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Em termos lineares, o mito de Apuleio constitui uma<br />
estória de amor entre uma humana e um deus, da<br />
qual se retira uma lição moralizante: a desobediência<br />
da primeira – motivada pela curiosidade – em relação<br />
às condições dogmáticas estabelecidas pelo segundo,<br />
é punida e, apesar de falhar o cumprimento do castigo<br />
– por não resistir à tentação da vaidade –, acaba por<br />
receber o perdão – cuja concessão demonstra o<br />
carácter incondicional do Amor. Na estória, o sono<br />
funciona como um estado de vulnerabilidade que<br />
se afigura na primeira parte enquanto oportunidade<br />
de satisfação da curiosidade e na segunda parte<br />
enquanto castigo para esta.<br />
O mito tem sido objecto de diversas interpretações<br />
alegóricas e filosóficas desde Platão²³, que<br />
contemplam a possibilidade de se tratar de<br />
uma alegoria ao Conhecimento, sendo <strong>Psique</strong> a<br />
personificação da mente humana, caracterizada pela<br />
ávida curiosidade em relação ao desconhecido, e <strong>Eros</strong><br />
a personificação do Amor e do Mistério. Algumas<br />
leituras demonstram uma exegese cristã, fazendo<br />
referência à “queda” da Alma humana e ao perdão<br />
divino²⁴; outras conferem<br />
²³ Sobretudo na sua obra O Banquete. Para uma detalhada fortuna crítica<br />
filosófica do mito, vide GÉLY, 2006, p. 151 e ss. A título de exemplo<br />
referimos BERGER, 1767, ROSCHER, 1886, JONG, 1900, REITZENSTEIN,<br />
1912, CUMONT, 1966, STOCKER, 1944, SOUSA, 2004, BARBAFIERI e<br />
RAUSEO, 2004.<br />
²⁴ GÉLY, 2006, p. 164, especificamente em relação à interpretação de<br />
Fulgêncio.<br />
18 <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> Um vitral gnóstico de Almada Negreiros 19<br />
uma visão laica, ressaltando o teor romântico do conto<br />
mítico²⁵; outras revelam uma perspectiva historicista<br />
e portanto pagã, vendo os castigos de <strong>Psique</strong> como<br />
etapas de uma iniciação nos Mistérios gnósticos<br />
antigos²⁶ e o seu sono final como uma condição de<br />
possibilidade de ascender à Verdade e à imortalidade<br />
divina, ao invés de uma verdadeira punição; outras<br />
ainda remetem para uma dimensão hermética,<br />
perfilhando a leitura historicista e acrescentando-lhe uma<br />
interpretação do sono de <strong>Psique</strong> como um símbolo da<br />
condição de adormecimento da mente humana, em<br />
geral, que subentende a necessidade do despertar.<br />
²⁵ GÉLY, 2006, p. 269 e ss, especificamente em relação à interpretação de<br />
Charles Perrault, que parece negar a dimensão alegórica, influenciando as<br />
leituras posteriores de Boiardo, Basile, La Fontaine e Baronesa d’Aulnoy.<br />
²⁶ Na Antiguidade, estes Mistérios poderiam ser os de Ísis, de Osíris, de<br />
Orfeu ou de Elêusis. Os dois primeiros eram oriundos do Egipto e as suas<br />
práticas rituais e simbólicas foram aculturadas e adaptadas na Grécia e<br />
mais tarde em Roma, dando origem aos dois segundos. Destes, os de<br />
Elêusis foram os mais difundidos. Eram celebrados em Elêusis, cidade<br />
agrícola próxima de Atenas, e compreendiam ritos iniciáticos integrados<br />
no culto da fertilidade da terra, associado às deusas Deméter (das<br />
colheitas) e sua filha Perséfone (sequestrada por Hades, deus do Mundo<br />
Inferior). O rapto de Perséfone induzira Deméter em profunda tristeza,<br />
descurando as lides da agricultura e dando origem ao Inverno, tempo de<br />
carestia. Mas Hades permitiu que a filha visitasse a mãe durante alguns<br />
meses e nesse período a deusa esmerava os seus trabalhos, permitindo a<br />
abundância no Verão.<br />
Consoante as leituras, os dois esposos míticos de<br />
Apuleio têm sido eternizados nas diversas expressões<br />
artísticas, ora apresentando-se ambos acordados e<br />
em ritual de iniciação²⁷ ou em idílio²⁸, ora estando um<br />
deles a dormir e o outro acordado (sendo que quando<br />
<strong>Eros</strong> dorme é perscrutado por <strong>Psique</strong>²⁹ e quando<br />
<strong>Psique</strong> dorme é observada ou acordada por <strong>Eros</strong>³⁰).<br />
Embora a maioria das representações obedeça ao<br />
padrão iconográfico clássico³¹ – que estabelece a<br />
figura de <strong>Eros</strong>/Cupido com asas de pássaro, munido<br />
²⁷ A representação de <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong> no baixo-relevo encontrado no<br />
Mithræum de Santa Maria di Capua Vetere, datado de finais do séc. II<br />
e inícios do séc. III d.C., tem sido interpretada como uma cena de ritual<br />
iniciático, já que <strong>Eros</strong> carrega uma tocha na sua mão esquerda.<br />
²⁸ A título de exemplo, no mosaico romano peninsular destacamos dois<br />
exemplos cordobenses que representam o abraço entre <strong>Eros</strong> e <strong>Psique</strong>,<br />
ainda crianças, onde <strong>Eros</strong> tem asas de ave e <strong>Psique</strong> tem asas de borboleta<br />
num e de pássaro noutro. São ambos de finais do séc. III e inícios do séc.<br />
IV d.C., e estão, respectivamente, no Alcázar de los Reyes Cristianos e na<br />
Caja de Ahorros de Córdoba. De cronologia muito mais recente, já de<br />
1891, ressaltamos a pintura a óleo sobre tela, hoje no Museu do Chiado,<br />
em Lisboa, executada pelo português José Veloso Salgado, onde as duas<br />
personagens se apresentam já adultas, estando <strong>Eros</strong> a tanger uma lira.<br />
²⁹ Caso do desenho de Francesco Bartolozzi, segunda metade do séc. XVIII<br />
(Tate Gallery).<br />
³⁰ Caso da escultura de António Canova, 1793 (Museu do Louvre).<br />
³¹ Para uma detalhada fortuna crítica artística do mito, vide ROSCHER,<br />
1886, CUMONT, 1966, e sobretudo GÉLY, 2006.<br />
de arco e flechas, ou até de uma tocha³², ou ainda<br />
de uma lira³³, e <strong>Psique</strong> com asas de borboleta ou<br />
até de pássaro³⁴, segurando uma lucerna –, por<br />
vezes verificam-se supressões ou acrescentos de<br />
atributos.³⁵<br />
No esboço preparatório para o vitral (Fig. 2), Almada<br />
Negreiros ensaiou uma composição muito abreviada,<br />
organizada em 8 partes, com as personagens<br />
desprovidas de asas, estando a figura masculina<br />
adormecida e localizada à esquerda, com o corpo<br />
posicionado no sentido da direita, apresentando uma<br />
torção acentuada ao nível da cintura (sendo que os<br />
membros inferiores estão voltados de costas, os<br />
superiores, o tronco e a cabeça virados de frente). A<br />
figura feminina está acordada e localizada à direita,<br />
posicionada no sentido oposto, de joelhos e inclinada<br />
sobre a figura anterior, apoiando-se no braço direito,<br />
que está flectido, e avançando o esquerdo na direcção<br />
daquela personagem para alumiá-la com uma<br />
lamparina em meia-lua.<br />
³² Vide o exemplo já referido do relevo de Santa Maria di Capua Vetere, e<br />
também a ekphrasis de Mosco de Siracusa (séc. II a.C.) sobre <strong>Eros</strong>: «<strong>Eros</strong>,<br />
de cabelos encaracolados, pousando a tocha e o arco, tomou o bastão de<br />
boieiro e pôs o alforge ao ombro.» - MOSCO, Antologia de Planudes, 200,<br />
in WALTZ, 1931-1974.<br />
³³ Caso da pintura a óleo sobre tela, de José Veloso Salgado, 1891 (Museu<br />
do Chiado).<br />
³⁴ Vide os casos romanos anteriormente referidos na nota 28.<br />
³⁵ Sobre as representações plásticas do mito de Apuleio até finais do<br />
século XIX, vide ROSCHER, 1886.