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Eros e Psique - Fluid Creative

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atitudes e até das condições sócio-económicas⁴⁸, e no<br />

segundo caso distinguem-se perfeitamente pelo corte<br />

de cabelo, pela fisionomia e pela anatomia, tal como<br />

se verifica não apenas nos estudos preparatórios, mas<br />

também em desenhos anteriores (Figs. 8, 9 e 10):<br />

⁴⁸ Nesta peça (ALMADA NEGREIROS, 1971, p. 170-188), Almada enumera<br />

várias diferenças entre as duas personagens, sendo que a primeira<br />

é o modo como cada uma interpreta aquilo que vê, formando ideias<br />

diferentes de uma realidade única: «a luz é única» mas como cada «ideia<br />

é uma glosa de luz» (p. 174 – certamente por lapso, esta expressão<br />

é citada em ANIELLO, 2007, p. 351, como sendo oriunda da Cena do<br />

Ódio), cada indivíduo tem a sua própria verdade («A verdade. É o que<br />

difere pra cada um» p. 175). Neste sentido, Almada conclui que ninguém<br />

consegue enxergar além de si mesmo e que o único conhecimento que<br />

pode ter é o autoconhecimento («Vê que não te é dado veres senão a ti<br />

mesma» - p. 176). Assim sendo, o autor nega a possibilidade de qualquer<br />

conhecimento exterior ao indivíduo e inviabiliza não só o conhecimento<br />

do outro como também o reconhecimento do eu no outro (ao contrário<br />

do que parece acontecer no poema de Pessoa e no vitral, segundo a nossa<br />

interpretação). Além disso, Almada entende que o autoconhecimento só<br />

é possível quando se está sozinho, o que subentende a necessidade do<br />

isolamento/desunião dentro do casamento ou até a separação («ELA –<br />

Então pra que casamos? / ELE – Pra que seja mais claro o estarmos cada<br />

um sozinhos, as nossas verdades?» e «não somos deuses, eles sabem<br />

estar sozinhos, mas vê por eles como hás-de olhá-los pra ficares sozinha,<br />

tu» p. 176). Para além destas diferenças, Almada ressalta outras: apesar<br />

de considerar que ambas as personagens são da mesma «raça sagrada<br />

da mestiçagem dos deuses e humanos» (p. 176), afirma que elas têm<br />

sensibilidades, atitudes e condições muito diversas, em especial no que<br />

toca ao amor, ao casamento e à própria atitude vivencial, já que <strong>Eros</strong><br />

procura estar sozinho para se conhecer a si mesmo e tem fé no amor, ao<br />

passo que <strong>Psique</strong> não consegue estar sozinha, não se conhece a si mesma<br />

mas procura conhecer os outros (no caso <strong>Eros</strong> e sua mãe Afrodite), não<br />

se reconhece neles nem na realidade deles (p. 176 e 177) e não tem fé<br />

no amor. Sendo que a solidão parece ser a condição de possibilidade do<br />

autoconhecimento de <strong>Psique</strong> e da sua eventual tomada de consciência<br />

como membro da “raça” do esposo e da sogra, <strong>Eros</strong> deixa a mulher no<br />

final do segundo quadro para que ela fique sozinha.<br />

26 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 27<br />

Porém, no quadro seguinte ela surge acompanhada das três irmãs.<br />

Mesmo que estas possam ser interpretadas como o símbolo das várias<br />

facetas ou idades da própria <strong>Psique</strong>, a ideia deste desdobramento<br />

acaba por confirmar a impossibilidade de se conhecer completamente<br />

(«Como pode alguém parar de conhecer-se se as suas idades o mudam<br />

constantemente?» - p.180). Uma vez que se desconhece o último quadro<br />

da peça, não é possível saber o seu desfecho rigoroso, e ainda que se<br />

possa admitir a hipótese de <strong>Psique</strong> ter optado por ficar sozinha (dentro<br />

ou fora do casamento), ficou bem claro que ela nunca se conheceria<br />

totalmente. Neste sentido, também não há garantia de que ela voltasse a<br />

querer a companhia de <strong>Eros</strong>, pois essa união conjugal ditaria o fim do seu<br />

autoconhecimento, que como se viu é um processo contínuo e perpétuo.<br />

Aliás, a própria sogra (Afrodite), que <strong>Eros</strong> considera saber estar sozinha<br />

e conhecer-se a si mesma, vive longe do seu esposo e sem o amor dele<br />

(«Tenho tudo o que desejo (…) Só o imortal Deus de todos [Zeus] não está<br />

perpetuamente a meu lado!» -p. 172).<br />

Assim, deduz-se que <strong>Psique</strong> nunca chegaria a reconhecer-se em <strong>Eros</strong> e<br />

que o casamento também nunca seria uma verdadeira união… Poderá a<br />

constatação desta impossibilidade de união de facto ter levado Almada a<br />

não concluir a peça? Seja como for, face às leituras que fizemos do vitral e<br />

do texto dramático (que poderão não ser as únicas nem as correctas, mas<br />

que nos parecem plausíveis), cremos, uma vez mais, não haver relação<br />

directa e óbvia entre estas duas obras (o que já anteriormente referimos<br />

de modo sucinto, afirmando que o vitral tem um carácter único na obra do<br />

artista). Aliás, as diferenças não se confinam a questões filosóficas: a peça<br />

inspira-se na estória de Apuleio mas «acontece hoje em dia, é claro, de<br />

outro modo» (p.170), com as personagens modernizadas e humanizadas<br />

no seu aspecto físico (nenhuma delas com asas e nenhuma delas deus ou<br />

humano) e com um enredo bastante diferente do original, apresentando<br />

inclusivamente motivações, situações e pormenores inteiramente novos,<br />

bem como numerosas substituições de entre as quais ressalta o episódio<br />

representado no vitral que de facto está ausente da peça.<br />

Estes desenhos⁴⁹ foram certamente retomados por Almada<br />

Negreiros como referência para a elaboração do segundo estudo<br />

do vitral (Fig. 3), uma vez que existem similitudes entre as duas<br />

figuras masculinas adormecidas e as femininas que seguram<br />

lucernas: nestes desenhos, o suposto <strong>Eros</strong> está deitado de lado<br />

e com os braços numa posição próxima da que se observa no<br />

referido estudo, embora apresente as pernas em posição um<br />

pouco diversa. Por seu turno, a suposta <strong>Psique</strong> está sentada de<br />

costas mas tem o braço esquerdo numa posição próxima daquele<br />

mesmo estudo.<br />

Fig. 8<br />

<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>⁵⁰<br />

José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />

1948<br />

51,2 x 63,5 cm<br />

Tinta-da-china sobre papel<br />

Colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste<br />

Gulbenkian<br />

Número de inventário: DP191<br />

Fotografia de Paulo Costa<br />

Fig. 9<br />

<strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>⁵¹<br />

José Sobral de Almada Negreiros (1893-1970)<br />

1948<br />

50 x 63 cm<br />

Aguarela sobre papel<br />

Colecção particular<br />

Fotografia da galeria Antiks Design<br />

⁴⁹ Agradecemos as referências à Dr.ª Sara Afonso Ferreira, com quem<br />

pudemos não só identificar as figuras representadas, como também<br />

relacioná-las com a peça teatral escrita por Almada e dedicada ao tema<br />

mítico, onde as personagens surgem humanizadas no seu aspecto físico, o<br />

que explicará a ausência das suas asas nestes desenhos.<br />

⁵⁰ Inédito.<br />

⁵¹ Reproduzido em AA.VV., 1998, N.º 55.

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