<br />
verdadeira coluna fibrosa, compartimentada, que se prende à coluna<br />
vertebral da sétima cervical à quarta dorsal” 14 (p. 21), o que faz com que<br />
ambos – saco pericárdico e diafragma - estejam “suspensos” à coluna<br />
vertebral, particularmente de C7 a D8.<br />
Souchard (1989) também descreve a rede aponeurótica, fascial e<br />
ligamentar que constitui o “sistema suspensor do diafragma”, de maneira<br />
um pouco diversa. Segundo o autor, há um prolongamento contínuo<br />
unindo a aponeurose cervical, a fáscia endocárdica, a fáscia<br />
periesofagiana e toda uma sucessão de ligamentos viscerais que<br />
direcionam todo o conjunto ao centro frênico, fazendo com que o<br />
diafragma esteja, de certa forma, “suspenso” à base do crânio, à coluna<br />
cérvico-dorsal e à porção superior do tórax. De qualquer modo, os dois<br />
14 “(...) une véritable colonne fibreuse, compartimentée, qui s’attache à la colonne vertébrale de la 7ème<br />
cervicale à la quatrième dorsale” (tradução livre).
autores valorizam a intercomunicação <strong>entre</strong> as estruturas viscerais e<br />
motoras nesta região, a partir das ligações aponeuróticas do diafragma.<br />
Campignion (1996) pontua a dimensão em que respiração e<br />
estática vertebral estarão conectadas, dado que “o diafragma está<br />
aponeuroticamente suspenso à coluna dorsal e a caixa torácica<br />
muscularmente à coluna cervical” 15 (p. 29), fazendo com que uma<br />
<strong>organização</strong> vertebral satisfatória ofereça um bom ponto fixo para a<br />
descida do centro frênico na inspiração e, ao mesmo tempo, uma função<br />
diafragmática bem coordenada favoreça o bom funcionamento de todas<br />
as estruturas – viscerais e mio-articulares – a ele relacionadas.<br />
De fato, o diafragma, principal músculo da respiração,<br />
desempenha um papel decisivo para o controle <strong>postural</strong>. Suas inserções<br />
nas costelas, esterno e coluna dorso-lombar comprometem-no tanto<br />
com a biomecânica da caixa torácica quanto com a <strong>organização</strong> da<br />
coluna vertebral. Suas ligações músculo-aponeuróticas com os<br />
músculos abdominais, quadrados lombares e iliopsoas solidarizam<br />
inevitavelmente a respiração à mecânica lombo-pélvica e dos membros<br />
inferiores, assim como sua íntima relação com a fáscia endotorácica e<br />
com os músculos intercostais fazem com que sua ação sobre o tórax se<br />
perceba até a cintura escapular e coluna cérvico-dorsal, cujo<br />
posicionamento depende da atitude <strong>postural</strong> do tórax, determinada pela<br />
15 “(...) le diaphragme est aponévrotiquement suspendu à la colonne dorsale et la cage thoracique<br />
musculairement à la colonne cervicale” (tradução livre).
mecânica respiratória (Campignion, 1996, 2001; Cluzel et al., 2000;<br />
Hodges, 1999; Kapandji, 1999).<br />
Dentro desta perspectiva, Kahle et al. (1996) afirmam ocorrer uma<br />
sutil diminuição da lordose cervical fisiológica na inspiração, que é<br />
restituída na expiração, o que foi posteriormente confirmado por<br />
Campignion (1996), dentro dos preceitos do método G.D.S. de Cadeias<br />
Musculares e Articulares. O autor sustenta que, na inspiração, ocorre<br />
uma diminuição de todas as curvas fisiológicas, por ação da<br />
musculatura autóctone da coluna e do músculo longo do pescoço,<br />
pertencentes à cadeia muscular póstero-anterior (PA).<br />
Segundo Denys-Struyf (1997), a cadeia muscular PA – que<br />
corresponde, de certa maneira, ao sistema antigravitacional e de<br />
autocrescimento de Busquet (2001) – tem uma dupla função: anti-<br />
gravitária e inspiratória. Campignion (1996) ressalta, a esse respeito,<br />
que a inspiração dinâmica se dá a partir do que ele chama de “vigilância<br />
raquidiana”, ou seja, “a respiração do homem em pé está fortemente<br />
ligada à estática vertebral e às suas possibilidades de ereção reflexa,<br />
que dependem da cadeia póstero-anterior” 16 (p. 64).<br />
A cadeia muscular ântero-posterior (AP), que tem uma função<br />
global de manutenção do ritmo e da mobilidade em todos os segmentos<br />
corporais, assume o papel, na respiração, de complementar a ação da<br />
16 “La respiration de l´homme debout est fortement liée à la statique vertébrale et à ses possibilités d´érection<br />
réflexe qui dépendent de la chaîne postéro-antérieure“ (tradução livre).
cadeia PA, reintroduzindo as curvaturas cervical e lombar, através dos<br />
músculos escalenos e psoas, respectivamente. Os escalenos,<br />
considerados músculos PA-AP, alternam suas ações, atuando como<br />
inspiradores acessórios (quando assumem ponto fixo na coluna para<br />
elevar as duas primeiras costelas) e como restauradores da lordose<br />
cervical (quando assumem ponto fixo nas costelas, tracionando as<br />
vértebras cervicais para frente, tornando C4 e C5 os ápices desta<br />
curvatura). Trabalhando em excesso, tais músculos promovem a<br />
antepulsão da cabeça. Na coluna lombar, o jogo sutil de estruturação de<br />
uma lordose “suficiente”, com ápice em L3, se dá pelo equilíbrio <strong>entre</strong><br />
diafragma (PA), transverso do abdômen (PA) e psoas (AP). O mau<br />
funcionamento deste conjunto leva à chamada hiper-lordose<br />
diafragmático-psoítica (Mézières, 1973, apud. Denys-Struyf, 1996). A<br />
cifose dorsal fisiológica sofre uma diminuição menos acentuada na<br />
inspiração, sendo os músculos retos do abdômen e triangular do esterno<br />
responsáveis por manter a verticalidade do esterno, preservando a<br />
posição de D8 como ápice desta curvatura. A própria descida deste<br />
osso, ao relaxamento dos músculos inspiratórios, devolve à coluna<br />
dorsal sua cifose fisiológica.<br />
Cabe ressaltar o fato de que estes autores situam o músculo<br />
transverso do abdômen na cadeia muscular PA, ou seja, inspiratória,<br />
ainda que, classicamente, ele seja considerado atuante tão somente na
expiração forçada. Kapandji (1999) já havia discorrido sobre o<br />
mecanismo de antagonismo – sinergia <strong>entre</strong> o diafragma e os músculos<br />
abdominais. Veremos adiante que este conceito é corroborado pelas<br />
recentes pesquisas de diversos outros autores, estando na base dos<br />
preceitos teóricos que sustentam esta pesquisa.<br />
Os músculos abdominais, em especial o transverso do abdômen,<br />
cumprem uma dupla função mecânica, fundamental tanto para a<br />
respiração quanto para a postura. Sua ativação no tempo inspiratório<br />
contém a projeção anterior das vísceras, gerando um ponto de apoio<br />
para a descida do centro tendíneo diafragmático, facilitando a expansão<br />
da caixa torácica e dos pulmões; além disso, independentemente do<br />
tempo respiratório, diafragma e transverso do abdômen realizam uma<br />
co-contração reflexa de ajuste <strong>postural</strong> (antecipatória ao movimento)<br />
que, somada à resposta contrátil do períneo, aumenta a pressão intra-<br />
abdominal, estabilizando a coluna lombar e, conseqüentemente,<br />
preservando o eixo corporal (Brown et al., 2003; Cholewicki et al.,<br />
1999a, 1999b; Ewig et al., 1996; Gardner-Morse e Stokes, 1998;<br />
Granata e Marras, 2000; Hodges et al., 1997a, 1997b, 2001a, 2001b;<br />
Hodges e Gandevia, 2000a; Janda et al., 2003). Dado que a<br />
conformação dos músculos oblíquos e retos abdominais os torna<br />
incapazes de produzir a pressurização intra-abdominal, este papel seria,<br />
então, desempenhado pelo diafragma e os transversos do abdômen
(Cholewicki et al., 2002a; Daggfeldt e Thorstensson, 1997; Stokes e<br />
Gardner-Morse, 1999). Um estudo desenvolvido por Mercer e Sahrmann<br />
(1999), que buscava identificar uma ordem de ativação muscular na<br />
deflagração da marcha, evidenciou uma contração do músculo<br />
transverso do abdômen, antecipatória ao início do movimento. Ainda<br />
que não incluam o diafragma <strong>entre</strong> os músculos monitorados na<br />
pesquisa, seus resultados permitem inferir quanto à influência da ação<br />
sinérgica destes músculos sobre a postura e a motricidade, de forma<br />
global.<br />
Cabe lembrar que, no que diz respeito a crianças de até cinco<br />
anos, se observa um maior número de contrações isométricas e/ou<br />
antagonistas, pela imaturidade dos padrões musculares na marcha<br />
inerente à idade (Schepens et al., 2004). Rauch et al. (2002) apontam<br />
para a necessidade de uma maior atenção dedicada ao<br />
desenvolvimento muscular em pacientes pediátricos, visto que de seu<br />
bom funcionamento depende a maioria dos demais sistemas, além de<br />
ser freqüente a ocorrência de fraqueza muscular em indivíduos com<br />
doenças como fibrose cística e insuficiência renal crônica. A própria<br />
fisiologia do esqueleto se vê inevitavelmente vinculada ao sistema<br />
muscular, sendo a carga progressivamente exercida pelo aumento da<br />
força dos músculos, em crianças e adolescentes, um fator decisivo para<br />
o controle biológico da estrutura óssea (Schoenau e Frost, 2002).
O trabalho bem coordenado de toda a musculatura abdominal<br />
permite ainda que o diafragma potencialize sua função de gerador de<br />
fluxo aéreo quando aumenta a demanda respiratória (por exemplo, no<br />
exercício físico), impedindo ainda as distorções posturais torácicas<br />
(Aliverti et al., 1997; Sanna et al., 1999).<br />
A cintura pélvica constitui uma base de sustentação que transmite<br />
o peso do corpo aos membros inferiores, responsáveis pela locomoção.<br />
O equilíbrio sagital da pelve e a manutenção da lordose lombar<br />
fisiológica são determinados pela harmonia funcional <strong>entre</strong> músculos<br />
abdominais, paravertebrais e a musculatura do quadril, especialmente<br />
glúteos, pelve-trocanterianos e iliopsoas. A deficiência de qualquer<br />
destas estruturas (especialmente evidente na síndrome de prune belly)<br />
compromete a estabilidade das articulações sacro-ilíacas e o equilíbrio<br />
do conjunto, gerando excesso de tônus na musculatura antagonista e,<br />
conseqüentemente, desvios posturais e quadros de lombalgia (Lecoq et<br />
al., 2000; Norris, 1993; Pool-Goudzwaard et al., 2003).<br />
Cholewicki et al. (1999a) evidenciam, a partir de modelos<br />
biomecânicos, que a estabilização lombar prescinde da ativação da<br />
musculatura paravertebral, salvo frente ao esforço ou ao exercício, em<br />
que esta deve se dar em sinergia com os músculos abdominais, que<br />
geram o aumento da pressão intra-abdominal. Um estudo de Moseley et<br />
al. (2002) evidenciou que, na verdade, somente as fibras mais profundas
do músculo multífido atuam nesta função estabilizadora. De fato, Denys-<br />
Struyf (1996) ressalta que o papel estático destes músculos,<br />
pertencentes à cadeia muscular póstero-mediana (PM), seria tão-<br />
somente de erigir o corpo, impedindo sua queda para frente. Qualquer<br />
contração além deste grau constitui um excesso de atividade. Este<br />
conceito vai ao encontro dos pressupostos defendidos por McGill et al.<br />
(2003), que sugerem que a estabilidade deve ser mantida com níveis<br />
modestos, porém contínuos, de contração muscular, vendo-se<br />
comprometida não pela insuficiência de força, mas pela insuficiência de<br />
resistência ou controle motor. Assim, padrões musculares anormais –<br />
notadamente a hiperatividade da musculatura paravertebral - seriam<br />
secundários a uma disfunção biomecânica da coluna, que objetivaria<br />
compensar uma perda de estabilidade, tendo como resultado um quadro<br />
de lombalgia (Larivière et al., 2000). Seo et al. (2003) mostraram ainda<br />
que a diminuição do braço de alavanca e a atividade dos músculos<br />
paravertebrais e reto abdominal aumenta a força compressiva sobre os<br />
discos intervertebrais lombares. Roy et al. (2003), Comerford e Mottram<br />
(2001), Cholewicki et al. (1997, 2000a, 2000b) pontuam, neste sentido,<br />
que disfunções musculares (especialmente dos paravertebrais) e erros<br />
do controle motor constituem possíveis causas para certas desordens<br />
da coluna sacro-lombar e para a lombalgia crônica. Vários autores e<br />
correntes terapêuticas responsabilizam o excesso de tensão na região
posterior e a falta de uma coordenação motora global adequada (que<br />
demandaria um controle motor preciso) pela maioria dos distúrbios da<br />
coluna, desde as lombalgias inespecíficas até as hérnias discais e<br />
espondilolisteses, optando pela conscientização e reaprendizagem<br />
motora como via primordial de reabilitação (Alexander, 1991; Alexander,<br />
1992; Bertherat, 1990; Cranz, 2000; Denys-Struyf, 1983a, 1996;<br />
Feldenkrais, 1988, 1994; Hopper et al., 1999; Kapandji, 1999; Mézières,<br />
1973, apud. Denys-Struyf, 1996; Piret e Béziers, 1992; Souchard, 2001).<br />
Busquet (2001) utiliza uma metáfora interessante:<br />
“As mãos de um pianista não são feitas para transportar um piano. Os<br />
músculos paravertebrais não são feitos para movimentar a coluna,<br />
mas para corrigir constantemente, reequilibrar os deslocamentos<br />
vertebrais. É muito importante compreender que esta musculatura<br />
deve estar relativamente relaxada enquanto os músculos do plano<br />
médio e superficial fazem os movimentos. Os paravertebrais estão<br />
atentos e têm como objetivo corrigir os movimentos e o equilíbrio. Sua<br />
função é qualitativa, e não quantitativa. A musculação não é para<br />
eles. Não tenham jamais a idéia de mandar um pianista fazer<br />
musculação para as mãos” (vol. 1, p. 47).<br />
Cholewicki et al. (2002b) defendem o ponto de vista de que não se<br />
pode identificar um músculo como o mais importante para a estabilidade<br />
da coluna lombar. Segundo os autores:<br />
“A estabilidade estrutural global da coluna é uma função altamente<br />
não-linear de muitas variáveis. Além dos níveis de ativação de todos<br />
os músculos do tronco, a estabilidade da coluna é determinada pela<br />
resistência dos ligamentos das articulações intervertebrais, postura da
coluna e magnitude, direção e condições das cargas externas<br />
exercidas sobre o tronco 17 ” (p. 104).<br />
Eles consideram incorreta a discriminação dos músculos <strong>entre</strong><br />
locais (profundos, inter-segmentares) e globais (superficiais, pluri-<br />
articulares), como forma de estabelecer uma separação <strong>entre</strong><br />
estabilização e movimento (Norris, 1999). Assim como Pinto et al.<br />
(2000), afirmam que, na verdade, ambos os aspectos se inter-<br />
relacionam, caracterizando um processo que envolve todos os músculos<br />
do tronco, fazendo com que qualquer programa de reabilitação<br />
direcionado à estabilização da coluna deva contemplar a totalidade da<br />
musculatura e seu respectivo controle motor.<br />
O funcionamento global do aparelho locomotor não se dá ao<br />
acaso. Bienfait (1989), Busquet (2001), Campignion (2001) e Denys-<br />
Struyf (1997) descrevem o processo de solidariedade muscular<br />
determinado pelas fáscias. Através destas redes de tecido conjuntivo, a<br />
tensão é transmitida <strong>entre</strong> os músculos, que se vêem agrupados em<br />
cadeias, cuja inter-relação e equilíbrio mútuo produzem as diferentes<br />
atitudes posturais observáveis nos seres humanos. Da mesma maneira,<br />
quando há um desequilíbrio (no caso da síndrome de prune belly, <strong>entre</strong><br />
a musculatura abdominal e a especificamente respiratória), todo o<br />
17 “(...) the overall structural stability of the spine is a highly nonlinear function of many variables. In addition to<br />
the activation levels of all trunk muscles, spine stability is determined by ligamentous stiffness of the intervertebral<br />
joints, spine posture, and the magnitude, direction and end-conditions of external trunk loads”<br />
(tradução livre).
sistema músculo-esquelético precisa se reorganizar, o que gera, na<br />
maioria das vezes, desvios e deformidades posturais.<br />
Os estudos de Hodges et al. (1997a, 1997b, 2000a, 2001b) sobre<br />
a solidariedade <strong>entre</strong> diafragma e transverso do abdômen, tanto nas<br />
tarefas posturais quanto respiratórias, reforçam a posição de Denys-<br />
Struyf (1997) e Campignion (2001), que situam ambos os músculos na<br />
mesma cadeia músculo - aponeurótica. Hodges e Richardson (1997,<br />
1999) sugerem que o transverso do abdômen seria um músculo mais<br />
ligado à estabilidade <strong>postural</strong>, enquanto que os músculos abdominais<br />
superficiais atuariam predominantemente no movimento. De fato,<br />
Denys-Struyf e Campignion classificam o primeiro na cadeia muscular<br />
póstero-anterior, cuja função responde pelo controle anti-gravitário<br />
reflexo, enquanto que os oblíquos pertenceriam às cadeias póstero-<br />
lateral (oblíquos externos) e ântero-lateral (oblíquos internos), que<br />
respondem essencialmente pela dinâmica. Apenas o reto abdominal,<br />
classificado na cadeia ântero-mediana, teria uma atuação<br />
preferencialmente sobre a estática <strong>postural</strong>. De qualquer modo, as<br />
pesquisas apontam para o papel fundamental destes grupos<br />
musculares, não apenas para a biomecânica respiratória, mas para a<br />
<strong>organização</strong> <strong>postural</strong> em sua globalidade.<br />
1. 4 - Considerações sobre a <strong>organização</strong> <strong>postural</strong> global
“Entre todos os animais, incluindo os mamíferos, o homem é o<br />
único totalmente bípede. Essa característica, que alguns consideram um<br />
privilégio, acarreta um determinado número de particularidades” (Gagey<br />
e Weber, 2000, p. xiii). Sua maior desvantagem é o caráter instável, o<br />
que torna imprescindível o controle permanente (Smart Junior et al.,<br />
2004). A bipedia e, por conseguinte, o ortostatismo constituem o objeto<br />
de estudo daqueles que se dedicam à compreensão da <strong>organização</strong><br />
<strong>postural</strong> humana.<br />
Cabe aqui estabelecer claramente a diferença <strong>entre</strong> postura e<br />
posicionamento. Uma busca nas bases de dados virtuais com a palavra-<br />
chave “postura” (ou “posture”, em inglês), fornece uma enorme<br />
quantidade de artigos referentes a questões de posicionamento: postura<br />
em supino, postura em prono, etc. O que se pretende abordar aqui é a<br />
postura como construção do homem em pé, ou seja, a estruturação do<br />
sistema locomotor em sua relação com a gravidade. Assim, a postura<br />
ideal seria aquela que permite maior estabilidade e economia de<br />
esforço, propiciando melhores condições para as funções orgânicas<br />
(Hannon, 2000; Piret e Béziers, 1992).<br />
Certos autores admitem a noção de que esta postura ideal<br />
obedeceria a um padrão único, cabendo ao terapeuta <strong>postural</strong> adaptar o<br />
paciente a tal modelo (Gagey e Weber, 2000; Lehmkuhl e Smith, 1989;<br />
Souchard, 2001). Nesse sentido, Busquet (2001) sugere que o corpo
obedece a três leis: equilíbrio, economia e conforto. Sendo assim, as<br />
adaptações ocorreriam no sentido de evitar a dor, ou seja, preservar o<br />
conforto, ainda que com prejuízo da economia de esforço. Apesar de<br />
considerar a validade de tal conceito, este trabalho opta por adotar a<br />
premissa de que “cada indivíduo adota uma atitude corporal que lhe é<br />
própria e que deriva de sua vivência psico-comportamental 18 ”<br />
(Campignion, 1996, p. 108). Smart Junior et al. (2004) sustentam que o<br />
comportamento é inseparavelmente dependente da postura, sendo cada<br />
atitude resultante da exploração do repertório de posturas e movimentos<br />
presente em cada indivíduo. Este conceito está na base das teorias do<br />
método G.D.S. de Cadeias Musculares e Articulares (Denys-Struyf,<br />
1997) e se conecta ao pressuposto de Piret e Béziers (1992), de que<br />
”todo gesto é carregado de psiquismo, e o investimento do fator<br />
psicológico no movimento é análogo ao da motricidade no psiquismo” (p.<br />
13). Assim, estes autores, <strong>entre</strong> outros, irão partir do princípio de que<br />
não existe uma postura ideal única, mas um equilíbrio tônico que varia<br />
de indivíduo para indivíduo, construído a partir de fatores genéticos,<br />
psíquicos, comportamentais e sócio-culturais, sendo papel do terapeuta<br />
ajudar o paciente a estabelecer um funcionamento harmônico de suas<br />
estruturas corporais, respeitando suas particularidades (Alexander,<br />
1992; Bertherat, 1990; Béziers e Hussinger, 1994; Campignion, 2001;<br />
18<br />
“Chaque individu adopte une attitude corporelle qui lui est propre et qui découle de son vécu psychocomportemental”<br />
(tradução livre).
Davis, 1979; Denys-Struyf, 1986; Feldenkrais, 1988, 1994; Keleman,<br />
1992, 2001).<br />
Esta individualização diz respeito não apenas à estática <strong>postural</strong>,<br />
mas também ao movimento, incluindo a marcha. Tais autores<br />
convergem para a busca do que Denys-Struyf chama de “gesto justo”,<br />
ou seja, a otimização da qualidade mecânica do movimento. Eles<br />
defendem que há tantas maneiras de se realizar um gesto quanto<br />
existem indivíduos, mas que há formas mais ou menos organizadas de<br />
realizá-lo, o que resulta em diferenças no gasto energético e na<br />
solicitação / desgaste das estruturas mio-articulares. O próprio<br />
mecanismo de estabilização da coluna na dinâmica, pela contração<br />
sinérgica bem orquestrada de músculos do tronco, discutido neste<br />
capítulo, permite o que Van Dieën et al. (2003, p. 1835) chamam de<br />
“padrões suaves de movimento” ·.<br />
A enorme subjetividade que envolve as questões da estática fica<br />
especialmente evidente no estudo de Dunk et al. (2004), que questiona<br />
a validade de análises posturais computadorizadas para efeito de<br />
diagnóstico. Os autores demonstram que a variabilidade das posturas é<br />
imensa, tanto <strong>entre</strong> os sujeitos quanto no mesmo sujeito, em diferentes<br />
aferições. A pesquisa sugere que, frente às incontáveis variáveis que<br />
atuam na estruturação da atitude <strong>postural</strong>, métodos quantitativos de<br />
avaliação se mostram ineficazes do ponto de vista clínico.
Gagey e Weber (2000) descrevem a <strong>organização</strong> do corpo ereto<br />
em relação à gravidade. Segundo os autores, o centro de gravidade<br />
situa-se “numa região próxima à face anterior da terceira vértebra<br />
lombar, e as plantas dos pés devem suportar sozinhas o peso total<br />
sobre sua superfície estreita” (p. xiii). A construção da postura se dá,<br />
então, a partir do estímulo aos receptores de pressão situados nas<br />
plantas dos pés. O sistema <strong>postural</strong> fino se compõe de receptores<br />
externos (plantas dos pés, ouvido interno e visão) e internos (fusos<br />
neuromusculares, receptores tendinosos e articulares). Estes mecano-<br />
receptores internos constituem as estruturas proprioceptivas, que geram<br />
informações sobre o posicionamento dos segmentos corporais para o<br />
sistema nervoso central, permitindo a coordenação da atividade<br />
muscular durante a estática e o movimento (Campignion, 2001; Dutton,<br />
2002; Machado, 1998). A informação proprioceptiva proveniente dos<br />
músculos constitui o mecanismo sensório primário que viabiliza o<br />
controle motor (Comerford e Mottram, 2001). Diversos autores apontam<br />
as estruturas proprioceptivas dos membros inferiores, em especial dos<br />
tornozelos, como mantenedoras da <strong>organização</strong> <strong>postural</strong> frente a um<br />
desequilíbrio, assim como fornecedoras de informação sobre a<br />
velocidade do centro de massa, o que permite o controle <strong>postural</strong><br />
dinâmico por parte do sistema nervoso central. (Allum et al., 1998;<br />
Bloem et al., 2000; Jeka et al., 2004)
Quanto ao sistema visual, privilegiado pelo homem para a<br />
aquisição e tratamento da informação, desempenha um papel crucial,<br />
não apenas para a estruturação da postura, mas também para sua<br />
desestruturação. Ocorre que muitas das deformações posturais tendem<br />
a modificar a posição do pescoço e da cabeça, gerando compensações<br />
que visam sempre resgatar a horizontalidade do olhar (Campignion,<br />
2001; Gagey e Weber, 2000; Guyton e Hall, 1996).<br />
O estudo de Mercer e Sahrmann (1999) dá suporte à idéia de que<br />
“(...) o sistema neuromotor pode gerar uma variedade de soluções para<br />
uma dada tarefa motora 19 ”. Ao desempenhar o início da marcha, seus<br />
sujeitos eletromiograficamente monitorados exibiram o que os autores<br />
chamaram de “sinergias preferenciais”. A esse respeito, McGill et al.<br />
(2003) estabelecem uma distinção <strong>entre</strong> padrão motor e padrão de<br />
movimento. Segundo os autores, o padrão de movimento constituiria a<br />
descrição cinemática dos segmentos corporais ao produzirem os gestos<br />
necessários para o desempenho de uma determinada tarefa. O padrão<br />
motor representaria a maneira como os músculos são ativados para<br />
realizar a mesma tarefa, geralmente constante para um único sujeito,<br />
porém variável <strong>entre</strong> sujeitos diferentes. Assim, múltiplos padrões<br />
motores podem gerar um mesmo padrão de movimento, produzindo<br />
efeitos igualmente múltiplos em termos de estabilidade e solicitação<br />
19 “(...) the neuromotor system can generate a variety of solutions for a given motor task” (tradução livre).
articular. De Graaf et al. (2004) assinalam ainda uma distinção <strong>entre</strong> a<br />
consciência da cinemática do movimento e da força necessária para<br />
realizá-lo, identificável por diferenças no processamento da informação<br />
no sistema nervoso central. Por estas razões, métodos fisioterapêuticos<br />
que enfocam a consciência do movimento e a construção do “gesto<br />
justo” vão se utilizar da reeducação motora para obter uma<br />
reestruturação corporal que contemple, globalmente, a estática e a<br />
dinâmica.<br />
Grasso et al. (2000) demonstraram, ao analisar a marcha humana<br />
em diferentes posições (ereta e curvada para frente), que o equilíbrio é<br />
alcançado às custas de mudanças nos padrões e sinergias musculares,<br />
dado que os parâmetros cinemáticos controlados pelo sistema nervoso<br />
central não se modificam. A partir deste pressuposto, é possível inferir<br />
que sutis alterações posturais – que igualmente deslocam o centro de<br />
massa corporal, ainda que em menor grau – provocarão equivalentes<br />
modificações nestes padrões e sinergias, caracterizando a<br />
particularidade da motricidade de cada indivíduo, de acordo com sua<br />
atitude <strong>postural</strong>.<br />
Denys-Struyf (1986, 1997) e Campignion (1996, 2001) sustentam<br />
que o corpo, motivado pelo que chamam de “pulsão psico-
comportamental” 20 , sofre um sutil desequilíbrio em uma dada direção,<br />
alterando ligeiramente a posição do centro de gravidade e deflagrando a<br />
ação de determinado grupo de músculos, visando a recuperação do<br />
equilíbrio vertical e da horizontalidade do olhar. Denys-Struyf<br />
desenvolveu, a partir desta noção de “pulsões psico-comportamentais”,<br />
seis tipologias corporais, estereótipos que ajudam a perceber a forma<br />
impressa por tais ações musculares compensatórias sobre o corpo do<br />
indivíduo. Os grupos musculares correspondentes constituem os<br />
encadeamentos de tensão mio-fascial que dão nome ao seu método: as<br />
cadeias musculares G.D.S. (figs. 4 e 5).<br />
Denys-Struyf (1997) divide, então, as cadeias musculares <strong>entre</strong> o<br />
eixo vertical, compreendendo as estruturas póstero-mediana (PM),<br />
ântero-mediana (AM) e póstero-anterior / ântero-posterior (PA-AP), e o<br />
eixo horizontal, representado pelas estruturas póstero-lateral (PL) e<br />
ântero-lateral (AL). Veremos adiante que, neste ponto, suas análises<br />
<strong>biomecânicas</strong> vão ao encontro dos conceitos desenvolvidos por Piret e<br />
Béziers (1992), sobre o sistema reto e o sistema cruzado. Ao se avaliar<br />
cada uma destas atitudes posturais em relação ao fio de prumo, obtém-<br />
se um alinhamento distinto, o que gera repercussões diferenciadas<br />
também no comportamento das articulações.<br />
20 A descrição detalhada dos aspectos psico-comportamentais inerentes ao método G.D.S. foge ao escopo desta<br />
pesquisa, que pretende se ater à questão biomecânica, sem contudo negligenciar a importância de tais fatores.
De fato, a mobilidade articular não é um fenômeno generalizado,<br />
isto é, o arco de movimento em uma determinada articulação não pode<br />
ser utilizado como parâmetro global para um indivíduo, o que constitui a<br />
idéia da especificidade da flexibilidade (Araújo, 2004). Um estudo<br />
goniométrico, realizado por Vieira et al. (1999), identificou discrepâncias<br />
nos arcos de movimento de articulações como a talo-crural, coxofemoral<br />
e escápulo-umeral <strong>entre</strong> indivíduos de diferentes tipos posturais, que<br />
foram agrupados segundo as tipologias descritas por Denys-Struyf<br />
(1986, 1997). Os valores encontrados corroboram com os preceitos do<br />
método, que descrevem, por exemplo, uma diminuição de flexibilidade<br />
na articulação coxofemoral nas tipologias PM e PL, na talo-crural em PM<br />
e na escápulo-umeral em AL.
Figura 4: “As tipologias de Godelieve Denys-Struyf e as cadeias musculares<br />
correspondentes: 6 famílias de músculos para que o corpo possa se expressar, mas que<br />
podem se tornar cadeias de tensão mio-fascial que aprisionam o corpo em uma tipologia 21 ”<br />
(Campignion, 1996, p. 109, com desenhos de Denys-Struyf)<br />
21 “Les typologies de Godelieve Denys-Struyf et les chaînes musculaires correspondantes: 6 familles de muscles<br />
pour que le corps puisse s´exprimer, mais qui peuvent devenir chaînes de tensions myo-fasciales qui enchaînent<br />
le corps dans une typologie” (tradução livre).
Figura 5: Esquema da relação das atitudes posturais descritas por Denys-Struyf com a<br />
linha da gravidade (Campignion, 2001, p. 30)<br />
Segundo Denys-Struyf (1997), o aparelho locomotor compreende<br />
cinco cadeias articulares, uma representada pelo conjunto pelve –<br />
coluna vertebral – tórax – cabeça e outras quatro representadas pelos<br />
membros. Cada articulação do corpo sofre influência de músculos de<br />
todas as cadeias musculares, que promovem a interligação <strong>entre</strong> as<br />
cadeias articulares. Campignion (2001) lembra que a cadeia articular<br />
revestida de cadeias musculares corresponde ao que Piret e Béziers<br />
(1992) denominam unidade motora, assim como a descrição das<br />
cadeias articulares de Denys-Struyf remete à forma como Piret e Béziers
categorizam as unidades de coordenação (unidades transicionais,<br />
correspondendo às cadeias dos membros, e unidades de enrolamento,<br />
correspondendo à cadeia do tronco). Inevitavelmente, tais similitudes<br />
conduzem a análises <strong>biomecânicas</strong> semelhantes.<br />
Piret e Béziers (1992) situam a noção de encadeamentos<br />
musculares a partir da abrangência de suas inserções. Isto significa que<br />
os músculos monoarticulares têm uma função segmentar, devendo ser<br />
organizados e coordenados <strong>entre</strong> si pelos músculos pluriarticulares.<br />
D<strong>entre</strong> estes últimos, alguns são chamados “músculos condutores”<br />
(sartório e tibial anterior, por exemplo), por realizarem a transmissão da<br />
contração aos músculos subseqüentes. As autoras descrevem o estado<br />
de tensão, necessário à coordenação motora, como fundado sobre uma<br />
base tripla, que compreende o tônus e o antagonismo muscular, além da<br />
<strong>organização</strong> de todos os músculos <strong>entre</strong> si. Tal <strong>organização</strong> seria capaz<br />
de estruturar o corpo devido à característica esférica dos grupos<br />
articulares (cabeça femoral e acetábulo, cabeça umeral e cavidade<br />
glenóide, por exemplo). As direções oblíquas dos músculos condutores,<br />
agindo sobre tais esfericidades, promovem as associações <strong>entre</strong> torção<br />
e flexão que caracterizam a <strong>organização</strong> global. Béziers e Hussinger<br />
(1994) assumem que:<br />
“Enrolamento-torção-tensão permitem que o corpo se organize em<br />
uma unidade estruturada, na qual a criança poderá se apoiar para
avançar em direção ao mundo. É uma <strong>organização</strong> essencial, sobre a<br />
qual a criança estrutura seu corpo e sua personalidade” (p. 25).<br />
Como forma de sintetizar os conceitos propostos, Piret e Béziers<br />
(1992) elaboram o “princípio da coordenação”:<br />
”A <strong>organização</strong> mecânica do corpo, fundada no antagonismo<br />
muscular, é construída com base no princípio de elementos esféricos<br />
tensionados pelos músculos condutores que, da cabeça à mão e ao<br />
pé, unem todo o corpo em uma tensão que rege sua forma e seu<br />
movimento, constituindo a coordenação motora” (p. 22).<br />
Uma classificação funcional semelhante foi descrita por Comerford<br />
e Mottram (2001), levando em consideração o caráter ampliado da ação<br />
dos músculos pluriarticulares. Os autores pontuam o fato de que as<br />
disfunções do sistema locomotor ocorrem, em geral, por desequilíbrios<br />
da coordenação global, que deveria se dar a partir da sinergia precisa<br />
de músculos antagonistas, orquestrada por um eficiente sistema<br />
proprioceptivo.<br />
Conforme anteriormente mencionado, a classificação das cadeias<br />
musculares G.D.S. <strong>entre</strong> os eixos vertical e horizontal encontra um<br />
paralelo, em Piret e Béziers, no conceito de sistema reto e sistema<br />
cruzado. O sistema reto une a chamada abóbada da cabeça à abóbada<br />
da bacia, através de músculos presentes tanto na face anterior como<br />
posterior do tronco, sendo interligados pelo períneo, inferiormente, e<br />
pela musculatura da cavidade oral, superiormente. Tal sistema seria<br />
responsável pelos movimentos de enrolamento e endireitamento do
tronco e correspondem, em larga medida, às estruturas do eixo vertical<br />
de Denys-Struyf. Já o sistema cruzado compreende estruturas<br />
presentes predominantemente nos membros e desempenha a função da<br />
realização do movimento recíproco, ou seja, das torções,<br />
assemelhando-se, assim, às estruturas do eixo horizontal de Denys-<br />
Struyf.<br />
O enrolamento (aproximação das abóbadas da bacia e da cabeça)<br />
se dá a partir de músculos que coincidem com a cadeia muscular AM,<br />
como é o caso dos hioidianos, retos abdominais e períneo. Denys-Struyf<br />
(1997) concorda com Béziers e Hussinger (1994) e Piret e Béziers<br />
(1992) sobre a importância de uma boa estruturação deste enrolamento<br />
– e da cadeia muscular AM – na infância, para assegurar um bom<br />
desenvolvimento das demais estruturas. Se, para Piret e Béziers, o<br />
endireitamento só é possível a partir de um enrolamento bem<br />
coordenado, para Denys-Struyf, é a construção de uma estrutura AM de<br />
boa qualidade que impede o excesso de atividade da cadeia muscular<br />
PM (responsável, como visto anteriormente, por um sem-número de<br />
distúrbios) e permite a emergência de uma cadeia PA-AP organizada e<br />
ritmada, o que gera efeitos positivos sobre a postura e a respiração,<br />
conforme já mencionado.<br />
Piret e Béziers estabelecem tais noções no sentido de descrever<br />
os princípios de uma coordenação motora que gere tanto o gesto
organizado quanto a postura bem estruturada. Denys-Struyf parte de<br />
uma perspectiva global da estática, realizando suas análises<br />
<strong>biomecânicas</strong> segmentares a partir do comportamento do sistema<br />
locomotor frente a cada diferente construção <strong>postural</strong>.<br />
Estes fundamentos teóricos constituem os alicerces de<br />
sustentação da prática fisioterapêutica voltada para a estruturação<br />
global da postura. Através destes preceitos, esta pesquisa pretende<br />
mostrar o quanto a função respiratória sofre influências diretas da<br />
biomecânica músculo-esquelética. Fica evidente, em termos do<br />
tratamento de crianças com doenças que acometem a respiração, a<br />
necessidade de não se negligenciar os aspectos ligados ao sistema<br />
locomotor.<br />
Capítulo 2 - CONSIDERAÇÕES SOBRE A ABORDAGEM FISIOTERAPÊUTICA<br />
POSTURAL<br />
A abordagem fisioterapêutica <strong>postural</strong> compreende um conjunto de métodos e técnicas<br />
que visam, em última análise, o reequilíbrio da globalidade do sistema músculo-esquelético.<br />
Sua prática é fundamentada na utilização da cinesioterapia 22 e de recursos terapêuticos<br />
manuais. Difere da fisioterapia ortopédica clássica pela ausência de recursos termo-eletro-<br />
22 Terapia pelo movimento, ou seja, por exercícios.
mecanoterápicos, assim como se distancia das terapias manuais orientais (shiatsu,<br />
reflexologia, medicina ayurvédica, <strong>entre</strong> outras), por centrar seus preceitos teóricos no estudo<br />
da biomecânica do aparelho locomotor, da propriocepção e da estrutura <strong>postural</strong>, ao invés de<br />
privilegiar a questão energética. Apesar do foco mecânico, a concepção global assume a forte<br />
influência dos aspectos psico-comportamentais sobre a <strong>organização</strong> motora, o que se nota<br />
particularmente em métodos como o G.D.S. de Cadeias Musculares e Articulares (Denys-<br />
Struyf, 1997), a Coordenação Motora de Piret e Béziers (1992), a Técnica de Alexander<br />
(1992), a Consciência pelo Movimento de Moshe Feldenkrais (1988; 1994) e a Eutonia de<br />
Gerda Alexander (1991), sendo menos valorizada na Reeducação Postural Global de P. E.<br />
Souchard (2001), nas Cadeias Musculares de Léopold Busquet (2001) e em técnicas mais<br />
segmentares, como o método Sohier e a Osteopatia. De qualquer modo, ainda que se<br />
considere a importância desta questão, nenhuma destas vertentes se propõe a abordar<br />
diretamente o psiquismo, voltando seu instrumental teórico-prático para a motricidade e a<br />
reeducação corporal. Neste sentido, Bertazzo (1996) comenta:<br />
“Devemos nos preparar para que o gesto não se sobrecarregue de cargas<br />
psíquicas. (...) Ou seja, as chaves de arranque para os movimentos mais<br />
corriqueiros de nosso cotidiano deveriam ser coordenadas<br />
predominantemente mecânicas, e não se submeterem ao controle do<br />
psiquismo” (p. 24).<br />
Muitos destes métodos não foram desenvolvidos, a princípio, por ou para<br />
fisioterapeutas, sendo até hoje largamente utilizados por profissionais de dança e educação<br />
física, ou mesmo isoladamente, no âmbito das terapias corporais, no sentido da promoção de<br />
consciência corporal, da preparação física para atividades artísticas (teatro e dança, por<br />
exemplo) e até mesmo do relaxamento.<br />
Fisioterapeutas interessados na questão <strong>postural</strong>, <strong>entre</strong>tanto, incorporaram tais técnicas<br />
e conceitos ao seu arsenal terapêutico, tornando possível uma utilização criteriosa que
contemple também os distúrbios ósteo-mio-articulares. Lederman (2001) e Denys-Struyf<br />
(1985a) ressaltam que não existem métodos bons ou ruins. Se o terapeuta aguçar sua<br />
percepção para tornar possível a adaptação da técnica às necessidades do paciente, ele poderá<br />
escolher livremente o método, pois este será eficaz. Se, ao contrário, o terapeuta buscar<br />
adaptar o paciente a uma técnica pré-determinada, sem levar em conta sua individualidade, os<br />
resultados podem ser decepcionantes.<br />
Assim, embora a abordagem fisioterapêutica <strong>postural</strong> desenvolvida no âmbito do IFF<br />
se fundamente essencialmente nos métodos G.D.S. de Cadeias Musculares e Articulares de<br />
Godelieve Denys-Struyf (1983a, 1983b, 1986, 1992, 1996, 1997) e na Coordenação Motora<br />
de Piret e Béziers (1992) e Béziers e Hussinger (1994), ela incorpora elementos de outras<br />
vertentes terapêuticas, a partir dos recursos da terapia manual e da cinesioterapia.<br />
Buscando chamar a atenção para a necessidade de uma presença mais significativa do<br />
campo em questão na literatura, Cassidy (2003) lança luz sobre o problema da cientificidade,<br />
no que tange aos métodos terapêuticos manuais e ao trabalho corporal, pela dificuldade em se<br />
controlar vieses, em geral extremamente sutis. Da mesma forma, Liebenson e Lewit (2003)<br />
comentam o freqüente questionamento quanto à validade de pesquisas envolvendo a palpação,<br />
método diagnóstico por excelência da terapia manual. Os autores admitem a “dificuldade em<br />
demonstrar sua confiabilidade, por causa da sofisticação e alto nível de habilidade requerida<br />
para desempenhar a técnica” 23 (p. 47), ponderando sobre o fato de se tratar de um campo<br />
essencialmente empírico que, em termos de produção científica, vive sua infância. De<br />
qualquer modo, a multiplicidade de variáveis envolvidas, <strong>entre</strong> heterogeneidade dos sujeitos,<br />
sensibilidade do terapeuta à palpação, relação e feedback <strong>entre</strong> terapeuta e paciente, <strong>entre</strong><br />
outras, torna bastante difícil a reprodutibilidade de estudos sobre o assunto. Em contrapartida,<br />
os autores argumentam que “abandonar um instrumento porque ele é difícil de mensurar não<br />
23<br />
“(...) difficulties in demonstrating reliability because of the sophistication and high level of skill required for<br />
performing the technique” (tradução livre).
faz muito sentido quando nos vemos em um campo em que mais de 85% de nossos pacientes<br />
são rotulados como sofrendo de uma ‘desordem inespecífica’ ” 24 (p. 46), valorizando a<br />
indiscutível efetividade clínica dos métodos manuais, especialmente nas disfunções sacro-<br />
ilíacas e nas lombalgias. De fato, Aure et al. (2003) realizaram um importante ensaio clínico<br />
multicêntrico, controlado e randomizado que evidenciava a eficácia da terapia manual no<br />
tratamento de lombalgias crônicas, mostrando resultados melhores do que aqueles obtidos<br />
pela convencional terapia por exercícios.<br />
A terapia manual, com efeito, ocupa uma posição de absoluto destaque <strong>entre</strong> as<br />
ferramentas utilizadas na abordagem fisioterapêutica <strong>postural</strong>, especialmente no tratamento de<br />
crianças. Trata-se da “aplicação de forças, pelas mãos, no intuito de mover articulações e<br />
tecidos subjacentes, num esforço de melhorar a função e aliviar sintomas, como a dor” 25<br />
(Mercer, 2004, p. 59). O profundo conhecimento da anatomia e biomecânica das estruturas<br />
tratadas é crucial para a compreensão e aplicação das teorias que sustentam esta prática<br />
terapêutica, que compreende uma ampla gama de procedimentos, <strong>entre</strong> massagens, estímulos<br />
sobre a pele, mobilizações e técnicas reflexas (Campignion, 2001; Mercer, 2004).<br />
Lederman (2001) descreve os fundamentos teóricos desta área de atuação, a partir de<br />
seus efeitos sobre a <strong>organização</strong> tecidual e neurológica e dos processos psicofisiológicos e<br />
comportamentais envolvidos na questão. Em linhas gerais, as forças mecânicas transmitidas<br />
pela manipulação afetam os tecidos moles diretamente sob as mãos do terapeuta (pele,<br />
músculos, tendões, ligamentos, estruturas articulares e sistemas de fluidos, como vascular,<br />
linfático e sinovial), influenciando os processos de reparo, alterando suas propriedades físicas<br />
e mecânicas (como, por exemplo, no alongamento e normalização de tecidos encurtados, que<br />
conferem maior amplitude ao movimento) e modificando localmente a dinâmica dos fluidos<br />
24 “To abandon a tool because it is hard to measure does not make much sense when we are in a field where<br />
over 85 percent of our patients are labeled as having a ‘nonspecific disorder’ “ (tradução livre).<br />
25 “(...) the application, by hand, of forces intended to move joints and surrounding tissues, in an effort to<br />
improve function and relieve symptoms, such as pain” (tradução livre).
no tecido. Além disso, do ponto de vista neurofisiológico, a terapia manual atua na<br />
<strong>organização</strong> do sistema motor – em termos de reabilitação de lesões do sistema nervoso<br />
central e do aparelho locomotor – e no tratamento da dor. Os efeitos do toque terapêutico<br />
podem ser verificados ainda no âmbito psíquico, contribuindo para o processo de cura através<br />
de sua ação sobre as emoções, que associam-se a uma “resposta somática padronizada, a<br />
qual pode manifestar-se como alterações inespecíficas generalizadas no tônus muscular,<br />
alterações autônomas generalizadas e alterações na tolerância à dor” (p. 3).<br />
Lederman (2001) ressalta o aprimoramento das capacidades de introspecção,<br />
conscientização e relaxamento possibilitado por esta modalidade terapêutica. Ele atribui a tais<br />
aquisições um papel fundamental para a percepção da postura e do movimento e para o<br />
relaxamento motor, o que contribui sobremaneira para a boa evolução no tratamento. Estas<br />
perspectivas são especialmente caras a métodos como a Técnica de Alexander, o Método<br />
Feldenkrais e a Eutonia, embora perpassem quase todas as vertentes interessadas no humano<br />
em sua globalidade.<br />
É especialmente digna de nota a concepção de Lederman (2001) sobre a influência da<br />
terapia manual sobre o aprendizado motor, através de técnicas de orientação manual e<br />
estímulo à propriocepção, beneficiando-se da plasticidade neuronal. A construção do “gesto<br />
justo”, objetivo terapêutico do método G.D.S., assim como da Coordenação Motora, passa<br />
pela estimulação manual de direções ósteo-mio-articulares, buscando facilitar o aprendizado<br />
motor pela via proprioceptiva. São largamente utilizadas as chamadas “manobras<br />
modelantes”, em que tais direções são impressas no segmento corporal, pela mão do<br />
terapeuta, como se efetivamente “moldasse” a forma bem coordenada. Este recurso foi<br />
bastante utilizado, no âmbito do tratamento das crianças envolvidas nesta pesquisa,<br />
notadamente na confecção dos arcos plantares. A esse respeito, Piret e Béziers (1992)<br />
propõem que:
“A sensação da forma da pele se vincula à imagem de nosso próprio volume<br />
e de seu movimento. A manipulação da pele permite recuperar as imagens<br />
correspondentes.<br />
Sensibilidade profunda e pele nos permitem perceber a forma de<br />
nosso corpo. Assim, nosso próprio volume no espaço tem uma forma<br />
percebida, na superfície, pela pele, e na estrutura, pela sensação<br />
proprioceptiva de sua mecânica e de seu estado de tensão” (p. 30).<br />
Com efeito, Lederman (2001) aponta o aumento do aporte aferente pela estimulação<br />
de vários mecanoceptores e a redução do feedback visual como as formas pelas quais a<br />
propriocepção pode ser aumentada. A estimulação aferente, segundo o autor, se daria por<br />
meio de eventos dinâmicos como massagem, fricção ou vibração. A questão da redução do<br />
feedback visual esbarra em uma prática corriqueira da fisioterapia clássica: a utilização do<br />
espelho como principal recurso para a estimulação proprioceptiva. Ao contrário, o autor<br />
sustenta que a supressão da visão (ou seja, supressão do espelho) faz com que o paciente lance<br />
mão da propriocepção como via de correção e aprendizado do movimento. A maioria dos<br />
métodos posturais contemporâneos assume esta perspectiva.<br />
No que concerne à ação da terapia manual sobre as articulações, cabe lembrar a<br />
diferença <strong>entre</strong> manipulação e mobilização, dois tipos distintos de movimento articular<br />
passivo. A manipulação constitui a produção de um movimento breve, em alta velocidade<br />
(thrust), que ultrapassa a amplitude articular passiva. Trata-se de uma técnica específica de<br />
métodos como a osteopatia e a quiropraxia, que não será abordada neste estudo. A<br />
mobilização, por sua vez, é largamente utilizada no âmbito da fisioterapia, não apenas nas<br />
questões posturais e ortopédicas, mas também em outras áreas desta disciplina. Trata-se da<br />
aplicação de movimento passivo repetidamente, em velocidades e amplitudes diversas, de<br />
acordo com os efeitos desejados, respeitando os limites impostos pela própria estrutura<br />
(barreira elástica). Promove o alongamento do tecido em torno da articulação, influencia<br />
neuromuscularmente o tônus muscular e estimula a consciência proprioceptiva. A
mobilização por micro-movimentos (alongamentos oscilatórios), por exemplo, atua sobre a<br />
mobilidade acessória que ocorre na intimidade da articulação, reduzindo o desconforto<br />
eventualmente produzido pelo tratamento. Já aquela que atinge um arco de movimento mais<br />
amplo, privilegia a mobilidade angular, ou seja, trabalha a articulação numa dimensão mais<br />
visível, na globalidade do segmento (Dutton, 2002; Gale, 2003; Lederman, 2001).<br />
Além da mobilização, a terapia manual conta com diversas outras ferramentas para a<br />
obtenção do alongamento de um determinado músculo ou grupo muscular. Passivamente,<br />
pode-se proceder ao tracionamento lento, progressivo e cuidadoso do músculo em toda a sua<br />
extensão, para que o tecido sofra alterações de viscosidade, podendo ser realizado de forma<br />
cíclica, isto é, compreendendo períodos de tensão e alívio, além de movimentação (Lederman,<br />
2001). O método G.D.S. preconiza que tal tracionamento se dê de uma inserção à outra, na<br />
direção do ponto fixo estático da cadeia muscular à<br />
qual pertence (Campignion, 2001, 2004) 26 . No caso dos soleares, por exemplo, o<br />
tracionamento deve ocorrer em direção ao tendão de Aquiles, dado que está incluído na cadeia<br />
muscular PM, que assume ponto fixo na extremidade inferior. Em algumas situações, um<br />
músculo espasmado pode assumir uma ação em “corda de arco”, ou seja, aproximar suas<br />
inserções sem um ponto fixo definido, o que torna necessário o tracionamento e/ou<br />
descolamento do mesmo a partir do centro de seu v<strong>entre</strong>, simultaneamente na direção de<br />
ambas as inserções (Chatelle, 1985).<br />
Pode-se ainda realizar o estiramento por distanciamento passivo das inserções<br />
musculares, visando a ampliação do arco de movimento. É comum incluir a participação ativa<br />
do paciente, associando-se a esta modalidade procedimentos como o alongamento facilitado, a<br />
26 Apesar de, cinesiologicamente, os músculos poderem assumir diferentes pontos fixos, de acordo com o<br />
movimento realizado, Campignion (2001, 2004) descreve a noção de que, na estática, o equilíbrio <strong>entre</strong> as<br />
cadeias musculares depende de que cada uma assuma um ponto fixo determinado, com exceção da cadeia AP,<br />
cuja ritmicidade se vincula à capacidade de alternar seus pontos fixos. Assim, as cadeias AM, PM e AL têm<br />
ponto fixo estático sempre inferior, enquanto as cadeias PA e PL têm ponto fixo estático sempre superior.
técnica somática e o alongamento muscular ativo, que têm em comum a solicitação de uma<br />
contração isométrica resistida na amplitude máxima do arco de movimento, seguida da<br />
tentativa de aumentar passivamente esta amplitude, visando não apenas a modificação<br />
viscoelástica tecidual, mas também a promoção do aprendizado sensório-motor. Este tipo de<br />
exercício pode ser realizado de forma ativa livre, ou seja, desempenhado pelo paciente, sem a<br />
participação do terapeuta. Mesmo nesta situação, é comum a manutenção do contato, seja no<br />
sentido de facilitar a manobra, dar suporte a outros segmentos corporais ou, simplesmente,<br />
transmitir conforto e segurança ao paciente (De Deyne, 2001; Dreaver e Provasoli, 2003;<br />
Lederman, 2001; McAtee, 2002).<br />
Campignion (2004) descreve um conjunto de manobras, específicas do método<br />
G.D.S., denominadas “accordages“, em que os músculos de diferentes cadeias são,<br />
literalmente, postos “de acordo” <strong>entre</strong> si. Trata-se do tracionamento simultâneo de dois<br />
músculos em um mesmo segmento, cada um na direção do ponto fixo estático da cadeia da<br />
qual faz parte. Os glúteos fornecem um bom exemplo: o glúteo máximo (PM) é tracionado no<br />
sentido crista ilíaca - trocânter maior, enquanto o glúteo médio (PL) vai na direção inversa. O<br />
glúteo mínimo (AL), por sua vez, pode ser “acordado” com o glúteo médio, pois segue a<br />
mesma direção do glúteo máximo. A “accordage”, ou seja, a harmonização deste grupo<br />
muscular é fundamental para a boa coordenação da transmissão da tensão <strong>entre</strong> a coluna<br />
lombar, a pelve e os membros inferiores.<br />
Ainda no âmbito das técnicas manuais, é preciso destacar o descolamento e torção da<br />
pele, no intuito de alongar pregas de tecido conjuntivo, promovendo a mobilidade dos<br />
músculos em relação aos ossos subjacentes. Esta interferência direta, além de facilitar a<br />
liberação de eventual tecido cicatricial, se constitui em uma via altamente eficaz de<br />
alongamento de músculos curtos ou rígidos, sendo necessária a adoção de pouquíssima força<br />
(Campignion, 1996; Lewit, 2003). Barnes (2003) cria a imagem do “homem fáscia” para
demonstrar o quanto a totalidade do organismo se vê interconectada a partir desta teia de<br />
tecido conjuntivo, afirmando que restrições miofasciais originárias da área lombossacra “(...)<br />
podem se espalhar completamente pelo corpo e produzir sintomas, (...) gerando trações<br />
anormais e desequilíbrios na região cervical superior, regiões torácicas ântero-posteriores e<br />
extremidades inferiores posteriores” (p. 456). Estes fatores justificam a necessidade de uma<br />
atuação fisioterapêutica que contemple as sutilezas deste tipo de tecido, através das manobras<br />
de pele comuns aos diversos métodos posturais, associadas às mobilizações articulares<br />
(Alexander, 1991; Béziers e Hussinger, 1994; Campignion, 1996, 2001, 2004; Denys-Struyf,<br />
1986).<br />
O mesmo tipo de processo fisiológico se observa na aplicação de pressão sobre os<br />
tecidos moles, em que um movimento de torção viabiliza tanto a liberação miofascial quanto<br />
um aporte sensorial que, se deflagrado de forma apropriada, possibilita o controle das direções<br />
ósteo-articulares bem coordenadas. Piret e Béziers (1992), Béziers e Hussinger (1994) e<br />
Campignion (2001, 2004) descrevem tais direções e a forma como o terapeuta deve estimulá-<br />
las, seguindo o princípio das rotações externas proximais e rotações internas distais (por<br />
exemplo, no caso dos membros inferiores, deve-se imprimir à coxa uma rotação externa, à<br />
perna uma rotação interna, ao retropé uma rotação externa e ao antepé uma rotação interna).<br />
Estes descolamentos dos tecidos moles, torções e rotações, em especial no que tange<br />
aos membros inferiores e coluna lombar, juntamente com as mobilizações e exercícios de<br />
alongamento e fortalecimento 27 , constituem boa parte do foco da abordagem <strong>postural</strong><br />
direcionada aos sujeitos desta pesquisa. Apesar de, na prática, estarem centradas<br />
primordialmente nos métodos G.D.S. de Cadeias Musculares e Articulares e da Coordenação<br />
27 Por serem pouco utilizados no contexto das terapias posturais contemporâneas, com exceção dos abdominais,<br />
os exercícios de fortalecimento não serão abordados detalhadamente neste trabalho. O único exemplar desta<br />
modalidade adotado ao longo do estudo foi a atividade apelidada de “elevador” (ver capítulo 4, p. 59). Trata-se<br />
da elevação do tronco a partir do decúbito dorsal, com os pés apoiados no terapeuta, que facilita a manobra pela<br />
ativação do sistema reto da criança, através da preensão das mãos e posicionamento coordenado dos membros<br />
superiores (Béziers e Hussinger, 1994, p. 37).
Motora de Piret e Béziers, tal abordagem encontra suporte e paralelo no conjunto das técnicas<br />
destinadas ao tratamento dos acometimentos posturais, tendo em vista uma percepção do<br />
homem em sua globalidade, tanto quanto ao seu sistema locomotor quanto no que concerne às<br />
suas interações psico-comportamentais e sociais. O valioso recurso da terapia manual<br />
preenche a lacuna deixada por condutas mais reducionistas e mecanicistas, funcionando como<br />
via de acesso a um atendimento integral.
Capítulo 3 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A SÍNDROME DE PRUNE BELLY<br />
A síndrome de prune belly (SPB), também conhecida como<br />
síndrome da tríade ou de Eagle-Barrett, é uma doença congênita que se<br />
caracteriza pela ausência, deficiência ou hipoplasia da musculatura<br />
abdominal, acompanhada por anomalia do trato urinário<br />
(predominantemente bexiga aumentada e hipotônica e ureteres<br />
dilatados e tortuosos) e criptorquidismo bilateral (Greskowich e Nyberg<br />
Junior, 1988; Woodard, 1985). Sua incidência é de aproximadamente 1<br />
em 40.000 indivíduos, sendo fortemente predominante no sexo<br />
masculino (95%). Os raros acometimentos do sexo feminino são<br />
considerados como formas incompletas da síndrome (Greskowich e<br />
Nyberg Junior, 1988; Jennings, 2000; Lam e Mehdian, 1999).<br />
As deformidades do trato urinário contribuem significativamente<br />
para a morbidade e mortalidade da doença. Entretanto, apesar de ter<br />
sido por muito tempo relegada a um segundo plano, a deficiência da<br />
musculatura abdominal responde por uma importante participação no<br />
que diz respeito às repetidas infecções respiratórias, à constipação<br />
crônica e à disfunção vesical, freqüentemente associadas à síndrome<br />
(Crompton et al., 1993; Ewig et al., 1996; Greskowich e Nyberg Junior,<br />
1988; Jesus et al., 2000). Além disso, ao longo do crescimento e do
desenvolvimento motor da criança, tal deficiência provoca outras<br />
anormalidades no sistema músculo-esquelético, manifestando desvios<br />
posturais diversos (Lam e Mehdian, 1999). Conforme descrito no<br />
capítulo 1 (p. 2), isto ocorre porque os músculos da face anterior do<br />
tronco agem em permanente equilíbrio mecânico com aqueles da face<br />
posterior, no sentido de manter a verticalidade da pelve e as curvas<br />
fisiológicas da coluna. Uma vez rompido este equilíbrio, a perda do<br />
tônus dos músculos anteriores provocará um excesso de tônus na<br />
musculatura posterior, alterando a <strong>organização</strong> do esqueleto de forma<br />
global (Béziers e Hussinger, 1994; Denys-Struyf, 1997; Kapandji, 1999;<br />
Lehmkuhl e Smith, 1989; Piret e Béziers, 1992).<br />
Este segmento pretende rever a etiologia e a patogênese da SPB,<br />
assim como aspectos relacionados à biomecânica tóraco-abdominal, ao<br />
desenvolvimento motor e à respiração dos indivíduos acometidos.<br />
3.1 – Etiologia e patogênese<br />
Não existe, até o momento, consenso definitivo sobre a etiologia e<br />
a patogênese da SPB. Diversas teorias vêm, ao longo dos anos,<br />
tentando explicar a origem das anomalias características. Todas elas<br />
apresentam, <strong>entre</strong>tanto, um aspecto comum: a associação da morfologia<br />
da doença a um distúrbio do desenvolvimento intra-uterino.
Em 1959, McGovern e Marshall contrariam a crença prévia de que<br />
o defeito da parede abdominal seria a anomalia primária e defendem<br />
uma etiologia embriológica. Descrevem ainda a obstrução do trato<br />
urinário como outra possível etiologia, que justificaria sua distensão e<br />
dilatação, pressionando a parede abdominal e impedindo o<br />
desenvolvimento muscular. King e Prescott (1978) confirmam estas<br />
duas teorias como passíveis de justificar o desenvolvimento da<br />
síndrome. Na primeira, um erro mesodérmico primário resultaria tanto na<br />
hipoplasia abdominal quanto nas anomalias genito-urinárias. Na<br />
segunda, a obstrução e distensão de rins, ureteres, bexiga ou uretra,<br />
como defeito primário, originaria secundariamente a falha no<br />
desenvolvimento da musculatura abdominal. A revisão da literatura<br />
mostra que a discussão ainda gira, predominantemente, em torno<br />
destas duas possibilidades, obstrutiva e embrionária. López et al.<br />
(2000), por exemplo, reafirmam a controvérsia, citando tanto o defeito no<br />
desenvolvimento mesodérmico quanto a obstrução primária do trato<br />
urinário, que provocaria o aparecimento da megabexiga, ocasionando<br />
mecanicamente a distensão abdominal e a criptorquidia.<br />
A hipótese obstrutiva, discutida por Greskovich e Nyberg Junior em<br />
1988, propõe que a hipoplasia do estroma e do epitélio prostático resulta<br />
em fraqueza da uretra prostática, provocando obstrução do trato urinário<br />
com distensão e dilatação. Os autores questionam, <strong>entre</strong>tanto, a falha
no desenvolvimento da parede abdominal como conseqüência da<br />
pressão gerada pela ascite decorrente de tal hipertrofia, dado que o<br />
aspecto do defeito muscular não é homogêneo, raramente se<br />
apresentando na totalidade da parede abdominal. Artigos mais<br />
recentes, como o de Lam e Mehdian (1999) e o de Kanamori et al.<br />
(2001) sustentam a controvérsia. No que diz respeito a problemas do<br />
desenvolvimento da próstata fetal, Volmar et al. (2003) descrevem casos<br />
de obstrução da junção <strong>entre</strong> a uretra prostática e a peniana, sendo os<br />
primeiros autores a caracterizarem a fimose como um fator etiológico da<br />
SPB. Todavia, estes autores comentam, baseados em outras leituras, a<br />
dificuldade de encontrar provas concretas de obstrução anatômica.<br />
A teoria embriológica foi discutida por diversos autores e está<br />
centrada em um defeito no desenvolvimento mesenquimatoso. A<br />
explicação para a má-formação, tanto do trato urinário quanto da<br />
musculatura abdominal, na síndrome de prune belly, residiria na origem<br />
comum de tais estruturas no mesoderma defeituoso (Stephens e Gupta,<br />
1994). Uma disfunção no desenvolvimento mesonéfrico <strong>entre</strong> a quarta e<br />
a sexta semana de gestação afetaria as zonas de origem dos ureteres e<br />
das vesículas seminais. Há controvérsia quanto ao período da vida fetal<br />
em que ocorre o erro do desenvolvimento embrionário. Segundo<br />
Greskovich e Nyberg Junior (1988), uma anormalidade na morfogênese<br />
das diferentes camadas do mesênquima ocorreria no início da terceira
semana gestacional, sendo responsável, simultaneamente, por toda a<br />
configuração da síndrome, dado que, a partir da camada visceral, é<br />
gerada a musculatura lisa para a formação dos ureteres, bexiga,<br />
próstata e uretra; a camada intermediária é a fonte da constituição dos<br />
rins; e a camada para-axial contribui para a formação da musculatura<br />
abdominal. Jennings (2000) considera esta hipótese a mais plausível,<br />
propondo que um distúrbio da diferenciação mesenquimatosa <strong>entre</strong> a<br />
terceira e a décima semana de gestação resultaria na substituição da<br />
musculatura da parede abdominal por tecido fibroso, assim como no<br />
desenvolvimento anormal da musculatura lisa do trato genito-urinário. O<br />
autor comenta ainda o fato de que um em cada vinte pacientes com a<br />
síndrome são oriundos de uma gravidez gemelar monozigótica, em que<br />
apenas um dos gêmeos é acometido. Uma possível explicação, também<br />
descrita por Greskovich e Nyberg Junior (1988), seria a distribuição<br />
desigual do mesênquima, que privaria um dos gêmeos de condições<br />
adequadas para o desenvolvimento dos músculos abdominais e do trato<br />
urinário. Joller e Scheier (1986) e Lam e Mehdian (1999) acrescentam à<br />
discussão a possibilidade de ocorrer uma falha na migração de<br />
miótomos para a parede abdominal <strong>entre</strong> a sexta e a décima semana da<br />
vida fetal, lembrando que a unidade muscular abdominal se forma, em<br />
geral, <strong>entre</strong> a quinta e a 12ª semana. Segundo Volmar et al. (2003),<br />
trabalhos mais recentes concluíram que o defeito mesenquimatoso
primário gera as anormalidades que configuram a síndrome. Por outro<br />
lado, algumas pesquisas, utilizando técnicas modernas, encontraram<br />
obstrução anatômica na maioria dos casos.<br />
De fato, as anomalias do trato genito-urinário, d<strong>entre</strong> elas a<br />
síndrome de prune belly, parecem advir de uma complexa associação<br />
de fatores etiológicos e patogênicos. Alguns autores defendem a<br />
ocorrência da questão genética. Um extenso artigo de revisão sobre as<br />
anomalias congênitas dos rins e do trato urinário (Pope et al., 1999)<br />
reforça a hipótese da etiologia múltipla, enfatizando, porém, o<br />
componente genético, relacionado ao gene receptor angiotensina tipo 2<br />
(Agtr2), presente em todas as anomalias relacionadas e responsável<br />
inclusive por sua forte predominância no sexo masculino. A ativação dos<br />
receptores angiotensina tipo 2 estaria na origem do defeito embrionário<br />
(mesenquimatoso e mesonéfrico) descrito pelos demais autores. Pope<br />
et al. (1999) não deixam de comentar, a respeito da obstrução como<br />
fator etiopatogênico concomitante, que esta pode ocorrer não somente<br />
pela diminuição da luz de um ducto, mas também por um déficit<br />
peristáltico que comprometa o fluxo urinário. O relato da ocorrência de<br />
um caso de síndrome de prune belly em um par de gêmeos<br />
monozigóticos reforça, de certa maneira, a hipótese do componente<br />
genético (Balaji et al., 2000).
3.2 – Aspectos motores e respiratórios<br />
A SPB muitas vezes inclui anomalias que se somam à clássica<br />
tríade deficiência da musculatura abdominal – má-formação do trato<br />
genito-urinário – criptorquidismo bilateral. Tais anomalias<br />
freqüentemente atingem os sistemas respiratório e locomotor,<br />
contribuindo de forma significativa para a morbi-mortalidade nos<br />
pacientes acometidos (Brinker et al., 1995; Loder et al., 1992). Os dois<br />
aspectos serão considerados em conjunto, uma vez que os distúrbios<br />
respiratórios em questão se devem geralmente à disfunção músculo-<br />
esquelética, à exceção dos casos de hipoplasia pulmonar congênita,<br />
devida à freqüente ocorrência de oligodramnia (Crompton et al., 1993;<br />
Jennings, 2000). De fato, conforme anteriormente mencionado, os<br />
músculos mais diretamente envolvidos na respiração – diafragma,<br />
abdominais, intercostais e músculos da cintura escapular – também<br />
desempenham papel crucial no equilíbrio <strong>postural</strong> (Campignion, 1996;<br />
Hodges e Gandevia, 2000a, 2000b; Ricci et al., 2002).<br />
É preciso lembrar ainda que o déficit muscular abdominal<br />
compromete a função pulmonar e a capacidade de expectoração, sendo<br />
em larga medida responsável pela ocorrência de infecções respiratórias<br />
repetidas. Crompton et al. (1993) apontam diversas razões pelas quais a<br />
função pulmonar pode ser afetada na SPB, incluindo distúrbios da<br />
mecânica do tórax, como escoliose, deformidades da caixa torácica e a
própria fraqueza muscular abdominal. Embora a disfunção renal possa<br />
também originar problemas respiratórios, os autores encontraram<br />
distúrbios desta função na maioria dos pacientes com a síndrome,<br />
independentemente da presença de problemas renais. Foram<br />
observados casos de aprisionamento de ar, assim como de doença<br />
restritiva. Em ambos os casos, o problema deve-se à questão muscular,<br />
que inviabiliza uma biomecânica respiratória harmônica. Segundo Ewig<br />
et al. (1996), <strong>entre</strong>tanto, os indivíduos acometidos pela SPB apresentam<br />
leve deficiência dos volumes e capacidades respiratórias, compatível<br />
com uma vida social normal, somente promovendo, talvez, hábitos mais<br />
sedentários, dada uma pequena dificuldade no que diz respeito à prática<br />
de exercícios físicos. Os autores defendem a realização de fisioterapia<br />
respiratória e motora, no sentido de otimizar as ações musculares e<br />
melhorar a capacidade aeróbica e a performance na atividade física.<br />
Por outro lado, não se pode esquecer que a doença promove um<br />
evidente prejuízo do mecanismo de tosse, que dificulta a expectoração e<br />
favorece o acúmulo de secreções pulmonares. De fato, as infecções<br />
respiratórias de repetição são responsáveis por grande parte das<br />
internações hospitalares e dos óbitos dos pacientes que sobrevivem ao<br />
período neonatal (Brinker et al., 1995; Jennings, 2000; Woodard, 1985).<br />
No que concerne aos distúrbios ortopédicos, é digna de nota a<br />
freqüente ocorrência de pectus excavatum, escoliose, displasia do
quadril, pé torto congênito e torcicolo congênito (Brinker et al. 1995;<br />
Green et al., 1993; Joller e Scheier, 1986; Loder et al., 1992; Salihu et<br />
al., 2003). Green et al. (1993) ressaltam que as deformidades torácicas<br />
não deveriam ser consideradas como distúrbios ortopédicos, dado que<br />
sua etiologia está vinculada ao aspecto biomecânico, ou seja, resultam<br />
de desequilíbrios nas ações musculares. Ainda que alguns autores<br />
defendam que as escolioses presentes na síndrome sejam idiopáticas,<br />
Lam e Mehdian (1999) associam-nas ao desequilíbrio crônico da<br />
musculatura que influencia a coluna vertebral. Quanto aos demais<br />
eventos, todos os autores apontam para o desconhecimento dos fatores<br />
etiopatogênicos. Brinker et al. (1995) sugerem que, possivelmente, o<br />
mesmo mecanismo de pressão dos órgãos genito-urinários dilatados<br />
que impede o desenvolvimento da parede abdominal seja responsável<br />
pelas alterações na coluna vertebral, pelve e membros inferiores. De<br />
fato, não se pode esquecer a profunda inter-relação <strong>entre</strong> os músculos<br />
diretamente envolvidos na síndrome e as estruturas músculo-<br />
aponeuróticas que atuam sobre estas regiões.<br />
Estas considerações fornecem um panorama do que se tem<br />
publicado em termos das disfunções relacionadas aos aparelhos<br />
locomotor e respiratório na SPB. Uma tentativa de relacionar tais<br />
aspectos aos fatores etiopatogênicos levantados tenderia a estender o<br />
defeito no desenvolvimento embrionário às estruturas ósteo-musculares
correlatas. Isto poderia, talvez, confirmar a associação <strong>entre</strong> as<br />
alterações ortopédicas congênitas observadas e a solidariedade <strong>entre</strong><br />
as estruturas da mecânica corporal, dado que envolvem, em geral, a<br />
pelve e a coluna vertebral. Mais pesquisas seriam necessárias,<br />
<strong>entre</strong>tanto, para que se pudesse determinar, com maior clareza, se a<br />
etiologia da síndrome realmente determina tais alterações, ou se estas<br />
estariam mais diretamente ligadas à função biomecânica, como ocorre<br />
com as deformidades torácicas.<br />
De qualquer modo, é fato que a questão músculo-esquelética não<br />
deve ser negligenciada no que tange à SPB. O funcionamento<br />
satisfatório do aparelho locomotor é fator determinante para a boa<br />
função respiratória e motora dos pacientes acometidos, contribuindo<br />
decisivamente para a melhora de sua qualidade de vida.
PARTE 2<br />
NARRATIVA DO TRATAMENTO FISIOTERAPÊUTICO DE<br />
QUATRO CRIANÇAS COM SÍNDROME DE PRUNE BELLY<br />
Capítulo 4 – A CONDUTA FISIOTERAPÊUTICA DIRECIONADA A CRIANÇAS<br />
COM SÍNDROME DE PRUNE BELLY NO IFF
A fisioterapia direcionada às crianças com síndrome de prune belly (SPB), no IFF,<br />
caracterizou-se, a partir de março de 2001, pela aplicação do que chamamos de “dupla<br />
abordagem”. Isto significa que cada sessão se desdobrava em pelo menos duas etapas,<br />
realizadas no mínimo por dois fisioterapeutas distintos: um atendimento em fisioterapia<br />
respiratória, conduzido pela equipe do Ambulatório de Fisioterapia Respiratória do IFF, em<br />
que predominavam as condutas classificadas como “convencionais” ou “clássicas” (Hill e<br />
Webber, 1999; Postiaux, 2004), e um atendimento em terapia <strong>postural</strong>, conduzido pela autora<br />
desta pesquisa, baseado essencialmente nos métodos de Cadeias Musculares e Articulares de<br />
Godelieve Denys-Struyf (1997), e da Coordenação Motora de Suzanne Piret e Marie-<br />
Madeleine Béziers (1992). A alternância <strong>entre</strong> tais condutas variava conforme cada<br />
conjuntura, podendo mesmo haver um retorno a uma abordagem previamente realizada.<br />
O propósito deste capítulo é descrever os procedimentos adotados em ambas as<br />
vertentes, no sentido de estabelecer um cenário que permita a melhor compreensão dos<br />
capítulos que se seguem, em que se desenvolverá a narrativa do tratamento de quatro crianças<br />
contempladas com esta “dupla abordagem”.<br />
4. 1 - A abordagem <strong>postural</strong><br />
“A liberação miofascial, a manipulação da articulação, o exercício de terapia, a terapia de movimento<br />
e a facilitação melhoram o alinhamento vertical do corpo, provendo mais espaço para o funcionamento<br />
apropriado de estruturas ósseas, nervos, músculos, vasos sangüíneos e órgãos” (Barnes, 2003, p. 455).<br />
Dado que as características ortopédicas das quatro crianças que participam desta<br />
pesquisa são, em diversos aspectos, semelhantes, é natural que haja uma coincidência de<br />
condutas em boa parte das sessões de tratamento fisioterápico <strong>postural</strong>, ainda que adaptadas
às especificidades de cada caso. Este segmento pretende apresentar os diversos tipos de<br />
manobras e exercícios utilizados em tais sessões.<br />
É importante ressaltar que, mesmo quando determinada conduta visa atingir uma<br />
região corporal específica, não há uma dissociação do contexto global, ou seja, a intenção é<br />
sempre estimular a coordenação deste segmento com a totalidade do sistema locomotor.<br />
Assim, será possível observar manobras que, apesar de focarem uma articulação em<br />
particular, envolvem todo o corpo em sua execução. Tendo em mente esta idéia, a<br />
<strong>organização</strong> da descrição das condutas se dará pela região que constitua seu foco principal,<br />
ainda que traga importantes benefícios também para outras áreas.<br />
Nos quatro casos que serão apresentados, o tratamento se iniciou pela restauração da<br />
mobilidade da articulação coxofemoral. Béziers e Hussinger (1994) afirmam que:<br />
“a posição da bacia, da coluna vertebral e dos membros inferiores<br />
(portanto, a estática do corpo em seu conjunto) dependem da mobilidade da<br />
articulação do quadril e de sua posição. Por isso é tão importante favorecer<br />
ao máximo a mobilidade e a amplitude dessa articulação, antes que a<br />
criança consiga ficar em pé” (p. 32).<br />
De fato, a rigidez 28 da articulação do quadril exacerba o dinamismo das articulações da<br />
coluna lombar e sacro-ilíacas (normalmente mais estáveis), que se vêem obrigadas a participar<br />
excessivamente de movimentos cotidianos, como sentar, levantar e abaixar, <strong>entre</strong> outros<br />
(Denys-Struyf, 1983b, 1985b, 1996; Kapandji, 1999). Denys-Struyf (1996) pontua ainda que,<br />
“quando o quadril tem suas amplitudes limitadas, os joelhos compensam, as sacro-ilíacas, a<br />
lombo-sacra e toda a coluna lombar também 29 ” (p. 126). Os métodos de reeducação <strong>postural</strong><br />
28<br />
Segundo Campignion (2001), a rigidez articular se diferencia da anquilose por corresponder ao resultado de<br />
uma retração exagerada dos músculos peri-articulares, limitando a amplitude do movimento, podendo não-raro<br />
conduzir a uma anquilose (“La raideur articulaire est d´avantage le résultat d´une contrainte exagérée de la<br />
part des muscles péri-articulaires qui en limitent l´amplitude de mouvement. Il n´est pas rare que la raideur<br />
conduise dans um deuxième temps à l´ankylose”) (p.118).<br />
29<br />
“Quand la hanche limite ses amplitudes, les genoux compensent, les sacro-iliaques, la lombo-sacrée et toute<br />
la colonne lombaire aussi” (tradução livre).
dispõem de diversos recursos para restauração da mobilidade coxofemoral, d<strong>entre</strong> os quais<br />
foram utilizados predominantemente:<br />
a) mobilização passiva de cada articulação, tanto em micro-movimentos como ao<br />
longo de todo o arco de movimento;<br />
b) alongamento (passivo e ativo) da musculatura pelvi-trocanteriana;<br />
c) alongamento global da musculatura pelvi-trocanteriana e da coluna vertebral;<br />
d) mobilização ativa das articulações, associada ao alongamento da coluna vertebral.<br />
É preciso ressaltar o caráter essencialmente lúdico da abordagem, em que sons,<br />
canções e brincadeiras eram sempre associados aos diversos exercícios. Assim, os três<br />
primeiros procedimentos ficaram conhecidos pelos meninos como a brincadeira do “caracol”,<br />
sendo acompanhados pela canção infantil “Desencaracolando” 30 . A imagem deste animal se<br />
conjuga com a sensação provocada por tais atividades, que promovem uma postura de<br />
enrolamento (foto 1). Em pouco tempo, não só o grupo de crianças com síndrome de prune<br />
belly sabia de cor e pedia repetidamente que eu cantasse a “música do caracol” , como outras<br />
crianças, pacientes do ambulatório, também queriam participar da “brincadeira”...<br />
30 A versão musical do poema “Desencaracolando”, da educadora Maria Mazzetti, foi composta por Denise<br />
Mendonça e gravada, pelo Grupo Olá, em 1980.
Foto 1: Alongamento dos músculos pelvi-trocanterianos - “O Caracol”<br />
O quarto tipo de exercício é conhecido pelas crianças como “Borboleta voa”. O<br />
movimento ativo simula o bater de asas do inseto, até que, sob o comando “A borboleta<br />
dormiu”, realiza-se o alongamento da coluna, recomeçando o primeiro movimento quando a<br />
borboleta “acordou!” (fotos 2 e 3).<br />
A <strong>organização</strong> dos membros inferiores era também promovida pelo estímulo das<br />
torções ósseas fisiológicas por tracionamento passivo, nas direções propostas por Piret e<br />
Béziers (1992) e Béziers e Hussinger (1994), como se pode observar na figura 6.
Foto 2: Mobilização das articulações coxofemorais e alongamento da musculatura periarticular –<br />
“Borboleta voa”<br />
Foto 3: Associação do alongamento da musculatura paravertebral – “A borboleta dormiu”
Figura 6: Direções das torções ósseas nos membros inferiores e músculos condutores (Piret e<br />
Béziers, 1992, p. 76)<br />
A confecção dos arcos plantares, bem como o alongamento dos tríceps surais e dos<br />
ísquio-tibiais, se davam essencialmente por manobras passivas de terapia manual, conforme<br />
descrito no capítulo 2. A brincadeira do “parabéns” visava trabalhar a coordenação dos pés.<br />
Consistia em segurar uma caneta (que fazia o papel de “velinha”) com os pés,<br />
longitudinalmente, mantendo a coesão <strong>entre</strong> o primeiro e o quinto raios (metatarso +<br />
falanges), e levar esta caneta à posição vertical, situação que necessariamente provoca a<br />
formação tanto dos arcos longitudinais quanto dos arcos transversos. A posição deveria ser<br />
mantida enquanto cantávamos o “parabéns”, podendo ser desfeita após soprada a “velinha”.<br />
Se a caneta não estivesse vertical, “queimaria” a cama... Os tríceps surais, popularmente<br />
conhecidos como “batata da perna”, eram alongados passivamente ao som de “batatinha frita<br />
1, 2, 3!”. Uma série de jogos de palavras em torno desse “tema” conferia uma certa diversão a<br />
um momento a princípio tedioso para a criança.
As sessões incluíam também manobras para coordenação e fortalecimento dos<br />
músculos abdominais, com o objetivo de otimizar e potencializar a ação das fibras musculares<br />
eventualmente presentes na criança. Passivamente, procedia-se à estimulação reflexa dos<br />
diferentes músculos (por tracionamento sobre a pele), na direção de seus pontos fixos<br />
estáticos. Quanto aos exercícios ativos, duas modalidades de atividades eram realizadas: a<br />
“brincadeira do elevador” e a “brincadeira da bola”.<br />
“Elevador” é o apelido de um exercício baseado na conduta proposta por Béziers e<br />
Hussinger (1994) para trazer o bebê do decúbito dorsal para a posição sentada, a partir do<br />
estímulo do enrolamento por ativação do sistema reto (fotos 4 e 5). A cada “sobe e desce”, a<br />
própria criança podia escolher os diversos lugares para onde ficticiamente iria (por exemplo:<br />
desce até o mar, sobe fugindo do tubarão; desce até a floresta, sobe fugindo do leão; desce até<br />
a pracinha, sobe no escorrega, etc.).<br />
Foto 4: Exercício abdominal (“elevador”)
Foto 5: “Elevador” - detalhe da <strong>organização</strong> dos braços para facilitação do trabalho abdominal<br />
A “brincadeira da bola” consistia em segurar uma bola com as plantas dos pés e levá-<br />
la até as mãos da fisioterapeuta, posicionadas acima do abdômen da criança.<br />
A coluna vertebral e a musculatura posterior eram privilegiadas em atividades como a<br />
“marionete” ou “cordinha” e o “carrinho”. As duas primeiras, que estimulavam a ereção ativa<br />
e consciente da coluna vertebral, na verdade, constituem essencialmente o mesmo exercício,<br />
apenas com diferentes roupagens. Na primeira modalidade, as mãos deveriam subir numa<br />
cordinha imaginária, como se fossem até o teto; na segunda, a criança representava o títere,<br />
suspenso pela terapeuta / titeriteiro por fios imaginários, opondo esta sensação à da marionete<br />
que “desmonta”, pois os fios foram soltos (fotografia 6). Ambas as atividades estimulavam a<br />
ação anti-gravitária da musculatura para-vertebral (Busquet, 2001; Campignion, 2001; Denys-<br />
Struyf, 1997), através da elevação dos braços com a conseqüente verticalização da pelve e<br />
diminuição das curvas da coluna, a partir da posição sentada. A utilização de duas imagens<br />
diferentes permite prolongar a conduta sem enfadar a criança.
A brincadeira do “carrinho” se assemelha muito à da “borboleta”. Parte da mesma<br />
posição da “borboleta dormindo”, porém as mãos vão “caminhando” para frente, ampliando o<br />
alongamento da musculatura para-vertebral e, principalmente, dos grandes dorsais. Para<br />
otimizar os resultados, a pelve da criança era estabilizada passivamente, para que não<br />
perdesse contato com a maca. Quando o menino estivesse de posse de algum brinquedo<br />
(muitas vezes eles levavam carrinhos, caminhõezinhos, etc.), o mesmo era utilizado na<br />
atividade: a criança deveria segurar o brinquedo com ambas as mãos, na posição de<br />
“borboleta”, e deslizá-lo pela maca até “bem longe”, produzindo o mesmo efeito. A inclusão<br />
de um objeto que, na maioria das vezes, era escolhido pela própria criança para ser levado ao<br />
hospital, conferia ao exercício uma atmosfera lúdica ainda mais acentuada.<br />
Foto 6: Exercício de ereção da coluna vertebral: A “marionete” desmontou...<br />
O trabalho sobre o tórax, cinturas escapulares e coluna cervical se dava de forma<br />
predominantemente passiva, através de manobras de alongamento, descolamentos e<br />
mobilização dos tecidos moles, liberação miofascial, tracionamentos e outras técnicas reflexas
sobre a pele, no sentido da coordenação motora (Béziers e Hussinger, 1994; Piret e Béziers,<br />
1992) e da harmonização das cadeias musculares (Campignion, 2001, 2004; Denys-Struyf,<br />
1997).<br />
A distribuição de todas estas técnicas ao longo das consultas variava para cada criança,<br />
sendo respeitada, sempre que possível, a sua vontade. Assim, muitas vezes, o próprio paciente<br />
conduzia a sessão, indicando a “brincadeira” que gostaria de desempenhar a seguir 31 . Dessa<br />
maneira, a criança experimentava uma autonomia que singularizava a abordagem, fazendo-a<br />
sentir-se, de certa forma, responsável pelo próprio tratamento. Esse aspecto se mostrou,<br />
indubitavelmente, fundamental para a obtenção de melhores resultados.<br />
4. 2 - A abordagem respiratória<br />
“A fisioterapia respiratória supre a deficiência dos mecanismos de defesa do aparelho<br />
respiratório, (...) que se manifesta pelo estado de obstrução brônquica resultante de uma alteração do<br />
transporte mucociliar” (Postiaux, 2004, p. 119).<br />
Este segmento se propõe a descrever sucintamente os procedimentos realizados pela<br />
equipe de fisioterapia respiratória do IFF em crianças com SPB. Não se trata de um inventário<br />
das condutas preconizadas pela fisioterapia respiratória clássica, tampouco daquelas utilizadas<br />
no ambulatório de maneira mais ampla, mas somente daquelas dirigidas especificamente às<br />
referidas crianças. Assim, estarão ausentes recursos largamente difundidos na literatura<br />
especializada (MacDonald, 1999; Postiaux, 2004; Shepherd, 1998; Tecklin, 2002), como o<br />
flutter, os espirômetros de incentivo, a drenagem autogênica, <strong>entre</strong> outros, por não serem<br />
adotados nestes casos, quer pelas demandas da própria doença, quer pela idade do paciente,<br />
31 Uma vez que as sessões sempre se iniciavam com procedimentos de terapia manual, que preparavam o corpo<br />
da criança para o conjunto de exercícios subseqüentes, a ordem de adoção dos mesmos não interferia, na maior<br />
parte das vezes, nos resultados do tratamento. Isso permitia respeitar, freqüentemente, o desejo da criança quanto<br />
ao momento da realização de cada conduta.
ainda que façam parte do arsenal de técnicas utilizadas pela equipe em crianças acometidas<br />
por outras enfermidades respiratórias (fibrose cística, asma, etc.).<br />
D<strong>entre</strong> as três grandes áreas 32 de atuação da fisioterapia em crianças com doença<br />
respiratória, descritas por Tecklin (2002), a equipe do IFF privilegia indubitavelmente a<br />
higienização brônquica (remoção de secreções), em suas diversas modalidades, desde a<br />
drenagem <strong>postural</strong> até a aspiração. De fato, as sessões se concentravam predominantemente<br />
nesse aspecto, incluindo exercícios respiratórios de forma ocasional. A equipe não se propõe a<br />
contemplar o recondicionamento físico, optando por orientar os responsáveis a encorajar a<br />
atividade física fora do ambiente hospitalar.<br />
O principal recurso de avaliação adotado pela equipe era a ausculta pulmonar, que<br />
permitia identificar a presença de excesso de muco, através dos diferentes tipos de ruídos<br />
adventícios e da diminuição do murmúrio vesicular. A freqüência semanal das crianças ao<br />
ambulatório gerava uma certa “intimidade” dos fisioterapeutas em relação ao padrão de<br />
ausculta de cada um, facilitando a detecção precoce de qualquer alteração. A avaliação do<br />
esforço respiratório, através do alargamento nasal, oscilação da cabeça e recrutamento<br />
excessivo da musculatura acessória da respiração, também constituíam importantes fontes de<br />
informação para os profissionais, além da verificação da eficiência da tosse (MacDonald,<br />
1999; Tecklin, 2002).<br />
Quanto aos atendimentos propriamente ditos, iniciavam-se, quase sempre, pela<br />
aerossolterapia nebulizada por compressor, “único modo de inalação capaz de preparar a<br />
higiene brônquica da criança” (Postiaux, 2004, p. 140). Apesar de, no princípio, a assim<br />
apelidada “fumacinha” causar certo desconforto à criança, seu caráter indolor fazia com que<br />
rapidamente passasse a ser bem tolerada. Ao cabo de algum tempo, os quatro “protagonistas”<br />
32 Remoção de secreções; exercícios respiratórios e retreinamento; e recondicionamento físico (p. 428).
deste estudo seguravam por conta própria a máscara de nebulização e eram capazes de<br />
detectar e anunciar o fim do procedimento.<br />
D<strong>entre</strong> as diferentes técnicas de higienização brônquica, destacavam-se métodos<br />
tradicionais, como “posicionamento para drenagem das vias aéreas; técnicas manuais para<br />
eliminação das secreções; e remoção das secreções pela tosse e pela sucção das vias aéreas”<br />
(Tecklin, 2002, p. 429), assim como procedimentos mais contemporâneos, que seguiam<br />
basicamente o chamado Ciclo Ativo de Técnicas Respiratórias (ACBT 33 ), denominação que<br />
reúne três tipos de condutas: os exercícios de controle respiratório e de expansão torácica,<br />
assim como as técnicas de expiração forçada (IPG/CF 34 , 2002).<br />
A drenagem <strong>postural</strong> utiliza a gravidade como agente de mobilização do excesso de<br />
secreções, levando o muco das regiões pulmonares periféricas para as mais centrais. Trata-se<br />
de posicionar a criança de sorte que o segmento pulmonar identificado na avaliação esteja<br />
situado superiormente aos brônquios que suprem esta área (Shepherd, 1998; Tecklin, 2002).<br />
Junto com a percussão, este método constituiu, até a década de 80, a pedra fundamental da<br />
fisioterapia respiratória. Apesar de ser essencialmente um método passivo, a equipe<br />
costumava associar à drenagem exercícios do ACBT, em especial a técnica de expiração<br />
forçada (TEF) e técnicas de tosse dirigida/eficiente, variação descrita por MacDonald (1999).<br />
No que tange às técnicas manuais de percussão e vibração, eram utilizadas<br />
principalmente a compressão ao final da expiração, a percussão por meio de percussor<br />
mecânico e a vibração na fase expiratória (MacDonald, 1999; Shepherd, 1998; Tecklin,<br />
2002). Hill e Webber (1999), como também o manual do IPG/FC (2002), situam tais condutas<br />
simultaneamente à drenagem <strong>postural</strong>, porém a equipe do IFF opta por evitar o excesso de<br />
desconforto para a criança, realizando a percussão mecânica preferencialmente na posição<br />
sentada. Se o paciente estivesse recebendo a manobra pela primeira vez, o profissional<br />
33 Active Cycle of Breathing Techniques<br />
34 International Physiotherapy Group for Cystic Fibrosis
habitualmente lhe mostrava o funcionamento do aparelho, até mesmo aplicando-o nas mãos,<br />
antes do tórax, para que a criança percebesse antecipadamente a sensação de “tremor” e não<br />
se assustasse.<br />
As chamadas “técnicas expiratórias forçadas”, que compreendem a TEF propriamente<br />
dita, a tosse provocada e a tosse dirigida, (MacDonald, 1999; Postiaux, 2004) eram<br />
amplamente adotadas. Com efeito, o aprendizado da tosse constituía um item fundamental do<br />
tratamento, realizado normalmente como última etapa do atendimento (salvo quando a<br />
aspiração se fazia necessária).<br />
A tosse dirigida só pode ser adotada quando a criança já é capaz de cooperar, o que já<br />
se verificava nos quatro meninos incluídos neste estudo ao final do processo (em 2003, o mais<br />
jovem completou três anos). Nesta manobra, a criança desempenha, voluntariamente, um<br />
esforço de tosse, na posição sentada, a partir da solicitação do fisioterapeuta. A equipe<br />
habitualmente lançava mão de um recurso descrito por MacDonald (1999) como “técnica de<br />
compressão abdominal durante a tosse”, que consiste em colocar a palma da mão sobre o<br />
abdômen do paciente, para ajudar seu esforço expiratório. Trata-se de uma alternativa<br />
direcionada a pacientes com fraqueza abdominal por doenças neuromusculares ou lesão<br />
medular, que se aplica perfeitamente aos casos de SPB. Os quatro meninos inclusive<br />
aprenderam a realizar tal pressão abdominal com as próprias mãos, utilizando-a<br />
espontaneamente para facilitar sua tosse, não apenas durante a sessão de fisioterapia, mas nas<br />
mais diversas situações.<br />
No que diz respeito à tosse provocada ou reflexa, a técnica mais utilizada no<br />
ambulatório era a chamada “cócega traqueal”, ou seja, a indução da tosse através de “um<br />
movimento circular ou vibratório dos dedos contra a traquéia, uma vez que ela percorre além<br />
da chanfradura do esterno” (Tecklin, 2002, p. 431), estimulando os receptores mecânicos<br />
situados na parede da traquéia extratorácica, preferencialmente no final da inspiração ou no
início da expiração espontânea (Postiaux, 2004). A resposta inevitavelmente imediata desta<br />
manobra terminou por fazer com que as crianças desenvolvessem o hábito de levar a mão ao<br />
pescoço, simulando-a, sempre que lhes fosse solicitada a tosse.<br />
O ACBT, conforme mencionado acima, compreende três tipos de procedimentos<br />
interligados. O controle respiratório consiste na realização de ciclos respiratórios relaxados,<br />
com as mãos do fisioterapeuta sobre a parede torácica da criança, no sentido de permitir a<br />
percepção da dilatação da parte inferior do tórax. Os exercícios de expansão torácica<br />
constituem três ou quatro respirações profundas, com ênfase na inspiração, o que facilita a<br />
mobilização das secreções, podendo ser acompanhadas de percussões e/ou vibrações sobre a<br />
parede torácica. A TEF é uma combinação de uma ou duas expirações forçadas (huffs) e<br />
períodos de controle respiratório. O huffing com baixos volumes pulmonares favorece a<br />
eliminação do excesso de muco, especialmente nas vias aéreas periféricas. Quando as<br />
secreções atingem as vias mais proximais, um huff ou tosse de grande volume pulmonar ajuda<br />
a promover o clearance completo (IPG/CF, 2002; MacDonald, 1999; Postiaux, 2004; Tecklin,<br />
2002). Embora MacDonald (1999) considere esta técnica adequada apenas a crianças com<br />
idade superior a quatro anos, o IPG/CF (2002) recomenda que esta seja aplicada a partir de<br />
dois anos. Os participantes desta pesquisa começaram a realizá-la progressivamente, de<br />
acordo com seu crescimento, já sendo todos capazes de executá-la.<br />
Em casos onde a tosse é ineficaz na tarefa de remover as secreções brônquicas, revela-<br />
se indispensável a aspiração, caracterizada pela introdução de uma sonda no nariz da criança<br />
(ou na traqueostomia, o que não é o caso dos pacientes em questão), com a liberação do vácuo<br />
somente durante a lenta retirada da mesma. Procede-se à aspiração de ambas as narinas e,<br />
finalmente, da boca (MacDonald, 1999; Shepherd, 1996). Tecklin (2002) ressalta a<br />
necessidade de uma abordagem cuidadosa, frente aos riscos apresentados pela conduta<br />
(hipóxia, traumatismos, vômito, etc.), ainda quando realizada sob as melhores circunstâncias.
Trata-se, indubitavelmente, do mais desconfortável e doloroso recurso da fisioterapia<br />
respiratória pediátrica, devendo sempre ser utilizado como última alternativa.<br />
Lamentavelmente, mostra-se com freqüência necessário na SPB, embora a melhora no<br />
aprendizado da tosse e a estabilização do quadro respiratório das quatro crianças envolvidas<br />
neste trabalho tenha reduzido bastante a assiduidade de sua adoção.<br />
Apesar da natureza absolutamente diversa dos dois tipos de abordagem aqui expostos,<br />
foi possível verificar, ao longo do período de tempo compreendido neste estudo, o<br />
indiscutível benefício obtido pelos pacientes, a partir da adoção simultânea destas duas<br />
vertentes de tratamento fisioterapêutico. Partindo do princípio de que todas as técnicas são<br />
úteis, desde que adaptadas às necessidades de cada indivíduo, Denys-Struyf (1985a) lembra<br />
que é imperativo aguçar a percepção e a observação para identificar o sofrimento do paciente,<br />
especialmente quando se trata de bebês, em que a única fonte de informação é o registro<br />
corporal desse sofrimento – dado que a palavra ainda não se faz presente. A autora propõe,<br />
então, que a dinâmica de uma equipe de terapeutas remeta à de uma orquestra, podendo “cada<br />
interventor tocar sob a mesma partitura, evitando opor-se diretamente à contribuição do<br />
outro 35 ” (p. 4).<br />
Assim, a “dupla abordagem fisioterapêutica” se consolidou, no ambulatório de<br />
Fisioterapia Respiratória do IFF, a partir de uma efetiva “dupla demanda”, isto é, da<br />
necessidade de se contemplar, simultaneamente, os acometimentos respiratórios específicos e<br />
o suporte à <strong>organização</strong> psicomotora global de cada uma das crianças envolvidas. O<br />
entendimento do lugar que cada uma poderia ocupar no contexto da saúde destes pacientes<br />
possibilitou a interação harmônica <strong>entre</strong> vias terapêuticas tão distintas.<br />
35<br />
“(...) peut amener chaque intervenant à jouer à l´aide de la même partition, en évitant de contrecarrer ce que<br />
l´autre a donné” (tradução livre)
Os capítulos que se seguem contém o relato narrativo da experiência de tal interação,<br />
no tratamento fisioterapêutico dos quatro meninos escolhidos para protagonizar esta pesquisa.<br />
As histórias serão expostas a partir do olhar da abordagem <strong>postural</strong> (vertente adotada pela<br />
autora deste trabalho). No que tange ao âmbito hospitalar, a abordagem respiratória já<br />
conquistou uma posição irrevogável, contando com uma percepção razoavelmente bem<br />
delineada de seu papel frente a crianças com doenças pulmonares. Estas narrativas pretendem<br />
sugerir um outro desenho, em que uma abordagem mais globalista possa lançar luz sobre a<br />
importância de uma boa estruturação <strong>postural</strong> e motora para a saúde e qualidade de vida de<br />
tais crianças.
Capítulo 5 - BORRACHINHA, NÃO!<br />
Quando ingressei no Serviço de Fisioterapia Respiratória do IFF, em fevereiro de<br />
2001, para tratar questões posturais em pacientes com asma, tais pacientes dividiam o espaço<br />
(e o dia da semana), com o grupo de crianças com síndrome de prune belly, cujos pais se<br />
encontravam em intensa mobilização, no sentido de constituir uma associação organizada<br />
para a troca de informações, viabilização de atividades de lazer e, principalmente,<br />
fortalecimento do grupo no âmbito do hospital. Em março, a fisioterapeuta responsável pelo<br />
“Ambulatório de Terça-Feira” me convidou a avaliar estas crianças, acenando com a proposta<br />
que se tornaria meu objeto de estudo ao longo dos anos que se seguiriam: a parceria <strong>entre</strong> as<br />
abordagens <strong>postural</strong> e respiratória no atendimento ao paciente com SPB.<br />
Meu primeiro contato com o grupo se deu através de Kiko, menino prestes a completar<br />
três anos, assíduo freqüentador do Ambulatório de Fisioterapia Respiratória. A mãe,<br />
Fernanda, era a mais ativa “militante” da <strong>organização</strong> da associação. Sua adesão à idéia do<br />
duplo atendimento foi imediata e Kiko se mostrou uma criança bastante receptiva ao trabalho.<br />
5. 1 - Breve história clínica
De acordo com os dados colhidos no prontuário do IFF, Kiko nasceu nesta instituição<br />
em março de 1999, a termo, pesando 3080 gramas, apresentando mega-ureter bilateral e<br />
refluxo vésico-ureteral grau V bilateral, pelo que foi imediatamente submetido a<br />
vesicostomia. Tal quadro veio a ser responsável por incontáveis episódios de infecção do trato<br />
urinário (ITU), com a primeira internação ocorrendo pouco mais de um mês depois da alta<br />
pós–nascimento. A vesicostomia teve de ser refeita em novembro do mesmo ano, quando<br />
nova internação por ITU se fez necessária. Em abril de 2000, permaneceu mais 15 dias<br />
internado pela mesma razão.<br />
Em agosto do mesmo ano, foi submetido a reimplante ureteral bilateral, com plástica<br />
ureteral e fechamento da vesicostomia. Três meses depois, apresentou retenção urinária,<br />
sendo novamente internado para realização de cateterismo de alívio intermitente. O exame<br />
urodinâmico evidenciava grande aumento da capacidade da bexiga, sem nenhuma<br />
contratilidade. A cistouretrografia miccional de controle pós-operatório mostrava refluxo<br />
vésico-ureteral grau I à direita e grau IV à esquerda. Apresentou ITU pós-reimplante em<br />
dezembro de 2000 e em maio de 2001, quando necessitou ser reinternado. Esta internação<br />
estendeu-se por quase dois meses, dos quais 23 dias foram passados na UPG (Unidade de<br />
Pacientes Graves). Tratou-se de um período crítico, em que Kiko esteve submetido à<br />
ventilação mecânica por 15 dias e em que se percebeu piora da função renal bilateral,<br />
especialmente à esquerda, sendo realizadas ureterostomia esquerda e reconfecção da<br />
vesicostomia.<br />
pneumonia.<br />
Em junho de 2003, foi realizada nova internação por 14 dias, devido a um quadro de<br />
Kiko permanece em acompanhamento ambulatorial nos setores de Nefrologia,<br />
Cirurgia Pediátrica, Pneumologia, Urodinâmica e Fisioterapia Respiratória, tendo sempre<br />
mantido um desenvolvimento compatível com a idade.
5. 2 - Vou contar uma história!<br />
Fernanda tornou-se uma espécie de referência no IFF. Quando nasce uma criança com<br />
síndrome de prune belly, os pais são logo encaminhados para uma conversa com ela, por<br />
vezes mesmo quando o nascimento se dá fora da instituição. Melhor do que os profissionais<br />
de saúde, ela é capaz de esclarecer dúvidas sobre certos cuidados com a criança no cotidiano,<br />
além de orientar sobre onde e como confeccionar a indispensável cinta elástica, dependendo<br />
da idade da criança, colocando-se sempre disponível para trocar experiências, relatos,<br />
informações. Chegou mesmo a conseguir patrocínio de uma fábrica de cintas femininas para<br />
que todas as crianças do grupo tivessem acesso a produtos de qualidade feitos sob medida.<br />
Incansavelmente dedicada, trata-se de uma mulher que estudou a fundo o problema de<br />
seu filho e se vê familiarizada com tudo o que diz respeito a ele, inclusive a terminologia<br />
utilizada pelos diversos profissionais que lidam com a sua saúde. Quanto ao funcionamento<br />
do IFF, Fernanda o conhece intimamente, estando sempre pronta a ajudar quem quer que seja.<br />
A equipe da fisioterapia costuma brincar com ela, dizendo-lhe que deveria ser contratada pela<br />
instituição para ficar no corredor orientando os usuários. Profissionais dos mais diversos<br />
setores conhecem mãe e filho pelo nome. Fernanda retomou, em 2001, a faculdade de<br />
Pedagogia, interrompida quando Kiko nasceu com sérios problemas de saúde, tendo em<br />
mente que, àquela altura, seu desenvolvimento pessoal viria a trazer benefícios também para<br />
sua relação com ele. Sua preocupação com a formação do filho fez com que, apesar do<br />
orçamento apertado, ela e o marido fizessem uma assinatura de TV a cabo, para que o menino<br />
tivesse acesso a programas mais educativos do que os da TV aberta. Apesar dos novos<br />
compromissos progressivamente assumidos, sua prioridade continua sendo a saúde de Kiko.
Todo esse relato tem o objetivo de evidenciar uma das razões pelas quais Kiko se<br />
tornou uma criança segura e bem estruturada, capaz de enfrentar as dificuldades com coragem<br />
e bom-humor. A presença forte e ativa da mãe contribui, indubitavelmente, para a<br />
personalidade marcante desta criança que, se por um lado entra intempestivamente no<br />
ambulatório, sorrindo e gritando: “Oi pessoal! Cheguei!!!”, por outro diz que, quando crescer,<br />
quer ser o Hulk, para destruir o hospital.<br />
Foi a atitude participativa de Fernanda e o carisma de Kiko que fizeram com que eu<br />
fosse apresentada à dupla em primeiro lugar, em março de 2001. Na ocasião, Kiko vinha<br />
sendo acompanhado pela equipe de fisioterapia respiratória, no sentido de promover a<br />
otimização da higiene brônquica, facilitar o mecanismo de tosse e prevenir pneumonias.<br />
A primeira avaliação <strong>postural</strong> evidenciou, apesar de um desenvolvimento psicomotor<br />
bastante satisfatório, alterações significativas, passíveis de se tornarem um obstáculo para a<br />
continuidade deste bom desenvolvimento e para a qualidade de vida desta criança. O exame<br />
físico revelou forte retração na musculatura lombar, glútea e pelvi-trocanteriana, provocando<br />
hiper-lordose lombar, anteversão pélvica e rotação externa das articulações coxofemorais e,<br />
conseqüentemente, da globalidade dos membros inferiores, como também foi possível notar,<br />
posteriormente, nas demais crianças avaliadas. Resultava de tais distúrbios uma importante<br />
diminuição da mobilidade coxofemoral, o que, além de comprometer a <strong>organização</strong> <strong>postural</strong><br />
como um todo, visto que as articulações coxofemorais representam o eixo fundamental da<br />
biomecânica humana (Campignion, 2001; Piret e Béziers, 1992), dificultava também<br />
atividades funcionais como correr, pedalar, etc. É digna de nota ainda a ocorrência de pé<br />
plano bilateral, alteração presente nas quatro crianças incluídas neste estudo, bem como o<br />
excesso de tônus do tríceps sural, ocasionando retração do tendão de Aquiles. Apesar de ser o<br />
pé torto congênito a anomalia ortopédica que mais freqüentemente acomete os pés dos
indivíduos com síndrome de prune belly, manifestações mais leves são também reportadas na<br />
literatura (Brinker et al., 1995; Green et al., 1993; Loder et al., 1992).<br />
Foto 7: Kiko, vista anterior, março de 2001 Foto 8: Kiko, perfil direito, março de 2001<br />
As fotografias 7 e 8 permitem observar, além destes aspectos, aqueles relativos à<br />
conformidade torácica e da cintura escapular. Nota-se uma forte elevação dos ombros, com<br />
diminuição do espaço cervical. A caixa torácica se apresenta propulsionada anteriormente e<br />
com uma horizontalização do esterno, configurando o que Campignion (1996) descreve como<br />
um tórax com grande diâmetro ântero-posterior por excesso da cadeia muscular póstero-<br />
mediana (PM), justificável pela incapacidade da musculatura abdominal de manter a<br />
verticalidade tanto torácica quanto pélvica, o que gera de fato uma ação em corda de arco da<br />
musculatura paravertebral, fechando os espaços intercostais na região posterior – o que
acentua sua abertura na região anterior - e mantendo o sacro em nutação, ou seja,<br />
horizontalizado em relação aos ilíacos (Figura 7).<br />
Figura 7: Tipologia com predominância da cadeia póstero-mediana, evidenciando horizon-talização do<br />
esterno e do sacro e trabalho em corda de arco dos para-vertebrais (Campignion, 1996, p. 124)<br />
Iniciou-se, então, o trabalho de reeducação <strong>postural</strong>, paralelo à conduta respiratória,<br />
inaugurando um sistema que viria a se tornar comum a todas as crianças inseridas no projeto.<br />
O paciente receberia as duas abordagens na mesma visita ao ambulatório, variando a ordem<br />
de aplicação segundo suas próprias condições. Por vezes, uma situação respiratória mais<br />
grave até mesmo desaconselhava a abordagem <strong>postural</strong>, circunstância que era naturalmente
espeitada. Por outras, a conduta global preparava o corpo da criança, facilitando o trabalho<br />
sobre a respiração. Em muitas ocasiões, a fisioterapia pulmonar sucedia a <strong>postural</strong>, porém,<br />
devido à grande tensão emocional e, conseqüentemente, corporal, deflagrada pelos<br />
procedimentos respiratórios, se fazia necessário um retorno ao trabalho global, no sentido da<br />
readequação <strong>postural</strong> e da re<strong>organização</strong> psicomotora da criança. Já em outras situações, as<br />
condições músculo-esqueléticas dificultavam a conduta pulmonar, que era interrompida e<br />
então retomada, após o trabalho <strong>postural</strong>. Houve ainda momentos em que a aplicação prévia<br />
da abordagem respiratória inviabilizou a segunda abordagem, tamanho o nível de stress e o<br />
consumo energético provocado no paciente. De fato, esta questão foi bastante discutida <strong>entre</strong><br />
os profissionais envolvidos: qual das abordagens deveria preceder a outra? Sem obter<br />
respostas categóricas, chegou-se à conclusão de que, realmente, deveriam ser levadas em<br />
conta as condições da criança em cada contexto, sendo possível alternar e repetir as condutas,<br />
quando necessário.<br />
Não pretendo detalhar aqui os procedimentos realizados pela fisioterapia respiratória<br />
sobre os pacientes que fazem parte desta pesquisa. Habitualmente, eles seguem os princípios<br />
descritos no capítulo anterior. Interessa particularmente ao escopo deste estudo a contribuição<br />
da abordagem <strong>postural</strong> para a performance motora da criança e para a otimização dos<br />
resultados da conduta pneumo-funcional sobre seu quadro respiratório.<br />
Conforme mencionado acima, Kiko já havia conquistado o ortostatismo e a marcha<br />
quando iniciou seu tratamento <strong>postural</strong>. Tais aquisições funcionais, <strong>entre</strong>tanto, se deram sobre<br />
estruturas mio-articulares mal organizadas, tornando necessário um processo de<br />
reestruturação da motricidade, que teve como foco primário a flexibilização das articulações<br />
coxofemorais (em especial a esquerda). Os métodos de reeducação <strong>postural</strong> dispõem de<br />
diversos recursos para restauração de tal mobilidade articular, que foram descritos no capítulo<br />
anterior. Kiko respondeu muito bem a todas as atividades propostas, mostrando divertir-se
com as sessões de fisioterapia e começando a apresentar resultados satisfatórios já no<br />
princípio do tratamento.<br />
Apenas dois meses depois (em maio de 2001), todavia, Kiko necessitou de internação<br />
por ITU, como mencionado acima, permanecendo em estado grave por um longo período,<br />
parte do qual submetido à ventilação mecânica. A abordagem fisioterapêutica <strong>postural</strong> foi<br />
interrompida, porém mantive visitas regulares à UPG, no intuito de preservar o vínculo já<br />
estabelecido com a criança e sua mãe, facilitando a posterior continuidade do trabalho. De<br />
qualquer modo, àquela altura, a relação estabelecida com a “dupla”, já tornava inevitável<br />
minha preocupação e interesse. Minhas visitas não continham exatamente um teor<br />
profissional, na maioria das vezes tratava-se tão somente de conversar com Fernanda e dar<br />
carinho a Kiko...<br />
Foi, porém, uma oportunidade ímpar de perceber a força da conexão <strong>entre</strong> mãe e filho.<br />
Kiko não dizia uma palavra, mas a comunicação que desenvolvia com a mãe através do olhar<br />
era de uma expressividade impressionante. Fernanda permaneceu ao lado do filho durante os<br />
dois meses de internação, transmitindo-lhe segurança e amor, e Kiko respondeu com uma<br />
recuperação que, apesar de tida como improvável, o conduziu à alta e à retomada de sua vida<br />
normal (exceto pela confecção da vesicostomia e da ureterostomia). Fora do alcance de visão<br />
do filho, porém, Fernanda confessava sua angústia, sua dificuldade para dormir e o quanto se<br />
sentia profundamente temerosa em relação ao prognóstico de Kiko.<br />
Pouco mais de um ano depois, Kiko novamente demonstrou a qualidade da estrutura<br />
de seu psiquismo, em um episódio que imediatamente me remeteu às situações presenciadas<br />
na UPG. Fernanda encontrava-se fortemente resfriada, com as vias aéreas congestionadas. A<br />
fisioterapeuta respiratória lhe ofereceu, então, uma nebulização, que seria realizada durante o<br />
atendimento <strong>postural</strong> de Kiko. O menino estava de costas para a mãe neste momento, fazendo<br />
seus exercícios, então chamei sua atenção para ela. Ao vê-la com a máscara, estando o
aparelho em funcionamento, sua expressão foi de grande surpresa, e ele esboçou uma risada.<br />
Em seguida, tornou-se subitamente sério, segurou a mão de sua mãe e disse: “Calma, mamãe,<br />
segura na minha mão. Já vai passar, pronto, já vai passar”.<br />
De fato, sua condição de paciente com síndrome de prune belly<br />
faz com que tenha sido inevitavelmente submetido, desde o nascimento,<br />
a uma série interminável de internações hospitalares, cirurgias e<br />
procedimentos ambulatoriais e laboratoriais os mais diversos. O que é<br />
extremamente interessante de se observar é sua resposta positiva ao<br />
suporte emocional fornecido pela mãe.<br />
Neste contexto, cabe citar um procedimento específico da<br />
abordagem pneumo-funcional, que causa absoluto terror <strong>entre</strong> os<br />
pequenos pacientes: a aspiração das secreções brônquicas. As crianças<br />
do ambulatório sabem até mesmo qual a gaveta em que se guarda o<br />
material de aspiração (por Kiko denominado “borrachinha”), o que gera<br />
reações de pavor ao simples abrir desta gaveta.<br />
Certa vez, Kiko estava recebendo atendimento <strong>postural</strong> (que jamais inclui a aspiração),<br />
quando outra fisioterapeuta abriu a gaveta para aspirar a paciente da maca ao lado. Kiko<br />
começou a chorar e gritar: “Borrachinha não! Borrachinha não!”. Sua mãe imediatamente o<br />
acariciou explicando que a “borrachinha” não era para ele, que a “tia Renata” não usa<br />
“borrachinha”. Kiko se acalmou, mas em momento algum desviou sua atenção dos<br />
movimentos da outra fisioterapeuta, que preparava a aspiração. Quando este procedimento<br />
teve de ser iniciado, foi preciso – como de hábito – que a criança fosse contida pela mãe e por<br />
mais uma profissional e, no instante em que a fisioterapeuta ia introduzir a sonda na paciente,
Kiko começou a incentivá-la: “Vai! Vai! Vai!”. Não se pode deixar de ressaltar a mudança em<br />
sua expressão facial que, se antes denotava apreensão, medo e expectativa, transfigurou-se em<br />
raiva.<br />
Este caso ilustra de maneira singular a concepção de Winnicott (1978a), que liga o<br />
conceito de agressão às idéias de atividade e motilidade, sendo fundamental para a<br />
estruturação do desenvolvimento emocional. A atividade / motilidade viabiliza a descoberta<br />
do meio ambiente, porém, quando o meio ambiente invade o bebê, esta motilidade se<br />
manifesta como uma reação à invasão, e não mais como fonte de experiências individuais.<br />
Kiko vivenciou, durante toda a sua vida, sucessivos episódios de invasão – física e<br />
emocional. A aspiração é, em si, um procedimento especialmente violento, pois é realizada<br />
através de uma sonda introduzida profundamente na narina do paciente para remover<br />
secreções brônquicas. O mecanismo de sucção provoca uma sensação de “roubo” do ar<br />
respirado, além da própria dor oriunda do atrito da sonda nas vias aéreas (em crianças, é<br />
muito difícil evitar este atrito, pois nem a contenção impede completamente seus<br />
movimentos). Além disso, quando a sonda é finalmente retirada, ainda resta a outra narina, e<br />
depois a boca... Como a criança naturalmente se debate e chora, na tentativa de livrar-se do<br />
sofrimento, ela precisa ser fortemente contida, o que constitui uma outra forma de invasão. Do<br />
ponto de vista do paciente, trata-se, portanto, de uma conduta potencialmente ameaçadora da<br />
integridade física e da existência emocional, ainda que seus objetivos e resultados – em<br />
termos biofísicos - sejam extremamente benéficos, e ainda que a criança experimente uma<br />
posterior sensação de bem-estar pela melhora de sua função respiratória.<br />
Assim, quando Kiko se identifica com o agressor (fisioterapeuta) e incentiva o<br />
procedimento doloroso na criança ao lado, a crueldade expressa uma possibilidade de resposta<br />
aos ataques do meio ambiente. Em outra ocasião, Fernanda relatou um comentário da<br />
professora de Kiko, impressionada com sua resposta à pergunta: o que você quer ser quando
crescer? O menino respondeu: “Quero ser o Marcos [fisioterapeuta respiratório do IFF], para<br />
enrolar [no lençol], segurar, e aspirar!”, afirmação acompanhada de um gestual bastante<br />
agressivo. Em outro momento, declarou, no ambulatório, que gostaria de ser o Hulk, para<br />
destruir o hospital... É importante lembrar que Kiko é, em geral, um menino doce, bem-<br />
humorado e carinhoso. Segundo Winnicott (1978b), uma criança que se desenvolve em um<br />
meio que se adapta suficientemente bem às suas necessidades, alcança uma integração do self<br />
de tal sorte que a agressividade emerge de maneira pontual, podendo a criança retornar<br />
posteriormente ao seu estado normal.<br />
Assim, a agressividade surge positivamente como uma resposta e uma defesa de Kiko<br />
frente a um meio-ambiente cronicamente hostil. Este tipo de atitude é complementada – e não<br />
contraposta – pelo episódio da nebulização de Fernanda. O fato de que seja possível reagir<br />
ativamente a uma agressão e, ao mesmo tempo, conhecer a importância de um gesto de<br />
consolo e carinho delineia a capacidade de Kiko se estruturar em seu desenvolvimento<br />
emocional e organizar sua personalidade de maneira saudável. É evidente que tudo isso<br />
corrobora para que seu desenvolvimento motor encontre vias mais fáceis e bem estruturadas.<br />
Não se pode negligenciar a influência, descrita por inúmeros autores, que os aspectos psico-<br />
comportamentais exercem sobre a atitude <strong>postural</strong> e a motricidade (Alexander, 1991; Béziers<br />
e Hussinger, 1994; Campignion, 1996; Denys-Struyf, 1997; Lederman, 2001).<br />
Enfim, retomando a questão estritamente fisioterapêutica, o trabalho de reeducação<br />
motora foi reiniciado após a alta hospitalar de Kiko, a princípio concentrando-se nas<br />
articulações coxofemorais e membros inferiores, mas rapidamente evoluindo para atividades<br />
que envolvessem a musculatura abdominal, o tórax e a cintura escapular. É importante<br />
assinalar que a vesicostomia e a ureterostomia constituíam um obstáculo para condutas<br />
terapêuticas manuais que envolvessem a região lombo-sacra, dado que se fazia necessária a
permanente manutenção de uma fralda protegendo a área. Mesmo assim, diversas manobras<br />
puderam ser adaptadas e realizadas, sem prejuízo para o tratamento da criança.<br />
Cabe lembrar que a proposta lúdica norteava a terapêutica, sendo responsável, em<br />
larga medida, pela adesão ao tratamento. Condutas não convencionais, estranhas ao ambiente<br />
do ambulatório, eram adotadas, no sentido de promover segurança, aconchego e conforto à<br />
criança, além de facilitarem a abordagem da terapeuta. Destaca-se a utilização da maca como<br />
se fosse um tatame, permitindo que as manobras fossem realizadas com o paciente no colo, o<br />
que produzia um efeito inusitado e divertido sobre ele (foto 9).<br />
Foto 9: Abordagem lúdica, fevereiro de 2002<br />
Em junho de 2002, a descoberta de uma displasia bilateral do quadril de um dos<br />
meninos (a ser descrita no capítulo 6) motivou a realização de radiografias do quadril de todas<br />
as crianças com síndrome de prune belly vinculadas ao ambulatório – e não apenas das quatro<br />
que participam desta pesquisa. Deve-se recordar que a luxação congênita do quadril é uma<br />
anomalia freqüente na síndrome, conforme foi exposto no capítulo 3. Como se pode verificar
na fotografia 10, Kiko não apresentava alterações ósseas na pelve, o que sem dúvida facilitou<br />
o trabalho de reeducação motora nesta região.<br />
Foto10: Kiko, radiografia do quadril em vista antero-posterior (AP), junho de 2002<br />
Nesta época, Kiko começou a apresentar-se excessivamente agitado e, algumas vezes,<br />
desobediente. Foi então preciso dosar carinho e brincadeira com uma certa firmeza na<br />
imposição de limites, o que permitiu a manutenção da qualidade do trabalho. Em todos os<br />
momentos em que a “bronca” se fez necessária, obtive total apoio da parte de Fernanda. O<br />
caráter participativo de Kiko, que passava as sessões inteiras “tagarelando”, evoluiu para um<br />
certo “ciúme”, manifesto pela constante reivindicação de “Deixa eu falar!”, sempre que a<br />
conversa não o incluía. Em certas ocasiões, Kiko buscava incessantemente monopolizar as<br />
atenções durante toda a sessão, contando diversas histórias infantis (aprendidas com a mãe ou<br />
na escola), uma após a outra, à sua maneira, repetindo a cada vez: “Vou contar uma história!”.<br />
Foi um período em que Fernanda se mostrava bastante ansiosa e impaciente, passando a
eceber atendimento psicoterápico no IFF. A mesma psicanalista começou também a<br />
acompanhar Kiko, separadamente, suspeitando de possíveis sinais de hiperatividade.<br />
No que concerne aos resultados da terapia <strong>postural</strong>, Kiko obteve excelente resposta<br />
quanto à estruturação global de seu corpo, como se pode observar pela comparação <strong>entre</strong> a<br />
fotografia 11 e a fotografia 8 (p. 75). Nota-se uma sensível diferença na <strong>organização</strong><br />
muscular, especialmente nos membros inferiores. A modificação no posicionamento da<br />
cintura escapular e coluna cervical, adquiridas através de técnicas manuais passivas, são<br />
melhor apreciadas na fotografia 12. De fato, Kiko passou a apresentar uma <strong>organização</strong><br />
escápulo-umeral bastante satisfatória, assim como obteve um acentuado aumento de seu<br />
espaço cervical. Na época do registro destas imagens, tanto a mãe quanto a fisioterapeuta que,<br />
originalmente, me apresentara à criança (porém havia se afastado do ambulatório por um<br />
longo período), espontaneamente manifestaram seu espanto quanto à mudança na<br />
apresentação do pescoço de Kiko. O feedback da referida fisioterapeuta foi bastante<br />
interessante, pois o trabalho <strong>postural</strong> se dá de maneira lenta e progressiva, fazendo com que a<br />
convivência diária mascare um pouco a percepção da evolução. Assim, somada ao registro<br />
fotográfico contínuo, a visão de alguém que não estivesse em contato constante com a criança<br />
nos proporcionou um bom parâmetro do progresso do tratamento.
Foto 11: Kiko, vista anterior, agosto de 2003<br />
Foto 12: Kiko, agosto de 2003, observação da cintura escapular e pescoço
A otimização do trabalho da musculatura abdominal, por outro lado, cursou com<br />
resultados menos evidentes. A severa hipoplasia abdominal apresentada por Kiko dificultava<br />
bastante a realização do exercício do “elevador” (foto 13), assim como da “brincadeira da<br />
bola”. Kiko tendia a utilizar suas mãos para ajudar a elevar as pernas, mas acabou<br />
respondendo bem à instrução de mantê-las “coladas” na cama. Ainda assim, este aspecto<br />
continua a demandar maior atenção no âmbito do tratamento. É importante acrescentar,<br />
<strong>entre</strong>tanto, a contribuição do estímulo da musculatura abdominal para a melhora do quadro de<br />
constipação crônica.<br />
Foto 13: Kiko tem dificuldades com o exercício do “elevador”<br />
Ao longo de todo esse período, Fernanda empreendeu uma incessante busca pela<br />
“cinta ideal”. Experiências com tecidos e formatos diversos, troca de idéias com as outras<br />
mães, enfim, uma série de tentativas que terminavam tendo, cada uma, seu defeito. A cinta<br />
elástica (foto 14) constitui, na verdade, um dilema: quente, apertada, difícil de adaptar,
impossível de manter na posição correta, mas ainda assim Kiko – bem como os outros<br />
meninos – se sente extremamente desconfortável e desprotegido sem ela. Todas as mães<br />
relatam que seus filhos lhes pedem para pôr a cinta. Entretanto, o melhor material e a forma<br />
ideal de confeccioná-la, de modo que confira sustentação da pelve ao tórax, sem “escorregar<br />
para baixo”, sem promover desconforto e sem dificultar a remoção quando a criança precisar<br />
ir ao banheiro, ainda se revelam um “mistério”. Enquanto não se soluciona tal problema,<br />
continua-se a improvisar, testar, experimentar. Espera-se que em breve consigamos – mães e<br />
terapeutas – chegar a uma conclusão mais definitiva sobre o assunto.<br />
Foto 14: Dificuldade na adaptação da cinta elástica<br />
Kiko atualmente freqüenta a pré-escola normalmente e realiza todas as atividades<br />
funcionais compatíveis com sua idade. Chegou ao final do ano de 2003 aguardando novas<br />
cirurgias eletivas, em especial o fechamento da vesicostomia e da ureterostomia e,<br />
possivelmente, uma plástica abdominal. O acompanhamento psicoterápico foi interrompido,<br />
porém Kiko tem se mostrado menos agitado (sem perder, é claro, seu temperamento alegre e
falante). Permanece freqüentando semanalmente o ambulatório de fisioterapia, recebendo<br />
sempre a dupla abordagem.<br />
Capítulo 6 - ELE FAZ SOZINHO...
Conheci Léo em março de 2001, logo após conhecer Kiko. Ele estava então com três<br />
anos e apresentava um quadro respiratório relativamente estável, apesar de já ter passado por<br />
períodos de acentuada gravidade, segundo o relato da fisioterapeuta e da mãe.<br />
No princípio, a adesão ao tratamento foi boa o suficiente para que se pudesse obter<br />
resultados satisfatórios (e para permitir sua inclusão nesta pesquisa), porém o trabalho se<br />
restringia àquele realizado nas sessões: por mais que se explicasse a importância da<br />
continuidade em casa, Fabiana sempre alegava falta de tempo e de disponibilidade para fazer<br />
os exercícios com seu filho. Além da inefetividade da orientação domiciliar, as faltas às<br />
sessões eram relativamente freqüentes e, quando presente ao ambulatório, Fabiana se<br />
mostrava sempre apressada, querendo que a consulta terminasse o mais rápido possível. Não<br />
se pode afirmar, contudo, que se tratasse de uma questão de descaso, pois, se por um lado<br />
havia uma certa negligência, por outro o tratamento jamais foi efetivamente interrompido,<br />
além de que Léo e sua irmã se apresentavam sempre bem arrumados, estudavam em escola<br />
particular (apesar das dificuldades financeiras) e Fabiana esteve sempre apta a fornecer<br />
quaisquer informações sobre o cotidiano e a saúde do filho.<br />
A <strong>entre</strong>vista realizada pela profissional do Serviço Social do IFF à época do<br />
nascimento evidenciou um contexto familiar um tanto conturbado. A gravidez foi dificilmente<br />
aceita, pois o casal passava por sérias dificuldades financeiras, uma vez que, na ocasião, o pai,<br />
único provedor, se encontrava desempregado. Ainda que, antes do nascimento de Léo, tivesse<br />
conseguido um novo emprego, a situação sócio-econômica da família se encontrava “no limite<br />
do atendimento às necessidades básicas dos membros”. 36 O acompanhamento do menino<br />
durante a internação esbarrava na necessidade de assistência à filha mais velha, então com três<br />
anos. A <strong>entre</strong>vista com o pai constatou que, apesar de mostrar-se sensibilizado com todo este<br />
quadro, não apresentou alternativas para viabilizar uma presença mais constante de Fabiana<br />
36 Segundo o parecer da profissional do Serviço Social, de 24 de novembro de 1997.
junto ao filho. No que diz respeito, posteriormente, ao tratamento fisioterapêutico, ele jamais<br />
compareceu ao ambulatório e, segundo Fabiana, não se interessava muito pelos assuntos<br />
ligados aos tratamentos de Léo.<br />
Em 2002, o casal se separou, ficando o contato de Léo com seu pai restrito aos fins de<br />
semana alternados, quando Fabiana se mostrava sempre insegura, temendo que o ex-marido<br />
não fosse capaz de executar corretamente as medidas relativas à saúde do filho (higienização<br />
da vesicostomia, colocação da cinta elástica, administração de medicamentos, etc.). Segundo<br />
ela, era o próprio Léo, acostumadíssimo a todos os procedimentos, quem tinha de orientar o<br />
pai. Muitas vezes, nestes fins-de-semana, ele terminava por levar o menino para pernoitar na<br />
casa da mãe.<br />
Esta conjuntura poderia, talvez, explicar a dificuldade para a adesão a um tipo de<br />
tratamento que, efetivamente, demandava tempo e deslocamento como nenhum outro no IFF<br />
(as consultas na Pneumologia, Cirurgia Pediátrica, etc. se davam de forma muito mais<br />
esporádica). Ainda assim, pode-se afirmar que Léo se beneficiou consideravelmente da<br />
aplicação da dupla abordagem fisioterapêutica. Após um longo período de estabilidade<br />
clínica, ele se encontra atualmente liberado da fisioterapia respiratória. Permanece, contudo,<br />
freqüentando o ambulatório quinzenalmente (sempre que possível...), para as sessões de<br />
trabalho <strong>postural</strong>.<br />
6. 1 - Breve história clínica<br />
De acordo com os dados colhidos no prontuário do IFF, a ultra-sonografia fetal de Léo<br />
já evidenciava hidronefrose e oligodramnia severa, sugerindo válvula de uretra posterior.<br />
Nasceu nesta instituição em novembro de 1997, a termo, pesando 2380 gramas, de parto<br />
cesáreo por sofrimento fetal (taquicardia fetal), apresentando urinoma na região anterior do<br />
rim direito, discreta dilatação do rim esquerdo, ureteres dilatados e tortuosos, espessamento da
exiga, hidronefrose moderada e refluxo vésico-ureteral grau IV, tendo sido caracterizado o<br />
diagnóstico de síndrome de prune belly. O exame ao nascimento evidenciou teste de Ortolani<br />
positivo bilateralmente 37 . Foi realizada pielostomia direita no oitavo dia após o nascimento.<br />
No dia seguinte, procedeu-se à punção do urinoma e, seis dias depois, confeccionou-se a<br />
vesicostomia, permitindo a alta hospitalar (um mês após o nascimento). Evoluiu com um<br />
quadro de insuficiência renal crônica, ITU e pneumonias / atelectasias de repetição,<br />
responsáveis por um total de 18 internações até outubro de 2000, com passagens pela UPG<br />
em maio de 1998 e em fevereiro de 2000, ambas por infecção respiratória, demandando<br />
ventilação mecânica. Nesta fase, chegou a fazer fisioterapia respiratória com uma freqüência<br />
de três a quatro vezes por semana. Em dezembro de 1997, Léo foi internado para<br />
compensação renal e tratamento de ITU, pois foi interrompida a administração da medicação<br />
(citrato de sódio), por falta de condições econômicas para adquiri-la. Um parecer da assistente<br />
social, de setembro de 1998, pontua a angústia expressa por Fabiana no que se refere às várias<br />
internações e cirurgias a que seu filho vinha sendo submetido. Em janeiro de 2000, após um<br />
diagnóstico de exclusão funcional do rim direito, foi realizada nefrectomia com conservação<br />
de 1/3 distal do ureter direito.<br />
Manteve-se em boas condições de saúde durante os anos de 2001 e 2002. A mãe<br />
relatou inclusive que “ele esteve menos doente em 2000 do que nos anos anteriores”. Em<br />
janeiro de 2003, finalmente fechou-se a vesicostomia. Léo aguarda ainda uma cirurgia de<br />
reimplante ureteral esquerdo.<br />
Apesar de seu desenvolvimento psicomotor ter se dado com atraso, Léo apresenta hoje<br />
uma motricidade normal, mesmo com as limitações impostas por seu quadro clínico e<br />
ortopédico. Vem sendo acompanhado, <strong>entre</strong>tanto, nos serviços de Endocrinologia e Nutrição,<br />
devido a um déficit de crescimento (estatura e peso inferiores ao percentil 5). Em todas as<br />
37 Caracterizando luxação congênita do quadril (Cipriano, 1999; Wever, 1998).
consultas ambulatoriais, Fabiana refere pouco apetite e baixo peso do menino. Léo mantém<br />
ainda vínculos, no IFF, com os setores de Cirurgia Pediátrica, Pneumologia, Nefrologia,<br />
Pediatria, Urodinâmica e Fisioterapia Respiratória.<br />
6. 2 - Eu solto pipa, sabia?<br />
Léo é o típico menino levado. Morador de uma casa no subúrbio, não foi criado como<br />
uma criança “doente”: cresceu brincando na rua com os outros meninos. Sistematicamente,<br />
comparecia às sessões cheio de arranhões e pequenos hematomas, aos quais sempre<br />
correspondia uma história orgulhosamente narrada: “Este dodói foi porque eu caí, correndo<br />
com meu primo. Este machucado, foi que eu tentei entrar em casa pela janela, e caí...”<br />
Recentemente, estive conversando com Fabiana sobre a impressionante agilidade e<br />
desenvoltura do menino, e ela ponderou: “As outras mães [do grupo de SPB] protegem<br />
demais os filhos, eu sempre quis criar o Léo mais livre, nunca tive medo de deixar ele brincar,<br />
jogar bola, subir no escorrega... Acho que por isso ele é mais solto que os outros”. Sempre<br />
cheio de novidades, o menino conta, animadamente, que tem até uma cinta azul [de<br />
neoprene], para poder entrar no mar. Tendo aprendido com o pai a fazer pipas de diversas<br />
cores e tamanhos, não lhe falta energia para correr um dia inteiro atrás delas, e muito menos<br />
para narrar tais peripécias.<br />
De fato, Léo se mostrou, a princípio, o mais comprometido dos quatro meninos do<br />
ponto de vista ósteo-mio-articular, porém sua evolução em termos funcionais é<br />
impressionante. Pode-se atribuir tal progresso à escolha da mãe no que tange à criação e<br />
educação. Não se deve, <strong>entre</strong>tanto, negligenciar a participação do próprio Léo, cuja esperteza,<br />
inteligência, vivacidade e “jogo de cintura” representaram um papel fundamental para o bom<br />
andamento do processo.
Em março de 2001, o primeiro exame do aparelho locomotor de Léo evidenciou,<br />
flagrantemente, um severo bloqueio nas articulações coxofemorais. O exercício do “caracol”<br />
(utilizado também como teste de mobilidade articular) já provocava dor em um grau de<br />
amplitude bastante reduzido.<br />
O menino, de fato, não era capaz de sentar-se com as pernas cruzadas - o que passou a<br />
se chamar, para ele, “posição de brincadeira” – sem cair para trás, tamanha a falta de<br />
flexibilidade dos quadris (fotografia 15). Este quadro mostrou poucos indícios de melhora por<br />
um longo período.<br />
Foto 15: Léo sentado, sem conseguir cruzar as pernas, março de 2001<br />
A foto 16 mostra Léo espontaneamente sentado, sem tentar assumir a “posição de<br />
brincadeira”. Nota-se a forte rotação interna dos membros inferiores, especialmente à<br />
esquerda, onde inclusive ocorre maior resistência à mobilização passiva e, conseqüentemente,<br />
onde a dor se manifesta mais rapidamente.
Foto 16: Léo brinca sentado, março de 2001<br />
As vistas posterior e de perfil (fotos 17, 18 e 19) evidenciam a retração da musculatura<br />
paravertebral lombar e glútea. Tais espasmos musculares constituem uma tentativa de restituir<br />
o equilíbrio do corpo no plano sagital, compensando o peso do abdômen e a insuficiência da<br />
musculatura anterior. Entretanto, por estarem exacerbados, mantêm a pelve em severa<br />
anteversão e contribuem para o bloqueio coxofemoral.
Fotos 17 e 18: Léo, vista posterior, março de 2001<br />
Foto 19: Léo, perfil, março de 2001<br />
Foi realizado intenso trabalho de flexibilização coxofemoral e de relaxamento,<br />
harmonização e alongamento da musculatura das referidas regiões. Léo se mostrou sempre<br />
cooperativo, divertindo-se com todas as atividades propostas e submetendo-se sem protestos<br />
às condutas passivas de terapia manual. O limite da dor era respeitado, pois a intenção era<br />
fazer com que as estruturas mio-articulares cedessem progressivamente, permitindo maiores<br />
amplitudes, ao invés de forçar tais amplitudes com manobras agressivas. A cintura escapular e<br />
o tórax também mereceram atenção, pela forte elevação e adução das escápulas e pela<br />
depressão sub-mamária (mais facilmente perceptível na posição sentada). Os pés, cujos arcos<br />
plantares se apresentavam apenas incipientes, receberam todos os procedimentos de<br />
coordenação e reestruturação muscular. A brincadeira do “parabéns” era uma de suas<br />
favoritas, o que contribuiu consideravelmente para a melhora neste segmento.
Conforme comentado acima, <strong>entre</strong>tanto, o progresso se dava de maneira muito lenta.<br />
A insuficiente adesão ao tratamento por parte de Fabiana constituía, de fato, uma barreira que<br />
começava a conferir um certo desestímulo quanto ao processo de trabalho com Léo. Ainda<br />
que, ao final de cada sessão, fosse alcançado um patamar melhor em termos de flexibilidade<br />
mio-articular, permitindo a manutenção da “posição de brincadeira”, tudo se perdia até a<br />
semana seguinte, pela falta de continuidade dos exercícios em casa...<br />
Até que, oito meses depois da primeira avaliação, em novembro de 2001, um<br />
acontecimento veio a modificar este quadro. Léo tinha começado a freqüentar a pré-escola.<br />
Certo dia, entrou no ambulatório e, como sempre, puxou a escadinha para perto da maca e<br />
subiu, pois ele sempre gostava de fazê-lo sem ajuda – apesar do esforço. Imediatamente, pôs-<br />
se na “posição de brincadeira” (foto 20) e olhou para mim, abrindo um largo sorriso. Voltei-<br />
me para Fabiana, exultante, e aplaudi: “Parabéns, mãe! Você tem feito os exercícios!”. Ao<br />
que ela retrucou, sem muito entusiasmo: “Eu, não. Ele faz sozinho...”. Ligeiramente<br />
incrédula, pedi ao menino que me mostrasse as “brincadeiras da tia Rê” que ele fazia em casa,<br />
sendo surpreendida por uma execução bastante razoável de toda uma seqüência de exercícios<br />
(fotos 22 e 23). Mesmo que os posicionamentos não estivessem rigorosamente corretos, os<br />
objetivos das atividades puderam ser alcançados. Poucas semanas depois, nova surpresa:<br />
Fabiana chega ao ambulatório, dizendo que Léo tinha lhe pedido que trouxesse algo para me<br />
mostrar. Ela tira da bolsa uma fotografia, obtida na escola de Léo, em que a professora se<br />
encontrava sentada no chão, com a turma, formando um círculo, como é comum em turmas de<br />
pré-escola. Entre as crianças, estava Léo, em sua “posição de brincadeira”, igual aos<br />
coleguinhas, empertigando o tronco para aparecer na foto, com o mesmo largo sorriso,<br />
evidenciando o orgulho desta conquista 38 . Sem dúvida, o desejo de que eu visse a foto<br />
denotava uma certa cumplicidade, um atestado de que o menino acreditava que, de alguma<br />
38 Lamentavelmente, esta fotografia foi levada de volta à escola, onde Léo atualmente não estuda mais. Fabiana<br />
não dispunha de nenhuma cópia, portanto não foi possível expô-la neste trabalho.
maneira, o nosso trabalho havia rendido frutos importantes para sua vida. O fato é que, aos<br />
quatro anos de idade, Léo tomou as rédeas de seu tratamento, ao perceber o quanto este<br />
poderia ajudá-lo a realmente pertencer ao grupo do qual ele passava a fazer parte. Este<br />
episódio acende os holofotes sobre a relevância da valorização dos aspectos psico-sociais nos<br />
processos de tratamento e nas relações <strong>entre</strong> pacientes e profissionais de saúde, mesmo<br />
quando as individualidades em questão dizem respeito a crianças ainda tão pequenas.<br />
Assim, Léo finalmente conquistou a manutenção da posição sentada, ainda que<br />
auxiliado pelo engenhoso artifício de segurar os pés. Observa-se, contudo, apesar da fralda,<br />
que o ângulo obtuso formado <strong>entre</strong> a parte posterior da pelve e a coxa denota uma insuficiente<br />
flexão do quadril, compensada por uma hiper-cifose na região dorsal. Tal postura do tórax se<br />
manifestava essencialmente nesta posição, inclusive por causa da atitude dos braços (embora<br />
não somente). De pé, a compensação se dava mais pela fortíssima anteversão pélvica, com<br />
hiperlordose lombar (foto 21).
Fotos 20 e 21: Léo em “posição de brincadeira” e de perfil, novembro de 2001<br />
Foto 22: Léo mobiliza sua articulação coxofemoral, novembro de 2001<br />
Foto 23: Léo alonga sua cadeia póstero-mediana, setembro de 2003<br />
Em maio de 2002, Léo precisou fazer uma cistouretrografia, exame que demanda a<br />
realização de uma radiografia do tronco, incluindo os quadris (a foto 24 mostra apenas o
detalhe da pelve). Fabiana me apresenta, então, o seguinte bilhete, da parte da radiologista<br />
responsável:<br />
“Cara colega fisioterapeuta Renata,<br />
O paciente Léo apresenta importante displasia de quadril 39 bilateral com luxação das<br />
epífises femurais (que têm configuração alterada) e retificação dos acetábulos.<br />
É preciso que ele tenha um parecer de ortopedista.<br />
Maiores esclarecimentos estarão no meu laudo de cistouretrografia.<br />
Atenciosamente, ...” 40<br />
Foto 24: Radiografia do quadril de Léo, evidenciando displasia bilateral de cabeças femorais e acetábulos,<br />
maio de 2002<br />
De fato, nenhuma das crianças havia jamais passado pela avaliação de um ortopedista,<br />
especialidade com a qual o IFF lamentavelmente não conta, tendo sido sempre acompanhadas<br />
39 Grifo da autora do bilhete.<br />
40 Bilhete encaminhado por radiologista à pesquisadora, datado de 21 de maio de 2002.
pela Cirurgia Pediátrica. Embora a literatura relate, conforme já mencionado, grande<br />
incidência de displasias de quadril na SPB (Brinker et al. 1995; Green et al., 1993; Joller e<br />
Scheier, 1986; Loder et al., 1992), é possível que tal aspecto receba pouca atenção na ocasião<br />
do nascimento destes meninos, cujos quadros clínicos são, em geral, tão complicados, do<br />
ponto de vista urogenital e respiratório, que a questão ortopédica seja francamente relegada a<br />
um segundo plano. O achado radiológico aqui relatado, <strong>entre</strong>tanto, motivou a realização de<br />
radiografias do quadril de todos os pacientes com a síndrome, solicitadas pela fisioterapia. A<br />
proposta foi gentilmente acolhida pela responsável pelo serviço de Radiologia, ainda que tal<br />
exame, com fins ortopédicos, não seja regularmente executado no setor.<br />
Léo foi, então, encaminhado a outra instituição, para avaliação de um ortopedista.<br />
Segundo Fabiana, o médico ficou tão impressionado com a performance motora do menino<br />
que disse: “Se eu visse esta radiografia, sem ver a criança, afirmaria que ela jamais seria<br />
capaz de andar (sic)”. Àquela altura, porém, não havia mais nada a ser feito em termos de<br />
conduta médica ortopédica. De fato, segundo Wever (1998), “a única oportunidade de se<br />
obter a correção completa da LCQ [luxação congênita do quadril] depende de se<br />
diagnosticá-la logo após o nascimento. Nesse ponto reside a indiscutível responsabilidade do<br />
pediatra” (p. 83). O autor confirma que esta deformidade acarreta um significativo retardo do<br />
início da marcha (Léo somente andou sem apoio com quase 2 anos). Ainda segundo ele,<br />
quando a criança já deambula, a displasia se manifesta, <strong>entre</strong> outros sinais, pela “inclinação<br />
anterior da pelve [que] determina o aparecimento da curvatura exagerada da região lombar,<br />
conhecida como hiperlordose” (p. 88). Estes dados justificam a atitude <strong>postural</strong> de Léo,<br />
especialmente se somados às características próprias à SPB. Assim, sem possibilidades de<br />
correção ortopédica, a recomendação do médico foi de que, em hipótese alguma, Léo<br />
interrompesse a fisioterapia. Fabiana não nos trouxe nenhum parecer por escrito de sua parte,<br />
mas as informações obtidas em todo este episódio foram extremamente valiosas para a
compreensão das dificuldades de Léo e para os caminhos a serem seguidos na continuidade<br />
do tratamento.<br />
Em 2003, Fabiana voltou a estudar (havia interrompido o ensino médio). Com isso,<br />
seus períodos de ausência do ambulatório se tornaram mais longos e freqüentes. Dada a<br />
estabilidade clínica do filho, que há muito não apresentava complicações pulmonares ou<br />
urológicas, talvez ela julgasse desnecessária a manutenção das visitas ao hospital – ainda que<br />
o assunto tivesse sido discutido inúmeras vezes, com os diversos profissionais da fisioterapia.<br />
A equipe respiratória, <strong>entre</strong>tanto, lhe concedeu alta do tratamento, o que tornou ainda mais<br />
difícil convencê-la a vir ao hospital “só” para a abordagem <strong>postural</strong>. No segundo semestre,<br />
após (mais) uma longa conversa sobre a importância da fisioterapia para o desenvolvimento<br />
do menino, ela passou a cumprir com relativa assiduidade a rotina de sessões quinzenais.<br />
Apesar da gravidade do caso de Léo, houve indubitável melhora da qualidade de suas<br />
estruturas ósteo-mio-articulares, assim como de sua motricidade. Se compararmos a fotografia<br />
25 com a fotografia 20 (p. 101), perceberemos a diferença, não somente na facilidade com<br />
que é mantida a posição sentada (a mão, atualmente, não constitui mais um recurso de apoio,<br />
para a manutenção do equilíbrio), mas principalmente no posicionamento do quadril em<br />
relação aos membros inferiores, em que um ângulo bem mais próximo de 90º pode ser<br />
observado.
Foto 25: Léo sentado, julho de 2003<br />
Quanto à musculatura da região dorsal, embora permaneçam retrações e<br />
encurtamentos, além da persistência da acentuada anteversão pélvica, nota-se igualmente uma<br />
sensível modificação, como se pode confirmar pela comparação <strong>entre</strong> as fotos a seguir (26, 27<br />
e 28) e as das páginas 97 e 98 (17, 18 e 19).
Fotos 26 e 27: Léo, vista posterior, julho e setembro de 2003<br />
Foto 28: Léo, perfil, julho de 2003
A partir de 2004, Léo e sua irmã passaram a estudar em uma escola pública, pois a<br />
situação financeira da família se tornou mais difícil. Fabiana se mostra frustrada com esta<br />
realidade, pois estava muito satisfeita com o desenvolvimento dos filhos na outra escola. Léo<br />
já lê pequenas frases e exibe absoluto encantamento pela perspectiva da leitura. Tanto Fabiana<br />
quanto o ex-marido têm novos companheiros, o que não parece incomodar o menino. Fabiana<br />
vem se revelando progressivamente mais tranqüila e disposta a encontrar meios de freqüentar<br />
as sessões de fisioterapia com assiduidade satisfatória. Sua relação com o filho também vem<br />
se modificando. Fabiana torna-se cada vez mais carinhosa, paciente e orgulhosa das<br />
realizações de Léo.<br />
Capítulo 7 - COM A TIA RÊ, EU BRINCO...
No princípio de maio de 2001 tive o primeiro contato com Thiago, então com oito<br />
meses de idade, o único do grupo a iniciar o tratamento antes de haver conquistado o<br />
ortostatismo e a marcha, o que permitiu a supervisão de todo este processo. Na ocasião, o<br />
menino estava começando a manter-se sentado sem apoio. Foi capaz de ficar de pé <strong>entre</strong><br />
agosto e setembro do mesmo ano, mas observaram-se alterações severas em sua atitude<br />
<strong>postural</strong>, especialmente nos membros inferiores. O acompanhamento fisioterapêutico, aliado à<br />
dedicadíssima adesão da família, não só quanto ao comparecimento ao hospital, mas<br />
principalmente nas condutas domiciliares, foram decisivos para que o menino desenvolvesse<br />
uma marcha normal, sendo hoje capaz de correr, jogar futebol, andar de bicicleta, etc.<br />
Carolina tinha 46 anos quando engravidou de Thiago. Casada há 23 anos, era mãe de<br />
quatro rapazes, um de 21 anos, um de 18 e dois gêmeos de 17. A gravidez foi uma surpresa,<br />
pois já havia entrado na menopausa. Apesar disso, a vinda deste “temporão” foi bem aceita,<br />
mesmo quando, no quarto mês de gestação, o casal tomou conhecimento de que o filho<br />
nasceria com problemas 41 . Professora de História com formação universitária, Carolina<br />
precisou deixar um emprego de 15 anos para se dedicar aos cuidados com Thiago. Seu<br />
marido, educador social em um abrigo, mostrou-se sempre bastante presente. Em suas<br />
diversas visitas ao ambulatório, acompanhando a esposa e o filho, fazia perguntas, tentando<br />
compreender a intenção de cada conduta, e buscava aprender os exercícios para poder repeti-<br />
los em casa. Embora, no princípio, não tivessem recebido bem a notícia da vinda de Thiago,<br />
os irmãos rapidamente passaram a nutrir um imenso carinho pelo “caçula”, que é<br />
extremamente apegado a eles. Atualmente, o mais velho é oficial da marinha (casou-se<br />
recentemente, sendo Thiago o pajem da cerimônia religiosa). O segundo é estudante de<br />
41 Segundo o parecer da profissional do Serviço Social, de 17 de abril de 2002.
Educação Física e os gêmeos são estudantes de Enfermagem, motivados – no entender da mãe<br />
- pela ajuda que sempre lhe prestaram nos cuidados com o irmão.<br />
Carolina tornou-se amiga e aliada de Fernanda (mãe de Kiko). Juntas, investiram<br />
tempo e disposição na tentativa de estruturar uma associação de pacientes com SPB,<br />
participando ativamente das reuniões organizadas pela assistente social do setor de Cirurgia<br />
Pediátrica do IFF, que coordenava o grupo de familiares destas crianças.<br />
7. 1 - Breve história clínica<br />
De acordo com os dados colhidos no prontuário do IFF, Thiago nasceu nesta<br />
instituição em agosto de 2000, prematuro (33 semanas), de parto normal (oligodramnia<br />
severa, ascite fetal, placenta edemaciada), pesando 1820 gramas (AIG), tendo necessitado de<br />
reanimação com máscara e ambu (sofrimento respiratório). O exame ao nascimento<br />
evidenciava malformação congênita (suspeita de SPB). O neonato apresentava massa cística<br />
abdominal à direita, associada a pé torto posicional à direita e ausência da musculatura<br />
abdominal. Permaneceu internado no berçário de alto risco por 28 dias. A ultra-sonografia<br />
abdominal realizada no segundo dia revelou espessamento da bexiga e ascite, sem dilatação<br />
ureteral ou renal.<br />
A primeira consulta no setor de Cirurgia Pediátrica ocorreu aos dois meses.<br />
Confirmou-se o diagnóstico de SPB, observando-se criptorquidia bilateral e leve hidronefrose<br />
à esquerda. A acentuada preponderância da hipoplasia abdominal à direita levou o médico<br />
responsável pelo setor a caracterizá-lo como um “hemi-prune belly”. 42 Nesta ocasião a mãe já<br />
referia dificuldades na evacuação, que se desenvolveriam como uma constipação crônica,<br />
anormalidade freqüentemente associada à síndrome (Greskowich e Nyberg Junior, 1988;<br />
Jesus et al., 2000).<br />
42 Apesar de não constar da literatura, este termo foi adotado pelo referido médico no sentido de descrever a<br />
peculiaridade da conformação abdominal desta criança, tendo sido por ele utilizado em uma palestra dirigida aos<br />
familiares do grupo de crianças com a síndrome, em setembro de 2002.
As diversas internações – tendo a primeira ocorrido aos sete meses, por pneumonia e<br />
bronquiolite - se deveram primordialmente a infecções respiratórias e atelectasias de<br />
repetição, apresentando poucos episódios de ITU. De fato, o trato genito-urinário permaneceu<br />
preservado anatômica e funcionalmente.<br />
O relato do nascimento de Thiago, no prontuário do IFF, não faz referência a testes da<br />
articulação coxofemoral. Entretanto, a radiografia realizada em função de uma urografia<br />
excretora em outubro de 2001 43 evidencia luxação coxofemoral direita e displasia acetabular<br />
esquerda. O achado radiológico não é comentado no prontuário, o que somente ocorre após<br />
nova urografia excretora, em abril de 2002, quando a radiologista responsável pontua o atraso<br />
da ossificação e as alterações no quadril, sugerindo maiores investigações sobre a questão<br />
(recomendada ultra-sonografia de quadril). Este laudo, encaminhado ao ambulatório de<br />
Cirurgia Pediátrica, consta do prontuário. Em setembro de 2002, novas radiografias<br />
evidenciaram atraso na idade óssea e osteopenia difusa; luxação coxofemoral direita, com<br />
ângulo acetabular de 40 o , fossa acetabular rasa, irregular, displásica; ausência de luxação<br />
coxofemoral esquerda, com ângulo acetabular de 18 o , com cabeça femoral anatômica; núcleo<br />
de ossificação ausente bilateralmente. A radiologista sugere avaliação com ultra-sonografia<br />
das articulações coxofemorais para verificar a possibilidade de luxação à esquerda com<br />
manobras apropriadas. Não há referência a tal exame, nem no prontuário nem no arquivo do<br />
setor de Radiologia. Ao longo do prontuário, a partir deste momento, ora consta o registro de<br />
displasia acetabular bilateral, ora de luxação coxofemoral bilateral, ora de luxação<br />
coxofemoral direita. Quanto ao atraso na idade óssea, manifesto no déficit do<br />
desenvolvimento estato-ponderal desde o nascimento, o menino foi avaliado no setor de<br />
Genética, não tendo sido identificada nenhuma razão para tal desordem. Seu crescimento vem<br />
sendo acompanhado por uma nutricionista da instituição.<br />
43<br />
O laudo deste exame não consta do prontuário, tendo sido encontrado no arquivo do setor de Radiologia, na<br />
pasta do paciente.
Os sucessivos acometimentos pulmonares e o atraso no desenvolvimento psicomotor<br />
fizeram com que, ainda em 2000, Thiago iniciasse tratamento fisioterapêutico respiratório e<br />
motor, tendo sido acompanhado em ambos os setores no IFF (Fisioterapia Respiratória e<br />
Estimulação Essencial). Thiago apresentou ainda dificuldades na aquisição e articulação da<br />
fala. Iniciou em 2003 uma terapia fonoaudiológica fora do IFF.<br />
Em fevereiro de 2003, foi realizada cirurgia para correção de hérnia inguinal e<br />
criptorquidia direita. Em dezembro do mesmo ano, foi realizada a orquidopexia esquerda e a<br />
plicatura da parede abdominal (abdomino-umbilicoplastia tipo jaquetão), o que aparentemente<br />
conferiu um aspecto mais simétrico ao abdômen. Thiago segue sob acompanhamento nos<br />
setores de Cirurgia Pediátrica, Pneumologia, Pediatria, Fisioterapia Respiratória e Nutrição.<br />
7. 2 - Canta, tia, canta!<br />
Os primeiros meses de tratamento <strong>postural</strong> de Thiago foram bastante difíceis. Os<br />
episódios de infecção respiratória eram freqüentes, não sendo tarefa simples ensinar um bebê<br />
de oito meses, com hipoplasia abdominal, a eliminar as secreções brônquicas através do<br />
próprio mecanismo de tosse. O resultado era uma grande regularidade na adoção, pela equipe<br />
de Fisioterapia Respiratória, do procedimento de aspiração destas secreções. Com isso,<br />
Thiago já se punha a chorar meramente ao cruzar a porta do ambulatório. Em inúmeras<br />
ocasiões, por mais que se tentasse consolá-lo, suas condições emocionais terminavam por<br />
inviabilizar a abordagem <strong>postural</strong>. Mesmo com o passar do tempo e com a estabilidade<br />
conquistada do ponto de vista respiratório (que representou uma enorme diminuição da<br />
freqüência de aspirações), o pânico persistia. Ao ouvir o som da abertura do fluxômetro de<br />
nebulização / aspiração, o menino levava o indicador junto à narina e fazia o sinal negativo<br />
com a cabeça, os olhos já lacrimejantes. Carolina então dizia: “No nariz não, filho, é só
fumacinha!”, explicando-lhe que se tratava de nebulização, e não de aspiração. Thiago se<br />
acalmava e segurava, ele próprio, a máscara de nebulização.<br />
Por estas razões, foi necessário um certo tempo até que se pudesse realizar um<br />
trabalho efetivo em termos posturais. Aos poucos, Thiago foi adquirindo a confiança de que<br />
os exercícios com a “Tia Rê” eram indolores. Além disso, Carolina começou a adotar um<br />
perspicaz artifício: determinados brinquedos e balas faziam parte de um kit restrito às sessões<br />
de fisioterapia. Assim, ao entrar no ambulatório, Thiago não mais chorava, pois se ocupava<br />
pedindo as balas e redescobrindo seus brinquedos. Utilizar estes objetos como coadjuvantes<br />
nas “brincadeiras” posturais foi também um recurso que se revelou eficiente.<br />
A princípio, dado que a criança ainda não conquistara o ortostatismo e a marcha, o<br />
tratamento tinha como objetivo criar condições favoráveis para a aquisição de tais<br />
habilidades, além de promover a minimização da deformidade torácica e da atitude escoliótica<br />
geradas pela acentuada assimetria abdominal (fotografia 29). Nesse sentido, o trabalho se deu,<br />
inicialmente, apenas por manobras passivas, até mesmo pela idade do paciente, que não<br />
contava ainda com um nível de cognição que permitisse o aprendizado de exercícios ativos. A<br />
mobilização coxofemoral (“caracol”), assim como manobras manuais de descolamento da<br />
musculatura paravertebral e de flexibilização dos músculos intercostais, bem como a<br />
estimulação do bom posicionamento do esterno, da cintura escapular e das articulações costo-<br />
esternais, foram os recursos utilizados nesta primeira etapa do tratamento. De fato, foi<br />
observada ainda uma forte elevação dos ombros, que resultava em importante diminuição do<br />
espaço cervical. A mobilização desta região era muito desagradável para o menino, tornando<br />
difícil a abordagem do problema.
Foto 29: Thiago, maio de 2001<br />
Aproximadamente quatro meses após a primeira avaliação, Thiago começou a ser<br />
capaz de ficar de pé com apoio, evidenciando uma atitude <strong>postural</strong> extremamente<br />
comprometida, especialmente no que diz respeito aos membros inferiores (fotografia 30). De<br />
fato, o posicionamento dos pés, formando um ângulo de 180º, tendia a prejudicar<br />
sobremaneira o desenvolvimento motor da criança, em especial quanto à qualidade da<br />
marcha. A cintura escapular permanecia excessivamente elevada, representando um<br />
empecilho a mais para a aprendizagem do mecanismo de tosse – com efeito, a globalidade do<br />
tórax acompanhava a elevação dos ombros.<br />
Thiago mantinha-se reativo a manobras manuais que envolvessem a região cervical e<br />
da cintura escapular, chegando a empurrar minha mão para longe de seus ombros. Com efeito,<br />
a essa altura, Thiago já começava a interagir mais ativamente com a terapia, manifestando<br />
inclusive preferências por este ou aquele exercício. Assim, era sempre preciso encontrar um<br />
meio-termo <strong>entre</strong> a imposição da conduta e o desprazer da criança, o que muitas vezes se<br />
traduzia em inserir rápidas abordagens <strong>entre</strong> seus exercícios prediletos.
Foto 30: Thiago de pé, novembro de 2001 (no canto superior direito da foto, pode-se<br />
visualizar o fluxômetro de nebulização / aspiração)<br />
As manobras de mobilização coxofemoral evidenciavam uma hipomobilidade<br />
articular, significativamente mais importante à direita. A mãe referia uma maior dificuldade<br />
na motricidade do membro inferior direito, observável nas atividades cotidianas do menino,<br />
além de verificar o mesmo bloqueio na mobilização, uma vez que realizava em casa todos os<br />
procedimentos orientados.<br />
Em junho de 2002, quando se começou a investigar possíveis casos de displasia de<br />
quadril <strong>entre</strong> os pacientes com SPB, foi localizada, no arquivo do setor de Radiologia do IFF,<br />
uma radiografia que revelava luxação congênita do quadril direito (foto 31). A questão foi<br />
examinada em maiores detalhes, conforme mencionado anteriormente, e a criança foi<br />
encaminhada a uma outra instituição, para que obtivesse o parecer de um ortopedista. Assim<br />
como no caso de Léo, narrado anteriormente, o referido profissional recomendou somente que
Thiago não interrompesse o tratamento fisioterapêutico, que certamente lhe havia trazido<br />
grandes benefícios.<br />
Foto 31: Thiago, radiografia do quadril em vista ântero-posterior (AP), outubro de 2001<br />
No mesmo ano, em seu segundo aniversário, Thiago ganhou de seus pais um carro<br />
movido a pedais. O trabalho fisioterapêutico <strong>postural</strong> vinha se concentrando na mobilização,<br />
coordenação e fortalecimento dos membros inferiores, o que progressivamente possibilitou a<br />
utilização do novo brinquedo. O menino narrava com grande entusiasmo suas “peripécias” a<br />
bordo de seu “carro do Batman”. A família mostrava-se sempre disposta a estimular Thiago<br />
em sua motricidade, encorajando brincadeiras que promovessem seu desenvolvimento. Foi,<br />
realmente, um período de notáveis aquisições, do ponto de vista da coordenação motora.<br />
Além da capacidade de pedalar, que denotava membros inferiores bem coordenados, Thiago<br />
demonstrou ainda excelente habilidade manual, sendo capaz, por exemplo, de desenhar<br />
círculos fechados, de diversos tamanhos, com boa precisão. Quanto aos exercícios da
fisioterapia (“borboleta”, “parabéns”, etc.), o menino os ensinava aos irmãos, que sentavam<br />
no chão e executavam-nos junto com ele.<br />
Thiago se mostrava cada dia mais à vontade em relação ao tratamento, realizando as<br />
atividades com indiscutível prazer (fotografias 32 e 33). Em dezembro de 2003, Carolina<br />
inclusive comentou que, durante uma consulta, a cirurgiã pediátrica perguntou se o menino<br />
permanecia fazendo fisioterapia, ao que ela respondeu que sim, “com a tia Patrícia<br />
[fisioterapia respiratória] e com a tia Renata [fisioterapia <strong>postural</strong>]”. Surpreendentemente,<br />
Thiago retrucou: “Não, mamãe! Só com a tia Patrícia! Com a tia Rê, eu brinco...”. Trata-se,<br />
sem dúvida, de um bom exemplo de como uma abordagem lúdica pode influenciar o<br />
progresso de um tratamento, pois foi exatamente tal característica que conquistou a confiança<br />
e a adesão desta criança ao trabalho <strong>postural</strong>.<br />
A música acabou se mostrando, de fato, o mais efetivo “chamariz” para sua adesão ao<br />
tratamento, sendo a canção “Desencaracolando” a sua predileta 44 . Certa vez, enquanto<br />
realizava as diversas condutas, fui cantando músicas diferentes, até que, em determinado<br />
momento, me calei, continuando a desempenhar o trabalho. Em poucos instantes, Thiago<br />
pediu: “Canta, tia, canta!”. Percebi que o estímulo sonoro era importante para ele, sendo a<br />
música um diferencial que tornava a terapia mais leve e agradável.<br />
44 No ano de 2003, presenteei as quatro crianças, em seus respectivos aniversários, com um CD, contendo a<br />
canção “Desencaracolando”. Carolina comentou, tempos depois, que os irmãos de Thiago diziam não suportar<br />
mais ouvi-la, pois o menino passava o dia escutando-a repetidas vezes...
Fotos 32 e 33: Thiago realiza exercícios de mobilização e alongamento, agosto de 2003<br />
A fisioterapia respiratória, contudo, representava ainda uma fonte de verdadeiro pavor<br />
para o menino, que a associava inevitavelmente à iminência da aspiração de secreções. Tal<br />
procedimento foi se tornando cada vez mais raro, dado que Thiago aos poucos ia aprimorando<br />
sua capacidade de expectoração. No final de 2003, <strong>entre</strong>tanto, um acontecimento chamou a<br />
atenção de todos no ambulatório. Diante da necessidade de realizar a aspiração, Carolina e<br />
uma estagiária contiveram o menino para que a fisioterapeuta pudesse realizar a conduta.<br />
Durante o processo, Thiago chorava e gritava muito, por fim começando a chamar: “Renata!<br />
Renata!”. É evidente que ele – espertamente – já havia percebido que de nada adiantaria gritar<br />
pela mãe, pois ela própria ajudava a contê-lo. O interessante, porém, foi notar sua consciência<br />
quanto à não-agressividade das condutas do outro tipo de abordagem, o que fez com que<br />
chamasse por outra fisioterapeuta, confiando que, sob seus cuidados, ele estaria “seguro”.<br />
Muitas vezes, de fato, a abordagem <strong>postural</strong> teve a função primordial de lhe devolver a<br />
tranqüilidade emocional, tanto quanto a <strong>organização</strong> corporal, após uma sessão especialmente<br />
estressante de fisioterapia respiratória.
A qualidade da adesão de Thiago e sua família proporcionaram ao menino uma<br />
melhora significativa de suas condições motoras e respiratórias. A atitude escoliótica<br />
decorrente da assimetria abdominal foi consideravelmente atenuada (fotografias 34 e 35).<br />
Houve também uma sensível potencialização da qualidade de sua marcha e da motricidade<br />
dos membros inferiores, o que motivou os pais a lhe comprarem uma bicicleta no Natal de<br />
2003. Thiago narrou o episódio com tocante entusiasmo: “Tia, a MINHA bicicleta tem um<br />
pedal, outro pedal, uma roda na frente e outra atrás, e as rodinhas pequenininhas! Você coloca<br />
o pé e roda, e vai embora pra rua!”.<br />
Quanto à cintura escapular, a reestruturação foi evidente (fotografia 36). Carolina<br />
relatou que sua vizinha, assim como seus outros filhos, vinham fazendo comentários do tipo:<br />
“Agora ele tem pescoço, antes não tinha!”. Sem dúvida, este foi um fator decisivo também<br />
para o aprendizado do mecanismo de tosse, juntamente com o desenvolvimento do controle<br />
abdominal, através do exercício do “elevador”. De fato, Thiago passou a sofrer de<br />
acometimentos respiratórios com menor freqüência. Após a recente introdução da<br />
“brincadeira da bola” no tratamento (o que significou uma intensificação do trabalho de<br />
fortalecimento da musculatura abdominal), Carolina referiu a progressiva melhora – e<br />
posterior remissão - da constipação crônica.
Fotos 34 e 35: Thiago, vistas posterior e anterior, agosto de 2003<br />
Foto 36: Thiago, perfil, agosto de 2003
A cirurgia abdominal, realizada no início de dezembro de 2003, conferiu um aspecto<br />
mais homogêneo ao tronco do menino, porém ele parece ter passado por um período de<br />
adaptação de sua motricidade – já habituada à assimetria – às novas condições. Um ligeiro<br />
retrocesso se pôde perceber quanto à mobilidade / coordenação do membro inferior direito,<br />
porém a intensificação dos exercícios parece estar permitindo a re<strong>organização</strong> mecânica, não<br />
apenas desta região, mas da globalidade de seu sistema locomotor. Recentemente, Thiago<br />
retornou ao ortopedista (de outra instituição), que constatou a evolução do quadro motor,<br />
sustentando a recomendação de que não se interrompesse o tratamento fisioterapêutico. Com<br />
efeito, já se pode constatar a superação do processo pós-cirúrgico e a recuperação da habitual<br />
agilidade.<br />
Em 2003, Thiago começou a freqüentar a pré-escola. Carolina pôde, então, voltar a<br />
trabalhar, assumindo um cargo de conselheira tutelar. Sua freqüência ao ambulatório,<br />
<strong>entre</strong>tanto, não se alterou, assim como permaneceram assíduas as condutas domiciliares. O<br />
menino se mostra progressivamente mais sociável, tendo desenvolvido enormemente sua fala<br />
nos últimos meses. Mesmo trocando muitas letras (ele continua sob tratamento<br />
fonoaudiológico), Thiago exibe um extenso vocabulário. Sua perspicácia e inteligência se<br />
refletem nos comentários e narrativas do cotidiano, evidenciando um processo notável de<br />
franco desenvolvimento cognitivo e emocional. O déficit de crescimento continua sob<br />
acompanhamento, no setor de Nutrição, evoluindo de forma lenta, porém gradativa. A baixa<br />
estatura de Thiago, contudo, não constitui mais um motivo de permanente preocupação para<br />
Carolina, que nitidamente sobrepôs a esta questão a satisfação com o progresso do filho em<br />
outros campos.
Capítulo 8 - A CASA DA TIA RÊ<br />
D<strong>entre</strong> as crianças que participam desta pesquisa, Alex foi o último<br />
a ingressar no grupo dos que recebiam a dupla abordagem
fisioterapêutica. O primeiro contato ocorreu em fevereiro de 2002,<br />
quando o menino acabava de completar um ano. Imediatamente, foi<br />
possível perceber um comprometimento motor bem mais atenuado em<br />
Alex do que nas demais crianças. Ele se mantinha sentado com<br />
facilidade e já andava com apoio (fotografias 37 e 38).<br />
Fotos 37 e 38: Alex, fevereiro de 2002<br />
Alex foi trazido ao ambulatório por ambos os pais, Celso e Lia, o que se repetiu na<br />
grande maioria das vezes. Em muitas ocasiões, o irmão também comparecia (Celsinho, um<br />
ano e meio mais velho). Nas poucas vezes em que a irmã (Bárbara, nove anos) esteve<br />
presente, foi possível perceber seu cuidado carinhoso e responsável em relação aos irmãos<br />
mais novos. Lia esteve grávida por duas vezes durante o período de realização desta pesquisa,<br />
sofrendo, em ambas as ocasiões, abortos espontâneos. Contou com o apoio, não somente de<br />
seu marido, como também de sua mãe e irmã, que por vezes acompanharam Alex ao hospital
juntamente com Celso. Apesar de seu temperamento ansioso e, por vezes, até mesmo<br />
irritadiço, Lia sempre se mostrou uma mãe ciosa e protetora, formando com Celso, seus três<br />
filhos e os pais e irmãos de ambos um núcleo familiar unido e organizado em prol da saúde de<br />
cada um de seus membros.<br />
Lia submetia-se a acompanhamento psicoterápico, então, geralmente, Celso<br />
permanecia no ambulatório com o filho, enquanto ela comparecia à própria consulta.<br />
Mostrou-se um pai extremamente dedicado e preocupado em assegurar que Alex obtivesse<br />
todos os recursos possíveis para a melhora de sua saúde. De temperamento mais cordato e<br />
delicado, não escondia o orgulho frente a cada nova aquisição do menino. Trabalhava como<br />
sargento da Aeronáutica, tendo sido recentemente aprovado em um concurso para tornar-se<br />
tenente. Era comum vê-lo estudando para tal concurso, na área de espera do setor de<br />
Fisioterapia, enquanto aguardava a consulta do filho.<br />
Na época da qualificação do projeto desta pesquisa, quando mostrei aos pais o Termo<br />
de Consentimento Livre e Esclarecido e a Autorização para Uso de Imagem, ele se interessou<br />
em ler até mesmo a parte teórica do referido projeto, tecendo comentários e fazendo<br />
perguntas, dado que procurava realmente se informar a respeito da doença de Alex. O casal<br />
formava, juntamente com Fernanda e Carolina 45 , o “pelotão de frente” do grupo de pais de<br />
crianças com SPB, sempre assíduos nos eventos, prestativos nas mobilizações e veementes<br />
nas reivindicações. Foi curioso observar que, apesar da presença constante de Celso ao lado<br />
do filho, tanto durante as internações hospitalares como nas consultas ambulatoriais (as<br />
evoluções no prontuário fazem referência a tal presença), nenhum dos pareceres emitidos pela<br />
equipe de Serviço Social tece qualquer comentário a seu respeito, limitando-se sempre a<br />
apontar exclusivamente a grande ansiedade de Lia.<br />
45 Mães de Kiko e Thiago, respectivamente.
A adesão de Celso e Lia ao tratamento fisioterapêutico <strong>postural</strong> foi imediata e de ótima<br />
qualidade. Não somente Celso realizava diariamente as condutas domiciliares, como ambos<br />
faziam absoluta questão de que o menino recebesse a dupla abordagem. Nos dias em que o<br />
ambulatório parecia excessivamente cheio, eles sempre perguntavam se ele iria “fazer com a<br />
Dra. Renata também”, buscando a segurança de que a abordagem <strong>postural</strong> não seria<br />
negligenciada.<br />
Quanto ao próprio Alex, sua aceitação se manifestou desde o primeiro atendimento,<br />
quando, após a sessão de fisioterapia respiratória, encontrava-se chorando, refratário ao início<br />
de um novo trabalho. Comecei, então, a realizar suaves mobilizações passivas, enquanto<br />
cantava, em voz baixa, sucessivamente, diversas cantigas infantis. O menino se acalmou e, em<br />
seguida, adormeceu. Continuei realizando todas as condutas, até que, em um dado momento,<br />
parei de cantar. Alex imediatamente despertou e recomeçou a chorar. Pus-me novamente a<br />
cantar, o que mais uma vez o acalmou e o fez adormecer. Durante todo o processo, a música<br />
foi essencial para o sucesso dos atendimentos. Com a aquisição da fala, Alex passou a<br />
divertir-se entoando “Desencaracolando” do início ao fim, a plenos pulmões, enquanto<br />
realizava os exercícios. Os pais chegaram a me pedir para escrever a letra da canção, pois o<br />
menino lhes solicitava recorrentemente que a cantassem para ele em casa. Seu notável vínculo<br />
com o trabalho terminou por fazê-lo referir-se ao hospital, segundo os pais, como “a casa da<br />
tia Rê”.<br />
8. 1 - Breve história clínica<br />
De acordo com os dados colhidos no prontuário do IFF, Alex nasceu nesta instituição<br />
em janeiro de 2001, a termo (38 semanas), de parto cesáreo, pesando 4110 gramas (GIG, sem<br />
hipoglicemia) e medindo 51 centímetros. O índice de Apgar foi 9 no primeiro minuto e 10 no<br />
quinto minuto. O exame ao nascimento permitiu o diagnóstico de SPB e hidronefrose
ilateral. No sexto dia após o nascimento, foi transferido do alojamento conjunto para a UTI<br />
neocirúrgica, sendo retransferido para a enfermaria de Cirurgia Pediátrica no dia seguinte,<br />
onde se submeteu a uma ultra-sonografia abdominal, que revelou importante<br />
hidroureteronefrose bilateral, com perda da relação córtico-medular normal, além de<br />
múltiplos cistos corticais renais, bexiga de capacidade aumentada e parede espessada (mega<br />
bexiga), criptorquidia e refluxo vésico-ureteral bilateral grau IV. Os episódios de infecção do<br />
trato urinário (ITU), já nesta fase, motivaram a confecção da vesicostomia no oitavo dia de<br />
vida.<br />
Seguiu-se, então, a inevitável seqüência de infecções urinárias ao longo dos primeiros<br />
anos. Todavia, apesar de terem sido necessárias quatro internações por esta razão, até<br />
fevereiro de 2002, seu tempo médio de permanência no hospital foi relativamente curto, sendo<br />
a grande maioria dos episódios tratada em regime ambulatorial. De fato, o volume do<br />
prontuário referente a eventos ambulatoriais reúne inúmeras análises sangüíneas para<br />
rastreamento infeccioso e controle de ITU (urinoculturas).<br />
Esta última internação mencionada (fevereiro de 2002) foi, a princípio, motivada por<br />
uma pneumonia – a criança havia apresentado febre durante uma sessão de fisioterapia<br />
respiratória, pelo que foi chamada a pediatra responsável, que solicitou a internação. Em<br />
novembro do mesmo ano, Alex foi admitido novamente no hospital, com pneumonia e<br />
sinusite. Em ambas as situações, o menino permaneceu na instituição por poucos dias, sem<br />
maiores complicações. Suas recorrentes infecções das vias aéreas superiores também eram<br />
passíveis de tratamento ambulatorial. Assim, ao contrário dos outros meninos com a<br />
síndrome, Alex compareceu à sua primeira consulta no Ambulatório de Pneumologia aos dois<br />
anos e meio, em setembro de 2003, encaminhado pela equipe de Cirurgia Pediátrica,<br />
justificada pelos quadros respiratórios sucessivos. A questão do acúmulo de secreções foi<br />
ressaltada, sendo considerada a fraqueza muscular seu mais provável agente causador. O
elatório desta consulta reporta, aliás, a constipação crônica, que, segundo os pais, remonta<br />
aos primeiros meses de vida do menino.<br />
Embora o prontuário contenha observações sobre reações alérgicas diversas, nas<br />
diferentes ocasiões de internação 46 , Alex somente foi encaminhado ao Serviço de Alergia em<br />
outubro de 2002, após uma sessão de fisioterapia (abordagem <strong>postural</strong>). Finda a sessão prévia<br />
de fisioterapia respiratória, o menino se encontrava chorando muito, o que o fazia coçar o<br />
corpo, provocando grandes manchas vermelhas. O pai relatou que isso ocorria regularmente:<br />
“sempre que ele chora, se coça e fica todo vermelho”. Foi, então, recomendada a avaliação<br />
por um profissional da equipe de alergia, que detectou, ao exame, um quadro típico de<br />
dermografismo (de enorme intensidade, segundo o responsável pelo setor). Há um histórico<br />
de alergia na família (pai tem urticária, irmão é asmático), o que pode justificar o achado. O<br />
menino segue em tratamento pela referida equipe.<br />
Em maio de 2002, procedeu-se a uma cistoscopia diagnóstica, visando programar<br />
reimplante ureteral bilateral e plicatura da parede abdominal. O menino ainda aguarda a<br />
realização de tal cirurgia. Em março de 2003, uma uretrocistografia miccional sinalizou a<br />
ausência de refluxo vésico-ureteral, abrindo as portas para o planejamento do fechamento da<br />
vesicostomia. A avaliação urodinâmica obtida em junho de 2003 evidenciou comportamento<br />
vesical normal, com possibilidade de promover o esvaziamento completo, apesar do aumento<br />
de capacidade da bexiga. Menos de um mês depois, Alex era admitido no hospital para efetuar<br />
tal fechamento, ou, nas palavras do menino, “tirar o dodói”. Apresentava-se em ótimo estado<br />
clínico e cursou com urinocultura negativa. O vínculo estabelecido <strong>entre</strong> mim e Alex fez com<br />
que, quando o visitei pela primeira vez durante esta internação, Lia me relatasse que ele já<br />
havia pedido diversas vezes para ver a “tia Rê”.<br />
46 Urticária após tratamento com amoxilina, lesões maculares pelo corpo em local de coçadura, eritema em áreas<br />
de contato com o látex do garrote, reação urticariforme importante ao stress.
Sempre apresentando crescimento e desenvolvimento adequados para a idade, Alex<br />
inicia o ano de 2004 com importante melhora do quadro respiratório (teve inclusive alta da<br />
fisioterapia respiratória) e da constipação, possivelmente devido à potencialização da<br />
atividade de sua musculatura abdominal. No IFF, mantém vínculos nos setores de Cirurgia<br />
Pediátrica, Alergia e Fisioterapia Respiratória 47 .<br />
8. 2 - Estava com saudades...<br />
A primeira avaliação <strong>postural</strong> de Alex evidenciou basicamente as mesmas questões<br />
observadas nas demais crianças, porém em um grau bastante mais leve (fotografias 37 e 38):<br />
elevação da cintura escapular, rotação externa dos membros superiores, retração da<br />
musculatura posterior, tanto na região lombar quanto na pelve-trocanteriana, pés planos,<br />
encurtamento dos tríceps surais, enfim, essencialmente a mesma estrutura de desequilíbrios<br />
ósteo-mio-articulares já observada. Entretanto, o aspecto global da síndrome, em Alex,<br />
parecia menos manifesto, ainda que apresentasse, indubitavelmente, o característico abdômen<br />
“em ameixa” (fotografias 37, 38 e 39). De fato, sua <strong>organização</strong> motora permitiu que, como<br />
nenhum outro, Alex tirasse proveito dos exercícios propostos pela abordagem <strong>postural</strong> para<br />
potencializar a ação de sua musculatura abdominal hipoplásica, conquistando um excelente<br />
grau de trofismo e força muscular, o que contribuiu ainda para um reequilíbrio mais eficiente<br />
da globalidade de sua atitude <strong>postural</strong>.<br />
47 Apesar de constar no prontuário o setor de Fisioterapia Motora, a criança nunca foi, de fato, acompanhada por<br />
esta, o que parece significar, na verdade, uma referência à abordagem <strong>postural</strong> administrada no setor de<br />
Fisioterapia Respiratória. O profissional da equipe de pneumologia pode ter interpretado o relato dos pais sobre o<br />
tratamento fisioterapêutico de Alex, que inclui exercícios globais, como um vínculo com este outro setor, que<br />
atende primordialmente crianças com acometimentos neurológicos.
Foto 39: Alex, decúbito dorsal, fevereiro de 2002<br />
Chamava a atenção, todavia, um aspecto em particular, quanto à <strong>organização</strong> motora<br />
de Alex. Como se pode notar na fotografia 40, a apresentação do tronco se dá de forma<br />
“astênica”, conforme descrevem Denys-Struyf (1997) e Campignion (1996, 2001), ou seja,<br />
evidenciando uma hiper-cifose torácica causada pela inatividade muscular, e não por retrações<br />
ou encurtamentos. Ao contrário de Léo, cuja atitude <strong>postural</strong> hiper-cifótica na posição sentada<br />
se devia justamente a um bloqueio articular, aliado a fortes retrações musculares, tornando<br />
difícil a própria mobilização da região (ver fotografias 20, p. 101 e 25, p. 106), em Alex se<br />
percebia grande flexibilidade coxofemoral, apesar de uma certa retração da massa comum<br />
(fotografia 41). Com efeito, a radiografia de quadril, solicitada para rastreamento de displasia<br />
de quadril, à mesma ocasião das outras crianças, não revelou alterações 48 (foto 42).<br />
48<br />
Laudo: “Estrutura óssea normal, superfícies articulares preservadas, ângulo acetabular de dimensões<br />
adequadas à idade e sexo.”
Foto 40: Alex sentado, perfil, fevereiro de 2002<br />
Foto 41: Alex de pé, perfil, fevereiro de 2002
Foto 42: Radiografia do quadril de Alex, junho de 2002<br />
Os exercícios ativos, adotados a partir de aproximadamente três meses após o início do<br />
tratamento, tiveram então papel fundamental na estimulação das ações musculares. De fato, o<br />
menino era facilmente capaz de erigir a coluna vertebral 49 , tendo, contudo, dificuldades em<br />
manter o tronco em tal posição “suspensa”. Em relação a este tipo de exercício, um evento<br />
chamou a atenção para a importância de se valorizar as representações individuais de cada<br />
criança. Em uma sessão, em dezembro de 2003, outro fisioterapeuta me auxiliava no<br />
atendimento a Alex, solicitando-lhe a ereção do tronco com elevação dos membros<br />
superiores, enquanto eu estimulava manualmente a anteversão pélvica e procedia ao<br />
descolamento da pele na região lombo-sacra. O outro profissional pedia ao menino que<br />
“levantasse as mãos bem alto, como se fosse uma girafa”, porém ele mantinha suas mãos<br />
próximas ao rosto. Pediu então “bem alto, igual a um elefante”, mas estas permaneciam<br />
baixas. Perguntou, então: “Qual o maior bicho que você conhece?”, ao que o menino<br />
respondeu, falando lentamente e com os olhos arregalados: “Macaaaco!”. Ao ser solicitado a<br />
49 Exercícios como o da “cordinha” ou da “marionete” haviam sido propostos também para Léo, que apresentara<br />
nitidamente maior dificuldade em sua realização.
levantar as mãos “bem alto, como um macaco”, Alex realizou o exercício com perfeição. O<br />
profissional foi muito perspicaz ao buscar entender o universo do paciente, pois o estímulo a<br />
partir de sua própria ótica permaneceria indefinidamente ineficaz.<br />
Alex se divertia com todas as atividades propostas, o que facilitava sobremaneira a<br />
abordagem. A estabilização de seu quadro respiratório contribuiu para que o ambulatório<br />
passasse a não representar, em si, uma ameaça e um motivo de stress. Atenção especial era<br />
dada aos exercícios abdominais, como o elevador e a bola. O menino realizava<br />
voluntariamente um sem número de repetições, permitindo à sua criatividade elaborar os<br />
múltiplos destinos do elevador e os diversos personagens que nele viajavam, em sua<br />
companhia. Os resultados de tal dedicação podem ser percebidos na fotografia 43, em que se<br />
nota um trofismo da musculatura abdominal incomum em casos de SPB. O aspecto mostra-se<br />
consideravelmente mais organizado do que no início do tratamento, o que se pode constatar<br />
pela comparação desta imagem com a fotografia 38, na página 124 (observar a sustentação da<br />
região inferior do abdômen). É possível inferir, com bastante segurança, que tal aquisição seja<br />
responsável pela melhora do quadro de constipação crônica, além, evidentemente, dos ganhos<br />
funcionais atribuíveis a esta nova condição.<br />
Exercícios como a “borboleta”, o “caracol” e o “parabéns” eram adotados no intuito de<br />
estruturar os arcos plantares e corrigir o discreto genuvalgo, também observáveis na fotografia<br />
43. Alex realizava estas atividades com admirável acurácia. É interessante notar a posição do<br />
pé na fotografia 44, em que ele constrói o arco plantar durante o exercício da “borboleta”. A<br />
fotografia 45 evidencia a maior flexibilidade de Alex, se comparado à das demais crianças.<br />
Segundo os pais, o menino ensinou todos estes exercícios a seu irmão Celsinho, cuja idade é<br />
bem próxima à sua, e os dois costumavam utilizá-los para “brincarem” juntos, especialmente<br />
depois de ganharem de presente, no segundo aniversário de Alex, o CD contendo a canção<br />
“Desencaracolando”.
Foto 43: Alex de pé, vista frontal, setembro de 2003<br />
Fotos 44 e 45: Alex, exercício da “borboleta”, setembro de 2003<br />
Recursos terapêuticos manuais eram também adotados no sentido da re<strong>organização</strong><br />
dos membros inferiores, dentro dos princípios propostos por Piret e Béziers (1992) e Béziers e<br />
Hussinger (1994): estímulo às rotações externa da coxa e interna da perna, externa do retropé
e interna do antepé. O alongamento da cadeia muscular póstero-mediana neste segmento<br />
(Denys-Struyf, 1997), através do tracionamento manual do músculo sóleo e do descolamento<br />
da pele na área do quadrado plantar, era acompanhada de jogos de palavras em torno da<br />
brincadeira infantil “batatinha frita 1, 2, 3”, fazendo referência à denominação popular de<br />
“batata da perna”, conferida à região do tríceps sural.<br />
Durante o período de festas de fim de ano, em 2003, o tratamento foi suspenso por três<br />
semanas. Em sua primeira sessão de 2004, Alex voltou-se para mim e disse: “Tia Rê, eu<br />
estava com saudades...”. Creio que tal vínculo, baseado no respeito à individualidade da<br />
criança, no caráter lúdico da abordagem e no carinho na relação, responde, em larga medida,<br />
pela qualidade das aquisições funcionais alcançadas.<br />
Alex é hoje um menino que freqüenta regularmente a pré-escola, sendo capaz de<br />
desempenhar todas as atividades compatíveis com sua idade. Segue em 2004 aguardando a<br />
chegada de um novo irmãozinho, pois finalmente Lia vem tendo uma gestação sem maiores<br />
intercorrências.
CONCLUSÃO<br />
A prática clínica das abordagens fisioterapêuticas posturais é<br />
norteada pelo pressuposto de que a mecânica corporal funciona como<br />
um todo indissociável, como uma engrenagem em que cada peça atua<br />
em íntima relação com todas as outras, estando esta mecânica ligada<br />
aos demais aspectos que constituem o indivíduo. Tais princípios<br />
convergem para um dos conceitos mais caros às novas propostas em<br />
saúde coletiva: a integralidade. A oportunidade de se constituir uma<br />
equipe em que esta modalidade terapêutica pudesse se associar à<br />
abordagem respiratória convencional, como forma de ampliar o modelo<br />
de atenção à saúde da criança com doença respiratória, se revelou um<br />
terreno fértil para o debate sobre os caminhos a serem seguidos pela
fisioterapia no âmbito da saúde pública, particularmente no que diz<br />
respeito ao tratamento de tais pacientes.<br />
O Ambulatório de Fisioterapia Respiratória do IFF abriu as portas,<br />
em fevereiro de 2001, para uma proposta inédita de abordagem.<br />
Partindo da premissa de que a respiração não se desvincula da<br />
totalidade do corpo, adotou-se uma perspectiva de atendimento que<br />
valorizava o caráter global, incluindo não apenas a biomecânica<br />
corporal, mas também aspectos subjetivos, como o psiquismo e o<br />
comportamento.<br />
Em contrapartida, a entrada da abordagem <strong>postural</strong> em um<br />
conceituado e respeitado ambulatório de fisioterapia respiratória<br />
suscitou, a princípio, certo ceticismo. Em que poderia ser útil, para<br />
crianças tão gravemente doentes, aquele conjunto de “brincadeiras”,<br />
aquela “cantoria”? Houve momentos em que o atendimento foi,<br />
ironicamente, apelidado de “hora da recreação”... No início, somente a<br />
confiança depositada pela então responsável pelo “ambulatório de terça-<br />
feira” garantiu a legitimidade da chamada dupla abordagem, que veio a<br />
receber, progressivamente, o apoio dos outros membros da equipe. Este<br />
apoio crescente possibilitou a continuidade do trabalho, mesmo após o<br />
afastamento da referida profissional.<br />
A fisioterapeuta com quem passou a ser realizada a parceria manifestou grande<br />
entusiasmo quanto aos resultados obtidos pela associação de abordagens, tanto do ponto de
vista psicomotor quanto no que tange ao aumento do intervalo <strong>entre</strong> pneumonias e à<br />
facilitação do trabalho em sua modalidade terapêutica. Caracterizando a dupla atuação como<br />
uma “ajuda mútua”, ela sinalizou o fato de que esta interação acelerava o processo de melhora<br />
do quadro pulmonar dos pacientes, que acabavam evoluindo para a alta da fisioterapia<br />
respiratória, possivelmente em um tempo mais curto do que se viessem recebendo somente a<br />
conduta convencional. Embora a colaboração tenha se restringido quase que exclusivamente a<br />
pacientes com síndrome de prune belly, a profissional pontua a importância da adoção deste<br />
modelo no tratamento de outras doenças respiratórias. Com efeito, esta posição se reflete na<br />
contínua e crescente solicitação, por parte de outros membros da equipe, de inclusão de<br />
pacientes com fibrose cística, asma e outras enfermidades, no sentido de que fossem também<br />
beneficiados pela dupla abordagem.<br />
A trajetória percorrida neste processo de construção de um modelo inovador de<br />
fisioterapia foi, de certo modo, exposta nesta pesquisa, ilustrada pelo acompanhamento de<br />
quatro casos em que a adesão à dupla abordagem se deu de forma mais significativa. Nossa<br />
opção metodológica por um estudo qualitativo, utilizando a epistemologia narrativa como via<br />
de expressão, mostrou-se absolutamente adequada no que concerne à possibilidade de se<br />
contemplar a complexidade dos assuntos discutidos. Não nos propusemos a realizar uma<br />
análise da eficácia da dupla abordagem em termos epidemiológicos, tampouco pretendemos<br />
impor generalizações. A resposta inegavelmente positiva oferecida pelos pacientes<br />
envolvidos, contudo, aponta para a necessidade de se pensar a fisioterapia dirigida a crianças<br />
com doença respiratória de forma mais abrangente.<br />
De fato, a exposição teórica realizada na primeira parte desta<br />
dissertação deixa claro o quanto respiração e postura se encontram<br />
inevitavelmente vinculadas. Do mesmo modo, lança luz sobre a<br />
tendência progressiva da fisioterapia contemporânea rumo a uma
perspectiva mais globalista e sensível às subjetividades inerentes ao ser<br />
humano. Não devem restar dúvidas de que um acometimento focal –<br />
como a doença respiratória – não poderia ser tratado sem que se<br />
levasse em conta sua inserção em um contexto mais amplo.<br />
A proposta de uma via terapêutica que fosse ao encontro de tais preceitos foi narrada<br />
na segunda parte deste trabalho, como forma de evidenciar um processo que transcende o<br />
universo das aferições, medidas e auscultas pulmonares. A efetividade revelada se manifesta,<br />
conforme apontado pela fisioterapeuta respiratória, na melhora do quadro clínico, porém um<br />
enorme ganho pôde ser observado em outros campos da vida destes pequenos pacientes. A<br />
otimização do desenvolvimento psicomotor destas crianças promoveu uma ampliação de suas<br />
possibilidades de autonomia, inclusão social, qualidade de vida e lazer. Uma relação<br />
terapeuta-paciente que abria espaço para os aspectos psico-comportamentais e sociais,<br />
permitindo a entrada do lúdico no processo de tratamento, viabilizou a transformação da<br />
terapia em brincadeira, da necessidade / obrigação em prazer, da agressão em acolhida.<br />
O modelo ampliado de tratamento fisioterapêutico que se oferece busca uma inserção<br />
nesta conjuntura de transição pardigmática, em que o modelo biomédico tradicional se revela<br />
restrito e excludente. Fisioterapia e reabilitação se confundem, por vezes, como sinônimos.<br />
Reabilitar deveria significar “tornar o indivíduo hábil”, tanto para respirar quanto para realizar<br />
quaisquer atividades próprias de seu grupo social: andar, correr, brincar, freqüentar a escola,<br />
conviver em sociedade.<br />
O que se pretendeu propor, aqui, foi a tentativa de ver cada indivíduo em seu caráter<br />
único, próprio e global, em que seus eventuais acometimentos orgânicos não fossem<br />
sumariamente enquadrados em uma terapêutica padronizada, que fragmenta este corpo e<br />
exclui suas singularidades e subjetividades. A interação <strong>entre</strong> abordagens distintas de<br />
tratamento fisioterapêutico mostrou ser uma via possível e promissora de ampliação de
fronteiras no atendimento à criança com doença respiratória. A “nova saúde pública” carece<br />
de uma concepção de “nova fisioterapia”, em que a parte não esteja fora do todo, em que<br />
corpo, vivências e história sejam contemplados de forma integral, em que cada paciente seja<br />
único. Talvez, a maior responsável pela beleza da árvore seja exatamente a sutil diferença<br />
<strong>entre</strong> as folhas...<br />
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componentes. In: Benguigui Y, Land S, Paganini JM, Yunes J, editores. Ações de saúde<br />
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Washington: Organização Pan-Americana da Saúde; 1997. p. 27-52.
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Florianópolis, Brasil. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina; 1999.<br />
Volmar KE, Nguyen TC, Holcroft CJ, Blakemore KJ, Hutchins GM. Phimosis as a<br />
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ANEXOS
ANEXO 1<br />
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E<br />
ESCLARECIDO
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO<br />
Nome da criança: ________________________________ Prontuário: ______________<br />
Nome do responsável: __________________________________________<br />
Na qualidade de responsável pelo menor acima citado, autorizo a fisioterapeuta Renata Ungier de<br />
Mayor a relatar a história do tratamento de meu filho no Ambulatório de Fisioterapia Respiratória do IFF em sua<br />
pesquisa para a dissertação de Mestrado. Estou ciente de que sua finalidade é mostrar a outros profissionais de<br />
saúde os benefícios do tipo de conduta adotada neste ambulatório, em que meu filho recebe atendimento<br />
<strong>postural</strong> e respiratório, colaborando para que talvez outras crianças com doença respiratória possam ser tratadas<br />
da mesma maneira. Concordo que sejam narrados detalhes do que se passa no ambulatório, inclusive<br />
reprodução de falas minhas e do meu filho, além de fotografias, para as quais assinei previamente uma<br />
autorização.<br />
Atesto que me foi explicado que as fotografias não permitirão a identificação de minha criança e que o<br />
sigilo sobre sua e minha identidade será mantido, assim como de qualquer pessoa citada nas conversas que tive<br />
durante os atendimentos a meu filho. Se desejar, terei acesso ao texto final da dissertação de Mestrado, para<br />
que possa ler o que foi escrito sobre meu filho. A pesquisadora me garante ainda que continuará o tratamento<br />
mesmo após terminada a pesquisa e que tenho plena liberdade para, a qualquer momento, retirá-lo da mesma,<br />
sem que isso acarrete nenhum prejuízo para seu tratamento no ambulatório.<br />
Os resultados do trabalho serão divulgados em Dissertação de Mestrado, a ser apresentada à Pós –<br />
Graduação em Saúde da Mulher e da Criança do IFF, assim como possivelmente em periódicos, congressos,<br />
aulas, debates e outros eventos científicos.<br />
Declaro que li e entendi o que me foi explicado e autorizo voluntariamente a inclusão de minha criança na pesquisa.<br />
Eu, (nome do responsável) ________________________________, na qualidade de (grau de parentesco)<br />
_______________ , identidade: __________________, autorizo a inclusão do menor ____________________________ na<br />
pesquisa sobre as relações <strong>entre</strong> a <strong>organização</strong> <strong>postural</strong> global e a mecânica respiratória - zonas de trocas <strong>entre</strong> diferentes<br />
abordagens em fisioterapia.<br />
Rio de Janeiro, ________ de _____________________ de 2003