a antecipação terapêutica de fetos anencefálicos - Fabsoft - Cesupa
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A ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DE FETOS ANENCEFÁLICOS:<br />
A RESPOSTA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA À CONTROVÉRSIA<br />
Elísio Augusto Velloso Bastos 1<br />
Anette Maiorana Xerfan, Bernardo Albuquerque <strong>de</strong> Almeida, Daniel Leite Dias,<br />
Paloma Benoliel Lira, Thays Gonçalves Cantanhe<strong>de</strong> 2<br />
1<br />
Resumo: Discute o julgamento, pelo Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, do caso da interrupção<br />
da gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>. O objetivo é sustentar a constitucionalida<strong>de</strong> da<br />
<strong>antecipação</strong> do parto em tais casos.<br />
Palavras-chave: Aborto. Anencefalia. Constitucionalida<strong>de</strong>.<br />
THE ADVANCE THERAPY FETAL ANENCEPHALIC:THE ANSWER TO<br />
THE CONSTITUTION OF THE REPUBLIC OF CONTROVERSY<br />
Abstract: This paper discusses the Brazilian Supreme Court ruling on termination of<br />
pregnancy in cases involving anencephalic fetuses. The objective is to assert the<br />
constitutionality of childbirth anticipation in such cases.<br />
Key Words: Abortion. Anencephaly. Constitutionality.<br />
1 INTRODUÇÃO<br />
O presente estudo tem origem em profícuos <strong>de</strong>bates em sala <strong>de</strong> aula, a quando da<br />
realização do curso <strong>de</strong> Direitos Humanos junto às turmas do 5º semestre da graduação<br />
do Centro Universitário do Pará - CESUPA.<br />
Uma das temáticas analisadas, sob a forma <strong>de</strong> seminário, refere-se, justamente, ao<br />
assunto ora enfrentado no presente artigo.<br />
Evi<strong>de</strong>nte que inseridos nesta temática se encontram uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> temas,<br />
muitos dos quais exigem uma abordagem multidisciplinar.<br />
Dentro <strong>de</strong>sta plêia<strong>de</strong> <strong>de</strong> opções temáticas, primeiramente <strong>de</strong>staca-se, no Brasil, a<br />
análise acerca da legitimida<strong>de</strong> do mecanismo institucional utilizado para dar a resposta à<br />
1 Doutor em Direito do Estado pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (USP). Professor <strong>de</strong> Direitos Humanos e<br />
Teoria Geral da Constituição do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Advogado. Procurador<br />
do Estado do Pará<br />
2 Acadêmicos do 6º período do Curso <strong>de</strong> Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA).
2<br />
socieda<strong>de</strong> brasileira acerca da possibilida<strong>de</strong> em se admitir, livre <strong>de</strong> sanções criminais, a<br />
<strong>antecipação</strong> <strong>terapêutica</strong> do parto <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>.<br />
Sim, porque a lógica tradicional da separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res sugere o Parlamento<br />
como o local i<strong>de</strong>al para a solução do problema.<br />
Afinal, a solução da questão profundamente relevante à socieda<strong>de</strong> brasileira,<br />
norteada por interesses antagônicos 3 e inatos, em que, dificilmente, <strong>de</strong>ixar-se-á <strong>de</strong><br />
encontrar <strong>de</strong>fesas apaixonadas em uma ou outra direção, requer acordos políticos sólidos<br />
propícios <strong>de</strong> acontecer no seio do Legislativo.<br />
Importante proce<strong>de</strong>r, neste sentido, uma análise acerca <strong>de</strong> como os Po<strong>de</strong>res<br />
Legislativo e Executivo Fe<strong>de</strong>rais vêm tratando do assunto. Tal análise possibilitará<br />
reforçar a conclusão acerca da legitimida<strong>de</strong> do Po<strong>de</strong>r Judiciário para tratar <strong>de</strong> tão<br />
intrincada questão.<br />
O trabalho também abordará alguns aspectos biológicos acerca da anencefalia,<br />
bem como o modo como a questão foi tratada em diversos países. Tais abordagens<br />
conduzirão o leitor à parte final do trabalho, on<strong>de</strong> se buscará <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que nosso<br />
3 É tão comum, quanto equivocado, i<strong>de</strong>ntificar os dois grupos que antagonizam a presente controvérsia em<br />
“pró vida” (os que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a proibição/penalização do aborto) e os “pró escolha” (<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo sua<br />
<strong>de</strong>scriminalização). A pobreza e, por vezes, a torpeza em se rotular os grupos <strong>de</strong>sta forma po<strong>de</strong> ser flagrada<br />
com a seguinte reflexão <strong>de</strong> Alves (2008):<br />
Era um <strong>de</strong>bate sobre o aborto na TV. A questão não era "ser a favor"ou "contra o aborto". O que se<br />
buscava eram diretrizes éticas para se pensar sobre o assunto. Será que existe um princípio ético<br />
absoluto que proíba todos os tipos <strong>de</strong> aborto Ou será que o aborto não po<strong>de</strong> ser pensado "em geral",<br />
tendo <strong>de</strong> ser pensado "caso a caso" Por exemplo: um feto sem cérebro. É certo que ele morrerá ao<br />
nascer. Esse não seria um caso para se permitir o aborto, para poupar a mulher do sofrimento <strong>de</strong><br />
gerar uma coisa morta por nove meses<br />
Um dos <strong>de</strong>batedores era um teólogo católico. Como se sabe, a ética católica é a ética dos absolutos.<br />
Ela não discrimina abortos. Todos os abortos são iguais. Todos os abortos são assassinatos.<br />
Terminando o <strong>de</strong>bate, o teólogo concluiu com esta afirmação: „Nós ficamos com a vida!‟<br />
O mais contun<strong>de</strong>nte nessa afirmação está não naquilo que ela diz claramente, mas naquilo que ela diz<br />
sem dizer: „Nós ficamos com a vida. Os outros, que não concordam conosco, ficam com a morte...‟<br />
Mas eu não concordo com a posição teológica da igreja -sou favorável, por razões <strong>de</strong> amor, ao aborto<br />
<strong>de</strong> um feto sem cérebro- e sustento que o princípio ético supremo é a reverência pela vida.<br />
Lembrei-me do filme a "Escolha <strong>de</strong> Sofia" (William StyLron – 1979). Sofia, mãe com seus dois filhos,<br />
numa estação ferroviária da Alemanha nazista. Um trem aguardava aqueles que nele seriam<br />
embarcados para a morte nas câmaras <strong>de</strong> gás.O guarda que fazia a separação olha para Sofia e lhe<br />
diz: "Apenas um filho irá com você. O outro embarcará nesse trem..." E apontou para o trem da morte.<br />
[...]<br />
Tenho <strong>de</strong> tomar a <strong>de</strong>cisão. Se eu me recusasse a <strong>de</strong>cidir pela morte <strong>de</strong> um, alegando que eu fico com<br />
a vida, os dois seriam embarcados no trem da morte... Qual <strong>de</strong>les escolherei para morrer<br />
[...]<br />
Qual princípio ético o ajudaria na sua <strong>de</strong>cisão Qualquer que fosse a sua <strong>de</strong>cisão, por causa <strong>de</strong>la<br />
uma pessoa morreria.<br />
[...]<br />
Ah! Como seria simples se as situações da vida pu<strong>de</strong>ssem ser assim colocadas com tanta<br />
simplicida<strong>de</strong>: <strong>de</strong> um lado a vida e do outro a morte. Se assim fosse, seria fácil optar pela vida. Mas<br />
essa encruzilhada simples entre o certo e o errado só acontece nos textos <strong>de</strong> lógica. O escritor<br />
sagrado tinha consciência das armadilhas da justiça em excesso e escreveu: "Não sejas <strong>de</strong>masiado<br />
justo porque te <strong>de</strong>struirás a ti mesmo [...]
or<strong>de</strong>namento jurídico constitucional tutela a <strong>antecipação</strong> voluntária do parto dos <strong>fetos</strong><br />
<strong>anencefálicos</strong>.<br />
3<br />
2 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO INSTITUIÇÃO LEGÍTIMA PARA<br />
SOLUÇÃO DO CONFLITO ACERCA DA ANTECIPAÇÃO TERAPÊUTICA DO PARTO<br />
DE FETOS ANENCEFÁLICOS<br />
Quase duzentos anos passados após a sentença da Suprema Corte dos Estados<br />
Unidos da América, no caso Marbury vs. Madison (1803); mais <strong>de</strong> cento e <strong>de</strong>z anos após<br />
a <strong>de</strong>cisão do STF, no HC 408 (1893), quando se afirmou, pela primeira vez, <strong>de</strong> maneira<br />
explícita, em solo brasileiro, o po<strong>de</strong>r do Supremo em realizar o controle <strong>de</strong><br />
constitucionalida<strong>de</strong> das leis; e quase 90 anos sobre a criação do Tribunal Constitucional<br />
austríaco, não parece incorreto afirmar que “estão <strong>de</strong>finitivamente superadas, em termos<br />
práticos, as objeções tradicionais ao controle judicial da conformida<strong>de</strong> constitucional dos<br />
actos do po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>signadamente as leis” (MOREIRA, 1995, p. 177).<br />
Afinal, a legitimida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r estatal não po<strong>de</strong> residir, apenas, na análise da forma<br />
<strong>de</strong> ingresso dos membros <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado Po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>vendo ser medida a priori e a<br />
posteriri, pelo que o exercício do po<strong>de</strong>r estatal está condicionado não apenas à<br />
observância <strong>de</strong> procedimentos ou requisitos prévios, <strong>de</strong>finidos em lei, mas, sobretudo,<br />
após praticado o ato estatal, seja ele uma <strong>de</strong>cisão, um ato normativo ou administrativo,<br />
ao alcance das finalida<strong>de</strong>s que lhe são constitucionalmente atribuídas.<br />
Sob o aspecto formal, não se po<strong>de</strong> negar que, por força do art. 102 da Constituição<br />
da República, compete ao Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong> modo precípuo, a tutela da<br />
Constituição, pelo que lhe é assegurada a <strong>de</strong>vida legitimida<strong>de</strong> para atuar como guardião<br />
<strong>de</strong> nosso texto político mor.<br />
Pois bem, o tema ora em comento orbita, basicamente, o conceito e alcance do<br />
termo “vida”, inviolável por conta do disposto no caput do artigo 5º e no art. 227 da<br />
Constituição da República, bem como a extensão do conceito <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, também<br />
constante do caput do art. 5º, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> submeter alguém à tortura ou a<br />
tratamento <strong>de</strong>sumano ou <strong>de</strong>gradante (inciso III, do art. 5º da CR/88), a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
consciência e crença (art. 5º, VI), o Direito à privacida<strong>de</strong> (art. 5º, X) e a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
planejamento familiar (art. 226, § 7º) pelo que é razoável sustentar que, inserida na<br />
competência <strong>de</strong> tutela constitucional, está, precisamente, a função <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir o conteúdo<br />
<strong>de</strong> tais conceitos presentes na Constituição.
4<br />
Sob o aspecto substancial, cumpre ressaltar que os princípios conformadores do<br />
atuar estatal e da organização da socieda<strong>de</strong> brasileira estão fixados nos artigos 1 o e 3 o da<br />
CF/88, cabendo, assim, ao Po<strong>de</strong>r Judiciário, sobretudo por meio do Supremo Tribunal<br />
Fe<strong>de</strong>ral, exercer o juízo <strong>de</strong> compatibilida<strong>de</strong> dos atos estatais para o alcance <strong>de</strong> tais<br />
finalida<strong>de</strong>s.<br />
A questão, todavia, não é simples.<br />
Tome-se como exemplo os Estados Unidos da América.<br />
Há autores que sustentam que a natureza profundamente controversa que envolve<br />
a temática do aborto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Roe Vs. Wa<strong>de</strong>, <strong>de</strong> 1973, até os dias atuais, possui direta<br />
relação com a forma como a questão foi tratada: não após uma série <strong>de</strong> acordos políticos<br />
e legislativos, mas sim por <strong>de</strong>cisão judicial que impôs alteração da legislação <strong>de</strong> 46<br />
estados daquela fe<strong>de</strong>ração, com intensida<strong>de</strong> tamanha que até os dias atuais evoca<br />
imagem <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira guerra cultural 4 .<br />
A<strong>de</strong>mais, a temática é, em essência, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m moral e íntima, revelando opções<br />
políticas e pessoais <strong>de</strong>fendidas por grupos diferentes e concorrentes, ambicionando,<br />
cada um <strong>de</strong>les, tornarem-se donos da verda<strong>de</strong> para orientar a <strong>de</strong>finição da conduta social<br />
padrão a ser observada por todos. Neste sentido, o palco <strong>de</strong> discussão mais a<strong>de</strong>quado<br />
seria o Po<strong>de</strong>r Legislativo, pelo menos em tese.<br />
Há sempre o risco <strong>de</strong> que poucos Ministros (em regra bastam seis para <strong>de</strong>cidir para<br />
toda uma socieda<strong>de</strong>!), possam converter posições morais em fatos jurídicos indiscutíveis,<br />
gerando eventual ilusão <strong>de</strong> clareza, <strong>de</strong> certeza e <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, e, assim, transportar<br />
(impor) à socieda<strong>de</strong> suas opções pessoais, envoltas em discurso jurídico frágil.<br />
Suce<strong>de</strong>, todavia, que tais peculiarida<strong>de</strong>s servirão não para retirar a legitimida<strong>de</strong> do<br />
Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral para tratar da questão, mas para impor cuidados, limites<br />
rígidos e fornecer balizas sólidas à sua atuação.<br />
O primeiro fator para aferir o grau <strong>de</strong> legitimação do atuar judiciário é a observância<br />
<strong>de</strong> um procedimento prévio, legal ou constitucionalmente estabelecido. Aqui não há<br />
dúvidas, pelo que o Supremo tem observado, com certo rigor, a procedimentalida<strong>de</strong><br />
escorreita <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões.<br />
A medida da legitimida<strong>de</strong> do atuar Judiciário <strong>de</strong>ve ser aferida, ainda, pelo grau <strong>de</strong><br />
fundamentação <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões. O princípio da motivação exige que sejam claramente<br />
fixados os motivos, <strong>de</strong> fato e <strong>de</strong> direito, que ensejaram a escolha <strong>de</strong> certa interpretação<br />
<strong>de</strong> uma norma jurídica, entre, via <strong>de</strong> regra, outras possíveis. Assim, se a valoração entre
5<br />
Direitos revela concepções morais, políticas ou jurídicas, é preciso restar precisamente<br />
claro o peso <strong>de</strong> cada uma <strong>de</strong>las nas <strong>de</strong>cisões tomadas.<br />
Aqui também o Supremo, em regra, tem revelado o necessário cuidado para com<br />
este fator <strong>de</strong> legitimação <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>cisões. Nos casos mais relevantes que passaram<br />
pela análise do STF, nos anos da CR/88, é possível constatar um grau notável <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>bates e justificações.<br />
Ligados, <strong>de</strong> modo indissociável, ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> fundamentação estão a criação e uso<br />
<strong>de</strong> instrumentos jurídicos que possibilitem a participação da opinião pública em suas<br />
<strong>de</strong>cisões. Neste sentido, há que se observar que a história brasileira recente vem<br />
firmando o Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral como um novo território <strong>de</strong> representação<br />
<strong>de</strong>mocrática, notadamente a partir do uso <strong>de</strong> dois mecanismos essenciais à pluralização<br />
dos <strong>de</strong>bates judiciais, especialmente relacionados ao controle concentrado <strong>de</strong><br />
constitucionalida<strong>de</strong>: a realização <strong>de</strong> audiências públicas 5 e a admissão do ammicus<br />
curiae 6 .<br />
A<strong>de</strong>mais, não se po<strong>de</strong> negar também como instrumento <strong>de</strong> aferição <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong><br />
do atuar do STF a absoluta publicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus julgamentos. Neste sentido é <strong>de</strong> se<br />
registrar que o Brasil é um dos poucos países a transmitir as sessões <strong>de</strong> seu Tribunal<br />
Constitucional em mídia televisiva e na re<strong>de</strong> mundial <strong>de</strong> computadores. Desta forma, o<br />
Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral possui, <strong>de</strong> modo inexorável, a legitimida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>cidir tão<br />
relevante questão social, sobretudo porque no curso da ADPF 54, instrumento processual<br />
que veicula o pedido capaz <strong>de</strong> autorizar, se proce<strong>de</strong>nte, a <strong>antecipação</strong> da gestação <strong>de</strong><br />
4 Ver Dworkin (2009, p. 6- 9).<br />
5 O uso <strong>de</strong> audiências públicas, muito embora recente, tem se mostrado fundamental e comum para a<br />
solução <strong>de</strong> casos relevantes enfrentados pelo Supremo. A Primeira foi realizada em 20 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2007, no<br />
curso da ADI 3.510, que questionava a constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dispositivos da Lei <strong>de</strong> Biossegurança (Lei n o<br />
11.105/2005), que permitiam a utilização <strong>de</strong> células-tronco <strong>de</strong> embriões humanos em pesquisas e terapias.<br />
A partir <strong>de</strong>la, outras vieram, e com igual relevância, a saber, no curso da ADPF 101 ( importação <strong>de</strong> pneus<br />
usados), no dia 27/06/08. No curso da própria ADPF 54 (<strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>), nos dias 26 e 28 <strong>de</strong> agosto e 4<br />
e 16 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2008. No curso dos Agravos Regimentais nas Suspensões <strong>de</strong> Liminares nºs 47 e 64,<br />
nas Suspensões <strong>de</strong> Tutela Antecipada nºs 36, 185, 211 e 278, e nas Suspensões <strong>de</strong> Segurança nºs 2361,<br />
2944, 3345 e 3355 (políticas públicas para saú<strong>de</strong> pública), nos dias 27, 28 e 29 <strong>de</strong> abril, e 4, 6 e 7 <strong>de</strong> maio<br />
<strong>de</strong> 2009. No curso da ADPF 186 e do REXT 597.285 (sistema <strong>de</strong> cotas), realizadas nos dias <strong>de</strong> 3 a 5 <strong>de</strong><br />
março <strong>de</strong> 2010.<br />
6 O artigo 7 o , §2º, da Lei 9.868/99 estabelece, que “o relator, consi<strong>de</strong>rando a relevância da matéria e a<br />
representativida<strong>de</strong> dos postulantes, po<strong>de</strong>rá por <strong>de</strong>spacho irrecorrível, admitir, [...] a manifestação <strong>de</strong> outros<br />
órgãos e entida<strong>de</strong>s”. Note-se que, antes da Lei n o 9.868/1999, o Supremo já havia admitido a presença do<br />
Amicus Curiae, como po<strong>de</strong> ser constatado na análise do julgamento <strong>de</strong> Agravo Regimental nos autos da ADI<br />
748-4, quando, por unanimida<strong>de</strong>, o plenário confirmou <strong>de</strong>cisão monocrática do Ministro Celso <strong>de</strong> Mello, que<br />
havia autorizado a participação <strong>de</strong> um “amigo da Corte”, por intermédio da elaboração <strong>de</strong> um memorial.<br />
Sobre uma visão crítica do Amicus Curiae consultar Bastos (2009, p. 229-235).
6<br />
<strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>, vem utilizando-se <strong>de</strong> todos os recursos a possibilitar um amplo<br />
<strong>de</strong>bate social.<br />
Cumpre, todavia, ressaltar que o período atual, <strong>de</strong> proeminência do Po<strong>de</strong>r Judiciário<br />
por intermédio, sobretudo, <strong>de</strong> seu órgão jurisdicional máximo, o Supremo Tribunal<br />
Fe<strong>de</strong>ral, fundamenta-se na máxima política <strong>de</strong> que o po<strong>de</strong>r, tal como a natureza, abomina<br />
o vácuo, ocupando-se <strong>de</strong> preenchê-lo.<br />
Se é verda<strong>de</strong> que o lugar i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição da questão <strong>de</strong>batida por intermédio da<br />
ADPF 54 seria o Parlamento, é igualmente verda<strong>de</strong> que o Congresso Nacional brasileiro<br />
se encontra no curso <strong>de</strong> profunda crise <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>.<br />
Envolto em constantes e graves <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> corrupção, não lhe tem sobrado força,<br />
vonta<strong>de</strong> ou capacida<strong>de</strong> para realizar seu mais importante mister, o <strong>de</strong> legislar, sobretudo<br />
nos casos relevantes, como o presente. Junte-se a isto o fato <strong>de</strong> que o processo<br />
legislativo é, em regra, muito mais lento (lembre-se o constante trancamento <strong>de</strong> pauta<br />
das sessões ordinárias para análise <strong>de</strong> Medidas Provisórias) do que os processos<br />
judiciais <strong>de</strong> natureza concentrada.<br />
O Parlamento <strong>de</strong>ixou, assim, <strong>de</strong> ser o lugar dos <strong>de</strong>bates públicos dos assuntos<br />
nacionais relevantes. Atualmente, este lugar, outrora também ocupado pelo Executivo,<br />
vem pertencendo ao Supremo.<br />
É, sim, fundamental para a <strong>de</strong>mocracia que os po<strong>de</strong>res estatais sejam, todos, fortes<br />
e atuantes. Urge, porém e sobretudo, que a cidadania seja ativa. Afinal, o ativismo judicial<br />
não é a melhor forma <strong>de</strong> proteger os Direitos Fundamentais, como também não o é a<br />
representação política. A política é uma conquista da socieda<strong>de</strong> civil, que não <strong>de</strong>verá<br />
abrir mão <strong>de</strong> ser, cada vez mais, agente e não apenas <strong>de</strong>stinatária das leis. Neste<br />
sentido, o instrumento mais a<strong>de</strong>quado para a <strong>de</strong>fesa dos Direitos Fundamentais ainda<br />
<strong>de</strong>ve ser a pressão da socieda<strong>de</strong> civil que, reconheça-se, esteve presente nos <strong>de</strong>bates<br />
da ADPF 54.<br />
Assim, se a socieda<strong>de</strong> brasileira carece, com urgência, <strong>de</strong> uma manifestação do<br />
Po<strong>de</strong>r Estatal para resolver tão intrincada e <strong>de</strong>licada questão, e se apenas, no momento,<br />
o Supremo é que po<strong>de</strong> conce<strong>de</strong>r a resposta 7 , <strong>de</strong>ixemos que o diga, mas que o faça logo,<br />
já que o processo está, há mais <strong>de</strong> um ano, bastante maduro para julgamento.<br />
7 Ver-se-á em item posterior que o Executivo já se posicionou sobre a matéria, ainda que <strong>de</strong> modo pouco<br />
assertivo, aduzindo que o aborto é caso <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, assegurando, inclusive, o uso da re<strong>de</strong> pública <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong>. O Legislativo, por seu turno, encontra-se na fase inicial <strong>de</strong> trâmite <strong>de</strong> projeto <strong>de</strong> lei que trata da<br />
matéria.
7<br />
3 A ANTECIPAÇÃO VOLUNTÁRIA DO PARTO E OS PODERES EXECUTIVO E<br />
LEGISLATIVO<br />
O Governo Fe<strong>de</strong>ral vem adotando posição pouco assertiva acerca do tema.<br />
Ao editar o Decreto 7.037/09, com a primeira versão do PNDH-3 (3º Plano Nacional<br />
<strong>de</strong> Direito Humanos), assegurou apoiar a aprovação <strong>de</strong> projeto <strong>de</strong> lei que<br />
<strong>de</strong>scriminalizasse o aborto, consi<strong>de</strong>rando a autonomia das mulheres para <strong>de</strong>cidir sobre<br />
seus corpos.<br />
Todavia, posteriormente, com o Decreto 7.177/10, que <strong>de</strong>u vida à segunda versão<br />
do PNDH-3, a controvérsia <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser tratada <strong>de</strong> modo conclusivo, restando, para tão<br />
intrincada e relevante questão, apenas a <strong>de</strong>claração, que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser relevante, <strong>de</strong><br />
que o aborto <strong>de</strong>verá ser tratado como tema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, com a garantia do acesso<br />
aos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />
Assim, o Governo Fe<strong>de</strong>ral assume o compromisso <strong>de</strong> garantir às mães que<br />
<strong>de</strong>sejarem realizar o aborto legal, aqui incluída a <strong>antecipação</strong> <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>,<br />
acaso assim <strong>de</strong>cida o STF, o pleno acesso à re<strong>de</strong> pública <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.<br />
No que tange ao Po<strong>de</strong>r Legislativo, encontra-se tramitando projeto <strong>de</strong> lei (Estatuto<br />
do Nascituro) No. 478/2007, votado recentemente na Comissão <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social e<br />
Família, on<strong>de</strong> foi aprovado o substitutivo da <strong>de</strong>putada Solange Almeida (PMDB-RJ),<br />
tendo sido fixada a concepção como o marco inicial da vida. O Projeto ainda precisará<br />
passar por outras comissões na Câmara dos Deputados, antes <strong>de</strong> ir a Plenário e,<br />
posteriormente, ser remetido ao Senado, pelo que <strong>de</strong>mandará, por certo, bastante tempo<br />
para ser concluído.<br />
4 A ADPF 54<br />
Em 17 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2004 a Confe<strong>de</strong>ração Nacional dos Trabalhadores da Saú<strong>de</strong><br />
ingressou com Arguição <strong>de</strong> Descumprimento <strong>de</strong> Preceito Fundamental (ADPF nº 54),<br />
requerendo o reconhecimento da <strong>de</strong>scriminalização do aborto <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>,<br />
alegando, para tanto, que apenas o feto com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser pessoa po<strong>de</strong>ria ser<br />
vítima <strong>de</strong> aborto. Preten<strong>de</strong>u, portanto, interpretar o Código Penal à luz da Constituição,<br />
ao incluir, nas exceções legais admitidas ao aborto, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aborto (ou<br />
<strong>antecipação</strong> <strong>terapêutica</strong>, como <strong>de</strong>nomina a ADPF) em <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>.
8<br />
Neste sentido, aduz que a <strong>antecipação</strong> do parto em casos <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> feto<br />
anencéfalo não caracteriza aborto, tal como tipificado no Código Penal. Afinal, é ínsito ao<br />
conceito <strong>de</strong> aborto a consequente morte do feto, sendo imprescindíveis tanto a<br />
comprovação da relação causal como a potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida extra-uterina. Em caso <strong>de</strong><br />
gestação <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>, a morte <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> uma má-formação congênita, sendo<br />
certa e inevitável, ainda que <strong>de</strong>corrido todo o período gestacional, pelo que faltaria, à<br />
hipótese, o suporte fático exigido pelo tipo penal.<br />
Sustenta, ainda, que a anencefalia inviabiliza a vida fora do útero materno, sendo<br />
fatal em cem por cento dos casos. Mesmo àqueles que sobrevivem fora do útero, o<br />
prognóstico da maioria dos casos é a sobrevivência <strong>de</strong> algumas horas após o parto.<br />
Diante <strong>de</strong>sse quadro, concluiu a inicial da ação que a <strong>antecipação</strong> do parto <strong>de</strong> feto<br />
anencefálico seria o único procedimento médico cabível para abreviar o risco <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e<br />
a dor da gestante. Restringir o acesso da mãe a tal mecanismo importaria violação ao<br />
direito à saú<strong>de</strong>.<br />
Em 01 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2004, o Relator do feito, Ministro Marco Aurélio, <strong>de</strong>feriu medida<br />
cautelar para: 1. sobrestar os processos e <strong>de</strong>cisões não transitadas em julgado em que<br />
se discutisse tal crime, bem como 2. reconhecer o direito constitucional da gestante <strong>de</strong><br />
submeter-se à operação <strong>terapêutica</strong> <strong>de</strong> parto <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>, a partir <strong>de</strong> laudo<br />
médico atestando a <strong>de</strong>formida<strong>de</strong>, a anomalia que atingiu o feto.<br />
Após o <strong>de</strong>ferimento da medida liminar, colheu-se a manifestação da Procuradoria<br />
Geral da República, pelo in<strong>de</strong>ferimento da ADPF, na medida em que, como alega, o caso<br />
em comento não permite o manejo da técnica da interpretação conforme a Constituição.<br />
Sustenta, ainda, que mesmo o feto anencefálico possui vida, tutelada por nosso<br />
or<strong>de</strong>namento jurídico. Afinal, o artigo 2º, do Código Civil e o artigo 4.1, da Convenção<br />
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto <strong>de</strong> São José da Costa Rica), consagram o<br />
direito à vida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento da concepção.<br />
Prosseguindo, a manifestação da PGR levanta a seguinte questão: “ a compreensão<br />
jurídica do direito à vida legitima a morte, dado o curto espaço <strong>de</strong> tempo da existência<br />
humana”. De acordo com o seu entendimento, a reposta é negativa, eis que o direito à<br />
vida é atemporal, ou seja, não se avalia pelo tempo <strong>de</strong> duração da existência humana.<br />
A<strong>de</strong>mais, conclui que a morte <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong> vai contra o princípio da<br />
solidarieda<strong>de</strong>, previsto no artigo 3º, inciso I da CF/88 .<br />
Em 30 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2004, em <strong>de</strong>cisão monocrática, após in<strong>de</strong>ferir diversos pedidos<br />
<strong>de</strong> participação <strong>de</strong> amicus curiae, o Ministro relator resolveu, acertadamente, realizar<br />
audiência pública, nos mol<strong>de</strong>s do artigo 6º, § 1º, da Lei 9.882/99, para ouvir, além das
9<br />
entida<strong>de</strong>s que requereram a admissão no processo como 'amicus curiae', outras<br />
entida<strong>de</strong>s.<br />
Em 20 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2004, o Pleno do STF, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> referendar a segunda parte<br />
da medida cautelar supra referida. Desta forma, por maioria, manteve o sobrestamento<br />
dos processos e <strong>de</strong>cisões não transitadas em julgado, revogando, todavia, a parte em<br />
que se reconhecia o direito constitucional da gestante <strong>de</strong> se submeter à operação<br />
<strong>terapêutica</strong> <strong>de</strong> parto <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong> (vencidos os Ministros Marco Aurélio, Carlos<br />
Britto, Celso <strong>de</strong> Mello e Sepúlveda Pertence).<br />
Tal episódio será marcado como um dos mais <strong>de</strong>licados na História do Supremo,<br />
alertando, aos que ainda não tinham a noção da importância da Corte e do profundo grau<br />
<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> necessário ao exercício do mister <strong>de</strong> julgar, para as in<strong>de</strong>léveis<br />
consequências que emergem <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> tamanha relevância social.<br />
Flagrando, com precisão, o fato, por vezes esquecido, <strong>de</strong> que por <strong>de</strong>trás dos<br />
processos existem pessoas, o documentário “Uma História Severina”, <strong>de</strong> Débora Diniz e<br />
Eliane Brum, narra a história <strong>de</strong> Severina, moradora do interior <strong>de</strong> Pernambuco, que<br />
busca o direito <strong>de</strong> abortar o feto sem cérebro que carregava no útero.<br />
No dia em que o pleno do STF revogou a segunda parte da liminar ofertada pelo<br />
Relator, Severina estava internada num hospital para interromper a gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> quatro<br />
meses, tendo sido a cirurgia, então, cancelada.<br />
Severina, obrigada a prosseguir na gestação, então com sete meses, passa mais <strong>de</strong><br />
trinta horas em trabalho <strong>de</strong> parto induzido, para, ao final, dar à luz uma criança morta. Ao<br />
contemplar o filho morto, no qual a ausência <strong>de</strong> cérebro po<strong>de</strong> ser facilmente percebida,<br />
exclama, em tom <strong>de</strong> <strong>de</strong>sespero: "Meu filho, ai meu pai, meu Deus".<br />
O processo apenas mereceu movimentação relevante quase quatro anos <strong>de</strong>pois.<br />
Em <strong>de</strong>cisão monocrática, o relator do feito fixou os dias 26 8 , 28 9 <strong>de</strong> agosto, 04 10 e 16 11<br />
<strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2008 e para realização <strong>de</strong> audiências públicas acerca do tema.<br />
8 On<strong>de</strong> foram ouvidas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; a Igreja Universal; a Associação<br />
Nacional Pró-Vida e Pró-Família, a Socieda<strong>de</strong> Católicas pelo Direito <strong>de</strong> Decidir e a Associação Médico-<br />
Espírita do Brasil (AME)<br />
9 On<strong>de</strong> foram ouvidos o Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Medicina; a Fe<strong>de</strong>ração Brasileira das Associações <strong>de</strong><br />
Ginecologia e Obstetrícia; a Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Medicina Fetal; a Socieda<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Genética<br />
Médica; a Socieda<strong>de</strong> Brasileira para o Progresso da Ciência, os Deputados Fe<strong>de</strong>rais José Aristo<strong>de</strong>mo Pinotti<br />
e Luiz Bassuma, presi<strong>de</strong>nte da Frente Parlamentar em Defesa da Vida - Contra o Aborto, a Sra. Lenise<br />
Aparecida Martins Garcia, professora titular do Departamento <strong>de</strong> Biologia Molecular da UNB e presi<strong>de</strong>nte do<br />
Movimento Nacional da Cidadania em Defesa da Vida – Brasil sem Aborto e o Instituto <strong>de</strong> Bioética, Direitos<br />
Humanos e Gênero (ANIS).<br />
10 On<strong>de</strong> foram ouvidos o Ministro <strong>de</strong> Estado da Saú<strong>de</strong>, José Gomes Temporão, a Associação <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento da Família (ADEF); a Escola <strong>de</strong> Gente, a Re<strong>de</strong> Nacional Feminista <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, Direitos<br />
Sexuais e Direitos Reprodutivos, a Dra. Cinthia Macedo Specian, especialista em Pediatria, Habilitação em
10<br />
Após a realização das quatro sessões da audiência pública, e após as alegações<br />
finais do MPF e da autora, os autos foram ao Relator, permanecendo já em seu po<strong>de</strong>r há<br />
mais <strong>de</strong> um ano.<br />
Das alegações finais, merece <strong>de</strong>staque a manifestação da PGR, <strong>de</strong> 6 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />
2009, <strong>de</strong>sta feita mudando posição anterior e requerendo a procedência da ação, para<br />
que, assim, seja dada interpretação conforme a Constituição aos artigos 124, 126 e 128, I<br />
e II do CPB, <strong>de</strong>clarando-se a inconstitucionalida<strong>de</strong> da interpretação que impeça a<br />
realização voluntária <strong>de</strong> <strong>antecipação</strong> <strong>terapêutica</strong> do parto <strong>de</strong> feto anencefálico, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />
a patologia seja diagnosticada por médico habilitado.<br />
5 ALGUNS ASPECTOS BIOLÓGICOS ACERCA DA ANENCEFALIA<br />
Denominada também por ausência <strong>de</strong> cérebro, a anencefalia é a má-formação fetal<br />
congênita por <strong>de</strong>feito do fechamento do tubo neural durante a gestação, <strong>de</strong> modo que o<br />
feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do<br />
tronco encefálico (BEHRMAN; KLIEGMAN; JENSON, 2002, p. 1.777).<br />
O feto, portanto, apenas possui as funções inferiores (respiração, vasomotoras e<br />
medula espinhal), não possuindo as funções superiores do sistema nervoso central,<br />
responsável pela consciência, cognição, vida relacional, afetivida<strong>de</strong>, comunicação,<br />
afetivida<strong>de</strong> e emotivida<strong>de</strong>.<br />
A anomalia causa 100% <strong>de</strong> óbito na vida extra-uterina, inexistindo, quanto a este<br />
aspecto, qualquer controvérsia relevante. A<strong>de</strong>mais, o índice <strong>de</strong> falibilida<strong>de</strong> do exame que<br />
<strong>de</strong>tecta a anencefalia (ultra-som) é praticamente nulo, conforme, aliás, restou afirmado<br />
pela totalida<strong>de</strong> das associações científicas ouvidas no transcurso da audiência pública já<br />
referida.<br />
Ressalte-se que a quando da oitiva do Ministro <strong>de</strong> Estado da Saú<strong>de</strong>, em sessão da<br />
aludida audiência pública, ficou assentado que a Re<strong>de</strong> Pública brasileira <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> po<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>tectar, com segurança, o problema, sendo que cerca <strong>de</strong> 99% das grávidas fazem prénatal.<br />
Restou, a<strong>de</strong>mais, consignado, no curso da audiência pública supra mencionada,<br />
que há obstáculos quase que intransponíveis ao transplante dos órgãos dos <strong>fetos</strong><br />
<strong>anencefálicos</strong>, na medida em que existem outras malformações <strong>de</strong>correntes da doença<br />
Neurologia Pediátrica, o Dr. Dernival da Silva Brandão, médico especialista em Ginecologia e Obstetrícia e o<br />
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
11<br />
que inviabilizam a prática. Os órgãos <strong>de</strong> tais <strong>fetos</strong> são <strong>de</strong> tamanho menor do que os<br />
normais. A<strong>de</strong>mais, o transplante apenas po<strong>de</strong> ser realizado após o sétimo dia <strong>de</strong> vida,<br />
tempo superior à duração da vida extra-uterida <strong>de</strong> tais <strong>fetos</strong>, em regra.<br />
Não se <strong>de</strong>sconhece também que inexiste “<strong>de</strong>manda reprimida por órgãos <strong>de</strong> recém<br />
nascidos” e não há “tecnologia segura para realizar o transplante”, inexistindo, no Brasil,<br />
a<strong>de</strong>mais, qualquer confirmação <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> transplantação 12 . Mas não é só, o<br />
argumento <strong>de</strong> transplante releva, em si, a antiga prática <strong>de</strong> tratar o corpo feminino como<br />
objeto, violando um dos conhecidos imperativos Kantianos relevante à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
Dignida<strong>de</strong> da Pessoa Humana.<br />
Ressalte-se, ainda, que a anencefalia ocasiona um maior risco para a saú<strong>de</strong> da<br />
mãe do que uma gestação normal.<br />
Frise-se, por fim, que não se po<strong>de</strong> equiparar a anencefalia à qualquer <strong>de</strong>ficiência.<br />
Afinal, a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiência proposta pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas<br />
com Deficiência da Organização das Nações Unidas, ratificada pelo Brasil no ano <strong>de</strong><br />
2008 e em vigor por força do Decreto Legislativo nº 186, pressupõe que haja presença <strong>de</strong><br />
vida para se falar <strong>de</strong> pessoa com <strong>de</strong>ficiência. Não haverá qualquer relação do feto<br />
anencefálico com o meio ambiente.<br />
6 A SOLUÇÃO JURÍDICA ENCONTRADA EM ALGUNS PAÍSES PARA ENFRENTAR A<br />
QUESTÃO DO ABORTO<br />
6.1. Os Estados Unidos da América<br />
Em 22 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1973, por sete votos a dois, a US Supreme Court, ao analisar<br />
Class Action movida por uma mãe solteira, Norma McCorvey 13 , que questionava a<br />
constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma lei texana que proibia o aborto, salvo em casos <strong>de</strong> risco para<br />
a vida materna, proferiu a <strong>de</strong>cisão judicial que mais suscitou emoções, manifestações<br />
violentas ou mesmo as mais contun<strong>de</strong>ntes críticas da história <strong>de</strong>sta Corte 14 .<br />
11 On<strong>de</strong> a Dra. Elizabeth Kipman Cerqueira, especialista em Ginecologia e Obstetrícia, a Conectas Direitos<br />
Humanos, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a Associação Brasileira <strong>de</strong> Psiquiatria.<br />
12 Débora Diniz. O luto das mulheres brasileiras. Disponível em: .<br />
Débora Diniz é uma das articuladoras da ADPF 54, Doutora em Antropologia, professora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Brasília (UnB) e Diretora do Instituto <strong>de</strong> Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e da Associação<br />
Internacional <strong>de</strong> Pesquisas Feministas para a Bioética e da Associação Internacional <strong>de</strong> Bioética.<br />
13 Jane Roe e John Doe são alguns dos pseudônimos atribuídos nos Estados Unidos da América às<br />
mulheres e aos homens, respectivamente, quando se <strong>de</strong>seja proteger ou se <strong>de</strong>sconhece a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
alguém.<br />
14 No enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Dworkin (1999, p. 44). A <strong>de</strong>cisão tocou em dois temas essenciais à <strong>de</strong>mocracia<br />
estaduni<strong>de</strong>nse: a religião e o fe<strong>de</strong>ralismo, pelo que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que foi proferida vem sofrendo inúmeras<br />
tentativas <strong>de</strong> reforma, quer no Legislativo quer na própria Suprema Corte. Neste sentido, não há uma única
Declarou-se inconstitucional (com sete votos dos nove Juízes) lei texana que<br />
criminalizava o aborto, exceto quando praticado para salvar a vida da mãe. A <strong>de</strong>cisão<br />
consagrou, ainda, a inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer lei que proibisse o aborto para<br />
tutelar o feto nos dois primeiros trimestres <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z. Os Estados, então, não po<strong>de</strong>riam,<br />
por qualquer modo, proibir o aborto durante o primeiro trimestre gestacional, não<br />
po<strong>de</strong>ndo, ainda, proibi-lo durante o segundo trimestre, salvo nos casos em que a vida da<br />
mãe corra perigo.<br />
Trata-se <strong>de</strong> relevante <strong>de</strong>cisão a apontar para a i<strong>de</strong>ia da Constituição como uma<br />
obra aberta. O voto condutor da <strong>de</strong>cisão, proferido pelo Justice Blackmun, partindo do<br />
raciocínio <strong>de</strong> que o feto não era uma pessoa constitucional, reconheceu que as escolhas<br />
<strong>de</strong> questões ligadas à procriação (aqui inserido o aborto) estavam protegidas pelo direito<br />
constitucional à privacida<strong>de</strong>. Adotou-se, porém, a <strong>de</strong>nominada tutela progressiva, ou<br />
seja, quanto mais próximo estiver o nascimento, maior po<strong>de</strong>rá ser a tutela do feto.<br />
Eis alguns trechos da <strong>de</strong>cisão:<br />
[…]<br />
Texas urges that, apart from the Fourteenth Amendment, life begins at<br />
conception and is present throughout pregnancy, and that, therefore, the State has<br />
a compelling interest in protecting that life from and after conception. We need not<br />
resolve the difficult question of when life begins. When those trained in the<br />
respective disciplines of medicine, philosophy, and theology are unable to<br />
arrive at any consensus, the judiciary, at this point in the <strong>de</strong>velopment of<br />
man's knowledge, is not in a position to speculate as to the answer.<br />
In view of all this, we do not agree that, by adopting one theory of life,<br />
Texas may overri<strong>de</strong> the rights of the pregnant woman that are at stake. We<br />
repeat, however, that the State does have an important and legitimate interest in<br />
preserving and protecting the health of the pregnant woman, […]. These interests<br />
are separate and distinct. Each grows in substantiality as the woman approaches<br />
term and, at a point during pregnancy, each becomes "compelling".<br />
With respect to the State's important and legitimate interest in the health of<br />
the mother, the "compelling" point, in the light of present medical knowledge,<br />
is at approximately the end of the first trimester. This is so because of the nowestablished<br />
medical fact, (…), that until the end of the first trimester mortality in<br />
abortion may be less than mortality in normal childbirth. It follows that, from<br />
and after this point, a State may regulate the abortion procedure to the extent that<br />
the regulation reasonably relates to the preservation and protection of maternal<br />
health.<br />
[…]<br />
1. A state criminal abortion statute of the current Texas type, that excepts<br />
from criminality only a lifesaving procedure on behalf of the mother, without regard<br />
to pregnancy stage and without recognition of the other interests involved, is<br />
violative of the Due Process Clause of the Fourteenth Amendment.<br />
(a) For the stage prior to approximately the end of the first trimester, the<br />
abortion <strong>de</strong>cision and its effectuation must be left to the medical judgment of the<br />
pregnant woman's attending physician.<br />
(b) For the stage subsequent to approximately the end of the first trimester,<br />
the State, in promoting its interest in the health of the mother, may, if it chooses,<br />
12<br />
arguição, pelo Senado estaduni<strong>de</strong>nse, aos candidatos à vaga junto à Suprema Corte, que não trate,<br />
explicitamente, da questão. Lembre-se, ainda, que a autora da Ação, Norma McCorvey, atualmente ocupa<br />
as fileiras dos contrários ao aborto.
egulate the abortion procedure in ways that are reasonably related to maternal<br />
health.<br />
(c) For the stage subsequent to viability, the State in promoting its interest<br />
in the potentiality of human life may, if it chooses, regulate, and even<br />
proscribe, abortion except where it is necessary, in appropriate medical<br />
judgment, for the preservation of the life or health of the mother.<br />
2. The State may <strong>de</strong>fine the term "physician," as it has been employed in the<br />
preceding paragraphs of this Part XI of this opinion, to mean only a physician<br />
currently licensed by the State, and may proscribe any abortion by a person who is<br />
not a physician as so <strong>de</strong>fined.<br />
[…]<br />
We find it unnecessary to <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> whether the District Court erred in<br />
withholding injunctive relief, for we assume the Texas prosecutorial authorities will<br />
give full cre<strong>de</strong>nce to this <strong>de</strong>cision that the present criminal abortion statutes of that<br />
State are unconstitutional.<br />
13<br />
Após o julgamento <strong>de</strong> Roe Vs. Wa<strong>de</strong>, a Suprema Corte estaduni<strong>de</strong>nse já analisou o<br />
tema em outros julgados 15 , mas, em linhas gerais, em que pese o movimento pendular<br />
histórico que oscila entre um teor mais liberal e outro mais conservador, estão mantidos<br />
os pressupostos e conclusões a que chegaram os juízes no julgamento <strong>de</strong> 1973.<br />
Em 1977, no caso Maher Vs. Roe 16 , foi <strong>de</strong>cidido que um estado po<strong>de</strong> recusar-se a<br />
prestar auxílio financeiro aos abortos não terapêuticos, mesmo que auxilie no<br />
nascimento.<br />
Em 1980, no caso Harris Vs. McRae 17 , ao <strong>de</strong>clarar a constitucionalida<strong>de</strong> da emenda<br />
Hy<strong>de</strong> 18 , a US Supreme Court assentou que, apesar <strong>de</strong> não po<strong>de</strong>r proibir o aborto, o<br />
governo po<strong>de</strong>rá diferenciá-lo <strong>de</strong> outros procedimentos médicos, na medida em que<br />
nenhum outro procedimento envolveria o propósito <strong>de</strong> atentar contra uma vida, em<br />
potencial.<br />
No ano <strong>de</strong> 1986, em Thornburgh Vs. American College of Obstetricians and<br />
Gynecologists 19 , a Corte <strong>de</strong>clarou inconstitucionais algumas leis estaduais que fixavam<br />
certas obrigações prévias à realização do aborto, tais como período <strong>de</strong> espera, orientação<br />
por médicos e obtenção <strong>de</strong> informações sobre o <strong>de</strong>senvolvimento do feto e alternativas<br />
ao aborto, <strong>de</strong>ntre outras.<br />
15 Sobre os casos ver Dworkin (2009, p. 212-215).<br />
16 Disponível em: . Acesso<br />
em: 26 jul. 2010.<br />
17 Disponível em: . Acesso<br />
em: 27 jul. 2010.<br />
18 Uma espécie <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ndo (anexo) à lei orçamentária fe<strong>de</strong>ral estaduni<strong>de</strong>nse que proibia, na redação original<br />
analisada pela Corte, o uso <strong>de</strong> verba pública fe<strong>de</strong>ral com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> auxiliar o aborto, em qualquer<br />
circunstância. A emenda Hy<strong>de</strong> passou a vigorar a partir <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1976, ganhando o nome do<br />
Deputado que foi seu autor, Henry Hy<strong>de</strong>, exatamente em resposta dos republicanos a Roe Vs. Wa<strong>de</strong>. Des<strong>de</strong><br />
1993, a emenda foi alterada para possibilitar o uso <strong>de</strong> verba pública nos casos on<strong>de</strong> há risco à saú<strong>de</strong> da<br />
mãe e nos casos <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z proveniente <strong>de</strong> estupro e incesto.<br />
19 Disponível em: . Acesso<br />
em: 27 jul. 2010.
14<br />
No ano <strong>de</strong> 1989, em Webster Vs. Reproductive Health Services Incorporated of<br />
Missouri 20 , após a substituição <strong>de</strong> três juízes que seguiram o voto vencedor em Roe Vs<br />
Wa<strong>de</strong>, foram mantidas restrições muito severas ao aborto, <strong>de</strong>ntre as quais a proibição <strong>de</strong><br />
sua realização em “<strong>fetos</strong> viáveis” por médicos pertencentes à re<strong>de</strong> pública estadual <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong> e a proibição do uso <strong>de</strong> qualquer meio ou recurso públicos para auxiliar,<br />
aconselhar ou encorajar o aborto, salvo em casos em que haveria risco <strong>de</strong> vida da mãe.<br />
Em 1992, no caso Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania Vs. Casey 21 ,<br />
analisou-se lei estadual que criava certas obrigações rígidas às mulheres que<br />
<strong>de</strong>sejassem realizar o aborto, <strong>de</strong>ntre as quais: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aconselhamento<br />
médico, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> notificação ao marido acerca da <strong>de</strong>cisão, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
obtenção do consentimento dos pais em caso do aborto ser realizado em menores <strong>de</strong><br />
ida<strong>de</strong>, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se aguardar 24 horas para que o aborto fosse realizado, <strong>de</strong>ntre<br />
outras.<br />
A Suprema Corte, por intermédio <strong>de</strong> três <strong>de</strong> seus Justices, consignou que os<br />
estados estavam livres para adotar leis que fixem uma estrutura razoável que permita à<br />
mulher, mesmo nos primeiros meses <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z, refletir sobre a importância <strong>de</strong> seu ato,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não crie, todavia, um ônus excessivo para a mulher que <strong>de</strong>seje optar pela<br />
<strong>antecipação</strong> do parto, <strong>de</strong> modo a fixar obstáculos substanciais a tal opção.<br />
Assim, um grupo majoritário <strong>de</strong> Justices enten<strong>de</strong>u que a exigência <strong>de</strong> notificação do<br />
marido criava ônus excessivo à mulher, que po<strong>de</strong>ria temer intimidação física, por<br />
exemplo. Enten<strong>de</strong>u, todavia, a Corte, que inexistia ônus excessivo em se exigir o<br />
transcurso <strong>de</strong> 24 horas entre a prescrição médica ao aborto e a realização do ato.<br />
6.2 Portugal<br />
Portugal analisou a questão <strong>de</strong> modo bastante peculiar e interessante.<br />
No exercício do controle prévio <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, o Tribunal Constitucional<br />
português manifestou-se 22 sobre a constitucionalida<strong>de</strong> em submeter ao povo português<br />
a seguinte questão, em referendo:<br />
Concorda com a <strong>de</strong>spenalização da interrupção voluntária da gravi<strong>de</strong>z, se realizada, por<br />
opção da mulher, nas primeiras 10 semanas, em estabelecimento <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> legalmente<br />
autorizado<br />
20 Disponível em: . Acesso<br />
em: 29 jul. 2010.<br />
21 Disponível em: . Acesso em: 30 jul. 2010.<br />
22 Decisão do Tribunal Constitucional Português consubstanciada no Acórdão n. 288/98. Revista Sub<br />
Judice: Justiça e Socieda<strong>de</strong>, n. 20/21, p. 175-220, jan./jun. 2000.
15<br />
Após analisar questões formais acerca do referendo, o TC português ressaltou que<br />
a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> abortar, em diversos países, na generalida<strong>de</strong> dos casos, supõe a existência<br />
<strong>de</strong> prévia consulta <strong>de</strong> aconselhamento para que possam ser colhidas informações acerca<br />
<strong>de</strong> eventuais direitos sociais e auxílios que a mulher po<strong>de</strong>ria usufruir no caso <strong>de</strong> dar à luz.<br />
A <strong>de</strong>cisão supõe, também, transcurso <strong>de</strong> tempo para reflexão, salvo em caso <strong>de</strong><br />
urgência.<br />
No que diz respeito à jurisprudência constitucional, informou a Corte Portuguesa que<br />
a maioria das jurisdições dos países reconheceu a proteção constitucional da vida intrauterina,<br />
sendo a Áustria a única exceção. Todavia, essa posição <strong>de</strong> partida não impediu<br />
as diversas jurisdições constitucionais <strong>de</strong> aceitar a conformida<strong>de</strong> constitucional da<br />
<strong>de</strong>spenalização da interrupção voluntária da gravi<strong>de</strong>z, não só quando ocorram certas<br />
indicações, mas também durante o primeiro terço do período gestacional, por <strong>de</strong>cisão da<br />
mulher.<br />
Lembrou-se, a<strong>de</strong>mais, que em Decisão anterior do mesmo Tribunal Constitucional<br />
luso, Acórdão 85/1985, restou explicitado que a constatação <strong>de</strong> que a vida intra-ulterina<br />
goza <strong>de</strong> tutela constitucional (dimensão objetiva do direito à vida), não impe<strong>de</strong> a<br />
constatação <strong>de</strong> que, seja qual for o momento em que a vida inicie, o feto ainda não é uma<br />
pessoa, um homem, não po<strong>de</strong>ndo, portanto, ser titular direto <strong>de</strong> Direitos Fundamentais,<br />
pelo que a proteção dos nascituros não tem que ser igual à dos nascidos.<br />
Mesmo que se entenda que o Direito à vida abrange os não nascidos, fundamental<br />
exercer pon<strong>de</strong>rações nos casos em que entre em conflito com Direitos da mãe,<br />
nascendo, também aqui, como nos EUA, o campo propício para a tutela progressiva.<br />
Assim, seria razoável supor que durante a fase inicial da gravi<strong>de</strong>z o aborto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria da<br />
vonta<strong>de</strong> exclusiva da mulher, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que cumpridas certas formalida<strong>de</strong>s.<br />
A<strong>de</strong>mais, prossegue, ainda que se tenha o aborto como ato negativo e<br />
intrinsecamente mau, daí não <strong>de</strong>corre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua criminalização. Pon<strong>de</strong>ra,<br />
ainda, que a criminalização <strong>de</strong>sfavorece os economicamente mais frágeis. Afinal, as<br />
pessoas mais ricas po<strong>de</strong>rão procurar outras clínicas em outros países europeus, on<strong>de</strong> o<br />
aborto não é criminalizado. Já os mais probres, provavalmente farão o aborto em locais<br />
ina<strong>de</strong>quados, ainda com risco <strong>de</strong> serem sancionados.<br />
Deste modo, em <strong>de</strong>cisão proferida em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1998, que contou com várias<br />
<strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> votos vencidos, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o Tribunal pela constitucionalida<strong>de</strong> e legalida<strong>de</strong> do<br />
referente proposto.<br />
Realizado o referendo em 28 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1998, apenas 31% do eleitorado<br />
compareceu às urnas. Ganhou o “Não”, com 51%.
16<br />
Suce<strong>de</strong> que em outubro <strong>de</strong> 2006 foi convocado novo referendo com pergunta<br />
similar. Desta vez compareceu 44% do eleitorado, que votou pelo “SIM”, consolidando<br />
uma maioria <strong>de</strong> 59,25% dos eleitores que respon<strong>de</strong>ram à consulta. Suce<strong>de</strong> que o<br />
resultado não se po<strong>de</strong> tornar vinculante, em face do reduzido número <strong>de</strong> pessoas que<br />
compareceram às urnas.<br />
Todavia, em 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2007, após aprovação pelo Congresso português,<br />
passou a viger a Lei nacional No. 16/2007, que excluiu a ilicitu<strong>de</strong>, em certos casos, da<br />
interrupção voluntária da gravi<strong>de</strong>z.<br />
Consoante referido diploma legal, não é punível a interrupção da gravi<strong>de</strong>z efetuada<br />
por médico, ou sob a sua direção, em estabelecimento <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> oficial ou oficialmente<br />
reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, <strong>de</strong>ntre outras hipóteses,<br />
for realizada, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z.<br />
Neste caso, a mulher <strong>de</strong>verá passar por algumas consultas <strong>de</strong>stinadas a facultar-lhe<br />
o acesso à informação relevante para a formação da sua <strong>de</strong>cisão livre, consciente e<br />
responsável, assegurando-lhe, ainda, um período <strong>de</strong> reflexão não inferior a três dias<br />
contados da data da realização da primeira consulta.<br />
Dentre as informações a serem fornecidas à gestante, <strong>de</strong>verão estar as condições<br />
em que interrupção será efetuada e bem assim <strong>de</strong> suas consequências para a saú<strong>de</strong> da<br />
mulher, as condições <strong>de</strong> apoio que o Estado po<strong>de</strong> dar à prossecução da gravi<strong>de</strong>z e à<br />
maternida<strong>de</strong> e a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhamento psicológico e <strong>de</strong> assistência social<br />
durante o período <strong>de</strong> reflexão.<br />
Por fim, <strong>de</strong>staque-se que foi assegurado aos médicos e <strong>de</strong>mais profissionais <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong> o direito à objecção <strong>de</strong> consciência relativamente a quaisquer atos concernentes à<br />
interrupção voluntária da gravi<strong>de</strong>z.<br />
6.3 Outros países Europeus e a Corte Europeia <strong>de</strong> Direitos Humanos<br />
A maioria dos países europeus enten<strong>de</strong> que o Po<strong>de</strong>r Legislativo não se encontra<br />
impedido <strong>de</strong> adotar um conceito <strong>de</strong> proteção do nascituro que, na fase inicial da gravi<strong>de</strong>z,<br />
"centre sua atenção em medidas <strong>de</strong> tipo preventivo, <strong>de</strong>signamente no aconselhamento
17<br />
da grávida, prescindindo <strong>de</strong> uma eventual ameaça penal, tida como extrema ratio, e<br />
<strong>de</strong>monstradamente ineficaz para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a vida pré-natal” 23 .<br />
Este raciocínio permite que o aborto voluntário seja permitido na esmagadora<br />
maioria dos Estados Europeus, quando efetuado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certos prazos 24 e existam<br />
indicações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>terapêutica</strong>, eugênica ou ética. Deverá haver, também,<br />
acompanhamento médico e psicológico à gestante. Em realida<strong>de</strong> apenas na Polônia, na<br />
Irlanda e em Malta há uma legislação mais repressiva em relação ao aborto.<br />
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já se manifestou sobre o tema em<br />
algumas ocasiões.<br />
Em 1992, no caso Open Door, em que foi questionada lei irlan<strong>de</strong>sa que proibia que<br />
fossem fornecidas informações sobre clínicas on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria ser realizada a interrupção da<br />
gravi<strong>de</strong>z fora da Irlanda. Em longa <strong>de</strong>cisão, a Corte, sem entrar propriamente no mérito<br />
da legalida<strong>de</strong> do aborto, asseverou que a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão vale também para as<br />
informações que chocam ou inquietam o Estado ou parte da população. Assim,<br />
reconheceu que a proibição em tela reduziu o direito à informação, não obstante suas<br />
implicações morais 25 .<br />
Em 3 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2009, a mesma Corte Europeia con<strong>de</strong>nou Portugal, por não ter<br />
permitido, em 2004, a entrada <strong>de</strong> navio, o Borndiep, da organização não governamental<br />
Women on Waves, no interior do qual seriam realizadas reuniões, seminários e ateliers<br />
práticos em matéria <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong> doenças sexualmente transmissíveis, <strong>de</strong><br />
planejamento familiar e <strong>de</strong> <strong>de</strong>spenalização voluntária da gravi<strong>de</strong>z. Frise-se que a aludida<br />
ONG também realiza abortos, em alto-mar, para as cidadãs <strong>de</strong> países on<strong>de</strong> tal ato é<br />
criminalizado, ministrando, também, substâncias abortivas. A questão foi analisada sob a<br />
ótica da Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Expressão.<br />
23 Decisão do Tribunal Constitucional Te<strong>de</strong>sco, em <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1993, que afirmou que os<br />
Direitos Fundamentais das mulheres não são tão amplos a ponto <strong>de</strong> abolir, por completo, a obrigação <strong>de</strong> dar<br />
à luz, mas que, certamente, justificam, em certas ocasiões, que a <strong>antecipação</strong> voluntária não apenas seja<br />
admissível, mas indicada. Ver Acórdão 288/98 do Tribunal Constitucional <strong>de</strong> Portugal, Revista Sub Judice, p.<br />
192.<br />
24 Em geral 12 semanas, po<strong>de</strong>ndo variar <strong>de</strong> 10 a 24 semanas, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do País.<br />
25 Dworkin (2009, p. 92-94) sustenta que a <strong>de</strong>cisão da Corte apenas foi possível por ter partido do<br />
pressuposto <strong>de</strong> que o feto não é “uma pessoa com direitos ou interesses próprios e que as leis que proíbem<br />
ou regulamentam o aborto só po<strong>de</strong>m ser justificadas com base na premissa <strong>de</strong> que se consi<strong>de</strong>ra que tal<br />
prática põe em risco o valor inerente da vida humana”. Sim, porque a Corte sustentou que as limitações à<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão não possibilitariam uma redução no número <strong>de</strong> abortos suficiente a autorizar tal<br />
grave intervenção ao direito à livre informação. Assim, concluiu Dworkin, se a Corte enten<strong>de</strong>sse o feto como<br />
pessoa com direito à vida: “[...] um governo teria o direito <strong>de</strong> tentar impedir o assassinato até mesmo <strong>de</strong> um<br />
único feto, e uma proibição <strong>de</strong> informação direta sobre clínicas <strong>de</strong> aborto estrangeiras seria uma atitute<br />
apropriada”, mesmo que a gran<strong>de</strong> maioria das mulheres grávidas tivessem outros meios para acessar as<br />
informações cerceadas.
18<br />
O caso mais emblemático, todavia, produzido até o presente momento, refere-se à<br />
cidadã polonesa Alicja Tysiac, então mãe <strong>de</strong> dois filhos e afetada por doença ocular<br />
grave (retinopatia progressiva). Receosa <strong>de</strong> que a gravi<strong>de</strong>z agravasse sua doença, fez<br />
diversas consultas médicas com especialistas, que reconheceram o risco, mas se<br />
negaram a assinar atestado autorizativo para o aborto. Apenas um médico geral aceitou<br />
assinar o atestado autorizando o aborto.<br />
Descartou-se, com isso, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abortar, eis que na Polônia apenas se<br />
autoriza a medida em casos <strong>de</strong> estupro, má-formação congênita ou risco para a vida da<br />
mãe, comprovado por dois especialistas.<br />
Obrigada a levar a gravi<strong>de</strong>z a termo, sofreu sérias complicações em sua visão, após<br />
o parto, <strong>de</strong>vido a hemorragias na sua retina. Como a cirurgia corretiva não é possível,<br />
enfrenta um sério risco <strong>de</strong> cegueira.<br />
Argumentou-se, junto à Corte, que os Estados que permitem o aborto em casos<br />
específicos, como o faz a Polônia nos casos em que a gravi<strong>de</strong>z representa um risco para<br />
a saú<strong>de</strong> física para a mulher, têm a obrigação <strong>de</strong> assegurar que a garantia do aborto<br />
possa ser eficazmente realizada, na prática.<br />
Assim, o Tribunal, em março <strong>de</strong> 2007, reconheceu que o governo Polonês falhou ao<br />
tutelar o direito ao respeito à vida privada e familiar da requerente. Sim, porque não se<br />
colocou à disposição da Sra. Tysiac um meio idôneo para questionar a <strong>de</strong>cisão dos<br />
médicos que recusaram a ofertar o atestado necessário ao aborto. Asseverou, ainda, o<br />
Colegiado, ser fundamental disponibilizar às mulheres grávidas o direito <strong>de</strong> serem<br />
ouvidas e terem suas opiniões consi<strong>de</strong>radas. Relembra que, em casos <strong>de</strong>sta natureza, o<br />
fator tempo é <strong>de</strong> importância crítica, pelo que as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>vem ser perfeitamente<br />
tempestivas. Fixou-se, então, pena pecuniária a ser revertida em benefício da querelante,<br />
pela dor e sofrimento impostos pelo Estado polonês.<br />
Por fim, cumpre salientar que está para ser <strong>de</strong>cidido naquele Tribunal caso (ABC v.<br />
Ireland) que irá questionar se a legislação irlan<strong>de</strong>sa, que atualmente restringe o aborto<br />
apenas aos casos em que haja perigo comprovado <strong>de</strong> vida da mãe, fere a Convenção<br />
Europeia <strong>de</strong> Direitos Humanos.<br />
Duas irlan<strong>de</strong>sas e uma lituana (<strong>de</strong>nominadas <strong>de</strong> A, B e C), todas resi<strong>de</strong>ntes na<br />
Irlanda, alegam que tiveram a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>slocar à Inglaterra para interromper<br />
as respectivas gestações; alegam não apenas que a viagem lhes trouxe risco grave para<br />
a saú<strong>de</strong>, mas como <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> ter, por força da proibição da legislação irlan<strong>de</strong>sa,<br />
acompanhamento médico. Sustenta-se que houve lesão aos artigos 2º (Direito à vida), 3º
19<br />
(Proibição <strong>de</strong> tratos <strong>de</strong>sumanos e <strong>de</strong>gradantes) e 8 º (direito ao respeito da vida privada e<br />
familiar), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.<br />
Consi<strong>de</strong>rando que a Corte, até o presente momento, jamais <strong>de</strong>terminou, <strong>de</strong> modo<br />
claro, se a Convenção Europeia tutela a vida do feto ou se, ao contrário, tutela o direito<br />
ao aborto, o caso ofertará a oportunida<strong>de</strong> para que haja a necessária <strong>de</strong>finição sobre o<br />
tema junto ao Tribunal.<br />
7 A ANTECIPAÇÃO VOLUNTÁRIA DO PARTO DE FETOS PORTADORES DE<br />
ANENCELAFIA. UM DILEMA JURÍDICO JÁ RESOLVIDO PELA CONSTITUIÇÃO DA<br />
REPÚBLICA. O FETO ANENCEFÁLICO NÃO É, NO BRASIL, UMA PESSOA COM<br />
INTERESSES OU DIREITOS QUE PROIBAM A ANTECIPAÇÃO VOLUNTÁRIA DO<br />
PARTO<br />
Como já visto anteriormente, o Brasil enfrenta, no momento, discussão jurídica já<br />
superada em diversos países.<br />
Na maioria dos Estados supra mencionados já resta juridicamente resolvida a<br />
controvérsia existente, até mesmo acerca da <strong>antecipação</strong> voluntária do parto por <strong>de</strong>cisão<br />
imotivada da mulher, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que observados alguns procedimentos prévios.<br />
No Brasil, uma gran<strong>de</strong> parte da dificulda<strong>de</strong> em se solucionar a controvérsia, no que<br />
tange à constitucionalida<strong>de</strong> da <strong>antecipação</strong> voluntária do parto <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>,<br />
resi<strong>de</strong> na compreensão equivocada da controvérsia em si. Veja-se:<br />
Consoante afirma Scaccia (2000, p. 324-383), são três as fases da pon<strong>de</strong>ração. A<br />
primeira consiste na correta i<strong>de</strong>ntificação dos bens, direitos ou valores constitucionais<br />
afetados pelo conflito, fase <strong>de</strong>nominada, por Roberto Bin, <strong>de</strong> topografia do conflito. Após,<br />
mister que se <strong>de</strong>termine o peso relativo dos valores coli<strong>de</strong>ntes. Por fim, urge i<strong>de</strong>ntificar e<br />
valorar o interesse público que se preten<strong>de</strong> satisfazer mediante o sacrifício do interesse<br />
que sairá prejudicado.<br />
Inserida, portanto, na pon<strong>de</strong>ração, está a correta e precisa <strong>de</strong>marcação do campo<br />
normativo dos interesses supostamente em litígio, o que permitirá verificar se a hipótese<br />
conflitante está, <strong>de</strong> fato, “compreendida no âmbito <strong>de</strong> tutela <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> um <strong>de</strong>les” 26 . Será<br />
fundamental <strong>de</strong>finir se há, <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, uma sobreposição <strong>de</strong> regulação <strong>de</strong> interesses<br />
conflitantes e qual a parcela <strong>de</strong> vigência para cada um <strong>de</strong>sses interesses 27 .<br />
26 Ver Sarmento (2003, p. 100-101).<br />
27 Conforme assevera, corretamente, Bin (apud SARMENTO, 2003, p. 100).
20<br />
Sim, porque não se po<strong>de</strong> olvidar que a pon<strong>de</strong>ração, como método <strong>de</strong> solução <strong>de</strong><br />
conflitos entre princípios, exige a simetria <strong>de</strong> peso entre os direitos pon<strong>de</strong>rados, pelo que<br />
resta essencial ao Juiz, para autorizar-lhe o manejo <strong>de</strong>sta técnica, que constate a<br />
inexistência <strong>de</strong> hierarquia normativa fixada na própria Constituição, que, portanto, não<br />
po<strong>de</strong>rá ter excluído do âmbito normativo <strong>de</strong> certo princípio a proteção <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada<br />
conduta 28 . Trata-se <strong>de</strong> fixar os limites imanentes <strong>de</strong> cada princípio.<br />
No que tange à <strong>antecipação</strong> do parto <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>, a Constituição da<br />
República fixou, <strong>de</strong> modo claro, uma hierarquia normativa entre os direitos da mãe e os<br />
do feto.<br />
Primeiramente, <strong>de</strong>staque-se que o aborto foi tema profundamente discutido a<br />
quando da realização dos trabalhos da Assembleia Constituinte <strong>de</strong> 87/88. Foram ouvidas<br />
representantes das mulheres (Conselho Nacional <strong>de</strong> Defesa da Mulher), da Igreja<br />
Católica (CNBB), da socieda<strong>de</strong> civil (OAB), <strong>de</strong>ntre inúmeros outros setores<br />
representativos da socieda<strong>de</strong> e instituições brasileiras.<br />
Ao final dos trabalhos, <strong>de</strong>cidiram os constituintes não guindar o tema à categoria <strong>de</strong><br />
Direito Constitucional Formal.<br />
Mas não é só.<br />
Houve proposta para que a Constituição se referisse, <strong>de</strong> forma expressa, à proteção<br />
da vida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a concepção, por intermédio <strong>de</strong> alteração à redação do seu atual artigo 5º,<br />
formulada à época da constituinte pelo Deputado Fe<strong>de</strong>ral João Assis Meira Filho (PMDM-<br />
DF). Referida proposta foi rejeitada pela Assembleia Nacional Constituinte 29 .<br />
A Constituição da República, não por omissão, mas por silêncio eloquente, <strong>de</strong>ixou<br />
<strong>de</strong> adotar a doutrina que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a concepção como o marco inicial da vida 30 .<br />
28 Inserido do âmbito <strong>de</strong> proteção da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão não está o assassinato <strong>de</strong> uma pessoa no<br />
palco. Aqui inexiste conflito atual, passível <strong>de</strong> ser juridicamente analisado, entre a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão e<br />
o direito à vida da pessoa que se preten<strong>de</strong> assassinar durante o espetáculo. Nossa Constituição já excluiu a<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conflito, ao excluir, do campo <strong>de</strong> proteção da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, o atendado contra a<br />
vida humana. Aqui <strong>de</strong>scabe a pon<strong>de</strong>ração, porquanto tal técnica, utilizada em face <strong>de</strong> um caso <strong>de</strong> conflito<br />
concreto, pressupõe que qualquer um dos princípios coli<strong>de</strong>ntes po<strong>de</strong>rá sair vitorioso, se não hoje,<br />
provavelmente amanhã, em um outro conflito. Ora, não se po<strong>de</strong>rá admitir em qualquer hipótese o<br />
assassinato <strong>de</strong> uma pessoa como forma <strong>de</strong> manifestação da liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão.<br />
29 Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Brasil, 1987/88, p. 7220, 7419-7422, 7450).<br />
30 De pouca valia servirá, portanto, o manejo <strong>de</strong> argumentos com base no art. 4º, I do Pacto <strong>de</strong> São José,<br />
que afirma que "toda persona tiene <strong>de</strong>recho que se respete su vida. Este <strong>de</strong>recho estará protegido por la ley<br />
y, en general, a partir <strong>de</strong>l momento <strong>de</strong> la concepción. Nadie pue<strong>de</strong> ser privado <strong>de</strong> la vida arbitrariamente".<br />
Trata-se <strong>de</strong> norma supralegal (hierarquicamente superior às leis ordinárias, mas inferior à Constituição -<br />
STF: RE 466.343 – HC 94.695 – HC 87.585). A<strong>de</strong>mais, a Comissão Interamericana <strong>de</strong> Direitos Humanos,<br />
<strong>de</strong>cidiu, por intermédio da Resolução 23/81, que o direito ao aborto não viola o artigo 4º, inciso I, do Pacto <strong>de</strong><br />
São José, nem o artigo 1º da Declaração Americana dos Direitos do Homem. Tal posição foi ratificada, em<br />
2006, quando a mesma Comissão remeteu carta ao Governo da Nicarágua, <strong>de</strong>clarando que a proibição<br />
absoluta ao aborto, então aprovada no País, contrariava o Direito Internacional e ameaçava os Direitos<br />
Humanos das mulheres.
21<br />
Isto é tão mais verda<strong>de</strong>iro quando se observa que no Brasil não se questiona a<br />
<strong>antecipação</strong> voluntária do parto <strong>de</strong> gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> estupro. Afinal, uma vez<br />
reconhecida a relevância equivalente da vida do feto, sua existência não po<strong>de</strong>ria<br />
<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r, exclusivamente, da liberda<strong>de</strong> do ato que a criou.<br />
Assim, não há como se <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> reconhecer que a Constituição, em <strong>de</strong>cisão<br />
profundamente coerente com outros dispositivos que tutelam diversos aspectos da<br />
liberda<strong>de</strong> individual, ao constatar a absoluta ausência <strong>de</strong> consenso científico ou filosófico,<br />
preferiu não fixar o momento crucial (turning point) para o surgimento da vida.<br />
Reconheceu, portanto, o chamado <strong>de</strong>sacordo moral razoável, preferindo <strong>de</strong>ixar sua<br />
solução sob a tutela da liberda<strong>de</strong> individual 31 .<br />
No que tange, justamente, à liberda<strong>de</strong> individual, a Constituição da República<br />
assegurou, <strong>de</strong>ntre outros, o Direito Fundamental <strong>de</strong> não ser submetido à tortura ou a<br />
tratamento <strong>de</strong>sumano ou <strong>de</strong>gradante (art. 5º, III), a Liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência e crença<br />
(art. 5º, VI), o Direito Fundamental à privacida<strong>de</strong> e integrida<strong>de</strong> física (art. 5º, X) e o Direito<br />
Fundamental, do casal, ao planejamento familiar, competindo ao Estado propiciar<br />
recursos para seu exercício, vedada qualquer forma coercitiva por parte <strong>de</strong> instituições<br />
oficiais ou privadas. (art. 226, § 7º).<br />
O Constituinte <strong>de</strong> 87/88 <strong>de</strong>cidiu, no art. 5º, III, portanto, que a mulher tem o direito<br />
<strong>de</strong> não ser torturada nem submetida a tratamento <strong>de</strong>gradante, como, por exemplo: 1.<br />
abrigar, sem <strong>de</strong>sejar, um feto que não possui qualquer viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida; 2. ter que<br />
passar, sem <strong>de</strong>sejar, pelas <strong>de</strong>licadas circunstâncias inerentes à gravi<strong>de</strong>z, sabendo que,<br />
ao seu final, <strong>de</strong>ixará a maternida<strong>de</strong> sem a criança, <strong>de</strong>vendo, ainda, suportar a dor <strong>de</strong> um<br />
sepultamento; 3. ter que bloquear a amamentação, isto para se falar do mínimo.<br />
Do mesmo modo, a Constituição <strong>de</strong>ixou claro, no art. 5º, X, tutelar a incolumida<strong>de</strong><br />
corporal e a privacida<strong>de</strong> da mulher. Neste sentido, cumpre ressaltar que o próprio STF,<br />
no julgamento do Habeas Corpus 71.373-4-RS, em que se discutia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se<br />
obrigar alguém a se submeter ao teste <strong>de</strong> DNA para comprovação <strong>de</strong> paternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ixou<br />
assentado que seria irrecusável o direito do paciente <strong>de</strong> não permitir que se lhe retirasse,<br />
das próprias veias, porção <strong>de</strong> sangue, por menor que fosse, para realização <strong>de</strong> tal<br />
exame. Afinal, a coação física lesaria a dignida<strong>de</strong> do paciente.<br />
31 Neste sentido, importante reflexão é celebrada por Dworkin (2009, p. 211): “O Estado protege melhor um<br />
valor contestável ao incentivar as pessoas a aceitarem-no como contestável, compreen<strong>de</strong>ndo que são<br />
responsáveis por <strong>de</strong>cidir por si próprias o que isso significa Ou [...] <strong>de</strong>cidindo qual interpretação é a certa e,<br />
em seguida, forçar a todos uma posição consensual”. Nossa Constituição, para o caso em comento e <strong>de</strong><br />
modo inexorável, respon<strong>de</strong> positivamente à primeira indagação, prestigiando o princípio da responsabilida<strong>de</strong><br />
sobre o da conformida<strong>de</strong>.
22<br />
Pois bem, se um homem não po<strong>de</strong> ser forçado a ce<strong>de</strong>r pequena quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
sangue para realização do exame <strong>de</strong> DNA, em face <strong>de</strong> sua incolumida<strong>de</strong> corporal,<br />
privando o filho da verda<strong>de</strong> real acerca <strong>de</strong> sua paternida<strong>de</strong>, como se po<strong>de</strong>rá preten<strong>de</strong>r<br />
não ofen<strong>de</strong>r a incolumida<strong>de</strong> corporal <strong>de</strong> uma mãe (no parto a mãe certamente per<strong>de</strong>rá<br />
mais do que uma pequena porção <strong>de</strong> sangue), obrigá-la a prosseguir na gestação (por 9<br />
meses) contra sua vonta<strong>de</strong> e a espera <strong>de</strong> um ser sem qualquer viabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida<br />
A Constituição da República, ainda, <strong>de</strong>ixou claro que as pessoas <strong>de</strong>vem gozar da<br />
liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência e crença (art. 5º, VI). Quanto a este aspecto, registre-se,<br />
inicialmente, o equívoco em se convidar para serem ouvidas, nas audiências públicas<br />
realizadas no curso da ADPF 54, algumas entida<strong>de</strong>s religiosas. O convite e a pressão <strong>de</strong><br />
diversos grupos religiosos apenas revela a natureza religiosa que permeia todo o <strong>de</strong>bate<br />
sobre o aborto e que, em face justamente do normativo contido no art. 5º, VI da<br />
Constituição brasileira, jamais po<strong>de</strong>rá ser levada em consi<strong>de</strong>ração para permitir ou proibir<br />
condutas.<br />
O Estado laico brasileiro, enquanto não for emendada a Constituição, jamais po<strong>de</strong>rá<br />
impor uma crença aos seus cidadãos, ainda que <strong>de</strong> modo majoritário.<br />
Isto não significa, porém, que o Estado brasileiro não possa <strong>de</strong>finir alguns bens<br />
como relevantes, atribuindo-lhes valores intrínsecos. Po<strong>de</strong>rá proibir certas ativida<strong>de</strong>s<br />
industriais lesivas ao meio ambiente, às espécies em risco <strong>de</strong> extinção ou às futuras<br />
gerações. Po<strong>de</strong>rá, igualmente, proibir que os proprietários <strong>de</strong>struam seus prédios, acaso<br />
tenham valor arquitetônico histórico 32 . Não po<strong>de</strong>rá, ainda assim, proibir o aborto.<br />
Afinal, neste caso “o efeito da coerção a pessoas específicas (as mulheres grávidas)<br />
é muito maior. Criminalizar o aborto po<strong>de</strong>rá <strong>de</strong>struir a vida <strong>de</strong> uma mulher. Proteger a<br />
arte, os edifícios históricos, [...] raramente é tão prejudicial para pessoas específicas” 33 .<br />
Frise-se, ainda, que a atribuição <strong>de</strong> um valor intrínseco à vida <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
convicções infinitamente mais fundamentais “para a totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossa personalida<strong>de</strong><br />
moral do que nossas convicções sobre a cultura ou as espécies ameaçadas, ainda que<br />
estas também impliquem valores intrínsecos” (DWORKIN, (2009, p. 216).<br />
Assim, se é verda<strong>de</strong> que o Estado po<strong>de</strong>rá tutelar alguns bens por lhes atribuir<br />
valores intrínsecos, é também verda<strong>de</strong> que <strong>de</strong>verão ser respeitados os limites fixados<br />
pelas liberda<strong>de</strong>s individuais, pelo que, conclui, acertadamente, Dworkin (2009, p. 220)<br />
que não se po<strong>de</strong> restringir a liberda<strong>de</strong> individual, ainda que se pretenda a proteção <strong>de</strong> um<br />
valor intrínseco, quando:<br />
32 Os exemplos são fornecidos por Dworkin (2009, p. 208).
o efeito sobre um grupo <strong>de</strong> cidadãos for especialmente grave, quando a comunida<strong>de</strong><br />
estiver seriamente dividida a respeito do que o respeito por esse valor exige e quando as<br />
opiniões das pessoas sobre a natureza <strong>de</strong>sse valor refletirem convicções essencialmente<br />
religiosas que são fundamentais para a personalida<strong>de</strong> moral.<br />
Assim, nem mesmo a <strong>de</strong>fesa do valor intrínseco <strong>de</strong> toda e qualquer vida po<strong>de</strong>rá<br />
impedir a <strong>antecipação</strong> voluntária do parto.<br />
Afinal, tal proibição recairia, sobretudo, sobre um pequeno grupo <strong>de</strong> cidadãos:<br />
mulheres grávidas que <strong>de</strong>sejem realizar a <strong>antecipação</strong>.<br />
A<strong>de</strong>mais, a comunida<strong>de</strong> brasileira está, visivelmente, dividida acerca do tema, pelo<br />
que não se po<strong>de</strong> aferir qualquer indicativo <strong>de</strong> preferência no presente caso.<br />
Ainda, porque se trata <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão a envolver uma das questões mais relevantes à<br />
pessoa, exigindo, portanto, a plenitu<strong>de</strong> da autonomia humana, pelo que impensável a<br />
solução por imposição <strong>de</strong> estipulação moralmente unívoca.<br />
E, por fim, porque mesmo que se entenda a vida do feto como um valor intrínseco,<br />
ainda assim a <strong>antecipação</strong> <strong>de</strong> seu parto não po<strong>de</strong>rá ser obstada porquanto não resta<br />
<strong>de</strong>monstrado que a criminalização é a melhor forma <strong>de</strong> tutelar referido valor. Afinal, como<br />
<strong>de</strong>ixou assentado a Corte Constitucional portuguesa, ainda, a criminalização <strong>de</strong>sfavorece<br />
as mães economicamente mais frágeis, que, forçadas pela dura realida<strong>de</strong> a fazer o<br />
aborto, serão lançadas aos procedimentos mais indignos, inseguros e arriscados para<br />
realizar o aborto, ainda correndo o risco <strong>de</strong>, acaso sobrevivam, serem penalmente<br />
processadas.<br />
Neste sentido, recente pesquisa (Pesquisa Nacional <strong>de</strong> Aborto) feita pela<br />
Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília e pelo Instituto <strong>de</strong> Bioética, Direitos Humanos e Gênero (ANIS)<br />
revelou que uma em cada sete brasileiras <strong>de</strong> até 40 anos já fez o aborto. Na faixa etária<br />
dos 35 a 39 anos, uma em cada cinco já antecipou o parto, pelo que, no Brasil, a<br />
criminalização não vem impedindo que milhares <strong>de</strong> mulheres adotem a conduta (DINIZ;<br />
MEDEIROS, 2010).<br />
Descriminalizar o aborto não significa forçar as mães que abrigam <strong>fetos</strong><br />
<strong>anencefálicos</strong> a antecipar os respectivos partos. Não significa, também, negar a<br />
importância moral inerente ao tema. Não significa que o Estado não possa <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />
exigir atestados e exames que comprovem a anencefalia.<br />
Significa, antes, permitir às mães que abrigam tais <strong>fetos</strong>, e que <strong>de</strong>sejem antecipar o<br />
parto, a fazê-lo em condições dignas e seguras. Significa permitir, às mães que <strong>de</strong>sejem<br />
antecipar o parto, esvaziar um pouco do já pesado fardo que é ter que estar diante <strong>de</strong> tal<br />
23<br />
33 Conforme salienta Dworkin (2009, p. 216).
24<br />
escolha trágica. Significa, também, permitir que cada mãe possa ter sua convicção<br />
religiosa ou filosófica.<br />
Por fim, <strong>de</strong>staque-se que a Constituição da República blindou a família da<br />
ingerência do Estado, a quando do planejamento familiar, tutelando, portanto, o Direito<br />
Fundamental à autonomia procriadora, (art. 226, § 7º) aqui, evi<strong>de</strong>ntemente, incluídas as<br />
questões ligadas à liberda<strong>de</strong> em levar a termo ou não a gestação <strong>de</strong> <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>.<br />
7 CONCLUSÃO<br />
O presente trabalho preten<strong>de</strong>u realizar reflexão jurídica responsável acerca <strong>de</strong> tão<br />
relevante tema.<br />
Neste sentido, o diálogo realizado com alguns doutrinadores, a análise do<br />
or<strong>de</strong>namento constitucional brasileiro e <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> tribunais constitucionais<br />
possibilita concluir que o Brasil está em busca <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão já tomada por diversos Estados<br />
que, por uma série <strong>de</strong> circunstâncias, pu<strong>de</strong>ram <strong>de</strong>monstrar o amadurecimento necessário<br />
para o enfrentamento da controvérsia.<br />
O caminho que está se <strong>de</strong>senhando para a solução da controvérsia, em solo<br />
brasileiro, por intermédio da ADPF 54, é perfeitamente legítimo e tanto mais o será se,<br />
uma vez já alcançada a maturida<strong>de</strong> processual, seja logo proferida a <strong>de</strong>cisão e possibilite<br />
dar importante passo ao alcance dos objetivos fundamentais <strong>de</strong> nossa República, como a<br />
promoção da dignida<strong>de</strong> humana e da cidadania, a construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> livre,<br />
justa e solidária, a erradicação da marginalização e promoção do bem <strong>de</strong> todos.<br />
Tais objetivos, consoante linha traçada pela Constituição vigente, em relação à<br />
controvérsia da <strong>antecipação</strong> voluntária do parto <strong>de</strong> feto anencefálico, serão alcançados<br />
pela valorização da pessoa da mãe, pelo que carece <strong>de</strong> fundamento constitucional<br />
qualquer tentativa <strong>de</strong> impedir a inclusão, nas exceções legais admitidas ao aborto, da<br />
<strong>antecipação</strong> voluntária do parto em <strong>fetos</strong> <strong>anencefálicos</strong>.
25<br />
REFERÊNCIAS<br />
ALVES, Rubem. Não sejas <strong>de</strong>masiado justo. Folha <strong>de</strong> São Paulo, 1 abr. 2008.<br />
Cotidiano.<br />
BASTOS, Elísio Augusto Velloso. A garantia jurisdicional da constituição brasileira:<br />
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