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Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 1
2 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 3<br />
Cátia Mourão<br />
EROS E PSIQUE<br />
um vitral gnóstico de Almada Negreiros
Título:<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> – um vitral gnóstico de Almada<br />
Negreiros<br />
Autor:<br />
Cátia Mourão<br />
Design:<br />
<strong>Fluid</strong> <strong>Creative</strong> - Design Studio<br />
Coordenação Editorial:<br />
Paula Crespo<br />
Produção:<br />
Assembleia da República – Divisão de Edições<br />
ISBN<br />
978-972-556-515-5<br />
Depósito Legal<br />
…<br />
4 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 5<br />
O pior vício é a definição, a delimitação dos<br />
personagens. […] Simplesmente é uma utopia.<br />
Não se pode definir, delimitar alguém. […] Seria<br />
negar-lhe a unidade espiritual.<br />
José Manuel, Alquimia do Sonho (p. 25)<br />
A minha linguagem é o símbolo. E todo o símbolo é<br />
necessariamente breve, sintético, vertiginoso, sibilino.<br />
Aliás, simbólica ou narrativa, a verdade é sempre<br />
fictícia, misteriosa. Sobretudo aqui.<br />
José Manuel, Alquimia do Sonho (p. 37)<br />
Para além da aparência fácil do que te cerca<br />
uma outra realidade mais<br />
subtil te espera.<br />
José Manuel, Primeiro Livro de Odes (p. 17)
Índice<br />
Nota de abertura 09<br />
Prefácio 11<br />
Descrição do vitral 13<br />
Análise iconográfica 14<br />
Uma iconografia em contexto: o vitral e a casa para onde foi concebido 35<br />
Conclusão 44<br />
Agradecimentos 45<br />
Bibliografia 46<br />
6 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 7<br />
Cátia Mourão<br />
EROS E PSIQUE<br />
um vitral gnóstico de Almada Negreiros
8 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 9<br />
Nota de abertura<br />
O presente ensaio constitui um novo contributo para<br />
a análise iconográfica de um vitral executado por<br />
Almada Negreiros. Partindo uma vez mais da dúbia<br />
representação das figuras que o compõem, oferece<br />
uma leitura alternativa às anteriores – que no entanto<br />
permite chegar exactamente à mesma conclusão – e<br />
explora com maior detalhe os aspectos subjacentes à<br />
produção da obra, evidenciando a forte intervenção<br />
do encomendante e a relação simbólica entre a peça<br />
e a casa que originalmente integrou.<br />
Para além das interpretações complementares,<br />
apresenta também um desenho inédito do artista, que<br />
embora seja anterior à obra em foco é subordinado<br />
ao mesmo tema, e mais dois estudos igualmente<br />
inéditos para o vitral, que documentam a evolução<br />
do desenho, das formas e dos sentidos. Inclui ainda<br />
algumas fotografias antigas e actuais do interior e do<br />
exterior da moradia, que evidenciam um conjunto<br />
artístico extraordinariamente rico, onde se revela<br />
a admirável unidade simbiótica entre diferentes<br />
expressões plásticas (vitral, azulejo¹ e escultura<br />
adossada, de vulto pleno e placas incisas) reunidas<br />
e articuladas – desde os projectos iniciais – numa<br />
arquitectura modernista única, de fruição duplamente<br />
privada e pública, funcional e estética, racional e<br />
emotiva, que permite uma interessante abordagem<br />
do ponto de vista da psicologia da habitação e da<br />
afirmação da residência enquanto obra de expressão<br />
cultural e social, ultrapassando claramente o próprio<br />
conceito coevo de obra arquitectónica utilitária<br />
ornamentada².<br />
A moradia em causa foi traçada nos anos 50 do<br />
século XX por António Varela – colaborador de Jorge<br />
Segurado –, em estrita observância das premissas dos<br />
proprietários, D.ª Maria da Piedade Figueiredo Mota<br />
Gomes e seu filho Dr. José Manuel Mota Gomes Fróis<br />
Ferrão³, amigos do arquitecto e dos artistas plásticos<br />
que colaboraram no programa decorativo deste<br />
coerente projecto.<br />
Revelando um traçado de influência corbusiana⁴,<br />
¹ Os painéis de azulejos, da autoria de Almada Negreiros e executados na<br />
Fábrica Viúva Lamego em 1953, foram sumariamente referidos por Suraya<br />
Burlamaqui em 1996 (BURLAMAQUI, 1996, p. 12, 36 e 37).<br />
² A propósito da estreita relação entre as várias artes decorativas e a<br />
arquitectura, fomentada pelo Estado Novo no âmbito da “campanha do<br />
bom gosto”, salientamos as reflexões do Arq. Porfírio Pardal Monteiro,<br />
para quem esta associação constituía um renascimento (ou revivalismo)<br />
das práticas do passado, já que «nos bons períodos de cada estilo o<br />
ornamento integr[ou]-se na construção e [fez] corpo com ela. O seu papel<br />
[era] o de valorizar as massas ou os elementos dum edifício, e quando<br />
o ornamento [era] inteligentemente compreendido, constitu[ia] riqueza<br />
duma época.» Neste sentido, entendia que «o progresso da Arquitectura<br />
[havia de] conduzir ao de todas as outras artes subsidiárias que na<br />
Arquitectura t[inham] intervenção, mas adaptadas ao seu respectivo<br />
lugar e à função que lhes compet[ia].» (MONTEIRO, «Espírito clássico», in<br />
Sudoeste, n.º 3, 1935, p. 170 e 171, apud VIEIRA, 2004, p. 149 e 150).<br />
³ Cfr. ARRUDA, 1995, p. 420, onde, por lapso, o arquitecto é mencionado<br />
como proprietário da residência que apenas projectou.<br />
⁴ Referência ao arquitecto suíço Charles-Edouard Jeanneret-Gris (1887-<br />
1965), que adoptou o pseudónimo «Le Corbusier». As suas obras<br />
destacam-se por intensos diálogos de formas rectas e curvas, volumes<br />
vazios e cheios, efeitos de luz e sombra, e pelo aproveitamento da<br />
cobertura de alguns edifícios para criação de terraços-jardim. A sua<br />
influência em Portugal surge, sobretudo, na sequência do 1º Congresso<br />
Nacional de Arquitectura, decorrido entre Maio e Junho de 1948. A este<br />
propósito, vide VIEIRA DE ALMEIDA e FERNANDES, 1986, p. 144.
o edifício ergue-se na Rua de Alcolena, situada no<br />
Bairro do Restelo (Encosta da Ajuda) – «desenhado<br />
por Faria da Costa entre 1938 e 1940, no espírito<br />
da cidade-jardim howardiana»⁵. Devido à sua<br />
localização, o imóvel encontra-se abrangido pela Zona<br />
Especial de Protecção de vários edifícios classificados,<br />
sobressaindo de entre eles a Capela de São Jerónimo,<br />
que se avizinha no ângulo Nascente.<br />
Há muito desabitada e actualmente em processo de<br />
classificação como imóvel de interesse municipal⁶, a<br />
vivenda sofreu vários desmantelamentos na sequência<br />
das arrematações por diversos proprietários e, nesta<br />
dispersão do espólio artístico, perdeu numerosas<br />
obras, tais como uma tapeçaria de parede concebida<br />
por Sara Afonso, uma pintura a óleo sobre tela de<br />
Almada Negreiros e outra de Eduardo Viana, alguns<br />
painéis de azulejos⁷ e o vitral, também de Almada<br />
Negreiros – possivelmente executado na laboriosa<br />
Oficina de Vitrais e Mosaicos de Ricardo Leone,<br />
sediada em Lisboa e responsável pela produção de<br />
numerosos exemplares desta arte renascida durante<br />
o Estado Novo⁸, tendo por diversas vezes contado<br />
com a colaboração de Almada, enquanto desenhador<br />
de cartões⁹.<br />
⁵ «Referência às ideias de Ebenezer Howard para o movimento das<br />
Cidades-Jardins na Inglaterra, uma tentativa de criar uma entidade que<br />
incluísse cidade e campo.» TOUSSAINT, 2009.<br />
⁶ Vide as Propostas P096.09 (17-02-2009) e P097.09 (24-02-2009)<br />
assinadas pelas Vereadoras do Movimento Cidadãos Por Lisboa, Arq.ª<br />
Helena Roseta e Dr.ª Manuela Júdice, apresentadas na Câmara Municipal<br />
de Lisboa, com vista à classificação do imóvel como Património Municipal<br />
e posterior transformação em Casa-Museu do Modernismo lisboeta.<br />
10 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 11<br />
Vide também a Petição on line intitulada «É preciso salvar a Casa da Rua<br />
de Alcolena, da autoria do arquitecto António Varela, com murais de<br />
azulejo da autoria do pintor Almada Negreiros», promovida pela Ordem<br />
dos Arquitectos (05-03-2009).<br />
⁷ A remoção da totalidade dos azulejos havia sido prevista pelo antigo<br />
proprietário Carlos Lopes, mas acabou por ser interrompida em Fevereiro<br />
de 2009 por embargo camarário, pois para além de estar inserido na<br />
zona de protecção de dois monumentos classificados, o imóvel consta do<br />
Inventário Municipal de Património desde 1992, situações que inviabilizam<br />
qualquer intervenção de vulto, como a demolição ou a alteração formal<br />
e decorativa das fachadas. Todavia, para além daquela operação de<br />
destacamento, em Janeiro de 2009 os posteriores proprietários do imóvel,<br />
filhos do empreiteiro Vítor Santos, entregaram na Câmara Municipal de<br />
Lisboa um pedido de demolição integral da moradia e de reconstrução ex<br />
nouo, de acordo com um projecto do Arq. João Massapina. Vide Público,<br />
6-03-2009, p. 22.<br />
⁸ Sobre a actividade desta fábrica, vide ABREU, REDOL e CAETANO, 2000<br />
(sobretudo os artigos de Rui Afonso SANTOS - «Apontamentos para a<br />
História do Vitral no Século XX, p. 68-85 – e Dulce Freitas FERRAZ - «A<br />
Oficina de Ricardo Leone», p. 86-93) e VIEIRA, 2004 (sobretudo p. 61-<br />
69, 142-177 e 211). Nenhuma destas obras refere, no entanto, o vitral<br />
em estudo. Acerca da reabilitação do vitral no período do Estado Novo<br />
e das suas utilizações, «em 1927, a revista Arquitectura [sublinhava] o<br />
“magnifico partido” e o efeito “surpreendente” que se poderia tirar da<br />
aplicação do vitral a fachadas exteriores e, sobretudo, à decoração de<br />
salas, vestíbulos e escadas principais, ou ainda dos jardins de Inverno em<br />
“moradias ou palácios”.» VIEIRA, 2004, p. 74.<br />
⁹ Dos vários cartões para vitrais produzidos por Almada Negreiros para<br />
esta fábrica destacamos os destinados aos conjuntos da Igreja de Nossa<br />
Senhora de Fátima (1935) e da Fábrica de Fogões Portugal (1945). «Para<br />
a reabilitação (…) [do vitral] desejou Almada Negreiros contribuir não<br />
só na qualidade [de] pintor, mas também de conferencista, como bem<br />
mostraram as considerações que teceu sobre a sua finalidade e essência<br />
no discurso Elogio da ingenuidade ou as desavenças da esperteza<br />
saloia, proferido na Exposição de Artistas Modernos Independentes de<br />
1936. Ai declarava que “esta arte conhecida por vitral, e que é uma arte<br />
independente da pintura como de qualquer outra expressão de arte,<br />
tem por função aproveitar a diferença de luz da atmosfera livre para um<br />
recinto fechado na intenção de ajudar a concentrar-se cada um colectiva<br />
e individualmente.”» VIEIRA, 2004, p. 82 e 83 (com citação de ALMADA<br />
NEGREIROS, «Elogio da ingenuidade ou as desavenças da esperteza<br />
saloia», in Revista de Portugal, n.º 6, 1939, p. 164-174).<br />
Prefácio<br />
O vitral <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> passou a integrar as colecções<br />
da Assembleia da República em 2001, ainda<br />
identificado como uma representação da Queda de<br />
Ícaro. Identificação com a qual fora levado à praça<br />
em leilão em Dezembro do ano anterior, juntamente<br />
com uma tapeçaria da Manufactura de Portalegre, da<br />
autoria de Sara Afonso¹⁰, tal como o vitral, exemplar<br />
único concebido para a mesma residência privada por<br />
encomenda directa dos seus proprietários.<br />
A Assembleia da República perseguia então o propósito<br />
de adquirir obras de autores contemporâneos,<br />
diversificando e enriquecendo um património que<br />
raras aquisições tivera desde os anos 40 do séc. XX e<br />
que permanecia imbuído em grande parte pela estética<br />
oficial do Estado Novo, dominante nas áreas nobres e<br />
públicas do Palácio de São Bento, com excepção da ala<br />
da antiga Câmara dos Pares. As obras adquiridas ao<br />
longo de curto período de maior desafogo orçamental,<br />
no final dos anos 90, destinavam-se a decorar os<br />
amplos corredores e gabinetes do andar nobre<br />
após se ter verificado a impossibilidade de recurso<br />
às reservas dos museus nacionais em quantidade<br />
necessária. Não constituem uma colecção no sentido<br />
estrito do termo, já que não foram definidos critérios<br />
orientadores para uma programação aquisitiva e<br />
foram sendo integradas aleatoriamente, segundo os<br />
locais a que se destinavam ou, por vezes, as escolhas<br />
dos órgãos de administração.<br />
¹⁰ AA.VV., 2000, p. 40 e 139 – respectivamente n.ºs 547 e 681.<br />
Esta política aquisitiva teve início em 1998, por<br />
proposta do Museu, com a aquisição da tapeçaria<br />
Labirinto de Vieira da Silva, a que se seguiram em breve<br />
as tapeçarias Colheita e Anjinhos de Menez. Outras<br />
tapeçarias e inúmeras pinturas foram sendo adquiridas<br />
nos anos subsequentes, de entre as quais destacamos<br />
obras de Júlio, Cruzeiro Seixas, Graça Morais, Júlio<br />
Resende, Guilherme Parente, José de Guimarães,<br />
Carlos Botelho, Rogério Ribeiro, Malangantana; entre<br />
os mais jovens, Bruno Pacheco e Rui Vasconcelos são<br />
outros autores actualmente representados no acervo<br />
de Assembleia da República.<br />
Após ter tido conhecimento de que não fora<br />
concretizada a venda, em leilão, do vitral de Almada<br />
Negreiros e da tapeçaria de Sara Afonso, propus<br />
superiormente a respectiva aquisição às herdeiras<br />
dos encomendantes, de que sabia apenas terem sido<br />
amigos do casal de artistas. Considerei tratar-se de<br />
uma oportunidade única para adquirir uma obra de<br />
um dos mais importantes pintores portugueses do<br />
séc. XX, cuja cotação no mercado limita fortemente<br />
a possibilidade de integração em colecções de<br />
instituições públicas. A proposta contemplava<br />
igualmente a aquisição da tapeçaria de Sara Afonso,<br />
realizada na Manufactura de Portalegre, cujo tema<br />
central é uma sereia presa em rede de pesca.
O vitral ingressou na Assembleia da República em<br />
Fevereiro de 2001, já que foi a única proposta que<br />
teve acolhimento, tendo recebido o nº. MAR 271<br />
aquando da reformulação do inventário do Museu.<br />
Em 2003 foi colocado na escadaria da residência<br />
oficial do Presidente da Assembleia da República<br />
sobre uma caixa de luz por se tratar de uma parede<br />
cega. A identificação iconográfica permanecia, no<br />
entanto, dúbia: o tema <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>, indicado pela<br />
proprietária por ocasião da venda, não correspondia<br />
à interpretação feita aquando da apresentação em<br />
leilão, a qual considerava tratar-se da Queda de Ícaro.<br />
Esta duplicidade exigia um estudo pormenorizado para<br />
cabal identificação, do qual foi incumbida a Dr.ª Cátia<br />
Mourão, e que veio revelar uma encomenda orientada<br />
por um muito específico programa com profundas<br />
raízes herméticas, inserido numa vasta programação<br />
contemplando a totalidade da residência para onde<br />
foi executado. É este estudo, surgido no âmbito da<br />
investigação inerente ao inventário museológico (que<br />
permanece frequentemente ignorada) e desenvolvido<br />
posteriormente, que se traz a público e dá a conhecer<br />
uma das obras mais relevantes, e mais enigmáticas<br />
na sua concepção, do espólio da Assembleia da<br />
República.<br />
Teresa Parra da Silva<br />
Conservadora do Museu da Assembleia da República<br />
12 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 13<br />
Descrição do vitral<br />
O vitral é composto por 5 partes de larguras desiguais,<br />
unidas por caixilharia de chumbo, que congregam 153<br />
peças de vidro policromo, formando uma composição<br />
estruturada na horizontal, com duas figuras nuas e<br />
deitadas, estando uma a dormir e a outra acordada<br />
olhando a primeira. A que dorme tem a pele rosada,<br />
está voltada para cima, tem o corpo posicionado<br />
em diagonal descendente, a cabeça inclinada para<br />
baixo e a três quartos, os cabelos longos, soltos, de<br />
cor arruivada, os olhos fechados, o braço direito<br />
estendido para o mesmo lado, o esquerdo curvado<br />
e acompanhando a curvatura do tronco e a perna<br />
direita estendida, cruzando a esquerda ao nível do<br />
tornozelo. Tem grandes asas de pássaro, de cor rosa<br />
forte, nas costas, estando a esquerda aberta e a direita<br />
fechada, sobre a qual apoia a cabeça; a figura que a<br />
olha tem a pele amarela, está voltada para baixo, de<br />
bruços, apoiando-se no braço esquerdo e também no<br />
cotovelo direito (sobre a extremidade da asa da figura<br />
anterior).<br />
Fig. 1<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong><br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
Não datado (1954)<br />
57,5 x 325 cm<br />
Vitral<br />
Assembleia da República<br />
MAR 271<br />
Fotografia de Carlos Pombo<br />
Tem a cabeça erguida e de perfil, os cabelos loiros<br />
e compridos, cingidos atrás, as pernas estendidas e<br />
o pé direito apoiado no tornozelo da perna oposta.<br />
Não tem asas e segura na mão direita uma pequena<br />
lucerna de cor verde, cuja chama ilumina o rosto da<br />
personagem adormecida.<br />
O fundo combina tons de violeta e lilás.<br />
O conjunto não está assinado nem datado.
Análise iconográfica<br />
Alguns autores interpretaram a temática do vitral<br />
como o episódio da Queda de Ícaro, considerando<br />
que a personagem à esquerda seria Ícaro¹¹, já caído –<br />
representado como um jovem andrógino, com as asas<br />
que o permitiram sair do labirinto do Minotauro –, e<br />
que a figura à direita seria Dédalo, certificando-se da<br />
morte do filho.¹² Contudo, se confrontarmos a obra<br />
com os seus estudos preparatórios, apercebemo-nos<br />
de que as personagens representadas são, afinal, <strong>Eros</strong><br />
e <strong>Psique</strong>.<br />
Fig. 2<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>¹³ (esboço preparatório?)<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
Não datado (1951-1953)<br />
44,5 x 67 cm<br />
Lápis de carvão sobre papel milimétrico<br />
Colecção particular dos Herdeiros de Almada Negreiros<br />
Fotografia de Maria Lino<br />
14 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 15<br />
¹¹ A obra foi a leilão no ano 2000, com o n.º 547 e o título A queda de Ícaro<br />
– Cfr. AA.VV., 2000, p.10.<br />
¹² Sobre a lenda de Ícaro, vide GRIMAL, 1992, p. 241.<br />
¹³ Inédito. Agradecemos a referência e a imagem à Dr.ª Sara Afonso<br />
Ferreira.<br />
Fig. 3<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>¹⁴ (primeiro estudo?)<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
Não datado (1951-1953)<br />
16 x 56 cm<br />
Aguarela e lápis de carvão sobre papel<br />
Colecção particular de João Esteves de Oliveira<br />
Fotografia de Vítor Branco<br />
Fig. 4<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>¹⁵ (segundo esboço?)<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
Não datado (1953-1954)<br />
76,5 x 22 cm<br />
Lápis de carvão sobre papel<br />
Colecção particular (Lisboa)<br />
Reprodução fotográfica de Paulo Cintra<br />
¹⁴ Reproduzido em TEIXEIRA, 1993, p. 227, AA.VV.,2006, p. 194 e AA.VV.<br />
2008, p. 70.<br />
¹⁵ Inédito.
Fig. 5<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>¹⁶ (penúltimo estudo?)<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
Datado: 10-2-1954<br />
Inscrição: «almada/Ao José Manuel/no dia do seu aniversário/10-II-54»<br />
76,5 x 22 cm<br />
Aguarela sobre papel<br />
Colecção particular (Lisboa)<br />
Fotografia da galeria Antiks Design<br />
Fig. 6<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>¹⁷ (último estudo – cartão para o vitral)<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
Não datado (1954)<br />
65,5 x 30,20 cm<br />
Óleo sobre papel<br />
Colecção particular (Lisboa)<br />
Fotografia de Vítor Branco<br />
16 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 17<br />
Na época pré-socrática <strong>Eros</strong> era filho do Caos, vazio<br />
original do Universo, e detinha a força ordenadora<br />
e unificadora dos elementos, pedra de toque para a<br />
criação do Cosmos. Hesíodo¹⁸ descreveu-o como um<br />
jovem dotado de beleza inigualável, considerando-o<br />
deus do Amor e do desejo. Em teogonias posteriores,<br />
já na era pós-socrática, a filiação de <strong>Eros</strong> foi controversa<br />
e variável entre Zeus, Ares ou Hermes e Afrodite,<br />
ou ainda Poro (Expediente) e Pénia (Pobreza). Esta<br />
última, defendida por Platão¹⁹, explicava a natureza<br />
inconstante e insatisfeita do Amor, em permanente<br />
busca de realização, e retirava a <strong>Eros</strong> o estatuto de<br />
deus maior, concebendo-o como génio mediador<br />
entre deuses e Homens.<br />
No século II da era cristã, o escritor latino Lúcio<br />
Apuleio²⁰ identificou o <strong>Eros</strong> grego com o Cupido<br />
romano, deus do Amor e filho de Vénus, deusa<br />
romana da Beleza. Na sua obra O Asno de Ouro<br />
(também designada por Metamorfoses), relacionou-o<br />
com <strong>Psique</strong>, uma virgem mortal mas tão bela, que os<br />
homens passaram a adorá-la em detrimento da própria<br />
deusa da Beleza.²¹ Esta, por vingança, pediu ao filho<br />
que fizesse a donzela apaixonar-se pelo homem mais<br />
feio, pobre e indigno. Todavia, Cupido enamorou-se<br />
da jovem e, sob a forma de voz incorpórea, ocultando<br />
a identidade e o aspecto, tomou-a em segredo e fê-la<br />
jurar que jamais tentaria descobrir o aspecto do ente<br />
amado. Mas, curiosa por natureza e ainda incitada<br />
pelas irmãs, <strong>Psique</strong> não resistiu à tentação e, numa<br />
noite, aproximou uma lamparina do rosto do marido<br />
que dormia a seu lado.<br />
Quando o descobria, teve, contudo, o infortúnio<br />
de deixar cair sobre ele uma gota de azeite quente,<br />
acordando-o. Sentindo-se traído, o deus fugiu. <strong>Psique</strong>,<br />
assim relacionada com a Alma inquieta e ávida de<br />
descoberta, foi imediatamente abandonada pelo<br />
Amor e posteriormente punida pela Beleza. Revoltada<br />
com o desaparecimento do filho, Vénus forçou a<br />
jovem a vários castigos e, num deles, <strong>Psique</strong> teve de<br />
descer ao infernal mundo de Hades para de lá trazer<br />
uma boceta fechada com um pouco da formosura de<br />
Prosérpina. Embora esta se destinasse à deusa mãe,<br />
<strong>Psique</strong> não resistiu à tentação de abrir o recipiente e<br />
aspergir-se, mas logo descobriu o logro quando inalou<br />
um aroma soporífero que a induziu em sono profundo.<br />
Arrependido pela fuga e tomado pela saudade, Cupido<br />
conseguiu acordá-la usando o poder do Amor²². Com a<br />
permissão de Zeus e a reconciliação de Vénus, <strong>Psique</strong><br />
foi tornada imortal e uniu-se a Cupido.<br />
¹⁸ Hesíodo, Teogonia, apud GRIMAL, 1992, p. 148.<br />
¹⁹ Platão, Simpósio e O Banquete, apud GRIMAL, 1992, p. 148.<br />
²⁰ Lucius Apuleius nasceu em Madaura, actual Argélia, c.125 d.C., e faleceu<br />
em Cartago, c.180 d.C..<br />
²¹ APULEIO, 1990, pp. 81-119.<br />
²² Tradições diversas defendem que <strong>Eros</strong> terá acordado <strong>Psique</strong> com um<br />
beijo ou com uma flecha, embora a primeira versão tenha colhido mais<br />
frutos no meio poético e artístico – cfr. GRIMAL, 1992, p. 400.
Em termos lineares, o mito de Apuleio constitui uma<br />
estória de amor entre uma humana e um deus, da<br />
qual se retira uma lição moralizante: a desobediência<br />
da primeira – motivada pela curiosidade – em relação<br />
às condições dogmáticas estabelecidas pelo segundo,<br />
é punida e, apesar de falhar o cumprimento do castigo<br />
– por não resistir à tentação da vaidade –, acaba por<br />
receber o perdão – cuja concessão demonstra o<br />
carácter incondicional do Amor. Na estória, o sono<br />
funciona como um estado de vulnerabilidade que<br />
se afigura na primeira parte enquanto oportunidade<br />
de satisfação da curiosidade e na segunda parte<br />
enquanto castigo para esta.<br />
O mito tem sido objecto de diversas interpretações<br />
alegóricas e filosóficas desde Platão²³, que<br />
contemplam a possibilidade de se tratar de<br />
uma alegoria ao Conhecimento, sendo <strong>Psique</strong> a<br />
personificação da mente humana, caracterizada pela<br />
ávida curiosidade em relação ao desconhecido, e <strong>Eros</strong><br />
a personificação do Amor e do Mistério. Algumas<br />
leituras demonstram uma exegese cristã, fazendo<br />
referência à “queda” da Alma humana e ao perdão<br />
divino²⁴; outras conferem<br />
²³ Sobretudo na sua obra O Banquete. Para uma detalhada fortuna crítica<br />
filosófica do mito, vide GÉLY, 2006, p. 151 e ss. A título de exemplo<br />
referimos BERGER, 1767, ROSCHER, 1886, JONG, 1900, REITZENSTEIN,<br />
1912, CUMONT, 1966, STOCKER, 1944, SOUSA, 2004, BARBAFIERI e<br />
RAUSEO, 2004.<br />
²⁴ GÉLY, 2006, p. 164, especificamente em relação à interpretação de<br />
Fulgêncio.<br />
18 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 19<br />
uma visão laica, ressaltando o teor romântico do conto<br />
mítico²⁵; outras revelam uma perspectiva historicista<br />
e portanto pagã, vendo os castigos de <strong>Psique</strong> como<br />
etapas de uma iniciação nos Mistérios gnósticos<br />
antigos²⁶ e o seu sono final como uma condição de<br />
possibilidade de ascender à Verdade e à imortalidade<br />
divina, ao invés de uma verdadeira punição; outras<br />
ainda remetem para uma dimensão hermética,<br />
perfilhando a leitura historicista e acrescentando-lhe uma<br />
interpretação do sono de <strong>Psique</strong> como um símbolo da<br />
condição de adormecimento da mente humana, em<br />
geral, que subentende a necessidade do despertar.<br />
²⁵ GÉLY, 2006, p. 269 e ss, especificamente em relação à interpretação de<br />
Charles Perrault, que parece negar a dimensão alegórica, influenciando as<br />
leituras posteriores de Boiardo, Basile, La Fontaine e Baronesa d’Aulnoy.<br />
²⁶ Na Antiguidade, estes Mistérios poderiam ser os de Ísis, de Osíris, de<br />
Orfeu ou de Elêusis. Os dois primeiros eram oriundos do Egipto e as suas<br />
práticas rituais e simbólicas foram aculturadas e adaptadas na Grécia e<br />
mais tarde em Roma, dando origem aos dois segundos. Destes, os de<br />
Elêusis foram os mais difundidos. Eram celebrados em Elêusis, cidade<br />
agrícola próxima de Atenas, e compreendiam ritos iniciáticos integrados<br />
no culto da fertilidade da terra, associado às deusas Deméter (das<br />
colheitas) e sua filha Perséfone (sequestrada por Hades, deus do Mundo<br />
Inferior). O rapto de Perséfone induzira Deméter em profunda tristeza,<br />
descurando as lides da agricultura e dando origem ao Inverno, tempo de<br />
carestia. Mas Hades permitiu que a filha visitasse a mãe durante alguns<br />
meses e nesse período a deusa esmerava os seus trabalhos, permitindo a<br />
abundância no Verão.<br />
Consoante as leituras, os dois esposos míticos de<br />
Apuleio têm sido eternizados nas diversas expressões<br />
artísticas, ora apresentando-se ambos acordados e<br />
em ritual de iniciação²⁷ ou em idílio²⁸, ora estando um<br />
deles a dormir e o outro acordado (sendo que quando<br />
<strong>Eros</strong> dorme é perscrutado por <strong>Psique</strong>²⁹ e quando<br />
<strong>Psique</strong> dorme é observada ou acordada por <strong>Eros</strong>³⁰).<br />
Embora a maioria das representações obedeça ao<br />
padrão iconográfico clássico³¹ – que estabelece a<br />
figura de <strong>Eros</strong>/Cupido com asas de pássaro, munido<br />
²⁷ A representação de <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> no baixo-relevo encontrado no<br />
Mithræum de Santa Maria di Capua Vetere, datado de finais do séc. II<br />
e inícios do séc. III d.C., tem sido interpretada como uma cena de ritual<br />
iniciático, já que <strong>Eros</strong> carrega uma tocha na sua mão esquerda.<br />
²⁸ A título de exemplo, no mosaico romano peninsular destacamos dois<br />
exemplos cordobenses que representam o abraço entre <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>,<br />
ainda crianças, onde <strong>Eros</strong> tem asas de ave e <strong>Psique</strong> tem asas de borboleta<br />
num e de pássaro noutro. São ambos de finais do séc. III e inícios do séc.<br />
IV d.C., e estão, respectivamente, no Alcázar de los Reyes Cristianos e na<br />
Caja de Ahorros de Córdoba. De cronologia muito mais recente, já de<br />
1891, ressaltamos a pintura a óleo sobre tela, hoje no Museu do Chiado,<br />
em Lisboa, executada pelo português José Veloso Salgado, onde as duas<br />
personagens se apresentam já adultas, estando <strong>Eros</strong> a tanger uma lira.<br />
²⁹ Caso do desenho de Francesco Bartolozzi, segunda metade do séc. XVIII<br />
(Tate Gallery).<br />
³⁰ Caso da escultura de António Canova, 1793 (Museu do Louvre).<br />
³¹ Para uma detalhada fortuna crítica artística do mito, vide ROSCHER,<br />
1886, CUMONT, 1966, e sobretudo GÉLY, 2006.<br />
de arco e flechas, ou até de uma tocha³², ou ainda<br />
de uma lira³³, e <strong>Psique</strong> com asas de borboleta ou<br />
até de pássaro³⁴, segurando uma lucerna –, por<br />
vezes verificam-se supressões ou acrescentos de<br />
atributos.³⁵<br />
No esboço preparatório para o vitral (Fig. 2), Almada<br />
Negreiros ensaiou uma composição muito abreviada,<br />
organizada em 8 partes, com as personagens<br />
desprovidas de asas, estando a figura masculina<br />
adormecida e localizada à esquerda, com o corpo<br />
posicionado no sentido da direita, apresentando uma<br />
torção acentuada ao nível da cintura (sendo que os<br />
membros inferiores estão voltados de costas, os<br />
superiores, o tronco e a cabeça virados de frente). A<br />
figura feminina está acordada e localizada à direita,<br />
posicionada no sentido oposto, de joelhos e inclinada<br />
sobre a figura anterior, apoiando-se no braço direito,<br />
que está flectido, e avançando o esquerdo na direcção<br />
daquela personagem para alumiá-la com uma<br />
lamparina em meia-lua.<br />
³² Vide o exemplo já referido do relevo de Santa Maria di Capua Vetere, e<br />
também a ekphrasis de Mosco de Siracusa (séc. II a.C.) sobre <strong>Eros</strong>: «<strong>Eros</strong>,<br />
de cabelos encaracolados, pousando a tocha e o arco, tomou o bastão de<br />
boieiro e pôs o alforge ao ombro.» - MOSCO, Antologia de Planudes, 200,<br />
in WALTZ, 1931-1974.<br />
³³ Caso da pintura a óleo sobre tela, de José Veloso Salgado, 1891 (Museu<br />
do Chiado).<br />
³⁴ Vide os casos romanos anteriormente referidos na nota 28.<br />
³⁵ Sobre as representações plásticas do mito de Apuleio até finais do<br />
século XIX, vide ROSCHER, 1886.
No estudo seguinte (Fig. 3) o artista reorganizou a<br />
composição em 4 partes e manteve a localização das<br />
figuras mas reposicionou-as, apresentando a figura<br />
adormecida no sentido inverso e com o corpo em<br />
curvatura descendente, exibindo asas de pássaro nas<br />
espaldas (atestando a sua condição divina), apoiando<br />
um tornozelo no outro, e a figura acordada de costas,<br />
sem asas (atestando a sua condição ainda humana,<br />
ou seja anterior à divinização e à parcial metamorfose<br />
consequente), inclinada sobre a anterior e apoiada<br />
no braço esquerdo, aproximando do rosto da outra<br />
uma pequena lamparina em meia-lua e cruzando as<br />
pernas. Mais pormenorizado, este desenho define as<br />
expressões das personagens que, no caso da segunda,<br />
transmitem a sensação de surpresa momentânea<br />
através da boca entreaberta e da pose instável, e no<br />
caso da primeira traduzem o estado que antecede a<br />
interrupção do sono através do abandono do corpo,<br />
que indica ainda a fase onírica, e da crispação da mão<br />
direita, que prenuncia já o despertar.<br />
Nos estudos posteriores (Figs. 4 e 5), Almada<br />
reorganizou a composição em 6 partes, conservou<br />
a posição e as características da figura adormecida,<br />
mas alterou a pose e a expressão corporal e facial<br />
da personagem mais próxima do espectador,<br />
apresentando-a agora de bruços, mas sempre sem<br />
asas, e transformando a sua atitude de espanto inicial<br />
em atitude de serenidade (patente no encerramento<br />
da boca e no estatismo corporal, que indicam a<br />
quietude de uma contemplação). Redefiniu também<br />
as características formais de ambas, fazendo-as<br />
20 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 21<br />
progressivamente mais esguias e estilizadas, sem<br />
deixar, no entanto, de manter a figura adormecida<br />
com as feições e a morfologia masculinas – apesar<br />
de apresentar já o cabelo um pouco mais crescido –,<br />
e a figura acordada com o cabelo comprido e o seio<br />
proeminente.<br />
No último estudo (Fig. 6) e na obra definitiva (Fig. 1)<br />
o pintor reorganizou finalmente a composição em 5<br />
partes, mas manteve a estrutura essencial, embora<br />
tenha deslocado o eixo de colocação das figuras no<br />
espaço, chegando-as mais à esquerda no estudo e<br />
mais à direita no vitral, procurando uma métrica e um<br />
equilíbrio específicos, também por meio de divisórias<br />
verticais que se tornaram assimétricas para um melhor<br />
enquadramento da parte principal da figuração que<br />
está sensivelmente deslocada do centro. Porém,<br />
alterou a cor do fundo, que passou de amarela e<br />
branca para violeta, modificou o formato da lamparina,<br />
que passou a assemelhar-se a uma lucerna romana,<br />
mudou a cor do corpo da figura adormecida, que<br />
passou de amarela a rosa, e, sobretudo, modificou o<br />
aspecto fisionómico das personagens, representando<br />
agora a que dorme com uma aparência feminina – de<br />
feições muito delicadas, cabelos longos e soltos, peito<br />
com volume e sexo algo ambíguo neste contexto³⁶–<br />
e a que está acordada com uma aparência masculina<br />
– de feições angulosas, cabelos cingidos atrás e seio<br />
visualmente reduzido pela sobreposição parcial do<br />
braço.<br />
As claras alterações fisionómicas poderiam indicar<br />
uma troca de posições das personagens, o que por<br />
sua vez indicaria uma alteração do episódio do mito,<br />
que assim passaria a ser o momento em que <strong>Eros</strong><br />
encontrou <strong>Psique</strong> adormecida pelo aroma soporífero<br />
da boceta. Todavia, esta suposta mudança seria<br />
acompanhada de uma insólita permuta de atributos<br />
entre as duas figuras, já que <strong>Psique</strong> ostentaria as asas<br />
de pássaro iconograficamente atribuídas a <strong>Eros</strong> e que<br />
este estaria acordado, apresentando-se despojado<br />
de asas e segurando a lucerna de <strong>Psique</strong>, adoptando<br />
uma atitude também invulgar de contemplação da<br />
jovem, ao invés de beijá-la ou alvejá-la com uma<br />
seta para acordá-la. Embora insólita, a suposta<br />
permuta de atributos seria possível no contexto de<br />
um entendimento simbólico, hermético e gnóstico<br />
do tema e da relação entre os amantes míticos, que<br />
contempla a união dos opostos através da equivalência<br />
e da identificação entre eles.<br />
No entanto, consideramos agora, após a limpeza e<br />
o restauro do vitral, que as mudanças fisionómicas<br />
das figuras não correspondem necessariamente a<br />
uma alteração de género, de identidade, de posições,<br />
de atributos e, por conseguinte, de episódio. Se<br />
considerarmos que <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> simplesmente<br />
passaram a ser representados de forma andrógina<br />
complementar e reflexiva (ele mais efeminado e ela<br />
mais masculinizada), aceitamos a representação<br />
iconográfica convencional dos seus atributos mas<br />
acabamos, de um modo aparentemente paradoxal<br />
mas efectivamente lógico, por reforçar as conclusões<br />
finais anteriormente apresentadas, fazendo uso<br />
justamente dos mesmos argumentos. Com efeito,<br />
também no âmbito de um entendimento simbólico,<br />
hermético e gnóstico do tema e da relação entre os<br />
amantes míticos, a androginia das duas figuras permite<br />
que as personagens se confundam e expressem o<br />
conceito de identificação, de equivalência e de união<br />
dos opostos. A decisão última de representar as duas<br />
personagens de forma dúbia propicia, assim, duas<br />
leituras que embora pareçam diferentes acabam por<br />
ser também elas equivalentes e, uma vez mais, o<br />
poema hermético³⁷ de Fernando Pessoa³⁸, amigo de<br />
Almada e seu companheiro da geração modernista³⁹,<br />
permite validar as duas hipóteses de uma realidade<br />
única:<br />
³⁶ O desenho apresenta duas meias-luas geminadas, mas ligeiramente<br />
desniveladas, e potencia uma dupla leitura: quando visto de longe (à<br />
distância normal de observação de um vitral) pode parecer um órgão<br />
feminino; quando visto de perto (numa análise de pormenor, agora mais<br />
possibilitada pela limpeza e restauro do vitral) revela-se masculino.<br />
³⁷ Sobre o envolvimento de Fernando Pessoa nas diversas correntes<br />
esotéricas vide CENTENO, 1985, e ANES, 2004.<br />
³⁸ PESSOA, 1934, p.13. O trecho que precede o poema é citação do autor.<br />
³⁹ Almada pintou dois retratos a óleo de Fernando Pessoa, o primeiro dos<br />
quais datado do mesmo ano em que terá realizado este vitral.
... E assim vêdes, meu<br />
Irmão, que as verdades que<br />
vos foram dadas no Grau<br />
de Neófito, e aquelas que<br />
vos foram dadas no Grau<br />
de Adepto Menor, são,<br />
ainda que opostas, a<br />
mesma Verdade.<br />
Do Ritual do Grau de<br />
Mestre do Átrio na Ordem<br />
Templária de Portugal<br />
EROS E PSIQUE<br />
Conta a lenda que dormia<br />
Uma Princesa encantada<br />
A quem só despertaria<br />
Um Infante, que viria<br />
De além do muro da estrada.<br />
Êle tinha que, tentado,<br />
Vencer o mal e o bem,<br />
Antes que, já libertado,<br />
Deixasse o caminho errado<br />
Por o que à Princesa vem.<br />
A Princesa Adormecida,<br />
Se espera, dormindo espera.<br />
Sonha em morte a sua vida,<br />
E orna-lhe a fronte esquecida,<br />
Verde, uma grinalda de hera.<br />
Longe o Infante, esforçado,<br />
Sem saber que intuito tem,<br />
Rompe o caminho fadado.<br />
Êla dela é ignorado.<br />
Êle para êla é ninguém.<br />
Mas cada um cumpre o Destino -<br />
Êla dormindo encantada,<br />
Êle buscando-a sem tino<br />
Pelo processo divino<br />
Que faz existir a estrada.<br />
22 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 23<br />
E, se bem que seja obscuro<br />
Tudo pela estrada fora,<br />
E falso, êle vem seguro,<br />
E, vencendo estrada e muro,<br />
Chega onde em sono ela mora.<br />
E, inda tonto do que houvera,<br />
À cabeça, em maresia,<br />
Ergue a mão, e encontra hera,<br />
E vê que êle mesmo era<br />
A Princesa que dormia.<br />
O final do poema contém a mesma metáfora de<br />
identificação, reflexão e unificação observada no<br />
último estudo e na obra final de Almada, sendo<br />
que o reconhecimento do Infante na Princesa<br />
encantada é equivalente ao reconhecimento de <strong>Eros</strong><br />
em <strong>Psique</strong> e de <strong>Psique</strong> em <strong>Eros</strong>, expresso por meio<br />
das características fisionómicas só aparentemente<br />
trocadas e da possibilidade de leitura dos seus atributos<br />
partilhados. Além de reiterar a interpretação do mito<br />
como metáfora do Conhecimento, esta representação<br />
ambígua – que funciona como uma espécie de<br />
comunhão, ou fusão, entre as duas personagens –,<br />
permite uma referência específica à Gnose unitária:<br />
Sendo <strong>Eros</strong>, no momento arcaico, o agente ordenador<br />
e unificador dos elementos dispersos do caos (ou<br />
seja, o manipulador da prima matéria) e ao mesmo<br />
tempo a figura do Amor que une os opostos (isto é,<br />
o mediador da conjunctio alquímica), os filósofos<br />
herméticos tomaram-no como o guia iniciático nos<br />
Mistérios que permitem o conhecimento sobre a<br />
unidade do Mundo⁴⁰. Por seu turno, <strong>Psique</strong> (Psyche<br />
em latim e Psykhē em grego), que protagoniza a Alma<br />
e o Espírito humanos, inicialmente mergulhados no<br />
desconhecimento, é considerada como a figura do<br />
⁴⁰ Para além do exemplo romano referido na nota 27, também algumas<br />
estelas funerárias gregas dos séculos IV e II a.C. parecem apresentar <strong>Eros</strong><br />
encaminhando <strong>Psique</strong> pela mão, talvez assumindo-se como guia iniciático<br />
desta nos Mistérios.
Neófito guiado por <strong>Eros</strong> na via do conhecimento<br />
superior por meio da iniciação nos processos<br />
gnósticos. As etapas desta iniciação – entendidas de<br />
modo simbólico – passavam pela morte iniciática<br />
(equivalente ao sono⁴¹) e pelo renascimento para uma<br />
forma de vida esclarecida e eterna. De acordo com a<br />
filosofia hermética, «o significado real da iniciação é,<br />
para este mundo em que vivemos um símbolo e uma<br />
sombra, que esta vida que conhecemos pelos sentidos<br />
é uma morte e um sono, ou, por outras palavras, que<br />
o que vemos é uma ilusão»⁴². Nesta óptica, <strong>Eros</strong> é o<br />
Eleutério, ou libertador, da condição inferior de <strong>Psique</strong><br />
e o facilitador do acesso desta ao Conhecimento, ou<br />
seja ao entendimento mais elevado e unificado das<br />
partes que formam o Cosmos. Através do Amor e da<br />
iniciação, <strong>Psique</strong> torna-se imortal, passa a igualar-se a<br />
<strong>Eros</strong> e a identificar-se com ele. A união dos cônjuges<br />
subentende, pois, a sua equivalência.<br />
⁴¹ «Sono e morte são, um como o outro, um vínculo quase explícito na<br />
fórmula hesiódica de que são irmãos, filhos de Nyx.» Todavia, «se Morte<br />
e Sono confundem-se, fraternizam, afeiçoam-se – pois tomam, um, as<br />
feições do outro, como esclareceu Eudoro de Sousa (2004, p. 91) – não<br />
são, a princípio, o mesmo» (GUERRA, 2009, p. 3), pelo que no contexto<br />
hermético que referimos não há dúvida de que a morte iniciática não<br />
é uma morte efectiva, mas sim uma morte simbólica equiparável ao<br />
adormecimento.<br />
⁴² PESSOA, 54, A-55, s.d.<br />
24 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 25<br />
Convivendo com alguns filósofos racionais e<br />
herméticos modernistas – sobretudo do círculo de<br />
Orpheu e da Presença – que aludiram ao mito de<br />
Apuleio como alegoria gnóstica (ora entendida no<br />
sentido exotérico, ora no sentido esotérico), Almada<br />
Negreiros interessou-se também pelo tema no âmbito<br />
da sua demanda da chave do Conhecimento⁴³ (tendo<br />
sido, aliás, no contexto dessa busca que aprofundou<br />
o estudo sobre a cultura da Antiga Grécia e sobre a<br />
Aritmética pitagórica⁴⁴, baseando-se no princípio do<br />
Número Perfeito – o theleon de Pitágoras, referido por<br />
Vitrúvio – para teorizar acerca do cânone geométrico<br />
na Arte, encontrar a relação 9/10 e desenvolver<br />
uma «metafísica imanencial»⁴⁵). Assim, é natural<br />
que o artista tenha associado <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> a outras<br />
personagens da mitologia clássica ligadas à Sabedoria,<br />
articulando-as num simbólico pentagrama e criando<br />
uma fórmula alegórica ao Conhecimento Antigo (Fig. 7):<br />
⁴³ ALMADA NEGREIROS, 1993, p. 24.<br />
⁴⁴ Nos Anos 40, Almada ambicionou «a transplantação da Grécia Antiga<br />
no nosso Portugal» e proferiu um discurso no Salão do jornal Diário de<br />
Notícias, onde dissertou sobre «Portugal na Europa com os olhos de<br />
Homero». Sobre o evento, o jornalista Norberto de Araújo escreveu que<br />
se assistira a uma «noite de sonho colectivo» e considerou a intervenção<br />
como «o mito interpretado pelo mito» (Norberto de Araújo, apud VIEIRA,<br />
2001, p. 172, e FRANÇA, 1985, p. 492). Sobre o pitagorismo e a geometria<br />
Sagrada em Almada Negreiros vide FREITAS, 1990.<br />
⁴⁵ José-Augusto França fala de «metafísica imanencial» em Almada<br />
Negreiros (FRANÇA, 1985, p. 495) com base na ideia da Geometria<br />
enquanto «primeira posição do conhecimento, ou seja, a mais próxima do<br />
recebimento da imanência» (Almada, in Diário de Notícias, 16-06-1960,<br />
entrevistado por António Valdemar, apud FRANÇA, Ibidem).<br />
Fig. 7<br />
Pentagrama demonstrando as relações entre vários deuses da<br />
mitologia grega, desenhado por Almada para explicar a Alberto<br />
de Lacerda a estória de <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>. Ao associar o pentagrama<br />
às divindades gregas, o artista criou uma fórmula alegórica ao<br />
Conhecimento Antigo, que veio a repetir analogicamente na<br />
fachada da Reitoria da Universidade Clássica de Lisboa, apenas<br />
com ligeiras alterações ortográficas e numéricas.<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
Não datado (1948-1957⁴⁶)<br />
27 x 21 cm<br />
Tinta-da-china sobre papel<br />
Colecção Alberto de Lacerda<br />
Cota: 08129.377<br />
Fotografia da Fundação Mário Soares<br />
Para além do conhecimento, Almada procurou também<br />
o ideal da unidade (patente na sua paradigmática<br />
adição «1+1=1»⁴⁷), pelo que não seria de admirar que<br />
na sua Obra o mito de Apuleio sobressaísse não apenas<br />
como parábola da Gnose, mas especificamente como<br />
exemplo da Gnose Unitária. Todavia, nas demais<br />
abordagens que Almada fez deste mito esse sentido<br />
de unidade nunca se baseia no reconhecimento de<br />
uma personagem na outra e a eventual união entre<br />
as duas firma-se nos paradoxos da relação conjugal e<br />
no confronto dos opostos que cada uma representa<br />
e não na sua “con-fusão”. Efectivamente, quer na<br />
sua obra literária (a peça teatral intitulada O Mito<br />
de <strong>Psique</strong>, iniciada em 1949 e aparentemente nunca<br />
concluída, pois para além de se desconhecer o seu<br />
último quadro, sabe-se que jamais foi posta em cena<br />
e que só foi publicada postumamente), quer nas<br />
suas obras plásticas conhecidas até à data, o artista<br />
ostentou sempre as diferenças entre elas – sendo que<br />
no primeiro caso tais diferenças são bem claras ao<br />
nível das personalidades, dos sentimentos, das<br />
⁴⁶ As balizas cronológicas apresentadas coincidem com a data do desenho<br />
que integra a colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste<br />
Gulbenkian (Fig.8) e com a data do pentagrama inciso na fachada da<br />
Reitoria da Universidade de Lisboa, que parecem ter sido a primeira e a<br />
última abordagem de Almada a este tema.<br />
⁴⁷ Esta fórmula, que surge num desenho que integra a «Histoire du<br />
Portugal par cœur», escrita em Paris em 1919 e publicada, textos e<br />
desenhos, em 1922 na Revista Contemporânea (ALMADA NEGREIROS,<br />
1922, p. 30), é retomada na peça teatral Deseja-se mulher, escrita por<br />
Almada Negreiros em 1928, que juntamente com a peça S.O.S. compõe a<br />
Tragédia da Unidade e manifesta a aspiração do artista a uma “direcção<br />
única” no entendimento da dualidade de todos os aspectos da sociedade,<br />
da natureza, da arte, etc. (ALMADA NEGREIROS, 1971).
atitudes e até das condições sócio-económicas⁴⁸, e no<br />
segundo caso distinguem-se perfeitamente pelo corte<br />
de cabelo, pela fisionomia e pela anatomia, tal como<br />
se verifica não apenas nos estudos preparatórios, mas<br />
também em desenhos anteriores (Figs. 8, 9 e 10):<br />
⁴⁸ Nesta peça (ALMADA NEGREIROS, 1971, p. 170-188), Almada enumera<br />
várias diferenças entre as duas personagens, sendo que a primeira<br />
é o modo como cada uma interpreta aquilo que vê, formando ideias<br />
diferentes de uma realidade única: «a luz é única» mas como cada «ideia<br />
é uma glosa de luz» (p. 174 – certamente por lapso, esta expressão<br />
é citada em ANIELLO, 2007, p. 351, como sendo oriunda da Cena do<br />
Ódio), cada indivíduo tem a sua própria verdade («A verdade. É o que<br />
difere pra cada um» p. 175). Neste sentido, Almada conclui que ninguém<br />
consegue enxergar além de si mesmo e que o único conhecimento que<br />
pode ter é o autoconhecimento («Vê que não te é dado veres senão a ti<br />
mesma» - p. 176). Assim sendo, o autor nega a possibilidade de qualquer<br />
conhecimento exterior ao indivíduo e inviabiliza não só o conhecimento<br />
do outro como também o reconhecimento do eu no outro (ao contrário<br />
do que parece acontecer no poema de Pessoa e no vitral, segundo a nossa<br />
interpretação). Além disso, Almada entende que o autoconhecimento só<br />
é possível quando se está sozinho, o que subentende a necessidade do<br />
isolamento/desunião dentro do casamento ou até a separação («ELA –<br />
Então pra que casamos? / ELE – Pra que seja mais claro o estarmos cada<br />
um sozinhos, as nossas verdades?» e «não somos deuses, eles sabem<br />
estar sozinhos, mas vê por eles como hás-de olhá-los pra ficares sozinha,<br />
tu» p. 176). Para além destas diferenças, Almada ressalta outras: apesar<br />
de considerar que ambas as personagens são da mesma «raça sagrada<br />
da mestiçagem dos deuses e humanos» (p. 176), afirma que elas têm<br />
sensibilidades, atitudes e condições muito diversas, em especial no que<br />
toca ao amor, ao casamento e à própria atitude vivencial, já que <strong>Eros</strong><br />
procura estar sozinho para se conhecer a si mesmo e tem fé no amor, ao<br />
passo que <strong>Psique</strong> não consegue estar sozinha, não se conhece a si mesma<br />
mas procura conhecer os outros (no caso <strong>Eros</strong> e sua mãe Afrodite), não<br />
se reconhece neles nem na realidade deles (p. 176 e 177) e não tem fé<br />
no amor. Sendo que a solidão parece ser a condição de possibilidade do<br />
autoconhecimento de <strong>Psique</strong> e da sua eventual tomada de consciência<br />
como membro da “raça” do esposo e da sogra, <strong>Eros</strong> deixa a mulher no<br />
final do segundo quadro para que ela fique sozinha.<br />
26 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 27<br />
Porém, no quadro seguinte ela surge acompanhada das três irmãs.<br />
Mesmo que estas possam ser interpretadas como o símbolo das várias<br />
facetas ou idades da própria <strong>Psique</strong>, a ideia deste desdobramento<br />
acaba por confirmar a impossibilidade de se conhecer completamente<br />
(«Como pode alguém parar de conhecer-se se as suas idades o mudam<br />
constantemente?» - p.180). Uma vez que se desconhece o último quadro<br />
da peça, não é possível saber o seu desfecho rigoroso, e ainda que se<br />
possa admitir a hipótese de <strong>Psique</strong> ter optado por ficar sozinha (dentro<br />
ou fora do casamento), ficou bem claro que ela nunca se conheceria<br />
totalmente. Neste sentido, também não há garantia de que ela voltasse a<br />
querer a companhia de <strong>Eros</strong>, pois essa união conjugal ditaria o fim do seu<br />
autoconhecimento, que como se viu é um processo contínuo e perpétuo.<br />
Aliás, a própria sogra (Afrodite), que <strong>Eros</strong> considera saber estar sozinha<br />
e conhecer-se a si mesma, vive longe do seu esposo e sem o amor dele<br />
(«Tenho tudo o que desejo (…) Só o imortal Deus de todos [Zeus] não está<br />
perpetuamente a meu lado!» -p. 172).<br />
Assim, deduz-se que <strong>Psique</strong> nunca chegaria a reconhecer-se em <strong>Eros</strong> e<br />
que o casamento também nunca seria uma verdadeira união… Poderá a<br />
constatação desta impossibilidade de união de facto ter levado Almada a<br />
não concluir a peça? Seja como for, face às leituras que fizemos do vitral e<br />
do texto dramático (que poderão não ser as únicas nem as correctas, mas<br />
que nos parecem plausíveis), cremos, uma vez mais, não haver relação<br />
directa e óbvia entre estas duas obras (o que já anteriormente referimos<br />
de modo sucinto, afirmando que o vitral tem um carácter único na obra do<br />
artista). Aliás, as diferenças não se confinam a questões filosóficas: a peça<br />
inspira-se na estória de Apuleio mas «acontece hoje em dia, é claro, de<br />
outro modo» (p.170), com as personagens modernizadas e humanizadas<br />
no seu aspecto físico (nenhuma delas com asas e nenhuma delas deus ou<br />
humano) e com um enredo bastante diferente do original, apresentando<br />
inclusivamente motivações, situações e pormenores inteiramente novos,<br />
bem como numerosas substituições de entre as quais ressalta o episódio<br />
representado no vitral que de facto está ausente da peça.<br />
Estes desenhos⁴⁹ foram certamente retomados por Almada<br />
Negreiros como referência para a elaboração do segundo estudo<br />
do vitral (Fig. 3), uma vez que existem similitudes entre as duas<br />
figuras masculinas adormecidas e as femininas que seguram<br />
lucernas: nestes desenhos, o suposto <strong>Eros</strong> está deitado de lado<br />
e com os braços numa posição próxima da que se observa no<br />
referido estudo, embora apresente as pernas em posição um<br />
pouco diversa. Por seu turno, a suposta <strong>Psique</strong> está sentada de<br />
costas mas tem o braço esquerdo numa posição próxima daquele<br />
mesmo estudo.<br />
Fig. 8<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>⁵⁰<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
1948<br />
51,2 x 63,5 cm<br />
Tinta-da-china sobre papel<br />
Colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste<br />
Gulbenkian<br />
Número de inventário: DP191<br />
Fotografia de Paulo Costa<br />
Fig. 9<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>⁵¹<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
1948<br />
50 x 63 cm<br />
Aguarela sobre papel<br />
Colecção particular<br />
Fotografia da galeria Antiks Design<br />
⁴⁹ Agradecemos as referências à Dr.ª Sara Afonso Ferreira, com quem<br />
pudemos não só identificar as figuras representadas, como também<br />
relacioná-las com a peça teatral escrita por Almada e dedicada ao tema<br />
mítico, onde as personagens surgem humanizadas no seu aspecto físico, o<br />
que explicará a ausência das suas asas nestes desenhos.<br />
⁵⁰ Inédito.<br />
⁵¹ Reproduzido em AA.VV., 1998, N.º 55.
Fig. 10<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>⁵²<br />
José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />
1948<br />
50 x 62 cm<br />
Aguarela e tinta sobre cartolina<br />
Colecção particular<br />
Fotografia da galeria Antiks Design<br />
⁵²Reproduzido em AA.VV., 1998, N.º 56. A imagem foi impressa em posição<br />
invertida no sentido horizontal.<br />
28 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 29<br />
A solução última da ambiguidade apresentada no<br />
vitral não se filia, portanto, directa e aprioristicamente<br />
nas abordagens plásticas (nem, a nosso ver, na<br />
literária) anteriores que Almada Negreiros fez deste<br />
mito em particular e as circunstâncias em que esta<br />
se desenvolveu parecem revelar, outrossim, uma<br />
decisiva intervenção externa. De facto, a obra surgiu<br />
no âmbito de uma encomenda para uma residência<br />
privada, sendo que o tema foi certamente escolhido<br />
pelo proprietário e que o artista procurou ir ao<br />
encontro da ideia deste.<br />
Com efeito, os primeiros quatro estudos (Figs. 2, 3, 4<br />
e 5) confirmam que Almada se propunha representar<br />
<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> com características físicas bem definidas,<br />
ou seja, com uma eventual união firmada nas claras<br />
diferenças entre as duas personagens; aliás, o quarto<br />
estudo (Fig. 5) demonstra já um acabamento bastante<br />
apurado que parece indicar ter sido considerado por<br />
si uma versão final para apresentar ao proprietário.<br />
Todavia, a existência de um quinto estudo (Fig. 6)<br />
com uma súbita mudança de cores, uma alteração<br />
numérica das partes em que se organiza a composição<br />
e uma “con-fusão” de fisionomias (que na figura<br />
masculina se reflecte até no volume do peito e no<br />
comprimento dos cabelos – caso único na Obra de<br />
Almada) faz pensar num reajuste decorrente de uma<br />
concertação entre o encomendante e o artista para<br />
realçar a interpretação gnóstica unitária do mito.<br />
Infelizmente não se encontrou qualquer registo escrito<br />
que documentasse a encomenda da obra e pudesse<br />
esclarecer definitivamente as hipóteses adiantadas.<br />
Não obstante, a empenhada investigação levou-nos ao<br />
encontro de memórias vivas⁵³ que testemunharam a<br />
amizade entre o artista e os proprietários da moradia<br />
de onde provém o vitral⁵⁴ e que recordam com<br />
clareza o episódio de aprovação do último estudo⁵⁵.<br />
Esta relação tão próxima parece ter sido suficiente<br />
para escusar a formalidade e firmar o contrato na<br />
combinação discursiva.<br />
A obra foi executada a pedido de José Manuel Ferrão<br />
(1928-1993) – ou simplesmente José Manuel, como<br />
preferia assinar –, filho de D.ª Maria da Piedade. Poeta,<br />
pintor, compositor, profundo admirador da obra de<br />
Fernando Pessoa e amigo de Almada Negreiros, José<br />
Manuel contara já com a colaboração deste artista na<br />
ilustração das capas de três livros seus, o primeiro dos<br />
quais intitulado As Primeiras Canções, publicado em<br />
1944, onde aliás lhe dedica o poema «Confissão»⁵⁶.<br />
⁵³ Referimo-nos à viúva e à filha de José Manuel Ferrão (Sr.ª D.ª Cecília<br />
Guitart Ferrão e Dr.ª Madalena Guitart Ferrão), a uma amiga de Dª. Maria<br />
da Piedade (Dr.ª Maria Augusta Barbosa) e ainda ao filho de José de<br />
Almada Negreiros (Arq. José de Almada Negreiros), que generosamente<br />
nos forneceram informações.<br />
⁵⁴ ALMADA NEGREIROS, 1993, p. 24.<br />
⁵⁵ Este episódio foi-nos relatado com extraordinário detalhe pela Dr.ª<br />
Maria Augusta Barbosa, que relembra o agrado com que José Manuel<br />
recebeu o estudo a óleo, ressaltando a forma como traduzia a ideia do<br />
encomendante.<br />
⁵⁶ José Manuel, 1944, p. 126 e 127. Agradecemos esta referência<br />
bibliográfica à Dr.ª Sara Afonso Ferreira. Os outros dois livros, intitulados<br />
Novas Canções e Sargaços, respectivamente publicados em 1946 e 1947,<br />
repetem a mesma ilustração de Almada mas em cores diferentes.<br />
Senhor de uma personalidade complexa e de trato<br />
peculiar, este intelectual multifacetado condenou<br />
a própria obra pictórica e manuscrita ao silêncio do<br />
Fogo, num desejo cumprido post mortem que talvez<br />
tenha sacrificado as provas mais contundentes do<br />
seu pensamento hermético... Porém, escaparam à<br />
damnatio as obras que publicou entre 1944 e 1965<br />
e que atestam a influência das leituras pessoais,<br />
estando as de Fernando Pessoa documentadas na<br />
citação preambular da obra Tema e Variações⁵⁷ e na<br />
dedicatória à memória do poeta no livro Cantata⁵⁸. Os<br />
seus livros denunciam uma atitude vivencial dividida<br />
entre o existencialismo⁵⁹ e a devoção⁶⁰ (pendendo<br />
talvez mais para um cristianismo gnóstico), e revelam<br />
ideias, imagens e termos que remetem directamente<br />
para o vitral executado por Almada a seu pedido,<br />
sobretudo ao nível da concepção unitária, da temática<br />
onírica e amorosa⁶¹, da dimensão cromática, da<br />
técnica e dos materiais.<br />
A concepção e a temática tornam-se particularmente<br />
evidentes na paradigmática Alquimia do Sonho⁶²<br />
– romance poemático e simbólico, de contornos<br />
autobiográficos, editado em 1953 – e no seu primeiro<br />
⁵⁷ José Manuel, 1950 b), p. 1.<br />
⁵⁸ José Manuel, 1950 a), p. 1.<br />
⁵⁹ José Manuel, 1947, 1953 e 1962 b).<br />
⁶⁰ José Manuel, 1961 b), 1962 a) e 1963.<br />
⁶¹ Todas as obras deste autor referem as mencionadas temáticas.<br />
⁶² José Manuel, 1953.
contributo para a revista <strong>Eros</strong>⁶³ – publicação de<br />
ensaio e poesia com tiragem entre 1951 e 1958, da<br />
qual foi director e que fundou em colaboração com<br />
Fernando Guimarães, António José Maldonado e<br />
Jorge Nemésio.<br />
Concebidas no período cronológico de construção da<br />
residência⁶⁴, a obra individual e a colectiva permitem<br />
não apenas comprovar a escolha do tema como uma<br />
vontade sua, mas também possibilitam a interpretação<br />
da solução imagética polissémica do vitral como um<br />
desejo seu de transformar o mito numa parábola<br />
gnóstica da conjunctio, ou seja, numa ilustração<br />
da aliança nupcial entre os esposos. Tal como o<br />
próprio José Manuel referiu: «O amor é comunhão,<br />
identificação, unificação. O amor transcende e exclui o<br />
dualismo sujeito-objecto»⁶⁵ e «o pior vício é a definição,<br />
a delimitação dos personagens. (…) Simplesmente é<br />
uma utopia. Não se pode definir, delimitar alguém.<br />
(…) Seria negar-lhe a unidade espiritual.»⁶⁶ É, aliás,<br />
este o sentido do seu poema «<strong>Eros</strong>»⁶⁷, publicado no<br />
primeiro número da revista homónima:<br />
⁶³ Inexplicavelmente, todos os números da revista <strong>Eros</strong> desapareceram<br />
do acervo da Biblioteca Nacional. De acordo com a informação dos<br />
bibliotecários, esta ocorrência deu-se no dia 25 de Julho de 1998, volvidos<br />
5 anos sobre o falecimento de José Manuel e precisamente no dia de<br />
invocação a Santiago Maior, padroeiro dos Alquimistas.<br />
⁶⁴ O primeiro projecto arquitectónico de António Varela para a moradia<br />
data de 1951. Em 1954 a obra ficou concluída, embora em 1955 tenha<br />
sido objecto de adaptações, averbadas pelo arquitecto nas plantas e nos<br />
alçados.<br />
Não sei se me pertences<br />
não sei se me possuis<br />
Sei que estamos fundidos<br />
na mesma grande dor<br />
[…]<br />
Qualquer que seja o teu caminho<br />
é em mim que te encontras<br />
Qualquer que seja o meu caminho<br />
é em ti que o encontro<br />
Seremos amplamente<br />
quando formos um só.<br />
30 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 31<br />
⁶⁵ José Manuel, 1953, p. 22. A Alquimia do Sonho não é um tratado<br />
de Alquimia operativa ou especulativa nem uma obra esotérica; é um<br />
romance poemático que tem como pretexto (parafraseando o próprio<br />
autor) a estória de uma relação amorosa, mas que revela o verdadeiro<br />
propósito de expressar um pensamento filosófico unitário, habilmente<br />
conciliado com reflexões existencialistas (na linha de Jean-Paul Sartre,<br />
a quem o autor dedica o romance), onde o Sonho se apresenta como<br />
estado imanente da psique humana – sendo antiteticamente benéfico<br />
e pernicioso –, e o Amor surge como sentimento ideal que permite o<br />
conhecimento do Eu, do Outro e da Natureza, funcionando como pedra de<br />
toque para a união dos opostos e do Homem com o Mundo. A narrativa é<br />
duplamente retrospectiva e projectiva, decorrendo num ritmo sincopado<br />
de capítulos breves e sibilinos, nem sempre ligados directamente entre si,<br />
e a linguagem utilizada é simbólica, com recurso a termos de referência<br />
hermética que denunciam a influência das leituras gnósticas.<br />
⁶⁶ José Manuel, 1953, p. 25.<br />
⁶⁷ José Manuel, 1951. Agradecemos ao Dr. José Mateus, da Biblioteca<br />
Geral da Universidade de Coimbra, o envio deste poema.<br />
O título do periódico e a temática do romance<br />
terão igualmente inspirado um painel de azulejos<br />
concebido para a marquise da mesma casa, também<br />
por Almada Negreiros, onde Arlequim e Colombina<br />
estão enamorados (figuras que o artista representa<br />
desde a primeira década de 1900 e que se repetem<br />
noutros azulejos desta casa), seguindo abraçados<br />
numa pequena embarcação que ostenta a inscrição<br />
«EROS» à direita (Fig. 11).<br />
Fig. 11<br />
Pormenor de um painel de azulejos da marquise, concebido por<br />
Almada Negreiros, com representação de Arlequim e Colombina<br />
numa embarcação denominada EROS.<br />
Fotografia de Paulo Cintra.<br />
Outras obras anteriores e posteriores do poeta<br />
reiteram estes sentidos e complementam a leitura<br />
do vitral. As cores (da luz da lucerna, do fundo e<br />
dos corpos das duas figuras), os vitrais e o sono vêm<br />
referenciados em numerosos poemas, de entre os<br />
quais apresentamos quatro sobremaneira evidentes:<br />
*<br />
Eis o branco vítreo, baço e transparente,<br />
a côr real dos impérios da luz,<br />
a côr que ilumina tôda a gente,<br />
no seu esplendor crescente,<br />
sempre e sempre eternamente!<br />
Eis o roxo do horizonte,<br />
o roxo da sepultura;<br />
eis a côr […] amarela […] do oiro […]<br />
a rosada cheia d’esplendor,<br />
[…]⁶⁸<br />
Aproxima-se a hora violeta<br />
Do nosso amor, ungido de ternura,<br />
E pelo mesmo cálix de amargura<br />
beberemos a vida mais secreta.<br />
[…]<br />
A hora dos vitrais esmaecidos,<br />
A hora dos segredos por dizer,<br />
O momento lilaz, a fenecer,<br />
No sonho dos segundos esquecidos,<br />
⁶⁸ José Manuel, 1944, p. 12.<br />
*
[…]<br />
Desfazendo-se em sonhos pelos céus,<br />
quase sentimental, quase secreta,<br />
aproxima-se a hora violeta<br />
[…]⁶⁹<br />
*<br />
Como a lua assomando entre os vitrais<br />
ondulando através do templo todo<br />
se desdobrando em cores pelas naves<br />
– ametista e azul púrpura e oiro –<br />
te derramas em mim fluida e vibrátil<br />
palpitante de seiva e de mistério<br />
me alumbras, me consomes (mas tam pálida)<br />
me transportas além do instante efémero<br />
subterrânea em meu sangue em minha carne<br />
mas ardendo com chama imperecível<br />
crepitando oscilando – infatigável –<br />
aspirando (quem sabe?) a um céu mais livre<br />
de súbito te evolas dos meus braços<br />
num eflúvio de inquietas lantejoulas<br />
abres as amplas asas para o espaço<br />
[…]⁷⁰<br />
⁶⁹ José Manuel, 1947, p. 44 e 45.<br />
⁷⁰ José Manuel, 1963, p. 7 e 8.<br />
Dorme e esquece…<br />
Quantas vezes a vida nos parece<br />
um sono enorme!<br />
Dorme, dorme…<br />
Dorme que virei acordar-te,<br />
Dorme um longo sono.<br />
[…]<br />
dorme um sono que te torne ausente<br />
deste mundo impuro.<br />
[…]<br />
Dorme, dorme e esquece:<br />
Só dormindo poderás viver…<br />
[…]⁷¹<br />
32 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 33<br />
Partindo de um tema da Antiguidade reinterpretado<br />
por vários vultos do Modernismo – na sua maioria<br />
amigos ou conhecidos de José Manuel Ferrão –, o<br />
vitral <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> nasce de um culto pessoal do<br />
encomendante pelo Conhecimento e pelo Amor, sendo<br />
este entendido por si como forma de união dóxica<br />
sagrada, de fusão hermética e de conhecimento de<br />
si, do outro e de reconhecimento de si no outro. Para<br />
a sua execução, o amigo Almada Negreiros retomou<br />
três desenhos que havia feito anteriormente, quando<br />
preparava uma peça teatral inspirada no tema (apesar<br />
de muito distante da estória e da narrativa mítica),<br />
⁷¹ José Manuel, 1946, p. 106 e 107.<br />
* onde expressava um entendimento paradoxal do pentagrama, que constitui, outrossim, um símbolo<br />
amor baseado nas diferenças dos cônjuges e no do Conhecimento⁷⁴); o cromatismo violeta do fundo<br />
caminho individual e solitário que cada um tem lembra a cor da Paixão (etapa que antecede a morte e<br />
de percorrer para se conhecer a si mesmo, jamais a ressurreição)⁷⁵; a lucerna, com a sua chama branca,<br />
conhecendo verdadeiramente o outro e dificilmente surge como fonte simbólica da Luz que permite o<br />
reconhecendo-se nele. Usando esses desenhos Conhecimento (podendo ser ora relacionada com<br />
como referência para o posicionamento das figuras <strong>Psique</strong>, em alusão à sua curiosidade e descoberta, ora<br />
(sobretudo da que se encontra adormecida), o artista com <strong>Eros</strong>, em referência à iluminação que este deus<br />
foi trabalhando as características fisionómicas das proporciona à figura humana mediante a iniciação<br />
personagens, as cores e as divisões da composição de no processo gnóstico); a coloração amarelo-ouro<br />
acordo com as indicações do encomendante, sendo da figura acordada traduz a ideia de Conhecimento<br />
que o resultado final constitui uma obra a quatro (ou seja Iluminação), transmutação e imortalidade,<br />
mãos. O vitral revela, pois, um entendimento do mito em analogia com o simbolismo místico do Ouro<br />
de Apuleio como uma alegoria hermética ao Amor metálico⁷⁶ (podendo também ser arbitrariamente<br />
Gnóstico Unitário e permite uma análise unificada dos relacionada com <strong>Psique</strong>, na medida em que esta tem<br />
pormenores materiais e simbólicos que o compõem, acesso ao Conhecimento, ou com <strong>Eros</strong>, uma vez que<br />
deixando perceber que todos eles se revestem a sua condição divina pressupõe que já é detentor<br />
de particular sentido orgânico: o vidro permite a desse Conhecimento e que pode revelá-lo através<br />
entrada da Luz no espaço onde o vitral foi colocado; da iniciação); a atitude de observação adoptada pela<br />
o chumbo⁷², metal saturnino que os alquimistas figura em vigília relativamente à que dorme pode ser<br />
operativos acreditavam poder ser transformado em duplamente interpretada como a descoberta de <strong>Psique</strong><br />
ouro, une e ao mesmo tempo fracciona o vidro em 5 (destacando a curiosidade enquanto característica<br />
partes verticais, simulando as grades de uma janela propulsora do Conhecimento) ou como a orientação<br />
esotérica⁷³ e remetendo para a simbologia do número de <strong>Eros</strong> (realçando o seu papel como guia iniciático<br />
5 («sinal de união, número nupcial», «símbolo do de <strong>Psique</strong>); o estado onírico pode ser duplamente<br />
homem» completo e também «do andrógino» e ainda<br />
da «harmonia pentagonal» – em analogia com o<br />
entendido como uma oportunidade de descoberta<br />
⁷² Para um significado do metal Chumbo nos contextos herméticos, vide<br />
CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 192.<br />
⁷³ Para um significado da Janela nos contextos herméticos, vide CHEVALIER<br />
e GHEERBRANT, 1994, p. 382.<br />
⁷⁴ CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 196; para um significado do<br />
pentagrama - também designado pentagrama de Hermes gnóstico – nos<br />
contextos esotéricos, vide CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 518.<br />
⁷⁵ CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 697.<br />
⁷⁶ CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 495 e 496.
por parte de <strong>Psique</strong> e como uma alusão ao engano<br />
dos sentidos e à morte iniciática para superar esse<br />
engano material e alcançar a Verdade (consoante se vê<br />
a figura adormecida como <strong>Eros</strong> ou como a projecção<br />
de <strong>Psique</strong>); a tensão da mão da figura adormecida<br />
prenuncia o despertar desta, anunciando ora o início,<br />
ora o fim das etapas iniciáticas de <strong>Psique</strong> (conforme<br />
se interpreta a personagem adormecida como <strong>Eros</strong> ou<br />
como a projecção de <strong>Psique</strong>); a presença das asas na<br />
figura de <strong>Eros</strong> reporta à sua condição divina, ao passo<br />
que na imagem projectada de <strong>Psique</strong> pode funcionar<br />
triplamente como símbolo da desmaterialização<br />
(enquanto saída do corpo material, sensorial e<br />
enganador)⁷⁷, como renascimento para uma condição<br />
superior imortal e ainda como sinal de “aliança”<br />
nupcial com o deus.<br />
A aparência andrógina das duas figuras gera,<br />
pois, uma “confusão” de géneros que permite a<br />
identificação de uma personagem com a outra e<br />
promove leituras diferentes mas complementares,<br />
pois para além de compreenderem a condensação<br />
dos dois episódios cruciais da estória de Apuleio num<br />
único registo imagético, conduzem, afinal, a uma<br />
mesma e única conclusão: o mito é entendido como<br />
uma alusão ao princípio hermético (compreendido<br />
na Tábua de Esmeralda, de Hermes Trismegisto) da<br />
correspondência, da complementaridade e da união<br />
dos opostos representados pelos dois amantes, já que<br />
⁷⁷ CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 92 e 93.<br />
34 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 35<br />
ao descobrir <strong>Eros</strong>, <strong>Psique</strong> inicia-se nos Mistérios<br />
Gnósticos, acede ao Conhecimento e atinge a<br />
imortalidade, mudando de condição e “igualandose”<br />
ao deus; resolvidas as diferenças entre eles,<br />
termina o dualismo e um revê-se no outro, como que<br />
confirmando a sua equivalência. Em última análise,<br />
subentende-se a sua “fusão”, ou seja, o resultado da<br />
conjunctio alquímica que é a Rebis (também designada<br />
por Andrógino ou Hermafrodita).<br />
Uma iconografia em<br />
contexto: o vitral e a casa<br />
para onde foi concebido<br />
Fig. 12<br />
Fachada principal da residência na Rua de Alcolena, N.º 28 (antigo<br />
Lote 149).<br />
Fotografia de Paulo Cintra.<br />
A dependência da casa para onde foi concebido o<br />
vitral era precisamente a biblioteca de José Manuel<br />
(Figs. 13 e 14), espaço de Conhecimento e de Reflexão<br />
(em perfeita analogia com o tema e a forma de<br />
representação do vitral).<br />
Fig. 13<br />
José Manuel Ferrão na biblioteca, acompanhado do seu Fox<br />
Terrier, de nome Jagodes, tendo atrás de si o vitral <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>⁷⁸.<br />
Reprodução fotográfica de Paulo Cintra.<br />
Fig. 14<br />
Panorâmica actual do interior da biblioteca de José Manuel.<br />
Na parede de topo observa-se a janela onde originalmente se<br />
encontrava o vitral. Fotografia com montagem de Paulo Cintra.
Com larga fenestração e uma varanda aberta para o rio<br />
Tejo, a biblioteca – que no entanto era essencialmente<br />
animada pela luz colorida e simbólica do vitral,<br />
exibido numa janela voltada a Poente – integravase<br />
num espaço maior, afecto ao proprietário. Este<br />
domínio privado ocupava uma área superior à metade<br />
esquerda do primeiro andar da moradia e afirmava a<br />
sua independência relativamente às zonas sociais e<br />
às zonas privadas afectas a sua mãe, através de um<br />
acesso alternativo ao da entrada principal, criado à<br />
direita desta, e feito por meio de uma escada metálica<br />
que se desenvolve no exterior, agregada ao ângulo da<br />
frontaria, e que conduz ao terraço do primeiro andar.<br />
A porta para a antecâmara de José Manuel abre-se ao<br />
centro de um painel de azulejos disposto em ângulo<br />
curvo, decorado com motivos geométricos⁷⁹, de onde<br />
ressalta a formação de um pentagrama pitagórico –<br />
obra que testemunha a fase em que Almada estudou<br />
a génese do Conhecimento, através da Geometria e<br />
do Número⁸⁰, e que anuncia a solução encontrada<br />
no painel inciso e policromado, intitulado Começar,<br />
presente na Fundação Calouste Gulbenkian.<br />
⁷⁸ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José<br />
Manuel Ferrão.<br />
⁷⁹ Contrariamente aos demais painéis figurativos da moradia, realizados<br />
«em faiança policromada», este único painel geométrico terá sido<br />
«executado pelo Mestre António de Sousa em alicatado». BURLAMAQUI,<br />
1996, p. 37.<br />
⁸⁰ TOSTÕES, 1997, p. 60.<br />
36 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 37<br />
Fig. 15<br />
Panorâmica da fachada lateral esquerda. Observa-se a entrada<br />
principal, a escada de acesso ao primeiro piso (zona privada<br />
de José Manuel) e a janela onde se encontrava o vitral (janela<br />
rectangular mais estreita e fechada).<br />
Fig. 16<br />
Painel de azulejos de Almada Negreiros, na metade esquerda da<br />
fachada principal, ao nível do piso superior (terraço), onde se abre<br />
a porta que conduz à zona privada de José Manuel. Fotografias de<br />
Paulo Cintra.<br />
Atravessando esse portal simbólico, entra-se num<br />
verdadeiro “templo”, filosofal. Funcionando como um<br />
microcosmo autónomo, qual casa dentro da própria<br />
casa, essa ala inclui – para além da referida biblioteca<br />
(Fig. 20, n.º 5) – uma antecâmara, onde posteriormente<br />
se adaptou uma pequena “cozinha”⁸¹ (Fig. 20, n.º 4),<br />
um quarto (Fig. 20, n.º 6) e uma casa de banho (Fig.<br />
20, n.º 8). Toda a antecâmara e parte da biblioteca<br />
conservam as paredes pintadas de cor negra, rasgadas<br />
a branco por linhas que prefiguram pentagramas⁸²<br />
– repetindo os motivos do painel geométrico de<br />
azulejos e do tapete branco e negro da biblioteca –,<br />
afirmando a presença do símbolo gnóstico de união<br />
dos opostos⁸³ sobre a cor favorita do proprietário:<br />
Mas de todas a mais formosa<br />
e de todas a mais misteriosa<br />
é a minha verdadeira côr<br />
que eu canto sem saber porquê!...<br />
É o escuro, é o negro,<br />
É a cor que se não vê!...⁸⁴<br />
⁸¹ No terraço existe uma chaminé localizada na zona correspondente a<br />
esta área, embora, estranhamente, sem qualquer ligação a ela ou a outra<br />
divisão na mesma prumada. Efectivamente, não há seguimento desta<br />
estrutura nos cortes, nas plantas ou na própria edificação, pelo que a sua<br />
utilização permanece arcana, sabendo-se apenas que não foi projectada de<br />
raiz (porquanto não vem representada nas primeiras plantas desenhadas<br />
por António Varela em 1951 e só passa a constar nas de 1955) e que<br />
também não era, seguramente, a chaminé da cozinha, uma vez que esta<br />
se situa na ala oposta e é servida por um sistema de extracção lateral.<br />
⁸² A casa de banho mantém o revestimento de pedra negra, mas o quarto<br />
foi posteriormente repintado de branco.<br />
⁸³ Para os vários significados possíveis do Pentagrama, vide CHEVALIER e<br />
GHEERBRANT, 1994, p. 518.<br />
⁸⁴ José Manuel, 1944, p. 13.
Fig. 17<br />
José Manuel, acompanhado de Jagodes, na sua biblioteca.⁸⁵ Ao<br />
fundo observa-se parte de uma parede pintada a negro, com<br />
pentagrama traçado a branco. Estão ambos sentados sobre um<br />
tapete que repete, em oposição de cores, os motivos da parede.<br />
Reprodução fotográfica de Paulo Cintra.<br />
⁸⁵ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José<br />
Manuel Ferrão.<br />
Figs 18 e 19<br />
Aspecto actual do interior da ala de José Manuel.<br />
Fotografias de Paulo Cintra.<br />
38 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 39<br />
Embora potencialmente independente, parecendo<br />
dividir o primeiro piso da moradia em territórios<br />
distintos, a ala de José Manuel não deixa de estar<br />
articulada com os restantes espaços, porquanto possui<br />
também escadas interiores comuns que propiciam<br />
a união dessa diversidade. Não obstante, no último<br />
patamar volta a delinear-se o princípio da divisão<br />
por meio de uma oposição de ladrilhos, em cores<br />
diferentes, que demarcam as zonas de influência da<br />
mãe ou do filho.<br />
Fig. 20<br />
Planta assinada pelo Arq. António Varela, em 1955, com projecto<br />
para alterações ao primeiro andar da moradia, onde se nota a<br />
demarcação dos espaços afectos a José Manuel (à esquerda) e a D.<br />
Maria da Piedade (à direita), conseguida com o encerramento dos<br />
acessos que permitiam a sua comunicação.⁸⁶ Espólio familiar.<br />
⁸⁶ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José<br />
Manuel Ferrão.<br />
Todavia, no piso térreo, à direita de quem entra,<br />
abre-se uma área social de convívio comum que<br />
constitui o cadinho da unidade global: traçada como<br />
um espaço aberto e único, mas virtualmente dividida<br />
em dois por uma cortina ondulada e por uma linha,<br />
também ondulada, de oposição de ladrilhos de cores<br />
diferentes, esta divisão funciona duplamente como<br />
sala de estar e sala de refeições e ostenta as três<br />
cores unificadas da obra alquímica – negro num dos<br />
lados do pavimento, branco nas paredes e no tecto e<br />
vermelho no lado oposto do pavimento.<br />
Este simbólico diálogo de áreas de encontros e<br />
desencontros, de domínios femininos e masculinos,<br />
expresso na arquitectura e na decoração com uma<br />
coerência unificada, foi intencionalmente acordado<br />
entre os proprietários e os artistas, como parecem<br />
indicar as mudanças nos estudos de Almada Negreiros<br />
para o vitral e para os azulejos (hoje dispersos por<br />
várias colecções particulares) e as alterações nos<br />
projectos de António Varela para a redistribuição dos<br />
espaços (em arquivo municipal e na posse dos vários<br />
herdeiros). D.ª Maria da Piedade terá colaborado com<br />
António Varela no traçado das dependências que lhe<br />
respeitavam, solicitando para a sua suite um espaço<br />
de culto religioso, com altar e genuflexório, e para<br />
a cozinha uma disposição funcional a gosto, dotada<br />
de um cómodo monta-cargas para comunicação<br />
com a suite. Terá igualmente acompanhado Almada<br />
Negreiros nos estudos para os painéis de azulejos da<br />
varanda do seu quarto, das varandas do rés-do-chão e<br />
da marquise (sendo que nesta última poderá ter
concedido ao filho o desejo de incluir a representação<br />
alusiva a <strong>Eros</strong>), parecendo ter deixado a escolha temática<br />
ao critério do artista, que optou por representações<br />
mais livres e aparentemente mundanas quando<br />
comparadas com as que executou para a ala afecta<br />
a José Manuel (embora nelas também sobressaia<br />
a tendência unitária da representação e dos seus<br />
sentidos, sendo disso exemplo a constante associação<br />
directa entre o elementos feminino e masculino,<br />
expressa nos inúmeros pares de enamorados, em<br />
particular no casal de arlequins que caminha ao luar,<br />
partilhando um único casaco, parecendo geminado<br />
em termos formais e afectivos).<br />
Por seu turno, José Manuel terá solicitado ao<br />
arquitecto que criasse uma zona auto-suficiente para<br />
seu uso privado e interveio activamente no programa<br />
iconográfico de Almada para a respectiva decoração,<br />
onde se conjugam composições geométricas e<br />
figurativas de forte dimensão simbólica unitária⁸⁷.<br />
⁸⁷ Mesmo nos azulejos da varanda da biblioteca de José Manuel, onde se<br />
encontra representado um tema aparentemente mundano: uma família<br />
(pai e filho de um lado e mãe e filha e outro), é possível entender a ideia<br />
de unidade, expressa nos laços do núcleo familiar.<br />
40 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 41<br />
É de crer que José Manuel também possa ter<br />
orientado a escolha temática de uma escultura em<br />
metal, da autoria de Amaral Paiva, representando<br />
São Francisco de Assis com um cão (animal predilecto<br />
deste proprietário) – originariamente colocada no<br />
jardim e posteriormente transferida para o interior da<br />
casa –, e ainda a ornamentação da porta principal da<br />
moradia (Fig. 21), executada pelo mesmo artista, que<br />
conta com uma escultura em cerâmica policromada,<br />
de representação aparentemente zoomórfica (do tipo<br />
candivorens, lembrando um Oroboros⁸⁸ que morde<br />
a própria cauda) e 10 quadrados em barro vidrado<br />
com motivos geométricos de simbólica hermética,<br />
agrupados em 5 de cada lado da mesma porta, onde<br />
se repete a figura do pentagrama. É provável que<br />
também o revestimento das escadas interiores e o<br />
projecto das duas escadas exteriores a tardoz (que<br />
terminam abrupta e enigmaticamente junto ao muro)<br />
tenham sido um pedido seu.<br />
⁸⁸ O Oroboros (ou Ouroboros, ou Oureboros, ou ainda Uroboro) simboliza<br />
duplamente o eterno-retorno e a União dos princípios opostos (CHEVALIER<br />
e GHEERBRANT, 1994, p. 670).<br />
Fig. 21<br />
Entrada principal da moradia, na fachada lateral esquerda, com<br />
decoração em cerâmica ostentando motivos geométricos em<br />
placas e uma escultura aparentemente zoomórfica, executada<br />
por Amaral Paiva. Observa-se também parte do revestimento das<br />
fachadas, apresentando pequenas incrustações em pedra negra<br />
que formam pontilhado.<br />
Fotografia de Paulo Cintra.<br />
Embora comprovadamente⁸⁹ participativos na<br />
concepção funcional e simbólica da moradia, os<br />
proprietários não impuseram significativas limitações<br />
plásticas e técnicas ao pintor ou ao arquitecto.<br />
Admirando sobremaneira as características<br />
essenciais das expressões de cada um, acolheram<br />
entusiasticamente a transição formal, temática e<br />
técnica da obra de Almada⁹⁰, conglutinando elementos<br />
da gramática decorativa de obras anteriores⁹¹ e<br />
a diversidade da pintura a óleo, do vitral e do<br />
azulejo, e receberam vivamente a riqueza semântica<br />
de Varela, poetizada num volume imponente e<br />
alteado relativamente às demais moradias vizinhas.<br />
Expressando de forma plástica o sentido exacto da<br />
citação de Paul Éluard, epigrafada sobre a pedra (Fig.<br />
24) onde se regista a data da conclusão da obra (10 de<br />
Fevereiro de 1954⁹² – «La maison s’élèva / comme un<br />
arbre fleurit»), Varela fez “nascer” a casa, qual árvore,<br />
de um “ventre” fecundo de terra, criado<br />
⁸⁹ Para esta afirmação contribui o já mencionado testemunho da Dr.ª<br />
Maria Augusta Barbosa, que enunciou vários exemplos da intervenção de<br />
D.ª Maria da Piedade e de José Manuel, por nós tidos em conta.<br />
⁹⁰ ALMADA NEGREIROS, 1993, p. 51.<br />
⁹¹Para além dos tão conhecidos pares amorosos de arlequins e dos<br />
pentagramas, destacam-se também as embarcações simples com guardasóis<br />
e as composições de pequenas mesas redondas já utilizados pelo artista<br />
nas decorações murais da Gare Marítima da Rocha do Conde d’Óbidos.<br />
Agradecemos ao fotógrafo Paulo Cintra a lembrança da referência.<br />
⁹² O dia 10 de Fevereiro de 1954 marca também o 26.º aniversário de<br />
José Manuel Ferrão. A coincidência da data leva a crer numa oferta de D.ª<br />
Maria da Piedade ao filho.
através de uma elevação da cota do terreno e<br />
permitiu que ela florescesse num diálogo de formas<br />
rectas e curvas, de avanços e recuos, de vazios e<br />
cheios⁹³, de luz e sombra⁹⁴, de texturas e materiais<br />
que se estendem desde o enxaquetado do jardim<br />
até às pérgulas, passando pelos canteiros – que se<br />
correspondem formalmente com a chaminé –, pelos<br />
bancos e pelas escadas de pedra, pelo poço no lado<br />
esquerdo, pelo tanque na frente, pelo pequeno lago<br />
na retaguarda e pelas varandas na frontaria (Fig. 23).<br />
Fig. 22<br />
Projecto assinado pelo Arq. António Varela, em 1951, com os<br />
quatro alçados da residência na Rua de Alcolena. Observamse<br />
claramente os apontamentos da decoração em azulejo (na<br />
fachada principal – 1º desenho), cerâmica e vitral (na fachada<br />
lateral esquerda – 4º desenho), atestando a unidade conceptual<br />
entre esta e a arquitectura, desde o início. Espólio familiar.⁹⁵<br />
⁹³ TOSTÕES, 1994, p. 60.<br />
⁹⁴ Este encontra-se hoje parcialmente destruído pela eliminação das<br />
pérgulas do terraço.<br />
⁹⁵Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José<br />
Manuel Ferrão.<br />
42 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 43<br />
Fig. 23<br />
Vista do ângulo Sudoeste da moradia, no ano da sua conclusão,<br />
em 1954, onde se destaca a composição volumétrica e os intensos<br />
jogos de claro-escuro do edifício. Espólio familiar.⁹⁶ Reprodução<br />
fotográfica de Paulo Cintra.<br />
⁹⁶ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Arq. António<br />
Varela.<br />
Fig. 24<br />
D.ª Maria da Piedade fotografada junto às epigrafias que<br />
identificam o arquitecto da moradia e a data de conclusão desta,<br />
bem como a citação do poeta Paul Éluard. Espólio familiar.⁹⁷<br />
Reprodução fotográfica de Paulo Cintra.<br />
⁹⁷ Inédito. Agradecemos a cedência da imagem à família do Dr. José<br />
Manuel Ferrão.
Conclusão<br />
O vitral <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> – único que Almada Negreiros<br />
produziu para uma residência privada – versa sobre<br />
um tema que desde a Antiguidade constitui uma<br />
alegoria ao Conhecimento, particularmente apreciada<br />
e explorada nos meios intelectuais. Através de uma<br />
representação imagética ambígua e polissémica<br />
das figuras dos dois amantes, a obra reflecte uma<br />
interpretação filosófica hermética do mito de Apuleio<br />
e funciona como metáfora do Amor Gnóstico Unitário,<br />
promovendo duas leituras que embora pareçam<br />
diferentes são, de facto, complementares e, em<br />
termos finais, equivalentes, pois confluem na mesma<br />
conclusão de que o dualismo inicial das personagens<br />
– baseado na oposição dos géneros masculino e<br />
feminino, das condições divina e humana, imortal<br />
e mortal, iniciador e iniciada – se unifica tanto na<br />
lenda como na concepção gnóstica do Mundo.<br />
Efectivamente, através da iniciação nos Mistérios<br />
gnósticos e do poder incondicional do Amor, <strong>Psique</strong><br />
ascende ao conhecimento e à imortalidade pela mão<br />
de <strong>Eros</strong>, passando a equiparar-se a esta divindade. A<br />
solução visual do Amor gnóstico é, pois, confluente<br />
com a do postulado hermético das correspondências,<br />
pelo que a simbólica conjunctio dos esposos míticos<br />
se subentende na aparência andrógina de ambos.<br />
44 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 45<br />
A coerência absoluta que se verifica entre os sentidos<br />
do vitral, a função e a decoração do espaço em que<br />
se integra (uma biblioteca com paredes negras<br />
animadas por pentagramas brancos), os sentidos das<br />
restantes expressões plásticas agregadas à moradia,<br />
e os sentidos da organização espacial desta, confere<br />
ao conjunto habitacional uma dimensão de unidade<br />
absoluta que ultrapassa a conhecida associação<br />
entre a arquitectura e a sua ornamentação na época<br />
do Modernismo. A concentração e a exposição de<br />
tais sentidos nas duas fachadas de fruição pública<br />
do edifício revelam uma intenção de “publicitar” a<br />
filosofia de quem o habita.<br />
Relacionado com a fina-flor da cultura modernista e<br />
conhecedor de teorias filosóficas herméticas, José<br />
Manuel Ferrão contribuiu fortemente para a unidade<br />
simbólica da moradia na Rua de Alcolena que no<br />
seu todo orgânico constitui uma «interpretação<br />
objectivada duma impressão subjectiva»⁹⁸, deixando,<br />
deste modo, a sua marca indelével nas obras de<br />
Almada Negreiros e de António Varela.<br />
⁹⁸ PESSOA, 1966, p. 177. A frase completa, da qual citamos a derradeira<br />
parte, é: «A obra de arte, fundamentalmente, consiste numa interpretação<br />
objectivada duma impressão subjectiva.» Fernando Pessoa desenvolve<br />
esta ideia e explica que «Na arte temos a distinguir três partes. A arte<br />
envolve uma impressão, ou ideia, sobre a qual se trabalha; envolve uma<br />
interpretação dessa ideia ou impressão de modo a torná-la artística; e<br />
envolve, finalmente, uma coisa de que se tem essa impressão ou ideia.»<br />
Agradecimentos<br />
À Sr.ª D.ª Cecília Guitart Ferrão e à Dr.ª Madalena<br />
Guitart Ferrão, respectivamente viúva e filha de José<br />
Manuel Ferrão, pela partilha de vivências e empatia.<br />
À Dr.ª Maria Augusta Barbosa, amiga da família Ferrão,<br />
pela disponibilidade e preciosas informações.<br />
Ao Arq. José de Almada Negreiros e às Arq.as Rita e<br />
Catarina Almada Negreiros, respectivamente filho e<br />
netas do artista plástico, pela amizade, pelo apoio,<br />
pelo incentivo e pela autorização de reprodução de<br />
imagens.<br />
À Dr.ª Maria do Céu Pimentel e à Dr.ª Joana Morais<br />
Varela, respectivamente sobrinha e sobrinha neta<br />
de António Varela, pelo acesso ao arquivo familiar<br />
do arquitecto e pela autorização de reprodução de<br />
imagens.<br />
Ao Dr. Fernando Guimarães, pelas informações sobre<br />
a sua colaboração com José Manuel Ferrão na revista<br />
<strong>Eros</strong>.<br />
À D.ª Maria Almeida, antiga funcionária do anterior<br />
proprietário da residência, pela visita ao interior da<br />
casa.<br />
Ao fotógrafo Paulo Cintra, aos Arq.os Leonor Cintra<br />
e Michel Toussaint, pelo convite à realização de uma<br />
palestra sobre a moradia na Ordem dos Arquitectos.<br />
À Arq.ª Helena Roseta, ao Dr. Paulo Ferrero e à Dr.ª<br />
Luísa Jacobetty, pelo incondicional empenho na<br />
classificação da moradia.<br />
Ao fotógrafo Carlos Pombo, pela amizade e apoio na<br />
causa.<br />
Ao Doutor José Manuel Anes e à Doutora Yvette<br />
Centeno, pelos ensinamentos e pelo incentivo na<br />
republicação deste estudo.<br />
À Dr.ª Sara Afonso Ferreira e ao Dr. Luís Manuel<br />
Gaspar, pela amizade e pela generosidade com que<br />
partilharam o seu profundo conhecimento sobre o<br />
espólio de Almada Negreiros. À Dr.ª Sara também<br />
pelo apoio na pesquisa iconográfica, e ao Dr. Luís<br />
igualmente pelo empenho na revisão de texto.<br />
Ao Dr. José Mateus, da Biblioteca Geral da Universidade<br />
de Coimbra, pelo acesso ao poema «<strong>Eros</strong>», de José<br />
Manuel.<br />
À Dr.ª Rita Lougares, do Museu Colecção Berardo,<br />
pela cedência de imagens de dois estudos de Almada<br />
Negreiros.<br />
À Sr.ª D.ª Maria Amélia Santos Almeida e à Sr.ª D.ª<br />
Maria José Almeida, da galeria Antiks Design, pela<br />
cedência de imagens de dois estudos de Almada<br />
Negreiros.<br />
Ao Dr. Alfredo Caldeira, da Fundação Mário Soares,<br />
pela cedência da imagem de um desenho de Almada<br />
Negreiros, da Colecção Alberto de Lacerda.<br />
À Dr.ª Teresa Parra da Silva, pela oportunidade de<br />
estudo.<br />
À Prof. Doutora Raquel Henriques da Silva pelo<br />
impulso da nova publicação.<br />
Ao Dr. Rui Costa e à Dr.ª Teresa Xardoné, pela<br />
concretização da nova publicação.<br />
À Dr.ª Sandra Neves da Silva, pelas dissertações sobre<br />
filosofia hermética.<br />
Ao Carlos Martins, pela companhia e pela inesgotável<br />
paciência.<br />
Aos meus Pais, pela serenidade e pela lucidez.
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Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1990.<br />
MOVIMENTO CIDADÃOS POR LISBOA – Proposta<br />
P096.09, assinada a 17-02-2009 pelas Vereadoras Arq.ª<br />
Helena Roseta e Dr.ª Manuela Júdice, e apresentada<br />
na Câmara Municipal de Lisboa.<br />
MOVIMENTO CIDADÃOS POR LISBOA – Proposta<br />
P097.09, assinada a 24-02-2009 pelas Vereadoras Arq.ª<br />
Helena Roseta e Dr.ª Manuela Júdice, e apresentada<br />
na Câmara Municipal de Lisboa.<br />
ORDEM DOS ARQUITECTOS – «É preciso salvar a Casa<br />
da Rua de Alcolena, da autoria do arquitecto António<br />
Varela, com murais de azulejo da autoria do pintor<br />
Almada Negreiros», Petição on line, http://www.<br />
petitiononline.com/Alcolena/petition.html, 05-03-<br />
2009.<br />
PESSOA, Fernando – «<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>», in Presença, N.º<br />
41-42, Maio de 1934, Coimbra.<br />
PESSOA, Fernando – Espólio, documento 54, A-55,<br />
s.d.<br />
PESSOA, Fernando – Páginas Íntimas e de Auto-<br />
Interpretação, Ática, Lisboa, 1966 (textos estabelecidos<br />
e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado<br />
Coelho).<br />
REITZENSTEIN, Richard – Das Märchen von Amor und<br />
Psyche bei Apuleius, Ed Teubner, Leipzig, 1912.<br />
RIFFARD, Pierre – Dicionário do Esoterismo, Editorial<br />
Teorema, Lisboa, 1994 (tradução do francês por Maria<br />
João Freire – Dictionnaire de l’esotériesme, Éditions<br />
Payot & Rivages, 2.ª ed., s.l., 1993).<br />
ROSCHER, Wilhelm Heinrich – Ausführliches Lexikon<br />
der griechischen und römischen Mythologie, Ed.<br />
Konrad Ziegler, Leipzig, 1886.<br />
SOUSA, Eudoro de – Mitologia. História e Mito,<br />
Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 2004.<br />
STOCKER, Arnold – La légende d’Amour et de Psyché :<br />
l’humanisme psychologique des Anciens, Éditions du<br />
Rhône, Geneva, 1944.<br />
TEIXEIRA, José de Monterroso (coord.) – Almada,<br />
a cena do corpo, catálogo de exposição de 27 de<br />
Outubro de 1993 a 15 de Janeiro de 1994, Fundação<br />
das Descobertas, Centro Cultural de Belém, Lisboa,<br />
1993.<br />
TOSTÕES, Ana – Os verdes anos da arquitectura<br />
portuguesa nos anos 50, Faculdade de Arquitectura<br />
da Universidade do Porto, Porto, 1997.<br />
TOUSSAINT, Michel – «Casa de Alcolena foi debatida<br />
na sede da Ordem», in Arquitectos, revista da Ordem<br />
dos Arquitectos, N.º 197, Maio de 2009, Ordem dos<br />
Arquitectos, Lisboa, p. 4.<br />
VIEIRA, Joaquim (dir.) – Fotobiografias Século XX –<br />
Almada Negreiros, Círculo de Leitores, Lisboa, 2001.<br />
VIEIRA, Sérgio José Ferreira – Para a história do vitral<br />
em Portugal no séc. XX – principais oficinas e o papel<br />
dos Artistas Plásticos, tese de mestrado em História<br />
da Arte Contemporânea apresentada à Faculdade de<br />
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de<br />
Lisboa, policopiado, Lisboa, 2004.<br />
VIEIRA DE ALMEIDA, Pedro e FERNANDES, José<br />
Manuel – História da Arte em Portugal: A arquitectura<br />
moderna, Vol. 14, Publicações Alfa, Lisboa, 1986.<br />
WALTZ, Pierre (org.) – Anthologie Grecque, organização<br />
e tradução por Pierre WALTZ, Paris, Les Belles Lettres,<br />
1931-1974.
Cátia Mourão<br />
EROS E PSIQUE<br />
um vitral gnóstico de Almada Negreiros<br />
50 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 51
O vitral <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> foi encomendado a Almada Negreiros para decorar<br />
a biblioteca particular de um amigo intelectual, numa residência<br />
modernista projectada pelo arquitecto António Varela e situada na<br />
Rua de Alcolena (Bairro do Restelo). Adquirido pela Assembleia da<br />
República em 2001, encontra-se actualmente na Residência Oficial<br />
do Presidente daquele órgão representativo e está montado numa<br />
estrutura com iluminação artificial.<br />
O presente estudo constitui um contributo para a análise iconográfica<br />
do vitral e aborda os aspectos subjacentes à sua produção, evidenciando<br />
a forte intervenção do encomendante e a relação simbólica entre a<br />
peça e a casa que originalmente integrou.<br />
52 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>