Revista Letras ComVida, Número 2 - 2º Semestre de - LusoSofia
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vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> querer não é menor do que a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
pensar manifesta pela razão: em ambos os casos, diz ela, a<br />
mente exce<strong>de</strong> as suas limitações “naturais”…<br />
Só a Europa parecia enfrentar as alegadas necessida<strong>de</strong>s<br />
e empreen<strong>de</strong>r acções <strong>de</strong> modo a conseguir disparar a funda<br />
da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> David contra as inevitabilida<strong>de</strong>s históricas<br />
<strong>de</strong> Golias. Só a Europa, que não se juntou à esgrima<br />
da espada a nível planetário, parecia arregaçar as mangas<br />
e preparar-se para resolver os problemas que também<br />
inquietavam o resto do planeta e cuja solução era, igualmente<br />
para o resto do planeta, uma questão <strong>de</strong> vida ou <strong>de</strong><br />
morte, embora o dito resto do planeta, por ignorância ou<br />
falta <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>, parecesse tratá-los como insolúveis. Problemas<br />
<strong>de</strong>sse género são, por exemplo, o corte da corrente<br />
cismática dos feudos tribais e dos conflitos entre vizinhos<br />
<strong>de</strong> uma antiguida<strong>de</strong> que já conta com muitos séculos. Ou,<br />
então, a vida quotidiana e permanente em contacto com a<br />
diferença, sem aquilo que permite exigir aos outros que se<br />
<strong>de</strong>sfaçam da sua diferença ou, ainda sem aquilo que permite<br />
renunciar à sua própria diferença. Ou a rejeição da multiplicida<strong>de</strong><br />
dos seres como dádiva divina a ser assumida em<br />
humilda<strong>de</strong>, mas a sua assumpção como uma hipótese <strong>de</strong><br />
enriquecimento <strong>de</strong> todas as formas <strong>de</strong> vida com toda esta<br />
multiplicida<strong>de</strong>. Muito antes <strong>de</strong> Obama, a Europa <strong>de</strong>veria<br />
ter posto mãos à obra, exortando: “yes, we can!”. Será que<br />
ao <strong>de</strong>positar a esperança na Europa me enganei? É possível.<br />
Mas po<strong>de</strong>-se ter a certeza <strong>de</strong> um engano no momento<br />
em que nos enganamos? A confiança é sempre refém do<br />
<strong>de</strong>stino. Só se po<strong>de</strong> ter a “certeza” <strong>de</strong> um engano <strong>de</strong> antemão<br />
à custa da renúncia à confiança na funda <strong>de</strong> David.<br />
béata cieszynska A minha última pergunta terá forçosamente<br />
<strong>de</strong> se referir a Portugal já que estou aqui também<br />
como sua representante. Na esperança <strong>de</strong> uma continuação<br />
<strong>de</strong>sta colaboração, gostaríamos <strong>de</strong> saber algo acerca<br />
da sua experiência com os países ibéricos. Talvez nos possa<br />
falar dos seus encontros com autores e pensadores portugueses<br />
e espanhóis.<br />
zygmunt bauman Da literatura portuguesa conheço os<br />
autores internacionalmente mais reconhecidos, como o<br />
poeta Fernando Pessoa, que a dada altura foi para mim<br />
uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta, lido principalmente em inglês,<br />
mas também em português. José Saramago é outro dos<br />
autores que conheço e aprecio, tendo lido praticamente<br />
todos os seus romances, a começar pela História do Cerco<br />
<strong>de</strong> Lisboa. A recente notícia da sua morte entristeceu-me<br />
bastante; tenho muita pena <strong>de</strong> que este gran<strong>de</strong> escritor já<br />
não crie mais nada.<br />
béata cieszynska Como recebeu a atribuição do Prémio<br />
Príncipe das Astúrias no âmbito da comunicação e<br />
das humanida<strong>de</strong>s?<br />
zygmunt bauman Foi com satisfação que recebi o prémio,<br />
que me foi entregue a 22 <strong>de</strong> Outubro, em Oviedo.<br />
Deixo aqui fragmentos do discurso que proferi durante a<br />
cerimónia, os quais constituem também uma boa conclusão<br />
para esta entrevista.<br />
entrevista internacional Zygmunt Bauman<br />
“[…] muitas são as razões para estar imensamente agra<strong>de</strong>cido<br />
pela atribuição <strong>de</strong>sta distinção, ainda que o mais<br />
importante seja a inclusão dos meus trabalhos no seio das<br />
humanida<strong>de</strong>s, do esforço importante para a comunicação<br />
entre as pessoas. Toda a vida tentei cultivar a sociologia<br />
tal como os meus dois professores <strong>de</strong> Varsóvia, Stanislaw<br />
Ossowski e Julian Hochfeld, há sessenta anos me ensinaram;<br />
e ensinaram-me a ver nela uma ciência do homem,<br />
cujo único objectivo, nobre e maravilhoso, é possibilitar e<br />
facilitar o diálogo estabelecido entre as pessoas.<br />
Este aspecto leva-me a recordar outra razão importante<br />
nesta minha satisfação e agra<strong>de</strong>cimento. O prémio provém<br />
<strong>de</strong> Espanha, do país <strong>de</strong> Miguel Cervantes Saavedra,<br />
autor do romance mais espectacular jamais escrito, pai das<br />
humanida<strong>de</strong>s. Cervantes foi o primeiro a alcançar aquilo<br />
que, nas ciências humanas, todos tentamos alcançar com<br />
maiores ou menores resultados à medida das nossas capacida<strong>de</strong>s<br />
limitadas.<br />
Tal como outro escritor, Milan Kun<strong>de</strong>ra, referiu, Cervantes<br />
mandou D. Quixote rasgar as cortinas urdidas <strong>de</strong><br />
mitos, máscaras, estereótipos, superstições e interpretações<br />
precipitadas, cortinas que cobriam hermeticamente<br />
o mundo, em que vivemos e que nos esforçamos por<br />
enten<strong>de</strong>r em vão, enquanto não se levantar ou rasgar esse<br />
véu. D. Quixote não é um conquistador, foi conquistado.<br />
Porém, tal como Cervantes <strong>de</strong>monstra D. Quixote, com<br />
a sua <strong>de</strong>rrota, comprova-nos que ‘a única coisa que po<strong>de</strong>mos<br />
fazer perante a <strong>de</strong>rrota inevitável da chamada vida é<br />
esforçarmo-nos por compreendê-la’.<br />
Eis a gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> Miguel Cervantes – uma vez<br />
efectuada não será mais esquecida. Nas humanida<strong>de</strong>s, todos<br />
nos esforçamos por seguir este trilho palmilhado. É<br />
graças a Cervantes que hoje estamos on<strong>de</strong> estamos.<br />
Rasgar as cortinas, compreen<strong>de</strong>r a vida… Que significa isso?<br />
Como pessoas preferimos habitar um mundo harmonioso,<br />
limpo e transparente, no qual o bem e o mal, a beleza<br />
e a fealda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ser cuidadosamente separados, nunca<br />
se misturam e, graças a isso, sabemos como estão as coisas,<br />
por on<strong>de</strong> temos <strong>de</strong> ir e como <strong>de</strong>vemos agir. Sonhamos<br />
com um mundo no qual os juízos e as <strong>de</strong>cisões não exigem<br />
dificulda<strong>de</strong>s para os compreen<strong>de</strong>r. Deste sonho nascem as<br />
i<strong>de</strong>ologias que são umas grossas cortinas impeditivas <strong>de</strong><br />
ver mais além do que a vista alcança.<br />
Étienne <strong>de</strong> la Boétie chamou a esta nossa inevitável tendência<br />
‘escravidão voluntária’. Foi Cervantes quem nos<br />
mostrou o caminho para a evitar, expondo o mundo na sua<br />
realida<strong>de</strong> nua e incómoda, mas libertadora, uma realida<strong>de</strong><br />
que abarcava uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> significados e um défice<br />
inevitável <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s absolutas. E é precisamente neste<br />
mundo, no qual a única certeza é a certeza da incerteza,<br />
que nós temos <strong>de</strong> tentar continuamente e mesmo sem resultados,<br />
concebermo-nos a nós próprios e mutuamente,<br />
enten<strong>de</strong>rmo-nos e vivermos uns com os outros e uns para<br />
os outros… Nesta medida, as humanida<strong>de</strong>s, ou seja, a ciência<br />
acerca do homem, almeja ajudar as pessoas ou, pelo<br />
menos, <strong>de</strong>veria almejá-lo, se preten<strong>de</strong> ser fiel à herança <strong>de</strong><br />
Miguel <strong>de</strong> Cervantes Saavedra […]”<br />
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