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Gênero e Religião – ST 24 Nadia Maria Guariza ... - Fazendo Gênero

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<strong>Gênero</strong> e <strong>Religião</strong> <strong>–</strong> <strong>ST</strong> <strong>24</strong><br />

<strong>Nadia</strong> <strong>Maria</strong> <strong>Guariza</strong><br />

UFPR<br />

Palavras-chave: Nossa Senhora, catolicismo, publicações.<br />

A Representação de <strong>Maria</strong> nas publicações católicas do século XX<br />

Muitos estudos 1 que tratam da relação que a Igreja Católica manteve com o gênero<br />

feminino enfatizam o seu aspecto contraditório, pois se encontramos discursos que incentivavam<br />

a participação da mulher na instituição, por outro lado, o lugar atribuído a ela era secundário.<br />

Durante a história do catolicismo percebe-se entre a maior parte dos teólogos uma visão negativa<br />

do gênero feminino, entendendo-o como de natureza perversa e mais propensa ao pecado do que<br />

o gênero masculino. Sendo assim, era prescrito às mulheres permanecerem sob a tutela<br />

masculina.<br />

Segundo Zaíra ARY 2 esta visão católica sobre a mulher estava ancorada na<br />

mitologia do Jardim do Éden, na qual a mulher seria a responsável pela desobediência de Adão a<br />

Deus e, por isso culpabilizada pela queda da Humanidade. Portanto, Eva simbolizaria a fraqueza<br />

feminina e demonstraria a importância de manter as mulheres sob vigilância. Nesta percepção, as<br />

mulheres deveriam pagar as penas de Eva assumindo as dores do parto e o seu papel<br />

naturalmente secundário em relação ao homem.<br />

O imaginário católico foi e é permeado por estas idéias provenientes deste mito<br />

fundador o que colocou as mulheres dentro da instituição em lugares determinados e em situação<br />

de submissão em relação à autoridade masculina.<br />

Entretanto, Eva não é a única representação feminina no catolicismo, outras figuras são<br />

recorrentes, como Madalena e <strong>Maria</strong>. No caso de Madalena durante muito tempo a sua<br />

representação estava associada à pecadora arrependida, o que reforçava a idéia de que as<br />

mulheres eram mais propensas ao pecado. No caso de <strong>Maria</strong> encontramos a salvação do<br />

feminino colocando-a como co-participante da redenção da Humanidade.<br />

A figura de <strong>Maria</strong> era entendida como que uma antítese a de Eva, não era por<br />

acaso que muitos se referiam a <strong>Maria</strong> como a Segunda Eva, ou seja, a renovação do elemento<br />

feminino na humanidade. Não obstante, a sua positividade como modelo feminino, <strong>Maria</strong> se<br />

configurava como uma exceção entre as suas pares. <strong>Maria</strong> foi concebida sem a mácula do Pecado<br />

Original e a sua maternidade assexuada também é outro elemento que a poupou do destino das


outras mulheres. Neste sentido, <strong>Maria</strong> tornou-se um modelo inatingível às mulheres, ressaltando<br />

a inferioridade do gênero feminino.<br />

Marina WARNER demonstra a ambigüidade que esta representação assumiu no ocidente<br />

cristão, pois se <strong>Maria</strong> adquiriu as dimensões de mito, apesar de ser mulher, a sua representação<br />

modelar reforçava a submissão e a inferioridade feminina 3 .<br />

Para Marina WARNER, Nossa Senhora era uma figura polivalente que se apresentava<br />

com muitas aparências e se constituía em modelo feminino da Igreja, tornando-se, com o tempo,<br />

a personificação do ideal feminino católico. Por isso, no decorrer dos séculos esta representação<br />

sofreu mutações, adequando-se às novas circunstâncias impostas pela sociedade.<br />

Não obstante a representação de Nossa Senhora ter sido apresentada pelos discursos<br />

religiosos como eterna e imutável, despojando-a de seu caráter histórico, podemos perceber as<br />

mudanças de significados e de interpretações no decorrer de sua existência. Da mesma forma<br />

podemos observar a mensagem dúbia que este modelo divulgava.<br />

Se, por um lado, <strong>Maria</strong> era uma das poucas figuras femininas que assumiu as dimensões<br />

de mito no ocidente cristão, por outro, esta representação modelar reafirmava a submissão e a<br />

inferioridade feminina, por lembrar às fiéis que era impossível alcançá-la. De certa maneira, a<br />

representação de Nossa Senhora demonstrava, com propriedade, a relação que a Igreja Católica<br />

mantinha com as suas fiéis.<br />

Na história do cristianismo as mulheres eram consideradas importantes por causa de seu<br />

poder de persuasão, mas ao mesmo tempo eram vistas como inferiores e deveriam ficar<br />

submetidas à tutela masculina. Neste sentido, a representação mariana foi utilizada como<br />

elemento estimulador da ação feminina, porém dentro dos parâmetros impostos pela Igreja<br />

Católica.<br />

As publicações católicas no século XX de maneira entusiasta trataram deste mito<br />

materno que é <strong>Maria</strong>. Este artigo optou na análise de dois autores, um deles associado ao<br />

catolicismo conservador do início do século XX, o pe. Júlio <strong>Maria</strong> De Lombaerde (1878-1944)<br />

fervoroso seguidor de Nossa Senhora e autor de vários livros sobre <strong>Maria</strong>. Outro autor analisado<br />

é Leonardo de Boff (1938-) que estava ligado aos movimentos progressistas da Igreja Católica<br />

nos anos de 1960 a 1970. A idéia deste artigo é contrapor as idéias e as representações marianas<br />

destes dois autores que foram representantes de linhas diferentes do catolicismo brasileiro para<br />

compreender o papel divulgado por eles para as mulheres.<br />

O pe. Júlio <strong>Maria</strong> De Lombaerde escreveu livros tratando de aspectos doutrinários sobre<br />

Nossa Senhora, defendendo o culto mariano das objeções protestantes, e os livros devocionais


que procuravam divulgar <strong>Maria</strong> como modelo de simplicidade para incutir a moralidade católica<br />

nas fiéis.<br />

Deve-se estar atento ao fato de que o pe. Júlio <strong>Maria</strong> estava falando de um lugar<br />

específico. O padre engrossava o coro ultramontano do período, procurando fortalecer a Igreja<br />

diante das mudanças modernizantes e reforçando a hierarquia entre clero e fiel, assim como a<br />

autoridade de Roma.<br />

O ultramontanismo atribuía a responsabilidade pela devassidão da sociedade moderna a<br />

pouca fé e a desobediência da população às suas normas. Sendo assim, todas as orientações<br />

expressas por este movimento conservador eram justificadas e legitimadas pela idéia de salvação<br />

da sociedade.<br />

No pensamento ultramontano, a figura feminina serviu como uma estratégia da Igreja<br />

para manter o seu poder social. Neste sentido, a representação feminina foi construída como o<br />

esteio moral do lar e para isso a representação de Nossa Senhora era modelar.<br />

Nossa Senhora tornou-se modelo por excelência do ultramontanismo, sobretudo porque<br />

a mãe cristã foi valorizada no processo de reconquista da sociedade. Essa valorização materna se<br />

processou devido a teoria dos “círculos concêntricos”, que entendia que a Igreja chegaria pela<br />

mãe ao filho e ao marido, assim reconquistando a família e, por conseguinte, a sociedade 4 .<br />

Neste contexto, a representação da mãe cristã era entendida como a de educadora moral.<br />

A mãe era responsável pela educação religiosa dos seus filhos explicando os dogmas, ensinando<br />

as orações e a moral cristã. Por isso, ela deveria ser preparada para exercer esta função tão<br />

importante para a Igreja Católica por meio das associações, dos livros, dos manuais e dos<br />

colégios femininos.<br />

Nas palavras do padre eram perceptíveis os objetivos da Igreja Ultramontana em<br />

valorizar o papel materno para reconduzir os fiéis à igreja, nota-se que a feição esboçada para a<br />

mãe cristã compunha a de uma guardiã que deveria ser vigilante, repreendendo e até punindo o<br />

seu filho que poderia fraquejar diante das tentações da sociedade e se desviar do caminho correto<br />

do catolicismo.<br />

Para ser guardiã da moral católica no lar, a mãe cristã também deveria zelar por seu<br />

comportamento e seu trajar e neste ponto, novamente, o padre apresentou <strong>Maria</strong> como exemplo...<br />

“Modesto e circunspecto era o seu porte, graves os seus passos e sem pretensões; o seu olhar era<br />

doce, firme e limpido e a sua voz afável e atenciosa (...). As suas palavras sempre comedidas,<br />

quanto a sua conversação era calma e nobre, excitando ao bem e à virtude” 5 .<br />

Sendo assim, da mãe cristã se esperava o recato, a paciência, a amabilidade, a<br />

humildade, a mansidão. A mãe cristã deveria zelar para que seu esposo e filhos se mantivessem


nos limites do catolicismo, porém sem sobressaltos ou agitações, pois se <strong>Maria</strong> conseguia<br />

irradiar o amor a Deus com sua candura que santificava os ambientes, as mães cristãs deveriam<br />

fazer o mesmo.<br />

Em contrapartida, Leonardo BOFF em seu livro “O rosto materno de Deus: um ensaio<br />

interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas” 6 mostra uma compreensão diferente<br />

do papel de <strong>Maria</strong> e das mulheres no catolicismo. Esta visão diferente é fruto do contexto, no<br />

qual Leonardo Boff se inseria por se tratar de um autor que viveu as transformações<br />

empreendidas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965) e, posteriormente as das Conferências de<br />

Medellín (1968) e Puebla (1972). Além disso, Boff se posicionou ativamente na defesa deste<br />

catolicismo progressista na América Latina, por intermédio da Teologia da Libertação.<br />

A Teologia da Libertação, coerentemente com a proposta do Concílio Vaticano II, tinha<br />

como foco principal a libertação da população pobre de sua situação de opressão e miséria. A<br />

catequese foi preterida e substituída pelo movimento espontâneo da população. A figura do padre<br />

também sofreu modificações, do único portador da verdade para o facilitador no processo de<br />

construção da libertação nas comunidades.<br />

O evangelho recebe uma interpretação com víeis marxista e as personagens como Jesus<br />

e <strong>Maria</strong> passam a ter uma conotação revolucionária. Nesta nova interpretação, as figuras de Jesus<br />

e <strong>Maria</strong> são retratadas em seu contexto de pobreza e simplicidade em Nazaré, procurando uma<br />

aproximação com a situação da maior parte da população latino-americana.<br />

Neste sentido, nota-se que neste ponto há uma continuidade da representação de <strong>Maria</strong><br />

histórica proposta por Júlio <strong>Maria</strong> e a de Leonardo Boff, pois Julio <strong>Maria</strong> opta por uma leitura de<br />

modéstia e de pobreza para <strong>Maria</strong> de Nazaré, não enfatizando a sua ascendência real como<br />

alguns autores do século XIX.<br />

Por outro lado, para Boff a virgindade de <strong>Maria</strong> não é de fundamental importância, até<br />

porque na Palestina da época de <strong>Maria</strong> ser virgem seria algo humilhante para as mulheres. Boff<br />

procura entender a imagem de <strong>Maria</strong> em seu contexto próprio, sendo assim há uma dimensão<br />

histórica nesta representação. Além disso, o autor expõe que a leitura e o significado da figura de<br />

<strong>Maria</strong> assumem características diferentes nas sociedades no decorrer do tempo.<br />

Portanto, o autor inicia o seu texto propondo uma leitura diferente sobre o feminino na<br />

Igreja e, em especial na figura de <strong>Maria</strong>. Sendo assim, algumas indagações são levantadas por<br />

Boff “Como o feminino que conhecemos se constitui em caminho de conhecimento de Deus?<br />

Como Deus mesmo pode ser compreendido e se apresenta concretizado sob traços femininos?” 7<br />

Para o autor os fatos misteriosos que se opera em <strong>Maria</strong> é um meio para que Deus<br />

revele o humano e o seu destino. E o fato de ter escolhido uma mulher para revelar esta nova


humanidade que renasceria com a Redenção não é indiferente. Segundo Boff, “ Não é indiferente<br />

o fato de <strong>Maria</strong> ter sido uma mulher. Então a pergunta se especifica: que rosto Deus nos quer<br />

mostrar mediante o feminino? Como o feminino nos leva a Deus? Qual o sentido último do<br />

feminino para a salvação, para a humanidade e para Deus mesmo?” 8<br />

Leonardo Boff propõe uma releitura da mariologia, pois na tradição católica <strong>Maria</strong><br />

nunca foi tratada como centro da missão salvítica, esta perspectiva pode contribuir para novas<br />

possibilidades na interpretação do culto mariano. Por que Deus escolheu vir por intermédio de<br />

uma mulher? A teologia deve buscar o sentido desta escolha.<br />

Zaíra ARY 9 aponta que o discurso católico sobre o masculino e o feminino após o<br />

Concílio Vaticano II assumiu uma conotação aparente de igualdade entre os gêneros, porém com<br />

o pressuposto da eliminação da diferença sexual. Sendo assim, em algumas passagens da<br />

Campanha da Fraternidade de 1990 percebe-se a afirmação recorrente de que Deus é composto<br />

pelo masculino e pelo feminino.<br />

Não obstante, essa aparente igualdade entre os homens e as mulheres, a narrativa destes<br />

documentos da Campanha da Fraternidade esboçava uma representação de Deus que não possuía<br />

características femininas. Portanto, as mulheres para se tornarem imagem deste Deus teriam que<br />

se misturar de tal forma a figura masculina que provocaria a anulação de sua feminilidade.<br />

Neste sentido, a imagem que Leonardo Boff expõe em seu livro de Deus com elementos<br />

femininos e masculinos poderia ser pensada inserida nesta contradição entre a igualdade entre os<br />

gêneros e a anulação do feminino para que isso ocorra.<br />

... Na nossa meditação deverá ter ficado claro que o significado de <strong>Maria</strong> alcança para além de <strong>Maria</strong>, para além da<br />

mulher, atingindo o mistério do ser humano religioso da criação. ‘<strong>Maria</strong>, representante da criação inteira, representa<br />

simultaneamente o homem e a mulher’ (...) Ela se constitui um ideal humano e não apenas um ideal para a mulher 10 .<br />

O feminino para Boff, não se encerra na maternidade física, mas no fato de <strong>Maria</strong> ter<br />

voluntariamente aceito participar da salvação da humanidade. Novamente Boff remete a uma<br />

idéia muito comum no catolicismo da maternidade espiritual de <strong>Maria</strong>, o que nos remete a<br />

ambigüidade deste autor que ora parece propor uma leitura diferente, ora retorna a tradição.<br />

Segundo Ivete RIBEIRO 11 , ao se estudar o discurso católico temos que ficar atentos ao<br />

fato de que suas palavras estão ancoradas na tradição, pois a Igreja apesar de ser uma instituição<br />

histórica sujeita às mudanças, ela também está condicionada pelos parâmetros da Teologia.<br />

Portanto, no decorrer do século XX podem-se encontrar significados diferentes à<br />

representação de <strong>Maria</strong>, contudo lembrando que o discurso católico sempre inova a partir da<br />

tradição. A teologia e a tradição dos padres não podem ser negadas por estes autores ligados à<br />

Igreja Católica, o que pode ocorrer é uma pequena liberdade criadora do escritor ao descrever


esta figura secular do catolicismo. Neste sentido, tanto pe. Júlio <strong>Maria</strong> quanto Leonardo Boff<br />

cada um ao seu modo representam o catolicismo de sua época e, a partir disso criaram uma<br />

leitura diferente de <strong>Maria</strong> e do seu papel na Igreja.<br />

1 BROWN, Peter. O corpo e sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio de<br />

Janeiro: Zahar, 1990. DUBY, Georges. O cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa: Dom Quixote, 1992. DUBY,<br />

Georges; PERROT, Michele. A história das mulheres: medieval. Porto: Afrontamentos, 1994. SALISBURY, Joyce.<br />

Pais da Igreja, virgens independentes. São Paulo: Editora Página Aberta Ltda, 1995.<br />

2 ARY, Zaíra. Masculino e feminino no Imaginário Católico: da Ação Católica à Teologia da Libertação. São Paulo:<br />

Annabluma, 2000. (Col. Diálogos). p.6.<br />

3<br />

WARNER, Marina. Alone all her Sex: the myth and the Virgin Mary. New York: Vintage Books, 1993. p. 335.<br />

4<br />

MANOEL, Ivan. Igreja e educação feminina (1859-1919): uma face do conservadorismo. São Paulo: UNESP,<br />

1996. p. 49.<br />

5<br />

LOMBAERDE, Júlio <strong>Maria</strong>. <strong>Maria</strong> e a Eucharistia: estudo doutrinal de um título e de uma doutrina.<br />

Manhumirim: O Lutador, 1937. p. 405.<br />

6 BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus: um ensaio interdisciplinar sobre o feminino e suas formas religiosas.<br />

Petrópolis: Vozes, 1979.<br />

7 BOFF, idem, p. 25.<br />

8 Idem, p. 23.<br />

9 ARY, Zaíra. op cit. p. 253-254.<br />

10 BOFF, O rosto... p. 264-265.<br />

11 RIBEIRO, Ivete. O amor dos cônjuges. IN: D’ INCAO, <strong>Maria</strong> Ângela (org.). Amor e família no Brasil. São Paulo:<br />

Contexto, 1989.

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