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Eros e Psique - Fluid Creative

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No estudo seguinte (Fig. 3) o artista reorganizou a<br />

composição em 4 partes e manteve a localização das<br />

figuras mas reposicionou-as, apresentando a figura<br />

adormecida no sentido inverso e com o corpo em<br />

curvatura descendente, exibindo asas de pássaro nas<br />

espaldas (atestando a sua condição divina), apoiando<br />

um tornozelo no outro, e a figura acordada de costas,<br />

sem asas (atestando a sua condição ainda humana,<br />

ou seja anterior à divinização e à parcial metamorfose<br />

consequente), inclinada sobre a anterior e apoiada<br />

no braço esquerdo, aproximando do rosto da outra<br />

uma pequena lamparina em meia-lua e cruzando as<br />

pernas. Mais pormenorizado, este desenho define as<br />

expressões das personagens que, no caso da segunda,<br />

transmitem a sensação de surpresa momentânea<br />

através da boca entreaberta e da pose instável, e no<br />

caso da primeira traduzem o estado que antecede a<br />

interrupção do sono através do abandono do corpo,<br />

que indica ainda a fase onírica, e da crispação da mão<br />

direita, que prenuncia já o despertar.<br />

Nos estudos posteriores (Figs. 4 e 5), Almada<br />

reorganizou a composição em 6 partes, conservou<br />

a posição e as características da figura adormecida,<br />

mas alterou a pose e a expressão corporal e facial<br />

da personagem mais próxima do espectador,<br />

apresentando-a agora de bruços, mas sempre sem<br />

asas, e transformando a sua atitude de espanto inicial<br />

em atitude de serenidade (patente no encerramento<br />

da boca e no estatismo corporal, que indicam a<br />

quietude de uma contemplação). Redefiniu também<br />

as características formais de ambas, fazendo-as<br />

20 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 21<br />

progressivamente mais esguias e estilizadas, sem<br />

deixar, no entanto, de manter a figura adormecida<br />

com as feições e a morfologia masculinas – apesar<br />

de apresentar já o cabelo um pouco mais crescido –,<br />

e a figura acordada com o cabelo comprido e o seio<br />

proeminente.<br />

No último estudo (Fig. 6) e na obra definitiva (Fig. 1)<br />

o pintor reorganizou finalmente a composição em 5<br />

partes, mas manteve a estrutura essencial, embora<br />

tenha deslocado o eixo de colocação das figuras no<br />

espaço, chegando-as mais à esquerda no estudo e<br />

mais à direita no vitral, procurando uma métrica e um<br />

equilíbrio específicos, também por meio de divisórias<br />

verticais que se tornaram assimétricas para um melhor<br />

enquadramento da parte principal da figuração que<br />

está sensivelmente deslocada do centro. Porém,<br />

alterou a cor do fundo, que passou de amarela e<br />

branca para violeta, modificou o formato da lamparina,<br />

que passou a assemelhar-se a uma lucerna romana,<br />

mudou a cor do corpo da figura adormecida, que<br />

passou de amarela a rosa, e, sobretudo, modificou o<br />

aspecto fisionómico das personagens, representando<br />

agora a que dorme com uma aparência feminina – de<br />

feições muito delicadas, cabelos longos e soltos, peito<br />

com volume e sexo algo ambíguo neste contexto³⁶–<br />

e a que está acordada com uma aparência masculina<br />

– de feições angulosas, cabelos cingidos atrás e seio<br />

visualmente reduzido pela sobreposição parcial do<br />

braço.<br />

As claras alterações fisionómicas poderiam indicar<br />

uma troca de posições das personagens, o que por<br />

sua vez indicaria uma alteração do episódio do mito,<br />

que assim passaria a ser o momento em que <strong>Eros</strong><br />

encontrou <strong>Psique</strong> adormecida pelo aroma soporífero<br />

da boceta. Todavia, esta suposta mudança seria<br />

acompanhada de uma insólita permuta de atributos<br />

entre as duas figuras, já que <strong>Psique</strong> ostentaria as asas<br />

de pássaro iconograficamente atribuídas a <strong>Eros</strong> e que<br />

este estaria acordado, apresentando-se despojado<br />

de asas e segurando a lucerna de <strong>Psique</strong>, adoptando<br />

uma atitude também invulgar de contemplação da<br />

jovem, ao invés de beijá-la ou alvejá-la com uma<br />

seta para acordá-la. Embora insólita, a suposta<br />

permuta de atributos seria possível no contexto de<br />

um entendimento simbólico, hermético e gnóstico<br />

do tema e da relação entre os amantes míticos, que<br />

contempla a união dos opostos através da equivalência<br />

e da identificação entre eles.<br />

No entanto, consideramos agora, após a limpeza e<br />

o restauro do vitral, que as mudanças fisionómicas<br />

das figuras não correspondem necessariamente a<br />

uma alteração de género, de identidade, de posições,<br />

de atributos e, por conseguinte, de episódio. Se<br />

considerarmos que <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> simplesmente<br />

passaram a ser representados de forma andrógina<br />

complementar e reflexiva (ele mais efeminado e ela<br />

mais masculinizada), aceitamos a representação<br />

iconográfica convencional dos seus atributos mas<br />

acabamos, de um modo aparentemente paradoxal<br />

mas efectivamente lógico, por reforçar as conclusões<br />

finais anteriormente apresentadas, fazendo uso<br />

justamente dos mesmos argumentos. Com efeito,<br />

também no âmbito de um entendimento simbólico,<br />

hermético e gnóstico do tema e da relação entre os<br />

amantes míticos, a androginia das duas figuras permite<br />

que as personagens se confundam e expressem o<br />

conceito de identificação, de equivalência e de união<br />

dos opostos. A decisão última de representar as duas<br />

personagens de forma dúbia propicia, assim, duas<br />

leituras que embora pareçam diferentes acabam por<br />

ser também elas equivalentes e, uma vez mais, o<br />

poema hermético³⁷ de Fernando Pessoa³⁸, amigo de<br />

Almada e seu companheiro da geração modernista³⁹,<br />

permite validar as duas hipóteses de uma realidade<br />

única:<br />

³⁶ O desenho apresenta duas meias-luas geminadas, mas ligeiramente<br />

desniveladas, e potencia uma dupla leitura: quando visto de longe (à<br />

distância normal de observação de um vitral) pode parecer um órgão<br />

feminino; quando visto de perto (numa análise de pormenor, agora mais<br />

possibilitada pela limpeza e restauro do vitral) revela-se masculino.<br />

³⁷ Sobre o envolvimento de Fernando Pessoa nas diversas correntes<br />

esotéricas vide CENTENO, 1985, e ANES, 2004.<br />

³⁸ PESSOA, 1934, p.13. O trecho que precede o poema é citação do autor.<br />

³⁹ Almada pintou dois retratos a óleo de Fernando Pessoa, o primeiro dos<br />

quais datado do mesmo ano em que terá realizado este vitral.

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