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contributo para a revista <strong>Eros</strong>⁶³ – publicação de<br />
ensaio e poesia com tiragem entre 1951 e 1958, da<br />
qual foi director e que fundou em colaboração com<br />
Fernando Guimarães, António José Maldonado e<br />
Jorge Nemésio.<br />
Concebidas no período cronológico de construção da<br />
residência⁶⁴, a obra individual e a colectiva permitem<br />
não apenas comprovar a escolha do tema como uma<br />
vontade sua, mas também possibilitam a interpretação<br />
da solução imagética polissémica do vitral como um<br />
desejo seu de transformar o mito numa parábola<br />
gnóstica da conjunctio, ou seja, numa ilustração<br />
da aliança nupcial entre os esposos. Tal como o<br />
próprio José Manuel referiu: «O amor é comunhão,<br />
identificação, unificação. O amor transcende e exclui o<br />
dualismo sujeito-objecto»⁶⁵ e «o pior vício é a definição,<br />
a delimitação dos personagens. (…) Simplesmente é<br />
uma utopia. Não se pode definir, delimitar alguém.<br />
(…) Seria negar-lhe a unidade espiritual.»⁶⁶ É, aliás,<br />
este o sentido do seu poema «<strong>Eros</strong>»⁶⁷, publicado no<br />
primeiro número da revista homónima:<br />
⁶³ Inexplicavelmente, todos os números da revista <strong>Eros</strong> desapareceram<br />
do acervo da Biblioteca Nacional. De acordo com a informação dos<br />
bibliotecários, esta ocorrência deu-se no dia 25 de Julho de 1998, volvidos<br />
5 anos sobre o falecimento de José Manuel e precisamente no dia de<br />
invocação a Santiago Maior, padroeiro dos Alquimistas.<br />
⁶⁴ O primeiro projecto arquitectónico de António Varela para a moradia<br />
data de 1951. Em 1954 a obra ficou concluída, embora em 1955 tenha<br />
sido objecto de adaptações, averbadas pelo arquitecto nas plantas e nos<br />
alçados.<br />
Não sei se me pertences<br />
não sei se me possuis<br />
Sei que estamos fundidos<br />
na mesma grande dor<br />
[…]<br />
Qualquer que seja o teu caminho<br />
é em mim que te encontras<br />
Qualquer que seja o meu caminho<br />
é em ti que o encontro<br />
Seremos amplamente<br />
quando formos um só.<br />
30 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 31<br />
⁶⁵ José Manuel, 1953, p. 22. A Alquimia do Sonho não é um tratado<br />
de Alquimia operativa ou especulativa nem uma obra esotérica; é um<br />
romance poemático que tem como pretexto (parafraseando o próprio<br />
autor) a estória de uma relação amorosa, mas que revela o verdadeiro<br />
propósito de expressar um pensamento filosófico unitário, habilmente<br />
conciliado com reflexões existencialistas (na linha de Jean-Paul Sartre,<br />
a quem o autor dedica o romance), onde o Sonho se apresenta como<br />
estado imanente da psique humana – sendo antiteticamente benéfico<br />
e pernicioso –, e o Amor surge como sentimento ideal que permite o<br />
conhecimento do Eu, do Outro e da Natureza, funcionando como pedra de<br />
toque para a união dos opostos e do Homem com o Mundo. A narrativa é<br />
duplamente retrospectiva e projectiva, decorrendo num ritmo sincopado<br />
de capítulos breves e sibilinos, nem sempre ligados directamente entre si,<br />
e a linguagem utilizada é simbólica, com recurso a termos de referência<br />
hermética que denunciam a influência das leituras gnósticas.<br />
⁶⁶ José Manuel, 1953, p. 25.<br />
⁶⁷ José Manuel, 1951. Agradecemos ao Dr. José Mateus, da Biblioteca<br />
Geral da Universidade de Coimbra, o envio deste poema.<br />
O título do periódico e a temática do romance<br />
terão igualmente inspirado um painel de azulejos<br />
concebido para a marquise da mesma casa, também<br />
por Almada Negreiros, onde Arlequim e Colombina<br />
estão enamorados (figuras que o artista representa<br />
desde a primeira década de 1900 e que se repetem<br />
noutros azulejos desta casa), seguindo abraçados<br />
numa pequena embarcação que ostenta a inscrição<br />
«EROS» à direita (Fig. 11).<br />
Fig. 11<br />
Pormenor de um painel de azulejos da marquise, concebido por<br />
Almada Negreiros, com representação de Arlequim e Colombina<br />
numa embarcação denominada EROS.<br />
Fotografia de Paulo Cintra.<br />
Outras obras anteriores e posteriores do poeta<br />
reiteram estes sentidos e complementam a leitura<br />
do vitral. As cores (da luz da lucerna, do fundo e<br />
dos corpos das duas figuras), os vitrais e o sono vêm<br />
referenciados em numerosos poemas, de entre os<br />
quais apresentamos quatro sobremaneira evidentes:<br />
*<br />
Eis o branco vítreo, baço e transparente,<br />
a côr real dos impérios da luz,<br />
a côr que ilumina tôda a gente,<br />
no seu esplendor crescente,<br />
sempre e sempre eternamente!<br />
Eis o roxo do horizonte,<br />
o roxo da sepultura;<br />
eis a côr […] amarela […] do oiro […]<br />
a rosada cheia d’esplendor,<br />
[…]⁶⁸<br />
Aproxima-se a hora violeta<br />
Do nosso amor, ungido de ternura,<br />
E pelo mesmo cálix de amargura<br />
beberemos a vida mais secreta.<br />
[…]<br />
A hora dos vitrais esmaecidos,<br />
A hora dos segredos por dizer,<br />
O momento lilaz, a fenecer,<br />
No sonho dos segundos esquecidos,<br />
⁶⁸ José Manuel, 1944, p. 12.<br />
*