Suplemento%20Especia%20-%20Maio
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CORRA DE OLHOS FECHADOS<br />
daNilo moNTeiro<br />
Corra de olhos fechados como um filho da puta<br />
nesta praia deserta<br />
porque tudo se desintegra às suas costas<br />
e você sabe,<br />
dentro de instantes o Departamento do Patrimônio<br />
Histórico da sua mente selecionará os rostos,<br />
paisagens e sensações que deverão ser tombados<br />
a qualquer custo,<br />
a mão do carrasco tem um carimbo onde se lê “sublime”;<br />
corra de olhos fechados e grite se possível como um<br />
filho da puta,<br />
e pule nesta brecha sem abrir os olhos nem<br />
parar de gritar,<br />
uma coluna de ar que sustenta um espaço vazio,<br />
ou isto<br />
ou um lento suicídio.<br />
Como escolher, de toda a produção de poesia brasileira dos últimos 20 anos (mesmo com<br />
a delimitação secundária da idade dos autores, que devem ter nascido de 1960 em diante),<br />
apenas um poema? Não é precisamente nas relações com outros poemas, do passado (como<br />
memória), mas também, talvez sobretudo, do presente (como comunidade), e quem sabe até<br />
do futuro (como desejo), que qualquer poema singular ganha seu verdadeiro sentido? Tento,<br />
então, dar um significado mais preciso para a palavra impacto, que nomeia o critério que<br />
deve nortear minha eleição. Interpreto-a, etimologicamente, como designação do efeito daquilo<br />
que vem de encontro a mim e tem o poder de abalar a percepção que tenho das coisas<br />
(da própria poesia, mas também do mundo e dos seres que o habitam). O grande problema<br />
é que todo poema digno desse nome – toda obra de arte, quando é arte, e especialmente<br />
quando já se dispõe a deixar de sê-lo e aspira a outra coisa (vida, ou seu contrário) – age<br />
assim, seja com violência, seja com sutileza. “Força é mudares de vida”, diz o torso arcaico<br />
de Apolo a Rilke (aqui, na tradução magistral de Bandeira). Fico com o poema (de Hoje outro<br />
nome tem a chuva, Azougue, 2004), de Danilo Monteiro, que li há anos, antes mesmo de sair<br />
em livro, e que tive a honra de publicar na revista Cacto, de que fui um dos editores, e que<br />
ainda não parou de me desconcertar. Mas se anote que, ao fazê-lo, deixo de fora outros<br />
textos que também têm tal potência desordenadora, como “No botequim”, de Sérgio Alcides<br />
(cujo refrão “Oiti, oiti” – no qual também escuto o Outis, “Ninguém”, que é o outro nome de<br />
Odisseu – volta e meia retorna ao meu ouvido interno), “Boca da noite”, de Ruy Proença (cuja<br />
figuração dos jovens, na academia de ginástica, “berrando como javalis de seita” impedeme<br />
de ver outra coisa quando passo por um desses templos), “Assuntos”, de Tarso de Melo,<br />
“O coração dos homens”, de Veronica Stigger, “História sentimental do teatro”, de Leandro<br />
Sarmatz, “Pai”, de Fabio Weintraub, “Uma mulher limpa”, de Angélica Freitas, “Coisas putas<br />
emitem luz”, de Pádua Fernandes, “H.”, de Carlito Azevedo...<br />
Eduardo Sterzi