25.01.2015 Views

Introdução ao Pensamento Antropológico - Universidade Católica ...

Introdução ao Pensamento Antropológico - Universidade Católica ...

Introdução ao Pensamento Antropológico - Universidade Católica ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA<br />

CURSO: Formação Básica<br />

DISCIPLINA: Antropologia da Religião<br />

2ª UNIDADE:<br />

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO<br />

Professor José Lisboa Moreira de Oliveira<br />

Introdução<br />

Depois de termos entendido o significado do estudo da religião na universidade,<br />

queremos agora, nesta segunda unidade, aprofundar o significado da Antropologia, entendida<br />

antes de tudo como ciência da humanidade, como aquele âmbito do saber que procura<br />

conhecer cientificamente a pessoa humana na sua totalidade. Nossa disciplina é a Antropologia<br />

da Religião. Por isso é importante ter presente o significado da antropologia para<br />

que se possa logo em seguida estudar a religião a partir desse enfoque. Além disso,<br />

para se estudar em profundidade o fenômeno religioso é indispensável “uma reflexão sobre<br />

a experiência do conhecimento humano” (RAMPAZZO: 23).<br />

Comecemos então pela etimologia da palavra. “Antropologia” vem do grego<br />

αντροποσ (anthropos), homem, e λογοσ, λογια (logos, logia), estudo, e, etimologicamente,<br />

significa estudo do homem (MARCONI & PRESOTTO: 1-2). Embora a Antropologia compreenda<br />

três dimensões básicas (biológica, sociocultural e filosófica), neste estudo vamos<br />

nos deter muito mais no seu aspecto cultural, deixando os outros elementos para as disciplinas<br />

dos cursos especificamente voltados para essas áreas.<br />

Segundo alguns autores as origens da Antropologia remontam à Grécia antiga. Os<br />

gregos teriam sido os primeiros a reunir informações sobre diversos povos e culturas, embora<br />

não possamos desconsiderar as contribuições dos chineses, dos egípcios e dos romanos.<br />

Heródoto, filósofo grego do V século a.C. é considerado por esses estudiosos o<br />

“pai da Antropologia” (Ibid.: 10-11). Mas há quem discorde dessa afirmação e coloque em<br />

dúvida essa idéia (DAMATTA, 1987: 86-87). Na opinião desses antropólogos não se pode<br />

situar o nascimento da Antropologia num simples relato de viagem de Heródoto no qual<br />

ele reúne informações de povos que os gregos consideravam “bárbaros”. Eles acreditam<br />

ainda que a história da Antropologia é uma verdadeira especulação, uma vez que ela tem<br />

a ver com a capacidade dos seres humanos de perceberem as suas diferenças e com os<br />

sistemas ideológicos que usaram os próprios dados da Antropologia para justificar invasões<br />

e aniquilações de tantos grupos étnicos.<br />

Para DaMatta todo antropólogo terá que conviver sempre com generalizações sobre<br />

o específico de uma certa sociedade ou grupo e com a necessidade de escolher alternativas<br />

(Ibid.: 87-89). Jamais será possível num determinado momento ter-se uma visão<br />

completa e definitiva de uma determinada cultura. Isso explica porque até o século XVIII a<br />

Antropologia não era vista como ciência. Muitas pessoas como cronistas, viajantes, soldados,<br />

missionários, comerciantes relataram fatos e deixam dados sobre povos e culturas,<br />

mas somente nos meados do século XVIII é que a Antropologia começa a aparecer como<br />

ciência. Normalmente se considera como primeiros antropólogos os seguintes cientistas:<br />

Linneu (que foi o primeiro a descrever as raças humanas), Boucher de Perthes (o primeiro<br />

a relatar achados pré-históricos) e John Lubock que fez os primeiros estudos sobre a Ida-


de da Pedra, estabelecendo as diferenças culturais entre o Paleolítico e o Neolítico. Porém,<br />

a consagração definitiva da Antropologia como ciência vai se dar somente depois dos<br />

estudos de Darwin, o qual propôs a teoria da evolução. No século XX a Antropologia conhece<br />

um grande progresso, fruto das descobertas sobre o ser humano e as constantes<br />

pesquisas de campo realizadas com bastante rigor científico (MARCONI & PRESOTTO:<br />

10-11).<br />

1. A antropologia dentro do campo das ciências sociais<br />

Sabemos que o ser humano “sempre teve curiosidade a respeito de si mesmo, independentemente<br />

do seu nível de desenvolvimento cultural” (Ibid.: 10). Assim sendo, o<br />

surgimento da Antropologia está ligado a este desejo da humanidade de conhecer-se a si<br />

mesma, buscando perceber e registrar as semelhanças e as diferenças entre os diversos<br />

grupos sociais e culturais. Esse dado histórico nos leva à definição do objeto e do objetivo<br />

da Antropologia.<br />

a) Objeto e objetivo da Antropologia<br />

Podemos afirmar que o objeto do estudo da Antropologia é a pessoa humana e a<br />

sua atividade. No caso da Antropologia Cultural o objeto é o ser humano e os seus comportamentos,<br />

ou seja, o homem e a mulher enquanto integrantes de grupos sociais que<br />

fazem cultura. Por essa razão é possível dizer que o objetivo da antropologia é o estudo<br />

da humanidade como um todo, bem como das suas diversas manifestações e expressões.<br />

Assim sendo, pode-se dizer que no seu objetivo a Antropologia se preocupa com a pessoa<br />

humana na sua condição de ser biológico, ser pensante, ser que produz culturas e ser capaz<br />

de organizar-se em sociedades estruturadas (Ibid.: 2-3).<br />

No caso da Antropologia Cultural, dentro da qual se situa a Antropologia da Religião,<br />

seu objetivo é procurar uma compreensão do ser humano enquanto tal e da sua existência<br />

ativa, capaz de interferir no destino do planeta que habitamos. O papel da Antropologia<br />

Cultural é interpretar as diferenças culturais na medida em que elas formam sistemas<br />

culturais integrados. Sua função é captar o essencial das culturas e buscar uma verdadeira<br />

compreensão de tais sistemas. O essencial do trabalho do antropólogo cultural é o estudo<br />

da vida das pessoas organizadas em grupos culturais, vendo o seu conjunto formado<br />

por tantos elementos como os valores, as reflexões, os costumes, as normas, etc.<br />

(DAMATTA, 1987: 143-150).<br />

Trata-se, pois, de estudar o ser humano enquanto capaz de produzir cultura. Por isso<br />

é fundamental percebermos desde agora a diferença e a relação entre sociedade e cultura.<br />

De fato, pode existir sociedade sem cultura. O que caracteriza a sociedade é a vida<br />

ordenada, com divisões de trabalho, de espaços, de idades, de extratos sociais, de sexos<br />

e assim por diante. Por isso também os animais são capazes de viver em sociedade. Já a<br />

cultura, como veremos mais adiante, supõe uma tradição viva que passe de geração em<br />

geração o que foi elaborado coletivamente, de modo que o próprio grupo perceba e tenha<br />

consciência de que seu estilo de vida é diferente dos outros. A partir dessa percepção e<br />

dessa consciência o grupo estabelece as suas normas de inclusão e de exclusão. Conseqüentemente,<br />

podemos ter um grupo ordenado socialmente, mas sem consciência do seu<br />

próprio estilo de vida, isto é, sem cultura. A cultura se caracteriza, pois, pela tradição, ou<br />

2


seja, pela transmissão do jeito próprio de ser de um grupo, o qual é mais do que viver ordenadamente<br />

com regras e normas estabelecidas. A cultura é a vivência coletiva consciente<br />

e responsável dos padrões, costumes e hábitos, dentro de um espaço e de uma temporalidade,<br />

e que identificam um determinado grupo. Na cultura há uma interação dialética<br />

entre as regras e o grupo, com possibilidades de reciprocidade e de mudanças. O grupo<br />

age ou não desta ou daquela forma porque tem consciência de que esse agir lhe dá ou<br />

não identidade e o diferencia dos outros grupos sociais (Ibid.: 47-58).<br />

b) Divisões e Campos da Antropologia<br />

A definição de Antropologia nos ajudou a perceber que ela tem um campo muito<br />

vasto, abrangendo espaços, situações e tempos amplos e bem diferentes. Por esse motivo<br />

ela possui âmbitos diversos e uma infinidade de campos de ação. De um modo geral os<br />

antropólogos costumam dividir a Antropologia em dois grandes campos de estudo: a Antropologia<br />

Física ou Biológica e a Antropologia Cultural (MARCONI & PRESOTTO: 3-7).<br />

A Antropologia Física ou Biológica estuda o ser humano na sua natureza e na sua<br />

condição física. Procura compreendê-lo nas suas origens, no seu processo evolutivo, na<br />

sua estrutura anatômica, bem como nos seus processos fisiológicos e biológicos. Ela está<br />

estruturada em cinco campos: 1) a Paleontologia que estuda a origem e a evolução da<br />

espécie humana; 2) a Somatologia (do grego soma, corpo + logia, estudo) que estuda o<br />

corpo humano nas suas variedades existentes, nas diferenças físicas e na sua capacidade<br />

de adaptação; 3) A Raciologia que se interessa pela historia racial do ser humano; 4) A<br />

Antropometria (do grego anthropos, homem + metria, medida) que trabalha com técnicas<br />

de medição do corpo humano, especialmente de esqueletos (crânio, ossos, etc.), usando<br />

instrumentos especiais de precisão, com o objetivo de fornecer informações detalhadas<br />

acerca de pessoas ou de achados arqueológicos, sendo muito usada no âmbito forense<br />

para tentar identificar corpos e esqueletos; 5) Antropometria do crescimento, voltada para<br />

o conhecimento e o estudo dos índices de crescimento dos indivíduos, relacionando-o<br />

com o tipo de alimentação, de atividades físicas e assim por diante.<br />

Por sua vez a Antropologia Cultural, o campo mais amplo dessa ciência, estuda o<br />

ser humano enquanto fazedor de cultura. O seu principal objetivo é compreender os relacionamentos<br />

humanos, os comportamentos tanto instintivos como aqueles adquiridos pela<br />

aprendizagem, sem deixar de analisar os aspectos biológicos que contribuem para o desenvolvimento<br />

das capacidades culturais dos seres humanos. Portanto, seu objetivo é conhecer<br />

o ser humano enquanto capaz de criar o seu meio ou ambiente cultural através de<br />

formas bem diferenciadas de comportamento.<br />

c) Campos da Antropologia Cultural<br />

A Antropologia Cultural abrange seis campos específicos de atuação (Ibid.: 4-7). O<br />

primeiro deles é a Arqueologia que tem como objeto o estudo das culturas extintas que<br />

viveram em épocas, em tempos e em lugares diferentes, de modo particular as que não<br />

deixaram documentos escritos. Por isso o estudo da Arqueologia consiste basicamente na<br />

análise de vestígios e de restos de materiais dessas culturas encontrados em escavações<br />

e que resistiram à destruição através do tempo.<br />

Um segundo campo de atuação da Antropologia Cultural é a Etnografia (do grego<br />

éthnos, povo e graphein, escrever) que se ocupa com a descrição das sociedades huma-<br />

3


nas por meio da observação e da análise dos grupos sociais, tentando, na medida do possível,<br />

fazer a reconstituição fiel de suas vidas. De um modo geral a Etnografia se ocupa<br />

com as culturas simples, denominadas “primitivas” ou “ágrafas” (não possuidoras de escrita).<br />

Ligado a esse campo está a Etnologia que, utilizando os dados coletados e oferecidos<br />

pela Etnografia, procura fazer a análise, interpretação e comparação das diversas culturas<br />

pesquisadas, tentando perceber as semelhanças e diferenças entre elas, buscando a existência<br />

ou não de inter-relações do ser humano com o seu ambiente, da pessoa com a cultura,<br />

em vista da percepção de mudanças e de ações.<br />

O quarto campo da Antropologia cultural é a Lingüística que estuda a linguagem, as<br />

formas de comunicação e também a forma de pensar dos povos e culturas. A lingüística é<br />

um dos espaços mais independentes e mais ricos da Antropologia. Basta pensar, por e-<br />

xemplo, na quantidade e diversidade de línguas, sendo que cada uma delas possui a sua<br />

forma e a sua estrutura básica. Por essa razão ela é considerada o âmbito mais autosuficiente<br />

da Antropologia.<br />

Temos ainda o campo do folclore e o campo da antropologia social propriamente dita.<br />

O folclore é o estudo da cultura enquanto fenômeno humano espontâneo. Possui diversos<br />

aspectos e âmbitos (rural, urbano, material, espiritual, espacial, temporal, etc.). Já a<br />

Antropologia Social se interessa da sociedade e das suas instituições. Estuda o ser humano<br />

enquanto ser social, capaz de organizar-se e de tecer relações sociais. Também ela<br />

inclui diversos aspectos: vida social, família, economia, política, religião, direito, etc. Ela<br />

pode estudar tanto um aspecto, como também o conjunto das organizações e instituições<br />

sociais, tendo presente a sua totalidade. De fato, para se compreender uma sociedade é<br />

indispensável vê-la como um todo.<br />

No campo da Antropologia Social é de fundamental importância estudar a relação<br />

que existe entre cultura, sociedade e indivíduo, uma vez que esse último não é um mero<br />

receptor e portador de cultura, mas também agente de mudança cultural. Por outro lado,<br />

sabemos que a cultura tem uma influência determinante sobre a vida do indivíduo. Pelo<br />

processo de endoculturação o grupo social confere um tipo de personalidade às pessoas<br />

que dele fazem parte. Conhecer estas inter-relações é sumamente importante para analisar<br />

o comportamento humano e a capacidade de adaptação dos indivíduos <strong>ao</strong>s valores<br />

propostos pelos grupos <strong>ao</strong>s quais pertencem.<br />

d) Interação da Antropologia com outras ciências<br />

O que acabamos de analisar nos mostra que, embora a Antropologia seja uma ciência<br />

autônoma, ela necessita de uma interação com outras ciências para que possa<br />

cumprir a sua tarefa de ciência da humanidade (Ibid.: 8-10). No âmbito da Antropologia<br />

Cultural e Social é de fundamental importância a sua interação com a Sociologia, com a<br />

Psicologia, com as Ciências Econômicas e Políticas e com a História.<br />

Através da interação entre Antropologia e Sociologia é possível conhecer melhor a<br />

condição humana e social dos indivíduos e dos grupos a que pertencem. A Antropologia<br />

vai trabalhar mais o enfoque cultural, enquanto a sociologia analisa tanto o conceito como<br />

a experiência de vida em sociedade. O cruzamento de dados e informações contribui significativamente<br />

para o conhecimento do ser humano na sua globalidade.<br />

Já a interação entre Antropologia e Psicologia se dá pelo interesse acerca do comportamento<br />

humano. A Psicologia analisa mais o comportamento individual, enquanto a<br />

Antropologia aprofunda os comportamentos grupais, sociais e culturais. Desse modo a<br />

4


Psicologia ajuda a Antropologia a compreender a complexidade das culturas a partir da<br />

avaliação do comportamento dos seus indivíduos. Essa, por sua vez, auxilia a Psicologia a<br />

perceber cada indivíduo como ser inculturado que recebe influência do ambiente onde vive<br />

e do grupo cultural a que pertence. Os dados resultantes desse processo ajudam a desvendar<br />

melhor o mistério da existência humana.<br />

No que se refere à interação entre Antropologia e Ciências Econômicas e Políticas,<br />

pode-se afirmar que os estudos comuns estão relacionados à compreensão das organizações<br />

econômicas e das instituições que regulam o poder dentro dos grupos humanos. Trata-se,<br />

sem dúvida alguma, de uma realidade complexa e bastante diferenciada, mas que é<br />

determinante para a existência das sociedades e de suas culturas.<br />

Quanto à relação entre Antropologia e História podemos afirmar que o ponto de encontro<br />

é basicamente a tentativa de reconstrução de culturas que já desapareceram. A<br />

História permite a Antropologia conhecer as origens dos fenômenos culturais, bem como<br />

as formas de adaptação e de modificação introduzidas pelas pessoas no meio ambiente.<br />

e) Métodos da Antropologia<br />

Enquanto ciência social que estuda o ser humano, a Antropologia faz uso de diversos<br />

métodos, de acordo com os seus campos e com as situações (Ibid.: 11-14). Por método<br />

entende-se um conjunto de regras bem definidas que são utilizadas na investigação.<br />

Normalmente o método segue um procedimento anteriormente elaborado e que deve ser<br />

cuidadosa e escrupulosamente observado. O método tem como finalidade descobrir quais<br />

são as lógicas e as leis da natureza e da sociedade, visando respostas satisfatórias.<br />

Normalmente são utilizados sete métodos nas pesquisas de Antropologia. O primeiro<br />

é o método histórico utilizado para a investigação de culturas passadas. Por meio dele o<br />

antropólogo, com a ajuda do historiador, tenta reconstruir as culturas, explicar fatos e observar<br />

fenômenos, como, por exemplo, as mudanças ocorridas e as adaptações. O segundo<br />

é o método estatístico empregado, sobretudo para analisar as variações culturais<br />

das populações ou sociedades. Os dados são obtidos por meio de tabelas, gráficos, quadros<br />

comparativos, etc. O terceiro é o método etnográfico utilizado para descrever as sociedades<br />

humanas, de modo particular as consideradas primitivas ou ágrafas (sem escrita).<br />

O método consiste essencialmente em levantar todos os dados possíveis sobre uma determinada<br />

cultura ou etnia e, a partir desses levantamentos, tentar descrever o estilo de<br />

vida ou cultura desses grupos.<br />

O quarto método é chamado de comparativo ou etnológico. É usado de modo particular<br />

para a pesquisa sobre populações extintas. Por meio da comparação de materiais<br />

coletados, especialmente fósseis, se estudam os padrões, os costumes, os estilos de vida<br />

das culturas, vendo de modo particular as diferenças e semelhanças existentes entre elas.<br />

O objetivo é melhor compreender as culturas passadas e extintas. O quinto método é conhecido<br />

como monográfico. É também chamado de estudo de caso. Consiste em estudar<br />

com profundidade determinados grupos humanos, considerando todos os seus aspectos<br />

como, por exemplo, as instituições, os processos culturais e a religião. O estudo monográfico<br />

é muito importante para os casos de culturas que estão ameaçadas de extinção, uma<br />

vez que permite analisá-las e descrevê-las de forma bem pormenorizada.<br />

Por fim, temos o método genealógico e o método funcionalista. No primeiro caso<br />

trata-se de um método usado para o estudo do parentesco e todos os outros aspectos sociais<br />

dele decorrentes. Visa à análise da estrutura familiar e exige a presença de um in-<br />

5


formante, ou seja, de alguém que possa revelar os nomes das pessoas que compõem a<br />

árvore genealógica. No segundo caso, a cultura é estudada e analisada a partir do âmbito<br />

da função ou das funções. Por meio dele busca-se perceber a funcionalidade de uma determinada<br />

unidade cultural no contexto da cultura geral ou global.<br />

f) Técnicas de pesquisa da Antropologia<br />

Já foi possível perceber que <strong>ao</strong>s métodos estão associadas determinadas técnicas<br />

de pesquisa. Por técnica entende-se a habilidade do cientista ou pesquisador no uso dos<br />

métodos, ou seja, daquele conjunto de regras bem definidas que são utilizadas na investigação<br />

e que lhe permite obter os dados desejados. As técnicas usadas no campo antropológico<br />

são três: observação, entrevista e formulário (ibid.: 14-16).<br />

A técnica da observação consiste na coleta e obtenção de dados. Nela os sentidos<br />

têm um lugar privilegiado. Ela pode ser sistemática ou participante. Na sistemática o pesquisador<br />

direta (pessoalmente) ou indiretamente (por meio de outras pessoas) observa os<br />

fatos no local da investigação e por um período de tempo. Na participante o pesquisador,<br />

por um longo período de tempo, participa do seu campo de pesquisa. É muito utilizada<br />

para a pesquisa cultural. Neste caso o cientista torna-se um participante ativo da cultura<br />

que quer estudar. Ela exige fina capacidade de observação, superação de preconceitos,<br />

trabalho diário de anotação, registro de fatos e de dados. Exemplo desse tipo de pesquisa<br />

é aquela feita pelo francês Roger Bastide sobre as religiões africanas em Salvador (Bahia)<br />

ou o caso de Dacyr Ribeiro que conviveu durante muito tempo com os índios Kayapós em<br />

Mato Grosso. Também Roberto DaMatta descreve a sua pesquisa entre os índios Gaviões<br />

no Pará e entre os Apinayé no atual estado de Tocantins (DAMATTA, 1987: 182-240).<br />

A técnica da entrevista consiste num contato direto, face a face, do cientista e pesquisador<br />

com a pessoa entrevistada, da qual ele pretende obter informações. A entrevista<br />

pode ser dirigida ou não dirigida (livre). A entrevista dirigida é aquela na qual o entrevistador<br />

segue um roteiro pré-estabelecido. A não dirigida é aquela do tipo informal, sem roteiro<br />

a ser seguido, na qual o entrevistador vai colhendo as idéias do entrevistado, manifestadas<br />

de forma espontânea.<br />

O formulário é uma técnica que se parece com o questionário. Consiste num levantamento<br />

de dados feito através de uma série organizada de perguntas escritas entregues<br />

<strong>ao</strong> entrevistado, às quais ele é convidado a responder. De uma certa maneira é uma pesquisa<br />

dirigida, uma vez que o rol de perguntas é feito pelo entrevistador, visando obter esclarecimentos<br />

sobre determinadas questões.<br />

Convém observar que no caso das duas últimas técnicas, embora as respostas sejam<br />

dadas pelo entrevistado, o modo de formular as perguntas e a escolha do público alvo<br />

pode induzir a um determinado resultado. Isso acontece, por exemplo, em certas pesquisas<br />

de opinião pública, como ficou bem evidente por ocasião das recentes eleições no<br />

Brasil. O risco de manipulação dos resultados pode sempre existir.<br />

2. A evolução humana como processo biológico e cultural<br />

Tendo como objetivo o estudo da humanidade, um dos campos de pesquisa da Antropologia<br />

é a evolução da humanidade. Trata-se do estudo da evolução biocultural, ou<br />

seja, de verificar como o ser humano foi crescendo e se aprimorando não só fisicamente,<br />

6


mas também, e, sobretudo, culturalmente. O estudo científico desse fato é de suma importância,<br />

uma vez que nos ajuda a perceber não só as formas de evolução da humanidade,<br />

mas também a valorizar o momento em que nos encontramos. Por outro lado, o estudo da<br />

evolução contribui para que saibamos relativizar a nossa cultura, dando-nos conta de que<br />

ela é apenas um estágio nesse processo evolutivo. Depois de nós certamente virão outras<br />

culturas que poderão alcançar formas evolutivas bem mais sofisticadas do que a nossa.<br />

No estudo da evolução humana considera-se o ser humano antes de tudo como<br />

“uma espécie do reino animal” (LABURTHE & WARNIER: 45) que foi passando da sua<br />

condição de antropóide (10 a 12 milhões de anos atrás), para a condição de hominída (a<br />

partir de nove milhões de anos atrás). Portanto, de uma condição de puro primata para a<br />

condição de ser com características sociais e pensantes (MARCONI & PRESOTTO: 49-<br />

75). De acordo com boa parte dos antropólogos os dois tipos de evolução (biológica e cultural)<br />

se deram numa interação permanente. A evolução biológica tornou possível a evolução<br />

social, mas essa contribuiu para o aprimoramento daquela (LABURTHE & WARNIER:<br />

54-58). Assim sendo, a distinção que fazemos a seguir serve apenas a um objetivo metodológico,<br />

visando a melhor compreensão dos dois aspectos.<br />

a) A evolução como processo biológico<br />

A evolução biológica é estudada pela Antropologia Física. Por isso aqui não iremos<br />

nos deter em detalhes. Apenas pretendemos oferecer alguns elementos que nos permitam<br />

compreender depois a evolução cultural, uma vez que, como vimos anteriormente, ambas<br />

estão intimamente relacionadas. De fato, para conhecer o seu humano na sua totalidade é<br />

preciso também conhecer “as diferentes fases pelas quais a humanidade passou, desde o<br />

Homo primitivo até o homem atual, isto é, moderno” (MARCONI & PRESOTTO: 49).<br />

O estudo da evolução biológica do ser humano se concentra essencialmente na<br />

análise dos fósseis, tentando perceber as transformações anatômicas e fisiológicas pelas<br />

quais ele passou, a partir da sua condição de primata superior. A Paleontologia e a Arqueologia<br />

fazem esse estudo considerando as eras e os períodos geológicos, uma vez que a<br />

evolução humana tem tudo a ver com isso. Os paleontólogos e os arqueólogos já dispõem<br />

de material que datam de cerca de 70 milhões de anos atrás, quando se deu a passagem<br />

dos antropóides para os hominídeos. Mas a etapa mais importante é a do período conhecido<br />

como Pleistoceno (entre dois milhões a 10 mil anos atrás), pois foi neste período que<br />

o ser humano sofreu as suas maiores alterações (Ibid.: 49-52).<br />

O período Pleistoceno foi marcado por um clima bastante instável, com fases de<br />

muitas chuvas e outras de muita seca. Houve avanços e recuos das geleiras. Tudo isso<br />

interferiu na vida animal e vegetal forçando migrações ou causando a extinção de muitas<br />

espécies.<br />

Como dito anteriormente, as transformações evolutivas do ser humano podem ser<br />

registradas através dos fósseis descobertos. Embora em quantidade pequenas esses fósseis<br />

foram encontrados tanto na Ásia como na África. No continente americano os achados<br />

são da fase final do Pleistoceno. Os achados arqueológicos permitem o reconhecimento<br />

de quatro fases evolutivas do ser humano a partir de seus ancestrais pré-humanos:<br />

pré-homínida; homo erectus, homo sapiens e homo sapiens sapiens (Ibid.: 55-69).<br />

Os cientistas, de um modo geral reconhecem apenas um nosso ancestral da fase<br />

pré-homínida (até um milhão de anos atrás): o Homo australopithecus (austral, sul; pithecus,<br />

macaco), ou homem-macaco, macaco-homem ou quase homem. Ele, entre outras<br />

7


características, era bípede e habitava em lugares mais abertos, especialmente às margens<br />

dos lagos. Era de baixa estatura, com caixa craniana pequena, tendo os dentes molares<br />

bastante desenvolvidos. Não existem registros de que entre as diversas espécies<br />

existisse alguma forma de contato.<br />

O homo erectus, segundo os cientistas viveu no Pleistoceno Médio, ou seja, entre<br />

um milhão e 100 mil anos atrás. Ele teria evoluído a partir do australopithecus africano e<br />

se espalhado por outros lugares do planeta, tendo sido encontrados vestígios dele na ilha<br />

asiática de Java e em Pequim. Entre as suas principais características estão: cérebro<br />

grande (900 a 1200 cm 3 ), bípede, altura em torno de 1,60m, redução dos molares, caninos<br />

menores e diversas modificações na face. Foi constatada uma modificação da pélvis, indicando<br />

que ele fazia caminhadas mais longas. Usava artefatos de pedra e armas, praticava<br />

a caça, inclusive de animais de grande porte, valendo-se para tanto de tochas de fogo e<br />

de armadilhas. Ele foi extinto no Pleistoceno Superior.<br />

De acordo com os antropólogos (Ibid.: 62-67) o homo sapiens primitivo, também<br />

conhecido como pré-sapiens teria surgido por volta de 500 mil anos atrás, portanto no período<br />

do Pleistoceno Superior e desaparecido a cerca de 70 a 40 mil anos. O mais conhecido<br />

representante do homo sapiens é o homo sapiens de Neanderthal que teria surgido<br />

há cerca de 150 mil anos atrás. O primeiro fóssil dessa espécie foi encontrado na Alemanha<br />

em 1856, mas existem indícios de que ele viveu também na Ásia e na África. Suas<br />

principais características físicas: era pequeno (cerca de 1,55 a 1,60m), bípede e curvo e,<br />

comparando-se com os seres humanos atuais, tinha os membros superiores bem menores.<br />

Tinha cérebro bem mais volumoso do que os humanos atuais (cerca de 1.540 cm 3 ),<br />

sendo que o do homem era maior do que o da mulher (1.300cm 3 ).<br />

Os cientistas divergem quanto <strong>ao</strong> fim do homo sapiens. Alguns acreditam que ele<br />

teria sido expulso para o sul da Europa pelo homo sapiens sapiens. Outros levantam a<br />

hipótese de que teria se misturado com estes últimos, dando origem <strong>ao</strong>s descendentes<br />

diretos dos europeus. Tal miscigenação teria sido confirmada pela descoberta de um fóssil<br />

de criança, de cerca de 25 mil anos, perto de onde hoje é a cidade de Leira, em Portugal.<br />

Mas o motivo “do desaparecimento do Homem de Neanderthal, por volta de 30 mil anos<br />

atrás, é ainda hoje inexplicado. Dois fatos podem ter ocorrido: ou aconteceu a miscigenação<br />

ou simplesmente os neanderthalenses desapareceram dado o clima instável da época”<br />

(Ibid.: 66). Os registros de fósseis desse período e a utilização de exames de DNA têm<br />

reforçado a teoria da origem africana do homem de Neanderthal, o qual “desenvolveu-se<br />

em uma única localidade no deserto do Saara, África, de 100 mil a 200 mil anos atrás e<br />

emigrou mais recentemente, substituindo populações existentes de humanos antigos de<br />

todo o Universo” (Ibid.: 67).<br />

Por fim, o último grupo de ancestrais humanos seria o homo sapiens sapiens que<br />

teria vivido entre 35 a 10 mil anos atrás, embora alguns cientistas, como é o caso do antropólogo<br />

Jospe Gilbert Clols, cheguem a afirmar que ele surgiu há 200 mil anos (Ibid.: 67-<br />

68). Ele viveu na Europa, na Ásia e na África e, mais tarde, teria chegado à América. Inicialmente<br />

compreendia duas raças das quais, mais tarde, surgiram os três grupos raciais:<br />

brancos, negros e amarelos (asiáticos). Esse grupo humano, em relação <strong>ao</strong>s demais, já<br />

utilizava uma tecnologia avançada e uma cultura considerada bastante desenvolvida. E-<br />

xemplo disso são as pinturas nas paredes das cavernas, os murais de baixo relevo, gravuras,<br />

esculturas e modelagens deste período encontradas pelos arqueólogos.<br />

Hoje existe um certo consenso entre os estudiosos, corroborado pelos exames de<br />

DNA, de que o ser humano teria surgido na África e depois se espalhado pelos outros con-<br />

8


tinentes. Isso levanta a pergunta sobre o surgimento das diferentes raças humanas (Ibid.:<br />

69-74). Embora ainda não exista um consenso sobre a definição de raça, os antropólogos<br />

concordam num ponto: o ser humano pertence a um mesmo gênero (homo) e a uma<br />

mesma espécie (sapiens). Acredita-se que houve um tronco comum, mas não se sabe<br />

dizer quando foi que começou a diversificação.<br />

As dificuldades em definir o conceito de raça estão ligadas a três fatores: a relatividade<br />

do tempo, a questão das grandes diferenças físicas e à distribuição espacial dos seres<br />

humanos. Houve, a partir de 1758, com o naturalista sueco Linneu, o primeiro a fazer<br />

esse trabalho, várias tentativas de definição e de classificação de raças. De um modo geral<br />

os antropólogos aceitam a definição de raça dada por Vallois: “Agrupamentos naturais<br />

de homens, que apresentam um conjunto de caracteres físicos hereditários comuns,<br />

quaisquer que sejam suas línguas, costumes e nacionalidade” (apud ibid.: 71). Quanto à<br />

classificação há também uma comum aceitação de que as principais raças são: caucasóide<br />

ou branca; negróide ou africana e mongolóide ou asiática. Há divergências quanto à<br />

questão das etnias ou sub-raças. Não há concordância acerca da primeira raça. Alguns<br />

estudiosos acreditam que seja a africana, outros afirmam ser a branca.<br />

Quanto à diferenciação das raças afirma-se que ela se deve a uma série de fatores.<br />

Entre esses fatores estariam a seleção natural, a mutação (alteração no gene), isolamento<br />

de grupos, pendor genético (sobrevivência, difusão e combinação de genes mutantes),<br />

hibridação (união de indivíduos de genes diferentes), seleção sexual (escolha do cônjuge)<br />

e seleção social (regulamentação dos cruzamentos).<br />

b) A evolução como processo cultural<br />

Para se falar de evolução cultural é indispensável ter presente as observações feitas<br />

por DaMatta a este respeito (DAMATTA, 1987: 86-142). Lembrando que em antropologia<br />

sempre há o risco de “buscar a generalidade para realizar generalizações de cunho<br />

formalista”, DaMatta critica o hábito de certos antropólogos que consiste em separar os<br />

fatos de seus contextos. Por essa razão ele levanta uma certa suspeita em relação <strong>ao</strong><br />

evolucionismo antropológico, o qual trabalha muito com idéias gerais. Entre essas idéias<br />

gerais ele destaca quatro: a comparação dos costumes das sociedades humanas, a afirmação<br />

de que os costumes têm uma origem e um fim, o princípio de que as sociedades se<br />

desenvolvem irreversivelmente de modo linear e a definição das diferenças entre os seres<br />

humanos a partir das características anteriores.<br />

Ao trabalhar com idéias genéricas a antropologia termina por dar respaldo a um tipo<br />

de progresso que é “sintoma de uma sociedade muito confiante nas suas possibilidades e<br />

na sua superioridade” (Ibid.: 93). Com isso, acredita DaMatta, os antropólogos assumem o<br />

lugar daquelas culturas que estão estudando, não permitindo que elas mesmas falem. Esse<br />

modo de estudar as culturas, colocando-se acima delas, teve como resultado a destruição<br />

do planeta, hoje tão visível. Isso porque o progresso que construímos está profundamente<br />

relacionado <strong>ao</strong> determinismo tanto temporal como histórico que concebe a evolução<br />

da humanidade de forma unilinear, perdendo de vista a multiplicidade de realidades e<br />

toda a riqueza das diferenças.<br />

DaMatta questiona também o método funcionalista usado na Antropologia a partir<br />

das obras de Malinowski e Radcliffe-Brown (Ibid.: 101-106. Tal método, usado inicialmente<br />

como reação <strong>ao</strong> evolucionismo, relaciona o presente com o futuro, explicando um pelo<br />

outro. Afirma que numa sociedade ou sistema nada acontece por acaso e nada está defi-<br />

9


nitivamente errado ou deslocado. O que existe hoje é apenas sobra ou sobrevivência do<br />

passado. Embora tivesse o mérito de mostrar que a pesquisa antropológica tem um duplo<br />

movimento, o funcionalismo desenvolve uma visão parcial das culturas, uma vez que tende<br />

a interpretar os fatos do passado projetando sobre eles as concepções e valores do<br />

presente.<br />

Feitas essas observações inicias, podemos agora tentar descrever alguns elementos<br />

da evolução cultural do ser humano. Vimos inicialmente que esse tipo de evolução está<br />

associado àquela psicobiológica. Por evolução cultural entendemos o fato de que o ser<br />

humano foi “capaz de produzir, ou seja, capaz de criar e acumular experiências e principalmente<br />

de transmiti-las socialmente” (MARCONI & PRESOTTO: 77). Por essa razão a<br />

cultura é considerada, enquanto desenvolvimento de padrões, comportamentos, hábitos e<br />

costumes, a principal característica do ser humano.<br />

A evolução cultural é atestada pelos diversos achados arqueológicos (Ibid.: 76-91).<br />

Através de artefatos encontrados pode-se avaliar tal processo evolutivo cultural (Ibid.: 168-<br />

182). Esse segue basicamente os mesmos estágios da evolução biológica. Pode-se afirmar<br />

que os registros de cultura começam com o homem de Neanderthal que tinha características<br />

sociais significativas. Vivia em cavernas, usava o fogo com a finalidade de se<br />

aquecer e iluminar e talvez também para cozinhar. Sobrevivia da caça e da coleta, aperfeiçoando<br />

as técnicas para isso, passando a usar, além da pedra lascada também ossos,<br />

madeira, conchas, dentes e chifres. Inventou instrumentos como o machado, a faca, a<br />

raspadeira, as pontas de lança, o martelo, cinzéis, lâminas e cabos de madeira. Ele foi o<br />

primeiro a utilizar instrumentos musicais feitos de ossos e o usar o breu retirado de árvores<br />

como cola.<br />

No homem de Neanderthal foram encontrados vestígios de religiosidade, uma vez<br />

que construía sepulturas onde enterrava seus mortos com os seus pertences, levando-nos<br />

a crer que ele acreditava na existência da alma e do espírito. Foram encontradas evidências<br />

de que ele já praticava a magia e cultuava o urso. A maioria dos antropólogos acredita<br />

que o homem de Neanderthal alcançou um nível complexo de cultura, existindo sinais<br />

de vida grupal e de espírito de cooperação. Apoiava os mais fracos, possuía uma linguagem,<br />

embora com um número limitado de sons. Conhecia plantas medicinais. O período<br />

em que ele viveu era marcado por mudanças climáticas rápidas o que exigia uma série de<br />

adaptações.<br />

De um modo geral os antropólogos dividem o estudo da evolução cultural em quatro<br />

períodos: culturas do Paleolítico, culturas do Mesolítico, culturas do Neolítico e culturas<br />

recentes (Ibid.: 80-89).<br />

As culturas do Paleolítico compreendem aquelas do período que vai de 500 mil a 10<br />

mil anos atrás. Elas se caracterizam pela presença do ser humano predador ou caçador<br />

de alimentos. O homem e a mulher desse período desenvolveram um modo sistemático<br />

de coletar alimentação que consistia basicamente em vegetais e pequenos animais selvagens.<br />

Neste período se dá a primeira grande revolução no setor da economia e da indústria.<br />

O ser humano cria seus próprios recursos, os quais consistem em técnicas diferentes<br />

para coletar alimentos, usando instrumentos produzidos a partir da pedra, da madeira, de<br />

ossos e conchas. Este tipo de evolução não aconteceu de forma idêntica em todos os lugares<br />

e períodos. De fato, os antropólogos dividem esse período em três etapas; Paleolítico<br />

Inferior (de 500 mil a 150 mil anos atrás), Paleolítico Médio (150 mil a 40 mil anos) e<br />

Paleolítico Superior (40 mil a 12 mil anos atrás).<br />

10


As culturas mesolíticas são aquelas do período que vai de 12 mil a 10 mil a.C. De<br />

acordo com os antropólogos trata-se de um período breve que marca a passagem do ser<br />

humano predador para produtor de alimentos. Neste período são desenvolvidas técnicas<br />

mais sofisticadas e se dão invenções significativas como o arco, a flecha, a roda, as agulhas,<br />

os arpões, os trançados, a enxada, os pilões, a canoa e a rede. Iniciam-se as aglomerações<br />

humanas, especialmente em torno dos locais de pesca, favorecendo assim um<br />

certo sedentarismo. Em virtude disso surgem as habitações, que inicialmente eram palafitas<br />

construídas sobre os lagos e com a finalidade de oferecer abrigo contra as intempéries<br />

do tempo e do clima.<br />

O Neolítico começa por volta de 10 mil a.C. e se estende até 4.500 anos a.C. Neste<br />

período se dão transformações significativas. O ser humano começa a se fixar na terra e,<br />

além da coleta de vegetais, passa a domesticar e criar animais (cabras e ovelhas) para a<br />

sua alimentação. Neste período nasce e se consolida a agricultura que era formada basicamente<br />

do cultivo de trigo e cevada. Os humanos inventam os silos para armazenar alimentos.<br />

Os instrumentos de caça e pesca e os agrários são aperfeiçoados pela técnica do<br />

polimento e revestidos de estética. Entre 7.000 e 8.000 a.C. surge a cerâmica. No Neolítico<br />

se consolidam as aldeias sedentárias que mais tarde serão transformadas em vilas,<br />

cidades e centros comerciais.<br />

Tudo isso contribuiu para mudanças significativas no modo de pensar e de agir do<br />

ser humano, uma vez que ele tinha garantido a sua auto-suficiência. Desenvolve-se neste<br />

período o culto à fecundidade e a mulher passa a ter status na sociedade. O sedentarismo<br />

e a facilidade dos meios de sobrevivência permitiram um aumento da população e a formação<br />

de grandes aglomerados urbanos. A partir desse período têm início as culturas recentes<br />

das quais temos vestígios mais abundantes que nos permitem conhecê-las melhor.<br />

c) Importância do estudo da evolução para a Antropologia da Religião<br />

Podemos concluir afirmando que o estudo da evolução do ser humano contribui para<br />

que mudemos os nossos olhares. O antropólogo sério sabe muito bem disso e procura<br />

relativizar ou até eliminar toda pretensão de superioridade das culturas atuais. Ele constata<br />

a presença permanente de mudanças desde que a humanidade apareceu sobre a Terra<br />

e tem consciência de que esse processo continuará por todo o período em que a humanidade<br />

existir. Assim sendo, a reflexão sobre a evolução humana “relativiza a suposta novidade<br />

da modernidade, e seus surpreendentes fenômenos espetaculares como a revolução<br />

industrial, nuclear ou informática” (LABURTHE & WARNIER: 58). Isso porque cada invenção<br />

ou descoberta deve ser contextualizada e ganhar importância a partir daí. Tendo presente<br />

esse princípio podemos afirmar que outras descobertas do passado sejam até mais<br />

importantes do que aquelas atuais como, por exemplo, a invenção da agricultura. Portanto,<br />

aquela concepção “das sociedades primitivas paralisadas em um eterno presente é<br />

fonte de erro” (Ibid.: 58).<br />

Conseqüentemente o estudo da evolução cultural é muito importante para a Antropologia<br />

da Religião porque nos ajuda a perceber como a experiência religiosa, que sempre<br />

acompanhou o ser humano e os grupos sociais, também passou por diversos estágios<br />

evolutivos. Da mesma forma como o ser humano vai mudando biologicamente e culturalmente<br />

também vai progredindo em sua crença. Desse modo é possível perceber uma certa<br />

evolução na maneira de se relacionar com o transcendente, com a divindade. Outras<br />

vezes nota-se recuos significativos.<br />

11


De um modo geral, as pessoas e os grupos humanos, na medida em que avançam<br />

no conhecimento e no saber, não precisam mais incomodar os deuses para explicar certas<br />

realidades. Assim a experiência religiosa passa a ser mais crítica e mais adulta, no sentido<br />

de que a religiosidade permite <strong>ao</strong>s humanos entenderem suas questões e assumirem suas<br />

responsabilidades. Às vezes, porém, há como que um recuo e um fechamento em torno<br />

de uma visão mágica e milagreira da religião, impedindo as pessoas de verem com<br />

clareza o que está acontecendo. Quando esse recuo acontece a religião corre o risco de<br />

se tornar ópio, anestésico, uma vez que leva o sujeito à “despossessão de si”, ou seja, a<br />

se tornar “alheio a si mesmo” (COLLIN: 34).<br />

No momento atual, por exemplo, mesmo com todo o avanço da ciência e da tecnologia,<br />

há uma presença muito forte da religiosidade em todo o mundo. No Brasil, como<br />

veremos mais adiante, quase 93% da população se declara adepta de uma religião. No<br />

entanto, nunca como hoje, assiste-se a um verdadeiro estranhamento do ser humano de si<br />

mesmo. De um modo geral a experiência religiosa não está criando consciência crítica e<br />

atitudes de responsabilidade. As pessoas que se professam adeptas de uma religião, salvo<br />

pouquíssimas exceções, vivem numa tremenda alienação religiosa. Elas não têm autonomia<br />

verdadeira, vivem projetando suas vidas num mundo ilusório, imaginário, fora da<br />

realidade terrestre. Apelam para os deuses e deixam a eles a tarefa de resolver situações<br />

que elas mesmas poderiam e deveriam resolver. Com isso, em nome da religião ou da<br />

religiosidade, deixa-se de intervir na hora certa e no lugar certo para corrigir injustiças e<br />

incrementar um estilo de vida no qual prevaleça a solidariedade e a paz (Ibid.: 28-57).<br />

O estudo da evolução da religiosidade da humanidade nos permite afirmar a necessidade<br />

de que no mundo de hoje a experiência religiosa se transforme em espiritualidade.<br />

Essa, segundo Boff, “é aquela atitude que coloca a vida no centro, que defende e promove<br />

a vida contra todos os mecanismos de diminuição, de estancamento e de morte” (BOFF,<br />

13-131). Disso nasce uma grande tarefa para os cientistas, estudiosos e acadêmicos que<br />

dizem professar uma fé religiosa: ajudar a religiosidade a se transformar em espiritualidade.<br />

De fato, como diz ainda Boff, a experiência religiosa que se transforma em espiritualidade<br />

é criativa, capaz de proporcionar mais capacidade <strong>ao</strong> ser humano de extasiar-se e<br />

de contemplar. A pessoa que faz da sua experiência religiosa uma experiência de espiritualidade<br />

é capaz de captar a harmonia e a beleza do universo e, a partir disso, perceber<br />

que conhecer ou saber não é “um ato de apropriação e domínio sobre as coisas, mas uma<br />

forma de amor e de comunhão com as coisas” (Ibid.: 133).<br />

O amor e a comunhão levam o cientista, o estudioso, a mostrar que na religião não<br />

cabem atitudes de manipulação e de dominação. Na religião não podem existir individualismos<br />

que fazem das pessoas seres insensíveis, indiferentes, hostis e egoístas. Desse<br />

modo espiritualidade e ciência terminam se encontrando num ponto comum: o ser humano<br />

é responsável por quase tudo que acontece no mundo. Ele não pode, em pleno século<br />

XXI, achar que ainda é vítima do fetichismo, ou seja, alguém submetido <strong>ao</strong> capricho dos<br />

deuses. Em nosso tempo a religião que não for subversiva, capaz de captar a verdade e a<br />

realidade das pessoas, dos fatos e das coisas, estará sendo desumana e cruel. Não há<br />

mais razão para que ela exista. Se uma religião ou uma experiência religiosa não é capaz<br />

de questionar com ousadia e criatividade os sistemas sociais, políticos, morais e religiosos<br />

que mantêm a humanidade e o planeta em constante ameaça de extinção, ela perdeu por<br />

completo a sua razão de ser. Passa a ser ela também uma séria ameaça para a vida no<br />

planeta.<br />

12


3. As especificidades da antropologia cultural<br />

3.1. O conceito de cultura<br />

A análise da evolução cultural e religiosa do ser humano exige a compreensão do<br />

conceito de cultura. Sabemos que a palavra cultura é de origem latina. Deriva do verbo<br />

colere (cultivar ou instruir) e do substantivo cultus (cultivo, instrução). Etimologicamente<br />

tem muito a ver com o ambiente agrário, com o costume de trabalhar a terra para que ela<br />

possa produzir e dar frutos. Ainda hoje se costuma usar a palavra cultura para designar o<br />

desenvolvimento da pessoa humana por meio da educação e da instrução. Disso vêm os<br />

termos culto e inculto, usados no jargão popular com uma carga de preconceito e de discriminação,<br />

considerando uma cultura (especialmente a letrada) superior a outra. Porém,<br />

não existem grupos humanos sem cultura e não existe um só indivíduo que não seja portador<br />

de cultura.<br />

A cultura, pois, é um termo vasto e complexo, englobando vários aspectos da vida<br />

dos grupos humanos. Não existe ainda um consenso entre antropólogos acerca do que<br />

seja a cultura. Afirma-se que existem mais de 160 definições de cultura (MARCONI &<br />

PRESOTTO: 21-22). Tylor foi o primeiro a formular um conceito de cultura. Para ele essa<br />

“é aquele todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os<br />

costumes e todos os outros hábitos e aptidões adquiridos pelo homem como membro da<br />

sociedade” (apud ibid.: 22). Poderíamos então afirmar que cultura é a forma ou o jeito comum<br />

de viver a vida cotidiana na sua totalidade por parte de um grupo humano. Inclui<br />

comportamentos, conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes, hábitos, aptidões,<br />

tanto adquiridos como herdados.<br />

a) Elementos da cultura<br />

Percebe-se então que existem vários elementos de cultura. As idéias que são os<br />

conhecimentos, os saberes e as filosofias de vida. A crença que consiste em tudo aquilo<br />

que se crê ou se acredita em comum. Os valores, ou seja, a ideologia e a moral que determinam<br />

o que é bom e o que é ruim. As normas que englobam tanto as leis, os códigos,<br />

como os costumes, aquilo que se faz por tradição. As atitudes ou comportamentos, isto é,<br />

maneiras de cultivar os relacionamentos com as pessoas do mesmo grupo e com aquelas<br />

que pertencem a grupos diferentes. A abstração do comportamento, a qual consiste nos<br />

símbolos e nos compromissos coletivos. As instituições que funcionam como uma espécie<br />

de controle dos comportamentos, indicando valores, normas e crenças. As técnicas ou<br />

artes e habilidades desenvolvidas coletivamente. Os artefatos que são os instrumentos e<br />

utensílios usados para aperfeiçoar as técnicas e os modos de vida (Ibid.: 27-31).<br />

Podemos então afirmar que a essência da cultura está basicamente em três elementos:<br />

as idéias, as abstrações e os comportamentos. As idéias são concepções mentais<br />

das coisas concretas ou abstratas. As abstrações são a capacidade de contemplar as i-<br />

déias e traduzi-las em sinais e símbolos. Os comportamentos são os modos de agir dos<br />

grupos humanos, a partir das idéias e das abstrações (Ibid.: 25-26). Portanto, é possível<br />

concluir que a cultura “consiste em uma série de coisas reais que podem ser observáveis,<br />

ser examinadas num contexto extra-somático” (Ibid.: 26).<br />

13


Enquanto coisas reais e observáveis, a cultura pode ser classificada em três tipos:<br />

1) material, quando ela é formada por coisas ou objetos materiais, desde os machados de<br />

pedra das antigas civilizações até os moderníssimos computadores; 2) imaterial, também<br />

chamada de não material ou espiritual, quando não tem substância material, mas, assim<br />

mesmo, é algo real, como no caso das crenças, dos hábitos e dos valores; 3) cultura ideal,<br />

aquela que é apresentada verbalmente como sendo a perfeita para um determinado grupo,<br />

mas que nem sempre é praticada. Pode-se tomar como exemplo disso a cultura religiosa,<br />

a qual nem sempre é assumida integralmente pelos que se dizem adeptos dela (Ibid.:<br />

26-27).<br />

Normalmente numa cultura os conhecimentos são mais de ordem prática, ligados à<br />

questão da sobrevivência. Todavia o conhecimento engloba também a organização social,<br />

as estruturas sociais, os costumes, as crenças, bem como as técnicas de trabalho e os<br />

conhecimentos acadêmicos. Por crença entende-se “a aceitação como verdadeira de uma<br />

proposição comprovada ou não cientificamente. Consiste em uma atitude mental do indivíduo,<br />

que serve de base à ação voluntária. Embora intelectual, possui conotação emocional”<br />

(Ibid.: 27). Os antropólogos costumam classificar as crenças em três categorias: a)<br />

pessoais, isto é, aquelas que são aceitas por cada indivíduo, independentemente das<br />

crenças do seu grupo; é o caso da crença no caapora; b) declaradas, ou seja, aquelas que<br />

são aceitas, pelo menos em público, com a finalidade apenas de evitar constrangimentos;<br />

no Brasil poderia ser exemplo disso a crença na igualdade entre as pessoas, especialmente<br />

entre homem e mulher; c) públicas são aquelas crenças aceitas e declaradas como<br />

crenças comuns. Exemplo disso é a crença na ressurreição por parte dos cristãos e na<br />

reencarnação por parte dos espíritas. Existem antropólogos que falam de crenças científicas<br />

(que podem ser comprovadas), supersticiosas (fruto do medo) e extravagantes (quando<br />

fogem do comum e do que é considerando normal, como é o caso da crença de que<br />

pode acontecer alguma coisa numa sexta-feira, dia 13 do mês). Há ainda os que classificam<br />

as crenças em benéficas e maléficas (Ibid.: 28).<br />

Dentro da cultura os valores são muito importantes. Eles são definidos pelos antropólogos<br />

como sendo “objetos e situações consideradas boas, desejáveis, apropriadas,<br />

importantes, ou seja, para indicar riqueza, prestígio, poder, crenças, instituições, objetos<br />

materiais, etc. Além de expressar sentimentos, o valor incentiva e orienta o comportamento<br />

humano” (Ibidem). Já as normas são definidas como “regras que indicam os modos de<br />

agir dos indivíduos em determinadas situações”. De um modo geral consistem “num conjunto<br />

de idéias, de convenções referentes àquilo que é próprio do pensar, sentir e agir em<br />

dadas situações” (Ibid.: 29). As normas podem ser ideais (aquelas que os membros do<br />

grupo devem praticar) e comportamentais que são aquelas reais, pelas quais, em determinadas<br />

situações, os indivíduos fogem das ideais. Exemplos disso são as normas de trânsito.<br />

Um outro elemento importante para a cultura é o símbolo. “Símbolos são realidades<br />

físicas ou sensoriais às quais os indivíduos que os utilizam lhes atribuem valores ou significados<br />

específicos” (Ibid.: 30). Normalmente os símbolos costumam representar coisas<br />

concretas ou também abstratas.<br />

b) Estrutura da cultura e níveis de participação<br />

Toda cultura possui uma estrutura. Normalmente ela se estrutura a partir de seis<br />

aspectos (Ibid.: 33-39). O primeiro deles é o traço cultural, considerado o menor elemento<br />

da cultura (a feijoada, o sotaque, etc.), mas que já permite a sua descrição. Os traços po-<br />

14


dem ser materiais ou não. Um segundo aspecto é formado pelos complexos culturais que<br />

são o conjunto de diversos traços ou características de uma cultura, formando o seu todo<br />

funcional (as diversas características de uma região brasileira). Em terceiro lugar podemos<br />

mencionar os padrões culturais que são as coincidências individuais de conduta manifestas<br />

por um grupo social. Em quarto lugar aparecem as configurações culturais, ou seja, a<br />

integração dos outros três elementos, a ponto de dar unidade à cultura, de modo que essa<br />

possa ser identificada a partir disso. Pense-se, por exemplo, na configuração cultural do<br />

povo mineiro. Em quinto lugar estão as áreas culturais, que são os territórios geográficos<br />

onde estão localizadas as culturas. As áreas culturais podem ser diferentes das áreas geográficas.<br />

Pense-se na área cultural do Nordeste que pode inclusive estar localizada também<br />

em São Paulo e no Rio de Janeiro. Por fim temos a subcultura que pode ser definida<br />

como algo que gera uma variação da cultura (um grupo cultural menor dentro da sociedade<br />

maior). É o caso, por exemplo, da cultura japonesa dentro da cultura paulistana. Por<br />

essa razão o termo “subcultura” não pode e nem deve ter conotação pejorativa ou negativa.<br />

Isso já nos revela que o nível de participação dos indivíduos numa determinada cultura<br />

é bastante variável. Marconi e Presotto, citando o antropólogo Ralph Linton (Ibid.: 37-<br />

39) falam de quatro níveis: 1) universal, quando os padrões culturais são seguidos pela<br />

maioria absoluta da sociedade (respeito pelos idosos); 2) especial, quando certas normas<br />

são praticadas apenas por algum grupo ou alguns grupos de pessoas da sociedade (cultura<br />

católica); 3) alternativo, quando certos padrões são seguidos apenas por um número<br />

limitado de pessoas numa determinada sociedade (cultura dos grafiteiros); 4) da peculiaridade<br />

individual, que consiste nas características pessoais dos indivíduos que compõem o<br />

grupo cultural.<br />

c) Qualidades da cultura e processos culturais<br />

Disso resultam as qualidades da cultura e os processos culturais (Ibid.: 39-47). As<br />

qualidades da cultura podem ser entendidas como aqueles modos de vida, ou seja, as<br />

formas pelas quais as culturas se manifestam. Uma primeira qualidade é a social, isto é, a<br />

cultua aprendida, acumulada e transmitida pelo grupo social. A segunda é a seletiva, ou<br />

seja, aquela que se refere <strong>ao</strong> que cada cultura escolhe ou postula como básico para a sua<br />

sobrevivência (exemplo: o forró e a festa do São João no Nordeste). Uma terceira qualidade<br />

é chamada de explícita ou manifesta e se dá quando uma cultura é exteriorizada através<br />

de ações ou movimentos (o caso do carnaval brasileiro). Por fim a qualidade implícita<br />

ou não manifesta, que é aquela que se encontra na mente, no íntimo, das pessoas do<br />

grupo cultural (crenças, valores, etc.).<br />

Disso tudo resultam os processos culturais, os quais são maneiras, conscientes ou<br />

inconscientes, através das quais os grupos sociais se organizam e se comportam. Por<br />

meio dos processos culturais as culturas realizam mudanças significativas seja assimilando<br />

novos traços, seja abandonando outros. Um primeiro tipo de processo cultural é a mudança<br />

cultural, a qual consiste na realização de alterações na cultura, a partir de descobertas,<br />

invenções, empréstimos, abandonos, substituições, perda, etc. Um segundo elemento<br />

do processo é a difusão cultural, ou seja, a propagação de elementos culturais por<br />

imitação, estímulo ou imposição. O terceiro tipo de processo cultural é a aculturação, isto<br />

é, a fusão de duas ou mais culturas diferentes, desde o contato entre elas até o surgimento<br />

de uma nova cultura. Foi o que aconteceu no Brasil com as diferentes culturas. O quarto<br />

15


processo cultural é a endoculturação que é a forma de estruturação que condiciona o<br />

comportamento da conduta e dá estabilidade à cultura. Por meio da endoculturação se dá<br />

a transmissão da cultura.<br />

d) A relação entre indivíduo e cultura<br />

Marconi e Presotto lembram muito bem que a pessoa “adquire as crenças, o comportamento,<br />

os modos de vida da sociedade a que pertence”. Porém nenhum indivíduo<br />

“aprende toda a cultura, mas está condicionado a certos aspectos particulares da transmissão<br />

de seu grupo” (Ibid.: 47). Embora haja por parte do grupo cultural um certo controle<br />

sobre os comportamentos das pessoas, nenhum ser humano se deixa condicionar totalmente<br />

pelas imposições de sua cultura. Isso nos permite falar da relação entre cultura e<br />

personalidade (Ibid.: 183-195).<br />

A Antropologia se interessa por este tema, uma vez que essa relação, na maioria<br />

das vezes dialética, tensa, é que produz o dinamismo dos processos culturais dos quais<br />

falamos anteriormente. De fato, as culturas são formadas de seres humanos que adotam<br />

uma forma de viver e se tornam portadores dessas culturas.<br />

Sabemos que o ser humano só se humaniza se interagir com os demais seres humanos.<br />

É a sociedade que, normalmente, estimula a pessoa a desenvolver suas potencialidades.<br />

Além disso, a elaboração da cultura supõe uma interação entre o indivíduo, a sociedade<br />

e o ambiente onde ele vive. Normalmente o ser humano tem o seu comportamento<br />

modelado pela sua cultura, a qual é geradora de personalidades. O processo de enculturação,<br />

de educação e de socialização é o responsável pela produção das personalidades.<br />

Por meio dele o sujeito interioriza a sua cultura e molda a sua personalidade.<br />

Acontece, porém, que a enculturação não é a aceitação compulsória e passiva do<br />

comportamento ditado pela sociedade. Os indivíduos se ajustam à cultura de modos variados<br />

e diferentes, segundo seus interesses. Mesmo porque a configuração <strong>ao</strong>s padrões<br />

culturais depende da personalidade de cada indivíduo, dada a diferença de temperamentos<br />

e <strong>ao</strong>s aspectos psicológicos de cada um. É certo que tanto a sociedade como os seus<br />

indivíduos não podem viver sem cultura, uma vez que essa é a sua identidade, a maneira<br />

própria de ser das pessoas e dos grupos sociais. Todavia a assimilação da cultura depende<br />

de vários fatores, desde aqueles genéticos até aqueles ambientais.<br />

Hoje temos condições de saber que a formação da personalidade humana depende<br />

de vários fatores. Antes de tudo o fator da homeostase, isto é, do equilíbrio entre corpo e<br />

mente, o qual, por sua vez, depende de tantos outros fatores. Depois o fator sócio-cultural,<br />

o qual consiste naquela ação da cultura que tenta padronizar as personalidades, regulando<br />

os seus comportamentos, tentando criar uma personalidade coletiva. Por fim o fator<br />

ambiental, o qual consiste na influência de elementos externos, como, por exemplo, o clima,<br />

a alimentação, a localização geográfica, etc.<br />

Podemos então concluir que há uma influência decisiva da cultura, do ambiente e<br />

do elemento biológico na formação da personalidade humana. Mas não se pode falar de<br />

um biologismo, de um culturalismo exclusivo e de um determinismo ambiental. Não podemos<br />

ter posições deterministas e querer construir estereótipos a partir disso. O ser humano<br />

é sempre capaz de surpreender e inventar.<br />

3.2. A construção do “outro”<br />

16


Para concluir essa unidade queremos, mesmo que brevemente, tratar de alguns<br />

temas que estão relacionados com a “construção do outro”, ou seja, com os relacionamentos<br />

entre as culturas. Trata-se basicamente da aculturação, do etnocentrismo e da diversidade<br />

ou relativismo cultural.<br />

Podemos perceber, <strong>ao</strong> longo das reflexões que fizemos, que a Antropologia, enquanto<br />

ciência que estuda o ser humano, tem <strong>ao</strong> mesmo tempo uma dimensão teórica e<br />

uma dimensão prática. Além disso, para que os estudos e as pesquisas no campo antropológico<br />

cheguem a resultados corretos e sérios é indispensável que o pesquisador abstenha-se<br />

<strong>ao</strong> máximo possível de atitudes e de idéias preconcebidas que podem atrapalhar<br />

a investigação. Por essa razão é indispensável que o antropólogo esteja atento a três conceitos<br />

ou realidades sumamente importantes: aculturação, relativismo cultural e etnocentrismo.<br />

a) Aculturação<br />

A aculturação é o processo de inter-relações ou contatos entre grupos e culturas diferentes<br />

(Ibid.: 45-46). Nesse processo o risco de predominância da cultura dominante é<br />

muito grande, fazendo com que as culturas menores e mais simples não sejam respeitadas<br />

em suas especificidades e identidades. A história nos mostra como culturas pequenas<br />

foram esmagadas e dizimadas por culturas mais potentes. No Brasil temos um exemplo<br />

muito claro disso. Segundo alguns antropólogos (Ibid.: 213-243), em 1900 havia 230 grupos<br />

tribais no Brasil. Em 1957 eles estavam reduzidos a 143 e em 1977 só restavam 116<br />

grupos. Isso mostra que o processo aculturativo no Brasil resultou na subordinação e na<br />

dizimação de muitas tribos e de milhões de indígenas. E tudo isso foi feito sob o pretexto<br />

de que eles pertenciam a uma cultura inferior que não precisava ser respeitada.<br />

De fato, a aculturação pode se dar através de quatro formas: por assimilação, por<br />

sincretismo, pela transculturação e por dominação. O processo de assimilação costuma<br />

ser mais tranqüilo e pacífico. Culturas que vivem num território comum, mesmo que vindas<br />

de lugares diferentes, realizam o que os antropólogos chamam de “solidariedade cultural”.<br />

Pela interação entre elas poderá haver até mesmo a fusão das culturas, resultando numa<br />

nova cultura. Muitos grupos culturais podem ser suprimidos através desse processo, mas<br />

também pode acontecer que as culturas persistam através de um equilíbrio dinâmico de<br />

assimilação de diversos elementos culturais. Neste caso a assimilação não consegue extinguir<br />

as culturas que se relacionam.<br />

Pelo sincretismo as culturas realizam a fusão de elementos religiosos, realçando<br />

numa cultura específica aspectos de outras. Foi o que aconteceu no Brasil, como veremos<br />

na terceira unidade. Muitas vezes, como foi o caso do nosso país, o sincretismo é forçado<br />

pela imposição da cultura religiosa mais forte que proíbe a manifestação religiosa das demais<br />

culturas. Já na transculturação o que acontece é a troca de elementos culturais entre<br />

sociedades completamente diferentes e até mesmo distantes. Exemplo disso é a troca de<br />

traços culturais realizada entre brasileiros e japoneses. No processo de dominação a cultura<br />

mais forte impõe o seu estilo e obriga as demais a abandonar seus usos, costumes e<br />

tradições. Às vezes o processo de dominação chega mesmo a eliminar por completo as<br />

culturas diferentes. A dominação pode acontecer de forma violenta e sangrenta, como foi<br />

o caso da colonização européia na América, África e Ásia. Mas existe também um tipo de<br />

dominação cultural que se dá através da propaganda ideológica, levando as pessoas,<br />

mesmo que de forma inconsciente, a abandonar os seus hábitos culturais e a adotar ou-<br />

17


tros costumes. Este tipo de dominação cultural está muito presente na atualidade, induzindo<br />

as pessoas a considerarem a própria cultura como inferior e forçando-as a assimilarem<br />

formas de viver completamente estranhas à sua.<br />

b) Relativismo cultural<br />

Por esse motivo o relativismo cultural é muito importante. Ele consiste na capacidade<br />

de compreender cada cultura dentro do seu contexto e da sua realidade, segundo os<br />

seus padrões, os seus moldes e processos (ibid.: 31-32). Isso faz com que uma pessoa de<br />

determinada cultura não veja a outra – ou as outras – como algo exótico, estranho e insignificante.<br />

O relativismo cultural não considera uma cultura superior às demais. Isso permite<br />

<strong>ao</strong> antropólogo chegar <strong>ao</strong> local de pesquisa desprovido de preconceitos e com mais<br />

possibilidades de realizar um trabalho científico sério. Além do mais, hoje, razões humanitárias<br />

nos dizem que cada grupo humano tem o direito à autonomia e a desenvolver a sua<br />

cultura de acordo com os próprios princípios e tradições, sem sofrer interferências e pressões<br />

externas. Cada povo ou cultura tem direito de pensar e agir de forma autônoma e<br />

diferente dos demais. E seria uma grande injustiça e falta de respeito tentar interferir para<br />

mudar tais padrões.<br />

c) Etnocentrismo<br />

Assim sendo, precisamos evitar toda forma de etnocentrismo, o qual consiste em<br />

considerar ou afirmar que existem culturas boas e culturas ruins. “O etnocentrismo pode<br />

ser manifestado no comportamento agressivo ou em atitudes de superioridade e até hostilidade.<br />

A discriminação, o proselitismo, a violência, a agressividade verbal são outras formas<br />

de expressar o etnocentrismo” (Ibid.: 32). Não existem culturas superiores ou inferiores.<br />

Cada uma delas deve ser vista dentro daquilo que os antropólogos chamam de interioridade<br />

cultural. Por esse motivo jamais se pode afirmar que existem culturas selvagens,<br />

bárbaras ou atrasadas. Mesmo as mais antigas e as extintas não podem ser rotuladas<br />

nestes termos. Toda atitude etnocêntrica precisa ser condenada e rejeitada porque fere o<br />

princípio da igual dignidade de todos os seres humanos e de todos os povos.<br />

A compreensão e a solidariedade são características dos seres humanos, mas nem<br />

sempre isso acontece de forma natural. Por essa razão as diferenças e diversidades costumam<br />

serem tomadas como pretexto para a geração de conflitos. Neste conflito o diferente<br />

é tratado como adversário, como bárbaro, como selvagem. Assim sendo, costuma-se<br />

aplicar <strong>ao</strong> diferente o que é proibido fazer com os que são do mesmo grupo cultural, desde<br />

o linchamento até a tortura, a morte, a escravização e o genocídio. Muitas vezes o etnocentrismo<br />

costuma ser disfarçado por atitudes que são até louvadas, como é o caso, por<br />

exemplo, do patriotismo (LABURTHE-TOLRA & WARNIER: 30-31).<br />

O etnocentrismo não se confunde com o racismo. São coisas diferentes. O racismo<br />

é a afirmação de que existem raças distintas e que determinadas raças são inferiores, sejam<br />

do ponto de vista moral, como intelectual e técnico. No racismo a inferioridade não é<br />

considerada a partir da perspectiva social ou cultural, mas do ponto de vista biológico. A<br />

inferioridade seria inata. Nasce-se inferior por se pertencer a tal raça. O etnocentrismo, por<br />

sua vez, é a afirmação de que a própria cultura ou civilização é superior às demais (Ibid.:<br />

31-32).<br />

18


De acordo com os antropólogos o etnocentrismo, enquanto configuração cultural e<br />

social se manifestou em três momentos específicos. O primeiro foi durante o período da<br />

Renascença. As viagens dos europeus <strong>ao</strong>s outros continentes levaram-os a encontrar outros<br />

povos e culturas. Disso resultava a pergunta acerca da identidade dessas pessoas.<br />

Perguntava-se se eram homens ou animais, se possuíam alma e se eram descendentes<br />

do Adão bíblico, segundo a visão religiosa da época. O segundo momento foi o do iluminismo.<br />

Os filósofos da época acreditavam que a razão superava tudo. Por esse motivo os<br />

povos e culturas que não tinham alcançado um grau racional idêntico <strong>ao</strong>s europeus eram<br />

considerados bárbaros e selvagens. O terceiro momento acontece no século XIX e início<br />

do século XX. Os estudiosos faziam confusão entre raça (aspecto biológico) e etnia (aspecto<br />

social) e estabelecem comparações entre as várias sociedades. Nessa comparação<br />

eles se voltam para o diferente com um olhar distanciado e de estranheza. Chega-se a<br />

criar o mito do “bom selvagem”, mas a ideologia dominante não permite reconhecer o valor<br />

da sua cultura. Por isso se continua a falar de “povos primitivos” e “povos civilizados”.<br />

Exalta-se a liberdade do bom selvagem, a beleza do seu estado natural, mas para depois<br />

afirmar a superioridade da civilização européia, a qual evoluiu e superou o estado de barbárie<br />

e de selvajaria ainda presentes nas culturas consideradas primitivas (Ibid.: 32-42).<br />

Infelizmente o etnocentrismo ainda não foi superado. Ainda hoje quando opinamos<br />

sobre determinadas questões (identidade cultural, família, relações sociais, sexo, crenças<br />

religiosas, estado, democracia, etc.) ele continua presente com toda a sua carga ideológica.<br />

Por isso o trabalho de “descolonizar” certas práticas e opiniões ainda precisa continuar.<br />

Às vezes nos espantamos com o que sabemos do passado, mas, olhando nossas práticas<br />

atuais, vamos perceber com toda a clareza uma carga enorme de etnocentrismo.<br />

Hoje se tenta disfarçar a crise do sistema neoliberal, predominante em todo o mundo, com<br />

o etnocentrismo. É o que acontece, por exemplo, com a civilização árabe apresentada pelos<br />

Estados Unidos e seus aliados como sendo expressão do atraso e da violência. Enquanto<br />

isso os massacres e as destruições provocadas por esses países em várias partes<br />

do mundo são tidas como ações de países civilizados e democratas. As mortes de tantas<br />

pessoas e a miséria deixada após as investidas sangrentas por eles praticadas são vistas<br />

apenas como “efeitos colaterais”, um “mal necessário” para manter a democracia no mundo!<br />

Conclusão<br />

Podemos concluir afirmando que, dada as suas características, a Antropologia é<br />

uma ciência de extrema atualidade. Ela pode contribuir para o desenvolvimento dos seres<br />

humanos e dos povos. O resultado de seus estudos e pesquisa ajuda na superação de<br />

desequilíbrios e de tensões culturais. Os antropólogos costumam apontar as causas das<br />

tensões sociais e indicar soluções para que se restabeleça o equilíbrio entre os diversos<br />

grupos culturais.<br />

O grande desafio está no fato de que as culturas dominantes nem sempre concordam<br />

com as conclusões dos estudos e das pesquisas dos antropólogos. Por isso muitas<br />

tensões sociais permanecem e até tendem a se agravar. Não se quer escutar uma verdade<br />

que incomoda. “A ação do antropólogo é de relevância, mas a perspectiva histórica tem<br />

demonstrado que sua tarefa lhe tem sido decepcionante, em face das pressões da cultura<br />

dominante, que nem sempre concorda com as posições teóricas e os métodos humanísti-<br />

19


cos por ele adotados, <strong>ao</strong> desempenhar o papel de conciliador entre o mundo dominante e<br />

o mundo dominado” (MARCONI & PRESOTTO: 19).<br />

Mesmo assim vale a pena insistir sobre a importância da Antropologia no mundo de<br />

hoje. Com a sua função de produzir interpretações das diferenças e de captar, com reverência<br />

e profunda compreensão, o essencial de cada cultura diferente, ela contribui para<br />

alargar nossas visões e romper esquemas ideológicos que tendem a desvalorizar aqueles<br />

que não são e não pensam como nós (DAMATTA, 1987: 143-150). A Antropologia, mesmo<br />

no atual contexto, tem essa função de ser ponte e mediação entre dois mundos. Cabelhe<br />

a tarefa de ajudar-nos a ver o diferente não como algo exótico, distante e marginal,<br />

mas como uma realidade familiar. Embora não deixe também de ter a função de manter o<br />

caráter “exótico” de cada cultura, ou seja, de insistir sobre o direito que cada cultura tem<br />

de permanecer diferente, com suas características próprias, sem que lhe seja imposta<br />

uma aculturação forçada.<br />

Neste sentido a Antropologia da Religião ocupa um papel decisivo. Partindo de um<br />

fenômeno comum a todos os povos e todas as culturas (a experiência religiosa, a religiosidade<br />

e a religião), a Antropologia da Religião pode oferecer caminhos e alternativas para<br />

que a humanidade possa progredir na direção da convivência pacífica e de um desenvolvimento<br />

sustentável, capaz de incluir todos os seres humanos da Terra. Ao antropólogo da<br />

religião cabe a função de mostrar para as religiões o potencial de que elas dispõem para,<br />

se quiserem, ajudar na construção de um modelo de civilização que não seja excludente e<br />

injusto. Mas é também tarefa do antropólogo da religião posicionar-se criticamente diante<br />

de determinadas manifestações religiosas que se mantêm alheias às injustiças e <strong>ao</strong>s sofrimentos<br />

das pessoas e das nações. O antropólogo da religião precisa questionar seriamente<br />

todas as formas religiosas que levam a infantilização das pessoas, tirando-lhes a<br />

capacidade de pensar e de enxergar a realidade com os olhos da verdade e da honestidade.<br />

A partir dessa afirmação podemos dizer também que todas as pessoas que têm a-<br />

cesso <strong>ao</strong> saber e às diversas formas de conhecimento precisam adotar essa mesma postura.<br />

De fato, como nos lembra Rampazzo, conhecer ou saber é a capacidade que tem o<br />

ser humano “de refletir sobre si mesmo, de ter idéias, de julgar, de raciocinar”<br />

(RAMPAZZO: 35). Assim sendo, o conhecimento e o saber proporcionam às pessoas<br />

consciência e memória. Pela consciência as pessoas percebem as coisas e as realidades<br />

assim como elas são. Pela memória o ser humano tem a possibilidade de trazer para essa<br />

consciência informações que pertencem <strong>ao</strong> passado, mas que são muito importantes para<br />

entender o presente. Pela consciência e pela memória as pessoas deixarão de viver de<br />

ilusões e de fantasias. Não serão apenas “reprodutoras e consumidoras” de hábitos e de<br />

costumes, na maioria das vezes, impostos por quem tem mais força, mas saberão criar,<br />

inventar outros modos diferentes e melhores que possibilitem à humanidade uma vida<br />

mais digna e mais saudável. Ao agir assim o ser humano faz ciência, ou seja, define seus<br />

conhecimentos, organiza-os, confronta-os com outros conhecimentos e, a partir disso, e-<br />

labora novos saberes que ajudarão as pessoas e as culturas a se compreenderem melhor<br />

e a compreender a complexidade do mundo.<br />

Desse modo é possível concluir que toda pessoa que chega <strong>ao</strong> ensino superior,<br />

particularmente à universidade, pode tornar-se também um cientista da religião, sabendo<br />

olhar criticamente as experiências religiosas e as formas de religiosidade na perspectiva<br />

que acabamos de propor. E <strong>ao</strong> se interessar de modo científico pela religião ela poderá<br />

contribuir para que as experiências religiosas não sejam instrumentalizadas por pessoas e<br />

20


grupos que, defendendo seus interesses, querem impor <strong>ao</strong>s demais um estilo de vida sem<br />

justiça e sem dignidade.<br />

Analisando a religião com um olhar científico o estudioso não pretende excluí-la ou<br />

eliminá-la, mas apenas alertá-la de que só é verdadeira aquela experiência religiosa que é<br />

capaz de “dar crédito <strong>ao</strong> homem” (BÁZAN: 257). E dar crédito à pessoa humana significa<br />

defender de maneira intransigente e determinada a dignidade deste ser humano e todos<br />

os seus inalienáveis direitos diante de qualquer autoridade, regime, lei ou sistema opressivo<br />

que pretenda negá-los. Uma religião que se negasse a realizar essa tarefa, que se negasse<br />

a promover e defender esses direitos básicos de todo e qualquer ser humano, estaria<br />

traindo a sua própria essência (Ibid.: 242-254).<br />

E o cientista brasileiro é, talvez mais do que qualquer outro, portador de um grande<br />

potencial que lhe dá condições de realizar essa tarefa. De fato, como nos lembra DaMatta,<br />

somos um aglomerado de culturas com uma riqueza de “caminhos para Deus”<br />

(DAMATTA, 1984: 107-118). E nessa variedade de caminhos a religião dos brasileiros e-<br />

xiste “para dar a todos e a cada um de nós um sentimento de comunhão com o universo<br />

como um todo” (Ibid.: 111). Ora, com este sentimento presente em sua alma, o cientista<br />

brasileiro pode contribuir para que no mundo inteiro a religião seja “um modo de permitir<br />

uma relação globalizada não só com os deuses, mas também com todos os homens e<br />

com os seres vivos que formam o nosso mundo” (Ibidem). Teríamos assim a contribuição<br />

dos cientistas brasileiros para que as mais diferentes formas de religiosidade e de religião<br />

se tornem, de fato, capazes de dar crédito <strong>ao</strong> ser humano e à humanidade.<br />

Referências bibliográficas<br />

BÁZAN, Francisco García. Aspectos incomuns do sagrado. São Paulo: Paulus,<br />

2002.<br />

BOFF, Leonardo. Ética da Vida. Brasília: Letraviva, 2000, 2ª edição.<br />

COLLIN, Denis. Compreender Marx. Petrópolis: Vozes, 2008.<br />

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil Rio de Janeiro: Rocco, 1984.<br />

_____. Relativizando. Uma introdução à Antropologia Social. Rio de Janeiro: Rocco,<br />

1987.<br />

LABURTHE, Philippe; WARNIER, Jean-Pierre. Etnologia-Antropologia. Petrópolis:<br />

Vozes, 2003, 3ª edição.<br />

MARCONI, Marina de Andrade; PRESOTTO, Zélia Maria Neves. Antropologia. Uma<br />

introdução, São Paulo: Atlas. 2006, 6ª edição.<br />

NEVILLE, Robert Cummings (org.). A condição humana. Um tema para religiões<br />

comparadas, São Paulo: Paulus.<br />

RAMPAZZO, Lino. Antropologia, religiões e valores cristãos, São Paulo: Loyola.<br />

TERRIN, Aldo Natale. Antropologia e horizontes do sagrado. Culturas e religiões.<br />

São Paulo: Paulus.<br />

21

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!