Revista Letras ComVida, Número 2 - 2º Semestre de - LusoSofia
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quinteto Margarida Vale <strong>de</strong> Gato<br />
1 - Po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>stacar os traços mais relevantes da sua biografia<br />
intelectual, relevando o que a teria levado a enveredar<br />
por um carreira livre <strong>de</strong>dicada à tradução compaginada<br />
como trabalho <strong>de</strong> tradução e criação literária?<br />
margarida vale <strong>de</strong> gato Na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito nova<br />
que me lembro <strong>de</strong> ficar algum tempo a pensar que aquilo<br />
que eu pensava tinha uma expressão, que essa expressão<br />
influenciava as próprias coisas sobre que eu podia pensar<br />
e a maneira <strong>de</strong> pensar nelas, e que gostava muito <strong>de</strong> saber<br />
o que se passaria se essa expressão se <strong>de</strong>sse noutra língua.<br />
Foi o que <strong>de</strong>scobri aos 12-13 anos, quando vivi na Califórnia.<br />
A primeira vez que tive consciência <strong>de</strong> estar a pensar<br />
na língua daquela terra <strong>de</strong> empréstimo foi para mim um<br />
acontecimento. Deixei <strong>de</strong> ser só uma pessoa, ao mesmo<br />
tempo que senti que tinha capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me aproximar<br />
<strong>de</strong> muito mais pessoas. Simultaneamente, estudava francês<br />
para tentar acompanhar os programas <strong>de</strong> cá, sendo<br />
que a melhor maneira que <strong>de</strong>scobri para o fazer foi mudar<br />
para português as canções <strong>de</strong> Jacques Brel, que tanto<br />
me emocionavam e foram as minhas primeiras traduções,<br />
juntamente com os capítu-<br />
Aqueles <strong>de</strong> nós que temperam o<br />
romantismo com compromissos<br />
materiais <strong>de</strong> localização<br />
efémera, agarram-se ao espaço<br />
intersticial da tradução.<br />
los iniciais do Out of Africa.<br />
Se acreditarmos, como eu<br />
acredito, que a expressão<br />
artística linguística se esforça<br />
por ir além do código<br />
<strong>de</strong> verbalização que é o<br />
discursivo, abeirando-se <strong>de</strong><br />
um qualquer transcen<strong>de</strong>nte<br />
intenso, então há todo um<br />
sublime que se potencia quando <strong>de</strong>scobrimos a dissonante<br />
beleza <strong>de</strong> Babel que po<strong>de</strong> integrar essa experiência. Numa<br />
perspectiva romântica, claro, essa experiência é <strong>de</strong>sesperantemente<br />
incomunicável. E, no entanto, só se po<strong>de</strong> dar<br />
pela oposição – e pelo reverso do confronto, que é o diálogo.<br />
Então, aqueles <strong>de</strong> nós que temperam o romantismo<br />
com compromissos materiais <strong>de</strong> localização efémera<br />
agarram-se ao espaço intersticial da tradução.<br />
2 - Como combina o trabalho <strong>de</strong> tradução com o exercício<br />
da sua activida<strong>de</strong> como investigadora e ensaísta, e <strong>de</strong> que<br />
modo estas duas valências se tornam obstáculo ou antes<br />
facilitadoras e fecundadoras da sua vida <strong>de</strong> criadora literária<br />
como poeta?<br />
margarida vale <strong>de</strong> gato A mim interessa-me a literatura,<br />
o uso da linguagem para além da comunicação-comércio,<br />
do inteligível, interessa-me a ambiguida<strong>de</strong> que<br />
abre curto-circuitos e frechas e circulação, o equívoco<br />
que propicia a <strong>de</strong>scoberta. Interessa-me o papel que tem<br />
nisto a forma como essa linguagem se materializa, seja<br />
num uso prosódico-retórico, seja no seu modo <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar<br />
as infinitas limitações das estruturas morfo-sintácticas e<br />
combinações lexicais permitidas pela(s) língua(s) <strong>de</strong> expressão.<br />
Esta última característica emerge com especial<br />
pungência na prática da tradução. Tradução, crítica e análise<br />
<strong>de</strong> texto são hoje para mim activida<strong>de</strong>s sobrepostas,<br />
e praticamente não as consigo conceber sem interferirem<br />
umas nas outras (até porque gran<strong>de</strong> parte da minha pro-<br />
dução ensaística se faz em inglês e logo estou sempre a<br />
pensar em termos <strong>de</strong> conversão). Ao nível da criação, passa-se<br />
outra coisa, que talvez eu consiga explicitar melhor<br />
na resposta seguinte. No entanto, se me parece evi<strong>de</strong>nte<br />
que as minhas activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> investigação, docência e tradução<br />
beneficiam com as minhas tentativas <strong>de</strong> praticar<br />
literatura, o contrário já não é assim tão linear, porque às<br />
vezes o bisturi da análise funciona como censura e quase<br />
<strong>de</strong>sertifica a imaginação.<br />
3 - É mais do que recorrente a afirmação <strong>de</strong> que um tradutor<br />
é um traidor, ou antes um co-criador, um co-autor.<br />
Define a tradução mais como uma arte ou mais como uma<br />
ciência e uma técnica? Como avalia a importância cultural<br />
do trabalho <strong>de</strong> tradução?<br />
margarida vale <strong>de</strong> gato Reparo que na pergunta anterior<br />
acabei por colocar do mesmo lado a tradução e a reflexão<br />
crítica e, do outro, a criação literária. Na verda<strong>de</strong>, porém,<br />
acredito que a tradução literária comunga da criação e da<br />
crítica, como <strong>de</strong>fendia um tradutor-poeta que muito admiro,<br />
Haroldo <strong>de</strong> Campos.<br />
Também acredito que a<br />
tradução literária se distingue<br />
da restante tradução,<br />
embora tivesse <strong>de</strong>morado<br />
alguns anos a chegar a esta<br />
convicção. Antes, sentia-me<br />
bem com a <strong>de</strong>signação “tradução<br />
<strong>de</strong> textos literários”,<br />
mas hoje julgo que a qualida<strong>de</strong><br />
“literária” modifica realmente a natureza da activida<strong>de</strong><br />
da tradução, porque o seu objectivo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />
principalmente a inteligibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma mensagem numa<br />
cultura diferente daquela em que foi produzida, e o seu<br />
fazer não é uma transmissão <strong>de</strong> significados. Para o texto<br />
continuar a ser literário não po<strong>de</strong> haver paráfrase, tem <strong>de</strong><br />
haver uma presença da <strong>de</strong>sfamiliarização da linguagem que<br />
tornou aquele texto literário, que força o contágio dos modos<br />
<strong>de</strong> trabalhar a língua <strong>de</strong> partida na língua <strong>de</strong> chegada.<br />
Esse trabalho do contágio passa pela transcriação, como<br />
também dizia Haroldo, usando para isso ainda a metáfora<br />
física da “transfusão <strong>de</strong> sangue”. Mantenho, no entanto,<br />
uma diferença ao nível da criação em termos do fazer do<br />
texto literário e da sua tradução. O primeiro é o universo e<br />
a segunda um satélite que tem <strong>de</strong> reconhecer a <strong>de</strong>pendência<br />
<strong>de</strong>ste e a órbita para a qual se <strong>de</strong>sloca. Talvez este pensamento<br />
leve a uma hierarquização que limita o fazer da<br />
tradução – seja: para mim ele é mesmo balizado, e o meu<br />
maior prazer é agir no respeito dos seus limites que são,<br />
em última instância, os horizontes i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> autor e leitor.<br />
Sobre a importância cultural do trabalho do tradutor,<br />
<strong>de</strong>ixo uma reflexão relativa a uma citação <strong>de</strong> Saramago que<br />
li recentemente: “Os escritores fazem as literaturas nacionais<br />
e os tradutores fazem a literatura universal”. Ora, isto<br />
é bonito mas eu preferia que Saramago tivesse dito “internacional”<br />
em vez <strong>de</strong> “universal”, visto que o primeiro<br />
caso nos daria a medida diversa das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> literatura e do<br />
Homem que as traduções tornam presente, tantas vezes a<br />
partir <strong>de</strong> um mesmo texto.