06.11.2012 Views

Revista Letras ComVida, Número 2 - 2º Semestre de - LusoSofia

Revista Letras ComVida, Número 2 - 2º Semestre de - LusoSofia

Revista Letras ComVida, Número 2 - 2º Semestre de - LusoSofia

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

192<br />

quinteto Margarida Vale <strong>de</strong> Gato<br />

1 - Po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>stacar os traços mais relevantes da sua biografia<br />

intelectual, relevando o que a teria levado a enveredar<br />

por um carreira livre <strong>de</strong>dicada à tradução compaginada<br />

como trabalho <strong>de</strong> tradução e criação literária?<br />

margarida vale <strong>de</strong> gato Na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito nova<br />

que me lembro <strong>de</strong> ficar algum tempo a pensar que aquilo<br />

que eu pensava tinha uma expressão, que essa expressão<br />

influenciava as próprias coisas sobre que eu podia pensar<br />

e a maneira <strong>de</strong> pensar nelas, e que gostava muito <strong>de</strong> saber<br />

o que se passaria se essa expressão se <strong>de</strong>sse noutra língua.<br />

Foi o que <strong>de</strong>scobri aos 12-13 anos, quando vivi na Califórnia.<br />

A primeira vez que tive consciência <strong>de</strong> estar a pensar<br />

na língua daquela terra <strong>de</strong> empréstimo foi para mim um<br />

acontecimento. Deixei <strong>de</strong> ser só uma pessoa, ao mesmo<br />

tempo que senti que tinha capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> me aproximar<br />

<strong>de</strong> muito mais pessoas. Simultaneamente, estudava francês<br />

para tentar acompanhar os programas <strong>de</strong> cá, sendo<br />

que a melhor maneira que <strong>de</strong>scobri para o fazer foi mudar<br />

para português as canções <strong>de</strong> Jacques Brel, que tanto<br />

me emocionavam e foram as minhas primeiras traduções,<br />

juntamente com os capítu-<br />

Aqueles <strong>de</strong> nós que temperam o<br />

romantismo com compromissos<br />

materiais <strong>de</strong> localização<br />

efémera, agarram-se ao espaço<br />

intersticial da tradução.<br />

los iniciais do Out of Africa.<br />

Se acreditarmos, como eu<br />

acredito, que a expressão<br />

artística linguística se esforça<br />

por ir além do código<br />

<strong>de</strong> verbalização que é o<br />

discursivo, abeirando-se <strong>de</strong><br />

um qualquer transcen<strong>de</strong>nte<br />

intenso, então há todo um<br />

sublime que se potencia quando <strong>de</strong>scobrimos a dissonante<br />

beleza <strong>de</strong> Babel que po<strong>de</strong> integrar essa experiência. Numa<br />

perspectiva romântica, claro, essa experiência é <strong>de</strong>sesperantemente<br />

incomunicável. E, no entanto, só se po<strong>de</strong> dar<br />

pela oposição – e pelo reverso do confronto, que é o diálogo.<br />

Então, aqueles <strong>de</strong> nós que temperam o romantismo<br />

com compromissos materiais <strong>de</strong> localização efémera<br />

agarram-se ao espaço intersticial da tradução.<br />

2 - Como combina o trabalho <strong>de</strong> tradução com o exercício<br />

da sua activida<strong>de</strong> como investigadora e ensaísta, e <strong>de</strong> que<br />

modo estas duas valências se tornam obstáculo ou antes<br />

facilitadoras e fecundadoras da sua vida <strong>de</strong> criadora literária<br />

como poeta?<br />

margarida vale <strong>de</strong> gato A mim interessa-me a literatura,<br />

o uso da linguagem para além da comunicação-comércio,<br />

do inteligível, interessa-me a ambiguida<strong>de</strong> que<br />

abre curto-circuitos e frechas e circulação, o equívoco<br />

que propicia a <strong>de</strong>scoberta. Interessa-me o papel que tem<br />

nisto a forma como essa linguagem se materializa, seja<br />

num uso prosódico-retórico, seja no seu modo <strong>de</strong> <strong>de</strong>safiar<br />

as infinitas limitações das estruturas morfo-sintácticas e<br />

combinações lexicais permitidas pela(s) língua(s) <strong>de</strong> expressão.<br />

Esta última característica emerge com especial<br />

pungência na prática da tradução. Tradução, crítica e análise<br />

<strong>de</strong> texto são hoje para mim activida<strong>de</strong>s sobrepostas,<br />

e praticamente não as consigo conceber sem interferirem<br />

umas nas outras (até porque gran<strong>de</strong> parte da minha pro-<br />

dução ensaística se faz em inglês e logo estou sempre a<br />

pensar em termos <strong>de</strong> conversão). Ao nível da criação, passa-se<br />

outra coisa, que talvez eu consiga explicitar melhor<br />

na resposta seguinte. No entanto, se me parece evi<strong>de</strong>nte<br />

que as minhas activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> investigação, docência e tradução<br />

beneficiam com as minhas tentativas <strong>de</strong> praticar<br />

literatura, o contrário já não é assim tão linear, porque às<br />

vezes o bisturi da análise funciona como censura e quase<br />

<strong>de</strong>sertifica a imaginação.<br />

3 - É mais do que recorrente a afirmação <strong>de</strong> que um tradutor<br />

é um traidor, ou antes um co-criador, um co-autor.<br />

Define a tradução mais como uma arte ou mais como uma<br />

ciência e uma técnica? Como avalia a importância cultural<br />

do trabalho <strong>de</strong> tradução?<br />

margarida vale <strong>de</strong> gato Reparo que na pergunta anterior<br />

acabei por colocar do mesmo lado a tradução e a reflexão<br />

crítica e, do outro, a criação literária. Na verda<strong>de</strong>, porém,<br />

acredito que a tradução literária comunga da criação e da<br />

crítica, como <strong>de</strong>fendia um tradutor-poeta que muito admiro,<br />

Haroldo <strong>de</strong> Campos.<br />

Também acredito que a<br />

tradução literária se distingue<br />

da restante tradução,<br />

embora tivesse <strong>de</strong>morado<br />

alguns anos a chegar a esta<br />

convicção. Antes, sentia-me<br />

bem com a <strong>de</strong>signação “tradução<br />

<strong>de</strong> textos literários”,<br />

mas hoje julgo que a qualida<strong>de</strong><br />

“literária” modifica realmente a natureza da activida<strong>de</strong><br />

da tradução, porque o seu objectivo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

principalmente a inteligibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma mensagem numa<br />

cultura diferente daquela em que foi produzida, e o seu<br />

fazer não é uma transmissão <strong>de</strong> significados. Para o texto<br />

continuar a ser literário não po<strong>de</strong> haver paráfrase, tem <strong>de</strong><br />

haver uma presença da <strong>de</strong>sfamiliarização da linguagem que<br />

tornou aquele texto literário, que força o contágio dos modos<br />

<strong>de</strong> trabalhar a língua <strong>de</strong> partida na língua <strong>de</strong> chegada.<br />

Esse trabalho do contágio passa pela transcriação, como<br />

também dizia Haroldo, usando para isso ainda a metáfora<br />

física da “transfusão <strong>de</strong> sangue”. Mantenho, no entanto,<br />

uma diferença ao nível da criação em termos do fazer do<br />

texto literário e da sua tradução. O primeiro é o universo e<br />

a segunda um satélite que tem <strong>de</strong> reconhecer a <strong>de</strong>pendência<br />

<strong>de</strong>ste e a órbita para a qual se <strong>de</strong>sloca. Talvez este pensamento<br />

leve a uma hierarquização que limita o fazer da<br />

tradução – seja: para mim ele é mesmo balizado, e o meu<br />

maior prazer é agir no respeito dos seus limites que são,<br />

em última instância, os horizontes i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> autor e leitor.<br />

Sobre a importância cultural do trabalho do tradutor,<br />

<strong>de</strong>ixo uma reflexão relativa a uma citação <strong>de</strong> Saramago que<br />

li recentemente: “Os escritores fazem as literaturas nacionais<br />

e os tradutores fazem a literatura universal”. Ora, isto<br />

é bonito mas eu preferia que Saramago tivesse dito “internacional”<br />

em vez <strong>de</strong> “universal”, visto que o primeiro<br />

caso nos daria a medida diversa das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> literatura e do<br />

Homem que as traduções tornam presente, tantas vezes a<br />

partir <strong>de</strong> um mesmo texto.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!