Revista Letras ComVida, Número 2 - 2º Semestre de - LusoSofia
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leituras críticas Carla Renata A. <strong>de</strong> Souza Gomes<br />
nutrem por esse que é o maior <strong>de</strong> todos os personagens machadianos, o autor.<br />
Desvendar, compreen<strong>de</strong>r ou, simplesmente, ler <strong>de</strong> maneira a<strong>de</strong>quada, continua sendo<br />
o maior <strong>de</strong>safio das sucessivas gerações <strong>de</strong> estudiosos <strong>de</strong> literatura que não po<strong>de</strong>m e não<br />
<strong>de</strong>vem fugir a esse <strong>de</strong>ver do ofício. Assim, Lembrar Machado <strong>de</strong> Assis é mais do que um<br />
exercício <strong>de</strong> crítica literária, é antes um justo tributo que se presta ao criador <strong>de</strong> Dom<br />
Casmurro, esse aliás um dos textos mais referidos nas análises apresentadas nesse livro.<br />
Convidados a cumprir essa tarefa, apresentam-se nesse volume 18 estudiosos que trazem<br />
instigantes análises sobre a vida e a obra <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, comprovando que a<br />
leitura é uma prática social e histórica pois, se os livros <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis continuam<br />
os mesmos, mudam continuamente seus modos <strong>de</strong> leitura, e as narrativas ganham novos<br />
significados quando analisadas <strong>de</strong> ângulos diferentes, <strong>de</strong> tempos diferentes, sob outras<br />
condições e, muitas vezes, guiadas pelas interpretações anteriores.<br />
Lembrar Machado <strong>de</strong> Assis, organizado por Vania Pinheiro Chaves, Lauro Moreira e Solange<br />
Aparecida Cardoso, é uma publicação conjunta do Centro <strong>de</strong> Literaturas <strong>de</strong> Expressão<br />
Portuguesa das Universida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Lisboa (CLEPUL), e da Missão do Brasil junto à<br />
comunida<strong>de</strong> dos Países <strong>de</strong> Língua Portuguesa (CPLP) com o apoio da Fundação Calouste<br />
Gulbenkian e a Fundação para a Ciência e Tecnologia, e foi lançado em Lisboa em novembro<br />
<strong>de</strong> 2009. Essa edição contém um CD com poemas musicados <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong><br />
Assis produzido por Luiza Sawaya.<br />
Vania Pinheiro Chaves lembra a importância da “memória escrita” sobre os eventos<br />
realizados em Portugal, em comemoração ao centenário <strong>de</strong> morte do escritor, através<br />
da publicação do livro Lembrar Machado <strong>de</strong> Assis, que foi possível através <strong>de</strong> uma parceria<br />
entre diversas instituições, no qual estão reunidos os textos das conferências realizadas<br />
por estudiosos do Brasil, Portugal e Estados Unidos nas Faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> <strong>de</strong> Lisboa,<br />
Coimbra e Porto, na Fundação Calouste Gulbenkian e na Missão diplomática do Brasil<br />
junto à CPLP, durante o ano <strong>de</strong> 2008.<br />
O embaixador Lauro Moreira recorda com entusiasmo as comemorações do cinquentenário<br />
da morte do escritor das quais guardou uma inestimável relíquia: a <strong>de</strong>dicatória <strong>de</strong><br />
Lucia Miguel Pereira ao jovem machadiano Lauro Moreira em seu clássico estudo sobre<br />
Machado <strong>de</strong> Assis, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em Setembro <strong>de</strong> 1958. Ao rememorar a importância<br />
do genial autor <strong>de</strong> Dom Casmurro em sua formação literária, tece também consi<strong>de</strong>rações<br />
sobre o estilo enxuto e sóbrio do escritor, revelando admiração pelo homem <strong>de</strong> enorme<br />
dignida<strong>de</strong> e força moral, que superou a pobreza e a saú<strong>de</strong> frágil apoiado em uma incansável<br />
curiosida<strong>de</strong> intelectual e disciplinada carreira burocrática no funcionalismo público.<br />
Luiza Sawaya é a soprano responsável pela apresentação dos poemas musicados por<br />
compositores contemporâneos <strong>de</strong> Machado. Coração Triste, Lágrimas <strong>de</strong> cera e Lua da estiva<br />
noite proporcionam ao leitor uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aproximação com o ambiente sonoro<br />
que cercava Machado <strong>de</strong> Assis, um mundo em que o piano era o principal instrumento e<br />
no qual música erudita e literatura constituíam o repertório cultural básico das personagens<br />
<strong>de</strong> seus contos e romances.<br />
O artigo <strong>de</strong> Abel Barros Baptista propõe uma reflexão em torno da questão moral<br />
apresentada no romance Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, segundo a qual o <strong>de</strong>funto autor,<br />
porque morto, fica livre para dizer tudo o que, em vida, escon<strong>de</strong>ria ou dissimularia. Baptista<br />
problematiza e discute as condições <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um autor personagem criado<br />
para tal finalida<strong>de</strong>, pois “Brás Cubas diz a verda<strong>de</strong>, como se estivesse con<strong>de</strong>nado à dizê-<br />
-la, porque assim mesmo, com esse feitio e essa finalida<strong>de</strong>, foi criado por Machado. Não<br />
tem escolha, ou melhor, o criador não o criou com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolher” (p. 22). Também<br />
o modo <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong>ssa liberda<strong>de</strong>, a confissão, é problemático porque “implicaria<br />
a organização do livro em vista da finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expor a verda<strong>de</strong>” (p. 25), entretanto não<br />
é a exposição da verda<strong>de</strong> o objetivo <strong>de</strong>ssa narrativa e sim a “exposição da mediocrida<strong>de</strong>”<br />
através da “<strong>de</strong>squalificação daqueles a quem a exposição se <strong>de</strong>stina” (p. 25). Essa é<br />
a principal idéia, segundo Baptista, contida na expressão que intitula o artigo, o <strong>de</strong>sdém<br />
dos finados, pois “a exposição franca da verda<strong>de</strong> não <strong>de</strong>corre da exigência <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> por<br />
parte daquele a quem a exposição se <strong>de</strong>stina [...] resulta justamente da indiferença perante<br />
o exame e o juízo da opinião” (p. 26). Diante <strong>de</strong>ssas observações conclui que “o que a<br />
morte traz a Brás Cubas não é a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> “dizer tudo” por inviabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> punição,<br />
mas a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> representar a própria vida livre do encargo <strong>de</strong> lhe atribuir sentido e<br />
finalida<strong>de</strong>”, o que torna Brás Cubas menos sério que Dom Casmurro, pois trata apenas <strong>de</strong><br />
“<strong>de</strong>screver o percurso biográfico como um imenso escárnio sem no entanto o transformar<br />
em <strong>de</strong>stino” (p. 28).