Revista Letras ComVida, Número 2 - 2º Semestre de - LusoSofia
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dossiê temático Guilherme d’Oliveira Martins<br />
o fenómeno. O paradoxo (ser uma língua <strong>de</strong> várias culturas) é expressão da diversida<strong>de</strong> e<br />
dos antagonismos, apelando a uma espécie <strong>de</strong> “distância unitiva”, <strong>de</strong> que falava Emmanuel<br />
Mounier, em nome da dignida<strong>de</strong> das pessoas. E em Cabo Ver<strong>de</strong>, temos <strong>de</strong> invocar<br />
a “morabeza” (lida pausadamente com <strong>de</strong>staque da tónica), sinónimo <strong>de</strong> afabilida<strong>de</strong> e<br />
gentileza ou <strong>de</strong> expansivida<strong>de</strong> e trato fácil, associados a um sentido criador e culto (que<br />
o Padre Vieira bem notou na sua passagem pela Cida<strong>de</strong> Velha). E se referimos a cordialida<strong>de</strong><br />
e a morabeza, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> recordar a “morrinha” galego-portuguesa,<br />
a nossa melancolia, que nos leva à sauda<strong>de</strong> (<strong>de</strong> D. Duarte a Garrett, Rosalia <strong>de</strong> Castro,<br />
Pascoaes e Cesária Évora), a lembrança e o <strong>de</strong>sejo, o mal <strong>de</strong> que se gosta e o bem <strong>de</strong> que se<br />
pa<strong>de</strong>ce, sinal do paradoxo que corporizamos e da “maravilhosa imperfeição” <strong>de</strong> que fala<br />
Eduardo Lourenço. Mas António Tabucchi põe-nos <strong>de</strong> sobreaviso, ao recusar a lusofonia<br />
como uma invenção meta-histórica. Lusofonia é vida e diferença. De facto, num tempo<br />
<strong>de</strong> globalização, impõe-se dar-lhe um sinal não explicativo, não uniformizador, não paternalista,<br />
mas <strong>de</strong> diferença e <strong>de</strong> abertura. Daí que a literatura e a arte tenham um papel<br />
especial na afirmação e no <strong>de</strong>senvolvimento da lusofonia. Saídos do que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>signar<br />
como a “década Saramago”, correspon<strong>de</strong>nte ao momento em que a língua portuguesa<br />
teve o primeiro Prémio Nobel da Literatura, é tempo <strong>de</strong> cuidar do património comum da<br />
lusofonia. É indispensável reforçar a dignida<strong>de</strong> e a projecção do Prémio Camões, que já<br />
distinguiu na sua vida as maiores referências da lusofonia literária. Mas a maior exigência<br />
é a do conhecimento mútuo, uma vez que, só assim, haverá compreensão. Recor<strong>de</strong>mos<br />
<strong>de</strong> memória (esquecendo tantos): Pepetela e Ruy Duarte <strong>de</strong> Carvalho, Craveirinha e Mia<br />
Couto (mas também Rui Knopfli, Fernando Gil e Eugénio Lisboa), Vera Duarte e Germano<br />
<strong>de</strong> Almeida, António Baticã Ferreira, Alda do Espírito Santo e Albertino Bragança,<br />
Fernando Sylvan e Luís Cardoso… E na pátria irmã brasileira, a lista é interminável. António<br />
Cândido foi e é um incansável cicerone <strong>de</strong>ssa geografia fantástica <strong>de</strong> um património<br />
imaterial que precisamos pôr em confronto na encruzilhada lusófona. Presisamos, no<br />
fundo, <strong>de</strong> nos conhecer melhor portugueses e lusófonos.<br />
José Eduardo Agualusa acaba <strong>de</strong> publicar Milagrário Pessoal (D. Quixote, 2010), uma ilustração<br />
viva do diálogo da língua: “Assim como nós criamos as línguas, também as línguas<br />
nos criam a nós. Mesmo que não o façamos <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>liberada, todos ten<strong>de</strong>mos a seleccionar<br />
palavras que utilizamos com maior frequência e esse uso forma-nos ou <strong>de</strong>formanos,<br />
no corpo e no espírito”. E cita um conto ovimbundo, em que a linguagem ágil e harmoniosa<br />
dos pássaros é roubada. E o lema <strong>de</strong> toda a obra po<strong>de</strong> resumir-se numa máxima<br />
gloriosa e “revolucionária” – “a língua é a nossa mátria”. E uma das personagens, Fadário<br />
da Luz do Espírito Santo, um professor timorense, resistente da liberda<strong>de</strong>, fazia a sua<br />
luta a recitar sonetos <strong>de</strong> Camões – “Se quando vos perdi, minha esperança…”. E a palavra<br />
esperança (lida pausadamente) ganhava uma força especial (em vez da “esprança” estropiada<br />
que usamos, esquecendo a pronúncia <strong>de</strong> Camões, pausada e com as vogais abertas).<br />
Caetano Veloso vem à memória: “Gosto <strong>de</strong> sentir a minha língua roçar a língua <strong>de</strong> Luís<br />
<strong>de</strong> Camões”. Que é a lusofonia senão esse diálogo universal centrado na cordialida<strong>de</strong> e na<br />
distância unitiva da dignida<strong>de</strong> pessoal? Amin Maalouf faz-se ouvir – “quanto mais i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />
partilhamos mais singulares nos tornamos”.