Livro CI 2008
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Comissão Organizadora:<br />
Ananda Brito de Assis<br />
Andreas Betz<br />
Breno Teixeira Santos<br />
Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa<br />
Meirielen Caroline da Silva<br />
Renata Brandt Nunes<br />
Tatiana Hideko Kawamoto<br />
Prof. Coordenador:<br />
Prof. Dr. José Eduardo P. W. Bicudo
<strong>Livro</strong> do V Curso de Inverno:<br />
Tópicos em Fisiologia<br />
Comparativa<br />
Departamento de Fisiologia<br />
Instituto de Biociências<br />
Universidade de São Paulo<br />
Julho de <strong>2008</strong>
Prefácio<br />
Recuperar, reunir e trazer à reflexão os mais variados temas abrangidos<br />
pela ciência da fisiologia, foi o estímulo-chave que motivou os alunos de<br />
pós-graduação do ano de <strong>2008</strong> - Universidade de São Paulo / Instituto de<br />
Biociências / Departamento de Fisiologia – a empenharem-se no preparo<br />
deste livro, facilitando o acesso e disseminação de informações desta<br />
fantástica área do conhecimento científico. O livro também serviu de apoio<br />
didático aos participantes do V Curso de Inverno: Tópicos em Fisiologia<br />
Comparativa, realizado entre os dias 7 e 25 de julho do ano citado. Sete<br />
são os capítulos que permitem ao leitor explorar desde mecanismos<br />
fisiológicos básicos até as mais atuais discussões acerca das sub-áreas<br />
discutidas.<br />
Desejamos uma boa leitura a todos.<br />
Comissão Organizadora<br />
V Curso de Inverno: Tópicos em Fisiologia Comparativa
Conteúdos<br />
1. Fisiologia da Audição................................................................3<br />
2. Fisiologia da Conservação......................................................27<br />
3. Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos......93<br />
4. Cronobiologia.........................................................................125<br />
5. Neurofisiopatologia................................................................195<br />
6. Fisiologia do Comportamento................................................263<br />
7. Evolução dos Sistemas Fisiológicos......................................307
Fisiologia da Audição<br />
Capítulo 1<br />
Fisiologia da Audição<br />
Autores:<br />
Felipe Viegas Rodrigues<br />
Rodrigo Collino<br />
3
4<br />
V Curso de Inverno
Fisiologia da Audição<br />
Fisiologia da Audição<br />
Felipe Viegas Rodrigues & Rodrigo Collino<br />
Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />
fvrodrigues@usp.br<br />
A audição tem um peso muito importante no nosso dia-a-dia, nos permitindo interagir<br />
com o mundo ao nosso redor e com outros seres humanos. Embora alguns a considerem<br />
menos importante que a visão, seguramente a audição trabalha complementando nosso<br />
sentido visual, sendo também fundamental.<br />
Um pouco de Física...<br />
Compressões e descompressões: ondas!<br />
Tudo o que ouvimos é composto por ondas sonoras. Tecnicamente falando, sons são<br />
ondas mecânicas longitudinais. Isso significa que eles são causados pela vibração de<br />
partículas do meio por onde se propagam; há uma transferência de energia no meio, que se<br />
propaga por meio da compressão e rarefação de suas moléculas, longitudinalmente (Figura<br />
1). Portanto, não há som no vácuo. Ondas sonoras podem ser representadas como na parte<br />
de baixo da Figura 1, com picos representando compressão das moléculas, e vales<br />
representando a rarefação das moléculas (no caso da Figura 1 estão representadas<br />
moléculas de ar). A velocidade de propagação dessas ondas no ar é de cerca de 340 m/s.<br />
Em meios mais densos, como a água ou mesmo sólidos, a velocidade é maior; 5.100 m/s no<br />
ferro, 1.500 m/s na água do mar. O comprimento de onda (representado por λ - ver Figura<br />
1) mantém uma relação inversa com a freqüência da onda.<br />
A freqüência de um som é o número de comprimentos de onda ocorridos em um<br />
segundo, usualmente expressa em Hertz (Hz). Biologicamente este conceito tem<br />
fundamental importância. Primeiramente, porque não ouvimos todas as freqüências. O<br />
aparelho auditivo humano está limitado a ouvir freqüências entre 20 Hz e 20.000 Hz. Tal<br />
5
V Curso de Inverno<br />
limitação é causada por características implícitas a um órgão do sistema auditivo chamado<br />
cóclea, mais especificamente, por estruturas presentes em uma membrana, chamada<br />
membrana basilar, dentro da cóclea, que não vibram com sons abaixo de 20 Hz ou acima de<br />
20.000 Hz. Trataremos desse assunto com detalhes mais adiante.<br />
Em segundo lugar, porque diferentes freqüências têm diferentes propriedades quanto<br />
à propagação e reflexão. Freqüências de um até cerca de 100 Hz tem pouca reflexão,<br />
passando entre meios, como do ar para a terra diretamente e praticamente sem perda de<br />
energia. Tais freqüências implicam em consideráveis deslocamentos de massas de ar e,<br />
portanto, só podem ser produzidas por animais maiores. Por exemplo, sabe-se hoje que<br />
infra-sons (freqüências abaixo de 20 Hz) são utilizados por Tigres e Elefantes como forma<br />
de comunicação, que, no caso de elefantes, pode ser feita a quilômetros de distância.<br />
No outro extremo, os superagudos, freqüências acima de 10.000 Hz, têm<br />
comportamento extremamente direcional e reflexivo, características que se tornam ainda<br />
mais exacerbados nos ultra-sons, freqüências acima de 20.000 Hz. O melhor exemplo para<br />
tal característica são os morcegos, que tem faixa de audição começando em 10.000 Hz e<br />
indo até cerca de 120.000 Hz. Emitindo sons acima de 50.000 Hz, os morcegos podem<br />
perfeitamente voar no escuro total, conseguindo desviar dos obstáculos presentes em seu<br />
caminho. Eles utilizam-se do que chamamos de sonar: um mecanismo de ecolocalização<br />
baseado na percepção da posição de objetos no espaço pelo geração de um som e<br />
recaptura do mesmo após reflexão nas barreiras do ambiente.<br />
Por último, ressalta- se que os limiares de audição para as diferentes freqüências não<br />
Figura 2 – Limiares de audibilidade e dor (120 dB) para o<br />
ouvido humano em todo o espectro de audição. As curvas<br />
mostram a intensidade sonora necessária para a<br />
estimulação do aparelho auditivo humano de acordo com a<br />
freqüência.<br />
são iguais. A figura 2<br />
mostra como isso se<br />
comporta no homem.<br />
Note que é preciso<br />
pouco mais de zero<br />
dB para ser possível<br />
alguma<br />
s o n o r a<br />
percepção<br />
e m<br />
freqüências em torno<br />
de 2.000 Hz (faixa de<br />
freqüência altamente<br />
relacionada<br />
com<br />
nossa voz); no<br />
entanto, a percepção<br />
s o n o r a<br />
f r e q ü ê n c i a s<br />
d e<br />
t ã o<br />
baixas quanto no<br />
extremo de nossa<br />
6
Fisiologia da Audição<br />
audição, cerca de 20 Hz, dá-se somente com pressões sonoras acima de 70 dB. Sons<br />
naturais são usualmente complexos e compostos por mais de um tipo de freqüência,<br />
resultando em gráficos não totalmente regulares, produto da interação de ondas de diversas<br />
amplitudes e freqüências.<br />
A quantidade de energia presente em um som, ou a Intensidade Sonora, é medida<br />
em decibéis (dB). Decibel, assim como porcentagem, é uma escala relativa e não absoluta;<br />
nesse caso, relativa à pressão sonora. É também uma escala logarítmica e visa facilitar<br />
nosso tratamento com a pressão sonora, já que a mesma pode variar de 10 -12 até 1 W/m²,<br />
sendo esses, respectivamente, os limiares de audibilidade e de dor para o ouvido humano, a<br />
freqüências de cerca de 2.000 Hz. Convertendo W/m² em decibéis, fazemos com que o<br />
limiar de audibilidade seja apresentado como zero decibel e o limite de dor como 120 dB,<br />
números muito mais palpáveis para qualquer pessoa. Entretanto, alguns truques se<br />
escondem debaixo dessa escala logarítmica. O principal deles, é que a pressão sonora<br />
dobra a cada três decibéis a mais; em outras palavras, precisamos dobrar o trabalho<br />
realizado para conseguir elevar em três dB a intensidade sonora gerada.<br />
Sons naturais e sons musicais...<br />
Não especificamos ainda, propositadamente, o que faz música e o que faz barulho.<br />
Há diferenças. A freqüência de um som, sozinha, não nos diz que tipo de som é aquele. Há<br />
sons que entendemos como sendo ruídos, há sons que entendemos como vozes e há sons<br />
que classificamos como musicais. Em verdade, qualquer proposta de classificação poderá<br />
ser controversa. Há quem ouça música em latas. E há quem diga que um determinado<br />
músico só faz ruídos. Qual é o ponto de equilíbrio então?<br />
Talvez um fator crucial para tal diferenciação seja o ritmo. Afinal, uma lata batendo<br />
sempre terá som de lata. Mas nem todo som de lata possuirá ritmo. Esse é um dos fatores<br />
cruciais em música. Cabe nesse momento falarmos também sobre periodicidade. Os sons<br />
utilizados em música são sons que chamamos de periódicos – sons que mantém suas<br />
características ao longo do tempo. A melhor forma de pensarmos em um som periódico é<br />
pensando em uma corda de um violão vibrando. Tal vibração se mantém constante e em<br />
uma mesma freqüência ao longo do tempo. Ruídos, por outro lado, são caracterizados por<br />
sons não periódicos, que mudam em freqüência e amplitude constantemente, não<br />
resultando em um gráfico perfeito como o da figura 1.<br />
Entretanto, como já vimos em física, nenhum movimento ondulatório é composto<br />
apenas por sua freqüência fundamental, mas por vibrações secundárias, terciárias e outras.<br />
Isso faz com que, de fato, nenhum instrumento provoque uma onda como na figura 1, mas<br />
as ondas serão o resultado da composição de todas essas vibrações, ainda assim<br />
periódicas e com um tom fundamental. É exatamente por esse fator que conseguimos<br />
distinguir uma nota Lá vinda de um piano, de um trompete ou mesmo da voz. Todas elas<br />
terão como freqüência fundamental 440 Hz (considerando-se notas da mesma oitava<br />
7
V Curso de Inverno<br />
musical), mas é devido às diferentes freqüências de outras ordens (2ª, 3ª, 4ª...) que<br />
conseguimos distinguir as diferentes fontes. Esse é o conceito de timbre. Feitas estas<br />
considerações, podemos continuar nossa discussão partindo para como funciona nossa<br />
audição propriamente e como nosso cérebro interpreta vozes, ruídos e músicas.<br />
Enfim... Orelhas! 1<br />
Você já transduziu hoje?<br />
O homem parece excelente<br />
ao ser capaz construir autofalantes<br />
e microfones,<br />
tecnicamente conhecidos<br />
como transdutores. Mas ele<br />
nada mais fez que copiar<br />
uma tecnologia presente na<br />
n a t u r e z a . N o s s o s<br />
Tímpanos! Um transdutor é<br />
um dispositivo capaz de<br />
receber um tipo de energia e<br />
transformá-la em outra. É<br />
exatamente para isso que<br />
nossas orelhas estão aí.<br />
Elas captam a energia<br />
sonora proveniente do ambiente e a transformam em energia elétrica - impulsos nervosos<br />
que atingirão nosso cérebro para processamento e interpretação daquele estímulo. Mas<br />
enfim, exatamente, como ouvimos? Na figura 3, vemos os componentes envolvidos com<br />
essa transdução.<br />
Para fins didáticos, dividimos nossa orelha em três partes: orelha externa, orelha<br />
média e orelha interna. A energia sonora no ambiente chega até ao Tímpano pelo canal<br />
auditivo, parte da orelha externa. Essa energia, com todas as suas características de<br />
freqüência e intensidade, é transmitida pelo tímpano aos ossículos da orelha média<br />
(martelo, bigorna e estribo), que farão a transmissão para a janela oval na cóclea,<br />
integrantes da orelha interna. O processo de passagem pela orelha média não é, em<br />
absoluto, puro. A interação existente entre os três ossículos causa uma amplificação de até<br />
30x na energia sonora que recebemos. Isso é um ganho de aproximadamente 15 dB em<br />
intensidade – uma pressão sonora cinco vezes maior.<br />
1 Nota: Pela nomina anatomica atual, orelhas, e não ouvidos, é o termo correto para descrever as<br />
estruturas responsáveis pela audição. A estrutura comumente conhecida por orelha tem por nome<br />
correto Pavilhão auditivo.<br />
8
Fisiologia da Audição<br />
A cóclea é a estrutura<br />
onde toda a mágica da<br />
audição e transdução<br />
acontece. A cóclea,<br />
como vista nas Figuras<br />
3 e 4, é uma estrutura<br />
tubular enrolada sobre<br />
si mesmo, com três<br />
câmaras internas.<br />
As câmaras são<br />
chamadas escalas e<br />
são preenchidas por<br />
l í q u i d o s d e<br />
c o m p o s i ç õ e s<br />
e s p e c í f i c a s . U m a<br />
representação esquemática do tubo da cóclea pode ser vista na Figura 5.<br />
Quando um som atinge o tímpano, causará uma vibração que será transferida aos<br />
ossículos e, então, à Janela Oval da cóclea. A vibração da janela oval é então transferida<br />
para os líquidos internos da cóclea e para as escalas vestibular e média, mais<br />
especificamente (a Membrana de<br />
Reissner é fina e desprezível para<br />
separar as vibrações entre elas.<br />
Sua função é unicamente de<br />
garantir composições iônicas<br />
diferentes entre as duas câmaras.)<br />
e, então, à membrana basilar.<br />
Como a cóclea é um tubo<br />
inextensível, a Janela Redonda<br />
funciona como uma válvula de<br />
escape, permitindo a movimentação dos líquidos internos e vibração nas membranas.<br />
Como já dito, a membrana basilar é a responsável pela nossa amplitude de audição.<br />
Estruturas fixas a ela, chamadas Fibras Basilares (não representadas nas figuras) tem<br />
tamanhos progressivamente variáveis ao longo da cóclea. Essas estruturas fazem com que<br />
diferentes regiões da membrana (e da cóclea) sejam mais sensíveis a uma ou outra<br />
freqüência. Pela Figura 6, podemos notar que sons agudos, altas freqüências, são melhores<br />
percebidos no início da cóclea. Sons médios, no meio dela. E sons graves, baixas<br />
freqüências, no final da cóclea, próximo à região chamada de Helicotrema (Figura 5). Tais<br />
constatações não significam que um som fará com que só aquela região vibre. Pelo<br />
9
V Curso de Inverno<br />
contrário, todo som causará com que<br />
a membrana basilar como um todo<br />
vibre. Mas essa vibração será muito<br />
pequena fora do ponto ótimo de<br />
vibração, não chegando nem mesmo<br />
a causar potenciais de ação. Vale<br />
lembrar também, como já dito, que<br />
sons puros são raros na natureza e<br />
um mesmo som, portanto, causará a<br />
vibração de partes distintas da<br />
membrana basilar.<br />
A estrutura chamada de Órgão de<br />
Corti é a responsável pela<br />
transdução de fato de energia sonora<br />
em impulsos nervosos. É nele que se<br />
encontram células receptivas<br />
específicas que iniciam a despolarização que chegará ao cérebro, conduzida inicialmente<br />
pelo nervo coclear. Detalhes de sua organização podem ser vistos na Figura 7.<br />
A Membrana Tectorial é uma estrutura rígida e fixa. A vibração da membrana basilar<br />
acaba causando o deslocamento de todo o Órgão de Corti; os cílios das células ciliadas, no<br />
entanto, acabam por não se deslocar por estarem imersos e fixos na membrana tectorial,<br />
dando a sensação de movimento<br />
em relação à célula e causando a<br />
despolarização. O mecanismo<br />
para tal é mecânico, por abertura<br />
de canais de Cálcio devido ao<br />
estiramento da parede dos cílios.<br />
Uma vez causados potenciais que<br />
sejam suficientes para despolarizar<br />
a célula receptiva, a mensagem<br />
será transmitida aos neurônios<br />
seguintes, integrantes do nervo<br />
coclear, e seguirá em direção ao<br />
córtex.<br />
Orelhas não são nada sem um encéfalo...<br />
Primeiro, uma parada rápida<br />
Muito bem. Estamos entendidos quanto à nossas orelhas. Sem elas, nosso encéfalo<br />
estaria isolado do que acontece no mundo sonoro exterior. Mas tendo feita a transdução de<br />
10
Fisiologia da Audição<br />
energia sonora em elétrica (impulsos nervosos) – agora é a vez dele.<br />
As fibras nervosas que saem da cóclea, não atingem diretamente o cérebro, mas<br />
algumas sinapses acontecem no trajeto. Veja na Figura 8. Resumidamente, o primeiro ponto<br />
de sinapse é logo que as fibras entram na<br />
medula espinhal, em sua porção terminal<br />
superior. Daí, as fibras secundárias dirigemse<br />
ao núcleo olivar superior, onde algumas<br />
fibras fazem nova sinapse. Subindo pela<br />
ponte, algumas poucas fibras param no<br />
Núcleo do Lemnisco Lateral e, enfim, a<br />
maioria delas chega ao colículo inferior, no<br />
mesencéfalo, onde todas (ou quase todas)<br />
fazem sinapse e, por último, chegam ao<br />
Núcleo Geniculado Medial (NGM), onde todas<br />
sofrem nova sinapse. Só então, os potenciais<br />
de ação que codificam estímulos sonoros<br />
chegam ao cérebro, na região cha mada<br />
córtex auditivo (Figura 9).<br />
O córtex auditivo<br />
Como já sabemos, nosso encéfalo é<br />
divido em lobos, com suas subáreas, e em<br />
giros e sulcos. Nosso foco de interesse nesse<br />
momento concentra-se na região superior do<br />
Lobo Temporal (Figura 9). É nessa região<br />
que se encontra nosso Córtex Auditivo<br />
Primário. Todas as fibras que saem do NGM<br />
chegam até essa região do córtex. Dela,<br />
então, os estímulos partem para o córtex<br />
auditivo de associação, também chamado de<br />
Córtex Auditivo Secundário, que também recebe algumas fibras intra-talâmicas, de<br />
regiões vizinhas ao NGM. Nesse momento, tais informações serão processadas e<br />
integradas com outras regiões do cérebro. No entanto, nos deparamos com alguns<br />
problemas no meio de todo esse caminho.<br />
Em primeiro lugar, precisamos novamente pensar em como transmitir diferentes<br />
freqüências ao cérebro. Falamos que existem diferentes regiões da cóclea para diferentes<br />
freqüências sonoras captadas no ambiente. Isso é chamado “Princípio de Localização”.<br />
Tais informações são fielmente transmitidas ao córtex - uma grande quantidade de fibras<br />
nervosas sai da cóclea, cada uma levando a informação de uma dessas regiões. No córtex<br />
auditivo primário, diferentes grupos de neurônios serão ativados para essas diferentes<br />
11
V Curso de Inverno<br />
freqüências. Tal estruturação da Cóclea e<br />
do Sistema Nervoso Central resolve<br />
nosso primeiro problema. Em segundo<br />
lugar, precisamos entender como o<br />
cérebro entende as chamadas oitavas<br />
musicais. Tais freqüências, ainda que<br />
diferentes em valor de freqüência (uma<br />
grave, outra aguda), são percebidas<br />
como mesma nota musical pelo cérebro.<br />
Tal funcionamento é possibilitado por<br />
grupos de neurônios que são ativados<br />
pela estimulação de diferentes<br />
freqüências, porém, de mesmo tom<br />
fundamental (as oitavas musicais).<br />
Portanto, um Lá grave ou agudo,<br />
estimulará um mesmo grupo de<br />
neurônios. Esses dois fatores em<br />
conjunto, nos permitirão ter a percepção<br />
de timbre.<br />
Feitas tais estimulações no córtex<br />
auditivo primário, as associações cabíveis serão realizadas no córtex auditivo secundário,<br />
onde regiões específicas lidarão com estímulos sonoros específicos. Podemos então partir<br />
para os assuntos mais complexos e que nos interessam: fala e música. Cabe adiantar a<br />
primeira distinção encontrada entre essas duas propriedades do nosso cérebro, que é<br />
fundamental e mais global. Na grande maioria das pessoas, fala tem suas funções<br />
concentradas no hemisfério esquerdo do nosso cérebro, enquanto que a música está<br />
intimamente associada ao hemisfério direito. Tal constatação fica clara quando olhamos<br />
para um caso de dupla-dissociação entre linguagem e música apontado pela pesquisadora<br />
Isabelle Peretz, pelo relato de dois casos clínicos. O primeiro deles de um compositor que<br />
sofreu uma lesão no hemisfério cerebral esquerdo aos 57 anos, perdendo, então, a<br />
capacidade de falar e compreender a fala, mas que continuou a compor até sua morte<br />
quatro anos mais tarde – um caso de afasia sem amusia. O segundo, de uma mulher que<br />
teve lesões bilaterais no córtex auditivo e no córtex frontal direito como conseqüência de<br />
cirurgias para tratar de aneurismas; ela perdeu a capacidade de aprender novas músicas,<br />
cantarolar uma melodia qualquer e até mesmo de se lembrar das músicas que conhecia.<br />
Porém, sua fala, memória (excetuando-se aquela para música) e inteligência estavam<br />
intactas – um caso de amusia sem afasia.<br />
Revisado por André Frazão Helene e Gilberto Xavier<br />
12
Fisiologia da Audição<br />
Neurofisiologia da Música<br />
Felipe Viegas Rodrigues<br />
Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />
fvrodrigues@usp.br<br />
Neurofisiologicamente, ouvimos notas e oitavas musicais porque a estruturação do<br />
nosso sistema auditivo é organizado de forma propícia a tal. A descoberta dos neurônios<br />
que disparam estimulados por tons ou oitavas musicais não é uma coincidência. É uma<br />
mostra de que nós fizemos a classificação de notas musicais de acordo com aquilo que<br />
nosso cérebro está apto a ouvir. E assim cantamos e afinamos nossos instrumentos.<br />
Afinal... Pra que existe música? Há vantagens evolutivas nela? O autor Steven<br />
Pinker nos ajuda nessa busca. Ele estabelece algumas razões pelas quais a música possa<br />
existir. E ousa dizer: “Eu suspeito que a música seja um ‘bolo de queijo’ auditivo, uma<br />
confecção rara artesanalmente construída para agradar os pontos sensíveis de pelo menos<br />
seis de nossas faculdades mentais”.<br />
O primeiro aspecto levantado por Pinker é a própria fala. O autor defende que a letra<br />
presente nas músicas (e também os paralelos que ainda serão apresentados) faz com que<br />
ela ative circuitos neurais “emprestados” da fala e, em particular, da prosódia.<br />
O segundo aspecto refere-se ao circuito neural ativado pela música, relacionado à<br />
análise auditiva do ambiente. Pinker compara a audição à visão, dizendo que assim como<br />
recebemos uma série de estímulos luminosos que precisam ser diferenciados e separados<br />
(uma pessoa de um fundo de árvores, por exemplo), precisamos distinguir os diversos<br />
estímulos sonoros que nos são apresentados, por exemplo, separar um solista de uma<br />
orquestra, uma voz em um ambiente cheio de ruídos, uma vocalização animal em meio a<br />
uma floresta cheia de ruídos. O autor defende que nosso ouvido detecta cada freqüência e<br />
envia cada uma delas ao sistema nervoso, que as associa, percebendo-as como um tom<br />
complexo. “Presumivelmente o cérebro as associa para construir nossa percepção da<br />
realidade do som”. Isto é, a interpretação em tons complexos provavelmente se dá pelo fato<br />
de que sons naturais não ocorrem em freqüências puras, mas como tons complexos; logo, o<br />
sistema nervoso associa novamente as diferentes freqüências que constituem um som<br />
oriundo de um mesmo ponto no espaço e ao mesmo tempo porque são, em verdade, uma<br />
mesma fonte sonora. Nesse sentido, “melodias são agradáveis ao ouvido pela mesma razão<br />
que linhas simétricas, regulares, paralelas ou repetitivas são agradáveis aos olhos”. O<br />
sistema nervoso, então, se utiliza desse circuito neural para fazer a interpretação das<br />
melodias e harmonias presentes na música.<br />
O terceiro aspecto defendido por Pinker é a emoção trazida pela música. Baseandose<br />
numa sugestão de Darwin de que a música surgiu no homem devido às chamadas de<br />
acasalamento de nossos ancestrais, o autor defende que uma série de “chamadas<br />
emocionais” (como murmurar, chorar, rir, resmungar, gritar) tem um apelo acústico próprio;<br />
13
V Curso de Inverno<br />
“é provável que melodias evoquem fortes emoções porque sua estrutura assemelha-se a<br />
chamadas emocionais de nossa espécie”. A música, então, traria diversos sentimentos à<br />
tona semelhantemente a essas expressões emocionais.<br />
Outro aspecto apontado por Pinker é a seleção de habitat. Fazendo mais uma<br />
comparação entre o campo visual e auditivo, o autor ressalta que prestamos atenção a uma<br />
série de características visuais que sinalizam segurança, insegurança ou mudança de<br />
habitat, como vistas distantes, paisagens verdejantes, nuvens (que trazem chuva) ou pôrdo-sol.<br />
Ele então escreve:<br />
“Talvez nós também prestemos atenção a características do mundo auditivo<br />
que sinalizem segurança, insegurança ou mudança de habitat. Trovões, ventos,<br />
água correndo, pássaros cantando, rosnados, passos, corações e galhos<br />
batendo, todos têm efeitos emocionais, presumivelmente porque eles revelam<br />
eventos dignos de atenção no mundo”.<br />
A música também interferiria com tais circuitos neurais, de tal forma que ela altera<br />
nossas emoções e nossa noção de segurança ou insegurança.<br />
O quinto aspecto ressaltado por Pinker é o controle motor. O ritmo é um componente<br />
universal da música e até mesmo único em algumas culturas. Tal ritmicidade que nos faz<br />
dançar, bater palmas, balançar, e acompanhar a música, certamente estimula nosso sistema<br />
motor.<br />
O último aspecto defendido pelo autor é um “algo a mais” sem explicação conhecida<br />
e que ele coloca como sendo, possivelmente, desde um acidente do funcionamento<br />
conjunto de diversos circuitos neurais até uma ressonância entre disparos neuronais e<br />
ondas sonoras. Seja como for, a música tem estreitas e importantes relações com o<br />
funcionamento de diversos circuitos neurais.<br />
Origens da musicalidade<br />
Se de fato a música tem envolvimento com tantos circuitos neurais, essa propriedade<br />
não pode ser uma exclusividade apenas da espécie humana, mas deve ser produto do<br />
cérebro de outros animais também. A capacidade para interpretar música, de uma forma<br />
diferente de outros sons quaisquer (também chamados sons não musicais) ou, até mesmo,<br />
produzi-la, deve estar presente pelo menos em outras espécies de mamíferos.<br />
Entretanto o primeiro grupo lembrado quando se fala de música em animais são os<br />
pássaros. Desde o século retrasado (Clark, 1879) tal grupo é investigado. As razões são<br />
óbvias, percebidas por qualquer pessoa que tenha entrado em contato com a natureza ao<br />
menos uma vez na vida (e escutado o som produzido pelos pássaros). Estudos recentes<br />
sobre o assunto (Baptista e Keister, 2000) apontam semelhanças entre a melodia do canto<br />
dos pássaros e as melodias produzidas pelo homem. Segundo os autores, os pássaros<br />
“freqüentemente usam as mesmas variações rítmicas, relações tonais, permutações e<br />
combinações de notas que os compositores humanos”. Detalhes presentes nas músicas<br />
produzidas pelo homem são também notadas nas melodias usadas pelos pássaros, como<br />
inversões de intervalo, relações harmônicas simples e retenção de uma determinada<br />
14
Fisiologia da Audição<br />
melodia com a troca de registro (tonalidade) usado. O caso mais atípico e impressionante,<br />
talvez, seja da espécie Probosciger aterrimus, a Cacatua-Negra, uma espécie de papagaio<br />
do extremo norte da Austrália e Nova Guiné, que molda gravetos para que se assemelhem a<br />
baquetas (de bateria) e batucam em diversos troncos até que achem um com ressonância<br />
que agradável e, então, o utilizam para produzir sons como parte de seu ritual de<br />
acasalamento.<br />
Mas voltando aos mamíferos, Wright e colegas (2000), trabalhando com macacosrhesus,<br />
mostraram que os mesmos são capazes de reconhecer como semelhantes melodias<br />
idênticas tocadas em oitavas diferentes, mas não em tons diferentes. Ainda, tal<br />
reconhecimento positivo aconteceu para melodias tonais, mas não para melodias atonais.<br />
Estes resultados são consistentes com o achado de Bendor e Wang (2005) de que sagüiscomuns<br />
(e provavelmente outras espécies de primatas também, incluindo nós humanos)<br />
possuem no córtex auditivo neurônios capazes de perceber tons. Tais neurônios disparam<br />
para uma determinada freqüência e também para seus múltiplos, caracterizando as oitavas<br />
tonais (ou musicais). O experimento de Wright e colegas, porém, pode ter sido afetado pela<br />
exposição prévia dos animais a música. Freqüentemente tais animais ficam em ambientes<br />
com televisões ligadas para os mesmos (Hauser e McDermott, 2000), portanto, expostos a<br />
música e melodias diversas.<br />
É provável que o caso mais conhecido e consistente de musicalidade nos mamíferos<br />
esteja nas baleias-jubarte. Há décadas que se conhece o “canto” dessas baleias e estudos<br />
recentes (Payne, 2000) também apontam para semelhanças estreitas com as regras de<br />
construção musical utilizadas pelo homem. A despeito de poderem produzir sons sem<br />
ritmicidade ou tonalidade, as baleias optam por produzir sons rítmicos, de forma semelhante<br />
a composições humanas e com tonalidade definida. Mais do que isso:<br />
- O canto produzido por elas é composto de fraseados de tamanho semelhante às<br />
frases na música composta por homens e, assim como nós, elas exploram diversos<br />
fraseados dentro de um mesmo tema antes de partir para um tema diferente. Da mesma<br />
forma, composições que exploram um tema, partem para uma seção mais elaborada e,<br />
depois, retornam ao tema inicial (semelhante ao nosso formato de composição: estrofe –<br />
refrão – estrofe) são freqüentes;<br />
- O tamanho total de um canto (uma música?) assemelha-se ao tamanho médio de<br />
músicas produzidas pelo homem, possivelmente pelo fato de que o tamanho de seu córtex<br />
permite uma capacidade atencional semelhante à nossa;<br />
- Ainda que elas tenham uma extensão tonal que alcança sete oitavas musicais, as<br />
baleias preferem compor músicas com intervalo entre notas também semelhantes às nossas<br />
composições (que raramente explora toda essa extensão em uma única composição);<br />
- Elementos percussivos são incorporados à música e intercalados com tons puros<br />
numa taxa semelhante àquela encontrada em composições humanas;<br />
- Algumas repetições encontradas são semelhantes a rimas, indicando que as<br />
15
V Curso de Inverno<br />
baleias possam usar desse artefato tanto quanto os humanos usam: um recurso mnemônico<br />
para lembrar-se de composições complexas.<br />
Tantos elementos comuns entre os sons musicais produzidos por essas diferentes<br />
espécies apontam para o fato de que a música não possa ser apenas um produto cultural<br />
humano. Nas palavras de Gray ET AL, <strong>2008</strong>:<br />
“O fato de que a música das baleias e dos homens tem tanto em comum,<br />
mesmo com nossos caminhos evolucionários não tendo se cruzado em 60<br />
milhões de anos, sugere que a música deve ‘predar’ os humanos, ao invés de<br />
sermos os inventores dela. Nós somos adeptos tardios do ambiente musical.”<br />
As raízes da musicalidade devem residir em outros fatores. Talvez uma<br />
conseqüência natural da interação entre as freqüências sonoras, que causa sons mais ou<br />
menos desagradáveis ao encéfalo dependendo das freqüências envolvidas. Sons musicais<br />
chamados de dissonantes causam um fenômeno chamado batimento, encarado como<br />
desagradável pela grande maioria das pessoas e até mesmo utilizado pelos músicos para<br />
afinar seus instrumentos musicais (cordas diferentes de um instrumento que deveriam<br />
produzir uma mesma nota em oitavas diferentes, portanto desafinadas, provocam batimento.<br />
A ausência do fenômeno indica a correta afinação). Ainda, sons dissonantes apresentados a<br />
bebês de apenas quatro meses causam afastamento da fonte sonora, expressões facias<br />
fechadas e até choro, enquanto que sons consonantes os fazem virar-se para a fonte<br />
sonora e freqüentemente sorrirem (Trainor e Heinmiller, 1998).<br />
É então plausível que a própria física da interação de freqüências induza a nossa<br />
interpretação daquilo que consideramos agradável ou desagradável e permita a produção<br />
ou reconhecimento de sons musicais mesmo em outras espécies que não homem. Há uma<br />
última distinção a ser considerada (geralmente colocada em tom de crítica pelos<br />
pesquisadores que não admitem musicalidade fora da espécie humana). O canto de<br />
pássaros e baleias é essencialmente produzido por machos, sendo parte do ritual de<br />
acasalamento. Produção ou apreciação de música por puro prazer, isso sim, parece ser uma<br />
exclusividade da espécie humana.<br />
Música e Linguagem Humana<br />
Sintaxe<br />
Tratando agora das sobreposições existentes entre música e linguagem, vamos nos<br />
surpreender com o que antes tratávamos como sendo dois aspectos completamente<br />
diferentes. Um primeiro ponto que vale a pena ser comentado, é a sobreposição existente<br />
no processamento da sintaxe. Sim, música possui também sintaxe e os circuitos neurais que<br />
fazem o processamento dessa sintaxe musical seriam os mesmos utilizados para a fala. As<br />
áreas envolvidas seriam regiões do lobo frontal anterior (Patel, 2003).<br />
Semântica<br />
Koelsch e colaboradores (2004) mostraram que “a música pode não apenas<br />
influenciar o processamento de palavras, mas ela pode também pré-ativar representações<br />
16
Fisiologia da Audição<br />
de conceitos, sejam eles abstratos ou concretos, independente do conteúdo emocional<br />
desses conceitos”; em outras palavras, assim como a linguagem, a música pode facilitar a<br />
compreensão de significados (em palavras e, provavelmente, também contextos). Na<br />
pesquisa realizada pelos autores, palavras aleatórias foram apresentadas aos indivíduos<br />
após eles terem ouvido ou uma frase ou um trecho musical. Resultados obtidos com testes<br />
específicos de eletroencefalografia mostraram dados semelhantes para a ativação<br />
resultante causada pela música ou pelas frases.<br />
Ritmicidade<br />
Há ainda mais: paralelos entre a rítmica da linguagem e a da música (Patel, 2003b).<br />
A análise do ritmo da linguagem e da música em subcomponentes e a comparação entre os<br />
domínios revelam que o agrupamento rítmico é semelhante na linguagem e na música, mas<br />
não sua estrutura periódica (que é mais organizada na música). Novas evidências ainda<br />
sugerem que a rítmica de linguagem de uma cultura deixa impressões na sua rítmica<br />
musical. Isto é, diferenças na rítmica da linguagem refletem-se na rítmica musical nas<br />
diferentes culturas. Novos estudos transculturais permitirão afirmar se essas evidências se<br />
confirmam. Esses achados reforçam a noção de que a música possui tanto sintaxe quanto<br />
semântica e seja, possivelmente, como a linguagem, relativamente inerente ao homem e<br />
não um simples produto da cultura.<br />
Timbre<br />
Trabalhos recentes relacionados a timbre mostram que o processamento dessa<br />
propriedade do som envolve redes neurais próprias, incluindo regiões anteriores e<br />
posteriores do giro temporal superior, e, possivelmente, áreas frontais também (o que<br />
parece bastante claro, dada a necessidade de memória operacional – ver no tópico seguinte<br />
explicação – à manutenção de informações sobre qualquer som percebido). Uma revisão<br />
sobre esses trabalhos parece apontar que o timbre musical é uma propriedade<br />
multidimensional do som que nos permite distinguir instrumentos musicais (e certamente<br />
também vozes).<br />
A evolução da discriminação de timbres certamente não é produto da necessidade<br />
de reconhecimento de diferentes instrumentos musicais. O reconhecimento de tonalidades<br />
(característica gerada por vibrações sonoras periódicas) é importante para reconhecer<br />
diferentes vocalizações de animais na natureza; elas seriam uma boa indicação para<br />
distinguir as vocalizações de outros ruídos. As tonalidades e o timbre certamente serviriam<br />
também à identificação de vozes (é sabido, por exemplo, que mesmo bebês recém nascidos<br />
discriminam a voz da mãe de outras vozes). Relativamente à música, a capacidade de<br />
reconhecimento de timbre seria utilizada no reconhecimento de diferentes instrumentos<br />
musicais e as tonalidades no reconhecimento de diferentes notas.<br />
Diante de tais paralelos, torna-se praticamente inegável que a música está presente<br />
no cotidiano humano mais do que apenas por prazer ou questões culturais. A organização<br />
de nosso sistema nervoso e as implicações que as estimulações musicais trazem nos<br />
17
V Curso de Inverno<br />
mostra que música não é um acidente, mas uma propriedade específica de nosso sistema<br />
nervoso central; mais do que isso, uma propriedade que surge em outras espécies<br />
separadas mesmo por milhões de anos, mas que no homem, caminha em estreitas relações<br />
com a linguagem.<br />
Referências Biblográficas<br />
Baptista, L.F. e Keister, R. Why Bird Song Is Sometimes Like Music, BioMusic Symposium, 2000<br />
AAAS Annual Meeting, apud Gray et al - The Music of Nature and the Nature of Music.<br />
Science 2001 Jan 5;291(5501):52-4.<br />
Gray, P.M.; Krause, B.; Atema, J.; Payne, R.; Krumhansl, C. e Baptista, L. - The Music of Nature and<br />
the Nature of Music. Science 2001 Jan 5;291(5501):52-4.<br />
Koelsch, S.; Kasper, E.; Sammler, D.; Schulze, K.; Gunter, T.; Friederici, A.D. – Music, language and<br />
meaning: Brain signatures of semantic processing. Nat Neurosci 2004 Vol. 7, nº 3.<br />
Patel, A.D. – Language, music, syntax and the brain. Nat Neurosci, 2003a 6(7):674-681.<br />
Patel, A.D. – Rhythm in language and music: parallels and differences. Ann NY Acad Sci 2003b 999:<br />
140-143.<br />
Payne, R. Whale Songs: Musicality or Mantra? BioMusic Symposium, AAAS Annual Meeting, 2000.<br />
Samson, S. – Neuropsychological studies of musical timbre. Ann NY Acad Sci 2003 999:144–151<br />
Trainor, L.J. e Heinmiller, B.M. Infants prefer to listen to consonance over dissonance. Inf. Behav. Dev.<br />
1998 21, 77-88 apud Hauser M. D., McDermott J. The evolution of the music faculty: a<br />
comparative perspective. Nat Neurosci. 2003 Jul;6(7):663-8.<br />
Wright, A. A.; Rivera, J. J.; Hulse, S. H.; Shyan, M. e Neiworth, J. J. Music perception and octave<br />
generalization in rhesus monkeys. J Exp Psychol Gen. 2000 Sep;129(3):291-307.<br />
Revisado por André Frazão Helene e Gilberto Xavier<br />
18
Fisiologia da Audição<br />
Neurofisiologia da Linguagem<br />
Rodrigo Collino<br />
Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />
rodrigocollino@usp.br<br />
Introdução<br />
Dentro das ciências cognitivas, o estudo da linguagem tem ganhado grande atenção<br />
nas últimas décadas. É uma área que envolve diversos detalhes e grande complexidade,<br />
dado o emprego de técnicas desenvolvidas apenas recentemente (a partir da metade do<br />
séc. XX) em estudos neurocientíficos. Anteriormente a este período, as conclusões de<br />
médicos acerca da neurofisiologia da linguagem eram abstraídas somente através da<br />
análise da casos clínicos, advindos de acidentes que causassem danos a áreas específicas<br />
do cérebro, e que acabavam por desenvolver sequelas de cunho linguístico – na<br />
compreensão da fala, ou na produção de mesma, por exemplo. Retrocedendo mais ainda no<br />
tempo, pensava-se na Grécia Antiga que o controle da linguagem estivesse concentrado<br />
totalmente na língua do indivíduo. Assim, ao encontrar um indivíduo que, provavelmente<br />
devido a um acidende vascular cerebral (AVC), apresentasse dificuldades na dicção, era<br />
comum oferecer-lhe tratamento através de massagens em sua língua, na esperança de<br />
recobrar-lhe a fala. Atualmente, estudiosos da neurociência contam com instrumentos<br />
aguçados de avaliação da atividade cerebral, tais como fMRI, MEG, PET e ERP, a fim de<br />
correlacionar características da linguagem e regiões cerebrais específicas e seus<br />
respectivos padrões de ativação neuronal.<br />
Neste capítulo, vamos explorar algumas das maravilhas da linguagem produzidas<br />
pelo cérebro humano: o que a torna tão particular da espécie humana, sua lateralização e<br />
modularidade cerebral, distúrbios ocasionados pela falha em alguns de seus mecanismos, e<br />
como é possível o cérebro aprender e utilizar mais de uma língua para nossa comunicação.<br />
A Linguagem é exclusiva do Homem?<br />
Vivemos imersos neste complexo comportamento chamado linguagem; ouvimos,<br />
falamos, lemos e escrevemos quase que instintivamente e inconscientemente, sem pensar<br />
muito na ordem das palavras que emitimos, ou no som das sílabas que ouvimos. Bebês<br />
nascem e, em questão de 1 ou 2 anos, já entendem muito de sua língua-mãe e não levam<br />
muito mais tempo para se comunicarem fluentemente.<br />
Antes objeto de estudo apenas de linguistas, hoje a Linguagem passa também ao<br />
domínio de neurocientistas que procuram traçar sua ontogenia cerebral, e até mesmo<br />
encontrar semelhanças entre a nossa comunicação e aquela usada por outros animais. De<br />
certo, algumas espécies de animais se comunicam, como as aves, cães, lobos e primatas,<br />
mas até que ponto esta forma de comunicação pode ser equiparada à nossa? Será que<br />
alguma outra espécie poderia aprender a “linguagem dos homens”?<br />
19
V Curso de Inverno<br />
Neste sentido, vários experimentos têm sido realizados, especialmente com<br />
chipanzés. Em um deles, tentou-se ensiná-los a aprender palavras em Inglês de elementos<br />
presentes em seu ambiente, e esperar que falassem ou ao menos entendessem o que lhes<br />
fora apresentado. Um dos resultados mais significativos deste experimento foi perceber que<br />
tais primatas possuem um sistema fonador diferenciado do nosso, o que limita<br />
enormemente a produção de nuances dos sons que podem ser emitidos pela espécie<br />
humana, e também que conseguiam compreender apenas 400 palavras aos 2,5 anos. Em<br />
outra tentativa de ensinar um chipanzé a comunicar-se, optou-se pela Linguagem de Sinais<br />
(ASL), e chegou-se à seguinte conclusão: até os 4 anos de idade, o chipanzé havia<br />
aprendido a sinalizar 160 palavras, e chegou até mesmo a produzir a composição “water<br />
bird” ao ver um cisne em um lago. Pois bem, comparando-se com crianças de nossa<br />
espécie, aos 4 anos de idade, elas já possuem um vocabulário de aproximadamente 3.000<br />
palavras. Além disso, não é possível saber com certeza se a produção de “water bird” por<br />
aquele chipanzé representava uma alegoria ao cisne ou se, simplesmente, eram duas<br />
mensagens separadas – uma indicando a água em si, e a outra indicando o cisne.<br />
De modo muito diferente, a espécie humana parece ter sido selecionada com esta<br />
característica inata à linguagem: atualmente, no planeta, contam-se 10.000 idiomas e<br />
dialetos dentre todos os povos da raça humana. Além disso, casos de indivíduos que<br />
cresceram em total isolamento com a sociedade relatam o desenvolvimento de formas<br />
próprias de comunicação. Por fim, há algumas características que diferem a comunicação<br />
humana daquela encontrada em qualquer outra espécie animal. São elas:<br />
•criatividade: a capacidade de gerar novas associações de palavras – ou até<br />
mesmo criar um novo dialeto;<br />
•forma: uso de fonemas e sílabas para compor palavras, e emprego de regras<br />
sintáticas bem definidas para compor sentenças, tudo isso sem a necessidade de<br />
intrução formal, mas da aprendizagem implícita – experienciada em nosso diadia;<br />
•conteúdo: não só as palavras, mas também gestos, expressões faciais e a<br />
entonação utilizadas carregam significado na comunicação humana.<br />
•uso: a língua serve o propósito de meio de comunicação social e também para<br />
identidade própria (expressa nossos pensamentos e emoções).<br />
Assim, podemos dizer que nossa forma de comunicação é única e complexa dentre<br />
os seres vivos de nosso planeta. Surgem também algumas questões, de discussão atual no<br />
meio científico: esta capacidade única do ser humano reflete algum ajuste fino do cérebro<br />
primata para o propósito específico da linguagem? Ou tal capacidade dever-se-ia ao<br />
desenvolvimento de uma arquitetura neural completamente nova? Para melhor nos ajudar<br />
na busca por respostas a estas perguntas, vamos agora olhar para dentro do centro da<br />
linguagem: o cérebro humano.<br />
20
Fisiologia da Audição<br />
Neuroanatomia da Linguagem<br />
Todos os aspectos da linguagem são comandados pelo cérebro: a captação de<br />
ondas sonoras provenientes da conversa entre duas pessoas é levada ao sistema nervoso<br />
central pelo nosso sistema auditivo; a produção da fala, envolvendo a articulação dos lábios<br />
e língua, também tem seu controle motor coordenado pelo cérebro; a leitura e a escrita, e<br />
até mesmo nossa linguagem corporal, intermediados pelos sistemas visual e motor, são<br />
orquestrados pelos 1,5 quilo de massa cinzenta que se encontra dentro de nossa caixa<br />
craniana.<br />
Cada uma destas funções linguísticas encontra-se sob responsabilidade de áreas<br />
neuroanatômicas bem definidas e localizadas, que serão ilustradas na Figura 1 e Tabela 1:<br />
Figura 1: Principais áreas<br />
anatômicas do cérebro humano.<br />
Tabela 1: Relação de algumas estruturas cerebrais e seus respectivos papéis na linguagem.<br />
Estrutura neuroanatômica<br />
Função controlada<br />
Região temporo-superior posterior esquerda Compreensão da fala e escrita<br />
Região frontal inferior posterior esquerda Expressão oral e escrita<br />
Córtex auditivo primário<br />
Percepção de sons<br />
Região temporo-parietal esquerda<br />
Categorização de fonemas<br />
Córtex estriado e pré-estriado<br />
Visualização de palavras<br />
Córtex pré-frontal<br />
Iniciação e categorização de palavras<br />
Tálamo<br />
Interface semântico-lexical<br />
Percebemos, então, um fenomêno de lateralização cerebral no que se diz respeito<br />
ao controle da linguagem, determinando o hemisfério esquerdo como dominante. De fato,<br />
99% das pessoas destras e 70% dos canhotos desenvolvem tal característica. O hemisfério<br />
direito também participa em características importantes da linguagem, tais como<br />
21
V Curso de Inverno<br />
compreensão de respostas não-verbais, leitura de números, letras e palavras curtas, e<br />
conferir entonação, ritmo e prosódia à lingua falada. O centro de compreensão prosódica<br />
também localiza-se no hemisfério direito (córtex posterior).<br />
Hoje é possível “ver” o cérebro em funcionamento através de procedimentos como<br />
PET e fMRI. Vários experimentos tem sido feito envolvendo linguagem e mapeamento<br />
cerebral. Na Figura 2 estão representados resultados obtidos quando da ativação cerebral<br />
em função de diferentes usos da linguagem:<br />
Figura 2: Níveis relativos de fluxo<br />
sanguíneo representado por cores.<br />
Vermelho indica os maiores níveis, e<br />
níveis progressivamente menores são<br />
indicados por laranja, amarelo, verde e<br />
Portanto, podemos prever que danos em determinada porção do tecido cerebral<br />
podem afetar uma característica específica da linguagem. São diversas as disfunções<br />
decorrentes de AVC, conhecidas como afasias (difunções na produção ou compreensão da<br />
fala) , alexias (disfunções na leitura) e agrafias (disfunções na escrita). As mais conhecidas<br />
são as afasias de Broca, de Wernicke e de Condução.<br />
A afasia de Broca afeta o conteúdo da expressão oral e escrita.Geralmente é<br />
decorrente de lesões na região fronto-posterior esquerda, produzindo alterações no paciente<br />
equivalentes a uma “fala telegráfica”: substantivos são usados apenas no singular, verbos<br />
sem flexão, levando até mesmo a uma total quebra na sintaxe da frase (p.e., “Senhoras e<br />
senhores, por favor dirijam-se à sala de jantar”, seria produzido por um destes pacientes<br />
como “senhora, senhor, sala”). A afasia de Wernicke não prejudica a produção, mas sim a<br />
compreensão da fala e da escrita. Devido a esta dificuldade de compreensão, sua fala fica<br />
afetada por uma fluência em excesso, com abundância de palavras e frequentes trocas de<br />
assunto dentro do mesmo trecho discursivo, produzindo uma espécie de “vazio” na fala.<br />
Geralmente é resultado de lesões na região temporo-posterior superior esquerda. A afasia<br />
de Condução ocorre quando o fascículo arqueado (região parietal esquerda), que interliga<br />
as regiões de Broca e Wernicke, é rompido. Seus principais sintomas são dificuldades na<br />
repetição de frases e palavras e na nomeação de objetos, e troca de letras durante a escrita.<br />
22
Fisiologia da Audição<br />
Existem também disfunções da linguagem observadas por lesões no hemisfério<br />
direito do cérebro: indivíduos que utilizam um único tom de voz na linguagem após lesão no<br />
córtex frontal direito, e indivíduos que não conseguem realizar compreensão prosódica após<br />
lesão no córtex posterior direito.<br />
Há, ainda, aqueles distúrbio linguísticos sem lesões vasculares ou mecânicas<br />
aparentes, apontando apenas para um componente genético. A dislexia, por exemplo,<br />
envolve grandes dificuldades em processos fonêmicos, ocasionando atrasos no aprendizado<br />
de leitura e grafia incorreta de palavras. Estudos recentes apontam para um possível<br />
correlato anatômico da dislexia: indivíduos disléxicos apresentam tamanho levemente<br />
reduzido do hemisfério esquerdo, com grupos de neurônios “mal-posicionados” no planum<br />
temporale esquerdo – o que sugere um atraso na migração daquelas células durante o<br />
desenvolvimento. Existe, ainda, uma dificuldade em processar estímulos sensoriais (visuais<br />
ou auditivos) de forma rápida por parte de indivíduos disléxicos, quando comparados à<br />
população normal.<br />
O Cérebro Bilíngue<br />
Comunicar-se, portanto, parece pertencer ao acervo biológico do homem, herdado<br />
geneticamente de nossos ancestrais; em nossa espécie, há um instinto para o<br />
desenvolvimento da linguagem – apesar dos possíveis problemas ou deficiências no<br />
decorrer do percurso. E quanto à comunicação em duas línguas? Como está preparado o<br />
nosso cérebro para aprender dois ou mais idiomas, e processá-los a nível neural? Existem<br />
populações neurais específicas para cada idioma, ou que se complementam no<br />
processamento de mais de um idioma? Aqui, devido à modularidade cerebral - já conhecida<br />
não apenas para diferentes funções cognitivas do ser humano (como memória, motricidade,<br />
visão, olfato), mas também para diferentes características linguísticas, temos novamente<br />
que discernir entre as várias habilidades envolvidas também na comunicação bilíngue:<br />
percepção de fonemas estrangeiros, aquisição de um léxico e de estruturas próprias da<br />
língua em questão, articulação da fala e compreensão auditiva a uma velocidade adequada<br />
para interação com nativos daquela língua, entre outras.<br />
Experimentos em eletrofisiologia têm privilegiado as questões linguísticas que<br />
envolvem aquisição e uso do léxico e da gramática em uma ou mais línguas (Perani &<br />
Abutalebi, 2005), enquanto outros se propuseram a abordar a percepção fonêmica,<br />
destacando-se entre estes Kuhl (2000), Stager & Werker (1997) e Rivera-Gaxola et al.<br />
(2001), apontando para padrões de organização neural no córtex auditivo primário de<br />
crianças e adultos.<br />
A plasticidade neural particularmente em crianças é algo notável e aceito tanto pela<br />
comunidade científica como pela sociedade leiga em geral, a qual percebe a facilidade e<br />
velocidade de aprendizado de novas tarefas – em especial, a aquisição de outro idioma.<br />
Estudo publicado por Mehler e Christophe parecem indicar que recém-nascidos já<br />
23
V Curso de Inverno<br />
discriminam entre dois idiomas estrangeiros, ao passo que, curiosamente, bebês aos 2<br />
meses de idade não o fazem mais (Mehler & Christophe, 2000). Isso parece indicar haver<br />
um período ótimo para esta percepção, após o qual ela deixa de existir. Ainda assim,<br />
percebe-se que a facilidade em aprender uma outra língua (o chamado período crítico)<br />
continua até aproximadamente quando se inicia a puberdade (Stromsworld, 2000),<br />
caracterizando ao longo do desenvolvimento infantil algumas janelas de oportunidade -<br />
períodos em que a aquisição de habilidades específicas seriam favorecidas por fatores<br />
genéticos, hormonais e de plasticidade neural. Os primeiros estudos utilizando-se de<br />
indivíduos bilíngues demonstraram que adultos que haviam aprendido duas línguas<br />
simultaneamente na infância apresentaram uma região em comum para processamento de<br />
ambas as línguas, ao passo que aqueles adultos que haviam aprendido duas línguas em<br />
momentos distintos de sua vida apresentavam regiões corticais também distintas quando<br />
utilizando cada um dos idiomas (Figura 3):<br />
Outro importante estudo neste campo provou que não somente a idade, mas também o<br />
nível de proficiência (ou domínio) do idioma influi na representação cerebral. Estudos com<br />
fMRI encontraram maior densidade de massa cinzenta na região temporo-parietal esquerda<br />
do cérebro daquelas pessoas que haviam aprendido mais precocemente duas línguas e que<br />
possuíam maior grau de proficiência. (Mechelli et al, 2004). Isto equivale a dizer que quanto<br />
mais cedo alguém é exposto a um idioma estrangeiro, maior a quantidade de conexões<br />
entre neurônios naquela região cerebral específica envolvida no processamento daqueles<br />
idiomas.<br />
De fato, tomado de um ponto de vista neurobiológico, nascemos prontos para<br />
aprender qualquer idioma. Uma criança que nasce na Coréia vai aprender coreano tão bem<br />
quanto uma criança que aprende italiano por ter nascido na Itália, embora estas duas<br />
línguas possuam sotaques e alguns sons de vogais e consoantes próprios, diferentes entre<br />
elas. Nosso cérebro, nos primeiros anos da infância, não faz distinção entre japonês e<br />
inglês, português e alemão, ou quaisquer outras línguas entre si. É somente após alguns<br />
meses de vida que nosso sistema nervoso central começa a privilegiar os sons mais<br />
freqüentes ao nosso meio, e por consequência, a não mais reconhecer fonemas<br />
estrangeiros que não fazem parte do sistema de sons a que a criança está sendo exposta<br />
24
Fisiologia da Audição<br />
(Figura 4). Daí vem a dificuldade que muitos adultos encontram em, primeiro, perceber<br />
auditivamente e, depois, em pronunciar determinados fonemas estrangeiros – como nas<br />
palavras bad e bed, em inglês, para os brasileiros, ou como nas palavras avô e avó, em<br />
português, para os povos de língua espanhola.<br />
Figura 4:<br />
Linha do<br />
tempo para<br />
percepção<br />
de sons da<br />
fala em<br />
bebês, de 0<br />
a 12 meses<br />
Conclusão e Perspectivas<br />
O campo da neurociência se abre cada vez mais para estudos da linguagem.<br />
Processos que envolvem desde a aquisição de uma língua, passando pelo seu<br />
processamento, distúrbios, anomalias, codificação gênica, representação mental, e<br />
chegando até o fenômeno do bilinguismo, todos ainda reservam perguntas que têm ajudado<br />
em nossa construção do conhecimento acerca desta fascinante área.<br />
Podemos apontar, como perspectivas para o futuro, algumas linhas de estudo:<br />
•Interação entre linguagem e sistemas de memória;<br />
•Ontogenia, prevenção e reabilitação de afasias e dislexias;<br />
•Melhor compreensão do papel de estruturas subcorticais no processamento<br />
liguístico;<br />
•Organização do léxico de duas ou mais línguas na memória;<br />
•Neurofisiologia da aquisição e processamento de duas ou mais línguas em<br />
diferentes idades e níveis de proficiência.<br />
Referências Bibliográficas<br />
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Specific Vowel Contrast in the First Year of Life. Language and Speech 46 (2-3), 217-243.<br />
Callan, D., Tajima, K., Callan, A., Kubo, R., Masaki, S., Akahane-Yamada, R., 2003. Learning-induced<br />
neural plasticity associated with improved identification performance after training of a difficult<br />
second-language phonetic contrast. Neuroimage 19, 113-124.<br />
Kim, K.H.S., Relkin, N. R., Lee, K., Hirsch, J., 1997. Distinct cortical areas associated with native and<br />
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V Curso de Inverno<br />
Kuhl, P. K., 2000. A new view of language acquisition. Proceedings of the National Academy of<br />
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Revisado por André Frazão Helene e Gilberto Xavier<br />
26
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
Capítulo 2<br />
Fisiologia, Conservação e Meio<br />
Ambiente<br />
Autores:<br />
Ananda Brito de Assis<br />
Amanda de Moraes Narcizo<br />
Isabel Cristina Pereira<br />
Juliane Suzuki Amaral<br />
Lye Otani<br />
Lucas Francisco Ribeiro do Nascimento / Laura Haddad<br />
Marina Granado e Sá<br />
Renato Massaaki Honji<br />
Tiago Gabriel Correia<br />
27
V Curso de Inverno<br />
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
Lye Otani<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
lye@usp.br<br />
1. Introdução<br />
O universo tem aproximadamente 13,7 bilhões de anos, sendo que o nosso sistema<br />
solar foi formado há cerca de 5 bilhões de anos atrás. As primeiras formas de vida em nosso<br />
planeta surgiram há cerca de 3,8 bilhões de anos atrás, quase que concomitantemente ao<br />
resfriamento do nosso planeta. A partir de então, as mais diversas formas de vida foram<br />
evoluindo, sendo que os primeiros organismos multicelulares surgiram há cerca de 1 bilhão<br />
de anos atrás. As plantas vasculares e os animais como artrópodes não-marinhos e os<br />
precursores dos anfíbios, por sua vez, surgiram sobre a Terra há aproximadamente 450-400<br />
milhões de anos. Todavia, nenhuma vida teria evoluído e se desenvolvido se não fosse pela<br />
formação da camada de ozônio há 1-2 bilhões de anos atrás (Williams & Fraústo da Silva<br />
2005). Esse ciclo evolutivo, que inclui processos naturais de extinção, dos diversos tipos de<br />
organismos vivos em nosso planeta tem sido decorrente da constante alteração do meio<br />
ambiente desde o início dos tempos. No entanto, além das variações ambientais naturais, os<br />
seres vivos agora têm que lidar com as alterações ambientais causadas pelas atividades<br />
humanas (Pough et al. 1998; Carey 2005).<br />
O ser humano surgiu há 100 mil anos atrás (Williams & Fraústo da Silva 2005), e<br />
principalmente após meados do sec. XVIII, com a Revolução Industrial, esta espécie vem<br />
explorando os recursos naturais descontroladamente (Ribeiro 2002). As populações<br />
humanas têm consumido e desperdiçado cerca de 40% da produtividade primária líquida<br />
total do ambiente terrestre, levando espécies e comunidades inteiras ao ponto de extinção.<br />
As principais ameaças à diversidade biológica e ao meio ambiente são: destruição,<br />
fragmentação e degradação do hábitat (incluído poluição), super-exploração das espécies<br />
para uso humano, introdução de espécies exóticas e aumento de ocorrência de doenças<br />
(ver revisão em Primack & Rodrigues 2001).<br />
2. Impactos Ambientais e a Biologia da Conservação<br />
A perda de habitat resultante do desenvolvimento urbano e da agricultura, e a<br />
subseqüente fragmentação de habitat vem ocorrendo em todo o mundo (Miller & Cale 2000;<br />
Primack & Rodriques 2001). Essa diminuição do tamanho do habitat e o aumento do<br />
isolamento dos organismos acarretam em um aumento de extinções localizadas (Fahring &<br />
Merriam 1994; Zuidema et al. 1996), o que resulta em redução da biodiversidade nos<br />
fragmentos remanescentes (Drinnan 2005). Além disso, a fragmentação ocorre mesmo<br />
quando a área do habitat não é tão afetada, como no caso do habitat original ser dividido por<br />
estradas ferrovias, canais, linhas de energia, cercas, tubulação de óleo, aceiros, ou outras<br />
28
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
barreiras ao fluxo de espécies (Schonewarld-Cox & Buechner 1992). Essa redução na<br />
dispersão animal acarreta em uma diminuição na dispersão de diversos tipos sementes,<br />
levando à diminuição das populações vegetais e da disponibilidade de alimento. Assim, as<br />
populações menores restritas aos fragmentos tornam-se vulneráveis à depressão<br />
endogâmica, à mudança genética, e a outros problemas associados com o tamanho<br />
reduzido de população (Fahring & Merriam 1994; Zuidema et al. 1996). A fragmentação<br />
também aumenta drasticamente o efeito de borda, alterando o microambiente, causando<br />
alterações nos níveis de luz, temperatura, umidade e vento (Kapos 1989; Bierregaard et al.<br />
1992; Rodrigues 1998; Ganlindo-Leal & Câmara 2005). Essas mudanças interferem nas<br />
espécies que se instalarão nesta região e eliminarão muitas outras espécies, alterando a<br />
composição das espécies da comunidade (Primack & Rodrigues 2001; Galindo-Leal &<br />
Câmara 2005).<br />
Outro impacto causado pela atividade humana é a poluição da água e do ar, o qual<br />
leva a destruição de fontes de alimento e água potável, além de causar alterações e<br />
contaminações à atmosfera da Terra. Os produtos químicos tóxicos, como por exemplo,<br />
pesticidas, herbicidas, dejetos e derramamento de óleo e metais pesados (tais como<br />
mercúrio, chumbo e zinco), mesmo em baixos níveis, podem ser concentrados em níveis<br />
letais pelos organismos aquáticos filtradores, além de causarem danos irreversíveis mesmo<br />
em doses sub-letais. Os nitratos e fosfatos, apesar de serem essenciais para a vida,<br />
também apresentam conseqüências danosas tanto na água quanto no ar. Na água, esses<br />
compostos são provenientes dos esgotos urbanos, fertilizantes agrícolas e outros processos<br />
industriais, e favorecem a proliferação de algas e seu domínio sobre outras espécies de<br />
plânctons. Essa proliferação reduz a incidência de luz e a concentração de oxigênio, devido<br />
ao aumento de bactérias e fungos decompositores (eutrofização cultural), levando a seleção<br />
de espécies tolerantes a água poluída e níveis baixos de oxigênio (ver revisão em Primack &<br />
Rodrigues 2001). No ar, estes compostos são liberados principalmente com a queima de<br />
óleos e combustíveis fósseis, e são prejudiciais à saúde pública e ao meio ambiente.<br />
Reagindo com a umidade atmosférica, há a formação dos ácidos nítrico e sulfúrico e,<br />
conseqüentemente, levando à produção da chuva ácida. Esta, por sua vez, diminui o pH do<br />
solo e de corpos d’água como lagos e lagoas, acarretando na morte e redução da<br />
reprodução de diversas espécies aquáticas (Beebee et al. 1990; Blaustein & Wake, 1995;<br />
France & Collins 1993) e de plantas (Hinrichsen 1987; MacKenzie & El-Ashry 1988).<br />
Hidrocarbonetos e óxidos de nitrogênio liberados por automóveis e termoelétricas, na<br />
presença da luz, reagem com outros compostos atmosféricos e produzem ozônio e outros<br />
compostos químicos. As altas concentrações de ozônio ao nível do solo danificam tecidos<br />
de plantas e as tornam vulneráveis, danificando comunidades biológicas e reduzindo a<br />
produtividade agrícola. Metais pesados, como o chumbo e o zinco, também têm sido<br />
liberados em grandes quantidades, sendo tóxicos para a grande maioria dos seres vivos. E,<br />
por último, a grande liberação de dióxido de carbono, metano e outros gases na atmosfera<br />
29
V Curso de Inverno<br />
acarretam na diminuição da taxa de dissipação do calor da superfície da Terra. Tal processo,<br />
conhecido pelo nome de efeito estufa, pode ser responsável, juntamente com o<br />
desmatamento, pela grande alteração climática que vem sendo registrada nos últimos anos<br />
(ver revisão em Primack & Rodrigues 2001).<br />
A mudança climática global e o aumento de concentrações de CO2 atmosférico têm o<br />
potencial de reestruturar radicalmente as comunidades biológicas, favorecendo aquelas<br />
espécies capazes de se adaptar às novas condições (Bazzaz & Fajer 1992). Há uma grande<br />
evidência de que este processo de mudança já teria começado (Grabherr et al. 1994;<br />
Phillips & Gentry 1994), causando um aquecimento de cerca de 0,5 o C durante o século 20<br />
(Jones & Wigley 1990). Essas alterações afetarão principalmente as espécies de<br />
distribuição mais restritas e de pouca habilidade de dispersão. A elevação do nível do mar<br />
também acarretará em graves conseqüências as comunidades marinhas, principalmente<br />
para algumas espécies de corais que necessitam de uma determinada luminosidade,<br />
correntes marítimas e temperatura (Carey 2005).<br />
Além das intervenções químicas e físicas, as atividades humanas também têm<br />
acarretado em intervenções bióticas como, por exemplo, a introdução de espécies exóticas<br />
e novas patologias resultantes. Até hoje, um grande número de espécies já foram<br />
introduzidas, deliberadamente ou acidentalmente, em áreas onde não são nativas (Grove &<br />
Burdon 1986; Drake et al. 1989; Hedgpeth 1993). As espécies animais introduzidas podem<br />
alterar o hábitat, competir por recursos ou, até mesmo, se tornar predadoras das espécies<br />
nativas e levá-las a extinção. Já a proliferação de patologias e/ou surgimento de novas<br />
doenças podem ser resultantes da somatória das diversas alterações citadas anteriormente,<br />
uma vez que as comunidades estão mais vulneráveis, por exemplo, as superpopulações de<br />
determinadas espécies em fragmentos florestais favorecem altas taxas de transmissão de<br />
doenças (Primack & Rodrigues 2001; Navas & Otani 2007). Um exemplo é o surgimento da<br />
quitridiomicose em anfíbios, causada pelo fungo Batrachochytrium dendrobatidis. Este tem<br />
sido apontado como um dos principais responsáveis pelo declínio global de anfíbios e pode<br />
estar associada à mudança climática global (Navas & Otani 2007).<br />
Diante dessas adversidades, inclusive das que ainda não tomamos ciências, a<br />
melhor maneira de proteger e manejar as comunidades biológicas é entendendo suas<br />
relações biológicas com o ambiente e a sua situação atual. A partir de informações sobre a<br />
história natural das espécies, nós seremos aptos a manejar e conservar as espécies e<br />
identificar os fatores que colocam em risco sua existência e bem estar (Gilpin & Soulé 1986).<br />
A biologia da conservação surgiu de forma a complementar as diversas disciplinas<br />
aplicadas, de uma maneira mais teórica e geral para a proteção da diversidade biológica.<br />
Sendo uma ciência multidisciplinar que foi desenvolvida como resposta à grande<br />
degradação ambiental, a biologia da conservação tem como intuito entender os efeitos da<br />
atividade humana nas espécies, comunidades e ecossistemas, e desenvolver abordagens<br />
30
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
práticas para prevenir a extinção de espécies e, se possível, reintegrar as espécies<br />
ameaçadas ao seu ecossistema funcional (Primack & Rodrigues 2001).<br />
Segundo Primack & Rodrigues (2001) a biologia da conservação tenta responder<br />
diversas perguntas referentes às características das espécies, por exemplo: (1) Ambiente:<br />
quais os tipos de habitat utilizados pelas espécies? Como o ambiente varia no tempo e no<br />
espaço? Com que freqüência o ambiente é afetado por perturbações catastróficas? (2)<br />
Distribuição: Como os seus habitats estão distribuídos no planeta? Desloca-se ou migra<br />
entre os habitats ou para diferentes áreas geográficas durante o curso de um dia ou de um<br />
ano? É bem-sucedida na colonização de novos habitats? (3) Interações bióticas: Que tipos<br />
de alimentos e outros recursos necessitam? Que outras espécies competem por esses<br />
recursos? Quais os predadores, as pestes e os parasitas que afetam o tamanho de sua<br />
população? (4) Morfologia: Como a forma, o tamanho, a cor e textura dos indivíduos<br />
permitem sua existência em seu ambiente? (5) Demografia: Qual é o tamanho atual da<br />
população e qual era no passado? O número de indivíduos é estável, está aumentando ou<br />
diminuindo? (6) Comportamento: Como suas ações permitem que ele sobreviva? Como se<br />
acasalam e têm filhotes? De que forma os indivíduos interagem entre si, tanto de forma<br />
cooperativa como de forma competitiva? (7) Genética: Quanto de variação nas<br />
características morfológicas e fisiológicas entre os indivíduos é controlada geneticamente?<br />
(8) Fisiologia: Qual a quantidade de alimento, água, minerais e de outras necessidades é<br />
necessária para sobreviver, crescer e reproduzir-se? Qual sua eficiência das espéciesno uso<br />
dos recursos? Qual sua vulnerabilidade a condições extremas de clima, tais como calor, frio,<br />
vento e chuva?<br />
3. Fisiologia da Conservação<br />
Dentro desta perspectiva, os princípios, conceitos e métodos utilizados na área da<br />
fisiologia são de extrema importância para o entendimento dos declínios populacionais e<br />
para a conservação ambiental (Koeman 19991; Zachariassen et al. 19991; Carey 2005;<br />
Wikelski & Cooke 2006; Navas & Otani 2007). As diferentes variáveis dos estudos sobre a<br />
fisiologia trazem informações importantes que ajudam a elucidar os mecanismos<br />
relacionados à variação ambiental e sua influência sobre a aptidão de sobrevivência e<br />
reprodução dos diversos organismos vivos. Assim, o campo da fisiologia que estuda as<br />
respostas fisiológicas frente às alterações ambientais causadas pelo homem é atualmente<br />
denominado como Fisiologia da Conservação (Carey 2005; Wikelski & Cooke, 2006).<br />
Inicialmente, a fisiologia da conservação propõe utilizar-se de dados básicos sobre a<br />
fisiologia e a aptidão e suas interações para prever e antecipar problemas futuros. No<br />
entanto, poucos dados desta natureza estão disponíveis ou são insuficientes para que<br />
possam ser realizados programas de gestão ambiental aptos a prever quando e onde irão<br />
surgir problemas. Conseqüentemente, a escassez de dados sobre a fisiologia básica dos<br />
organismos em seu ambiente natural faz com que a fisiologia da conservação abranja<br />
31
V Curso de Inverno<br />
diversas abordagens, incluindo levantamentos dos dados básicos em seus objetivos para<br />
poder comparar com os dados sobre o ambiente estressante, em vez de simplesmente<br />
realizar medições pós-impactos (Wikelski & Cooke 2006).<br />
Utilizando os métodos desenvolvidos pela fisiologia, os estudos sobre conservação<br />
são capazes de identificar os principais fatores ou períodos de como ou quando os<br />
organismos se tornaram estressados. Por exemplo, as diversas técnicas utilizadas na<br />
endocrinologia podem ser utilizadas para detectar os problemas de reprodução em cativeiro<br />
encontrados em diversas espécies, favorecendo terapias hormonais principalmente em<br />
espécies ameaçadas de extinção. Esses estudos também possibilitam agrupar casais em<br />
períodos reprodutivos sincronizado, a fim de facilitar a reprodução em cativeiro, todavia, tais<br />
medidas não desvalorizam a importância da conservação da vida selvagem em seu habitat<br />
natural (Wikelski & Cooke 2006). Outro exemplo são os estudos que têm demonstrado que a<br />
modificação física do ambiente e a introdução de poluentes causam alterações sobre<br />
diversos aspectos da fisiologia metabólica de vertebrados e invertebrados (Calow 1991;<br />
Zachariassen et al. 1991; Hopkins et al. 1998; Beyers et al. 1999; Barbieri et al. 2002; Carey<br />
2005). Já a diminuição do tamanho do habitat e o aumento da isolação dos organismos<br />
causada pela fragmentação, além de acarretam no aumento de extinções localizadas<br />
(Fahring & Merriam 1994; Zuidema et al. 1996; Drinnan 2005), podem atuar na seleção<br />
natural das espécies através de suas características fisiológicas, por exemplo, o<br />
desempenho locomotor (Navas & Otani 2007) ou até mesmo causar alterações hormonais<br />
prejudicando o ciclo reprodutivo (Suorsa et al. 2003; 2004).<br />
O estudo da energética também representa uma ferramenta importante para a<br />
fisiologia na avaliação toxicológica, possibilitando o estabelecimento de relações de causae-efeito<br />
entre os agentes estressores e as respostas obtidas nos diversos níveis de<br />
organização biológica (Clements 2000; Carlisle 2000). Apesar das ligações energéticas<br />
entre escalas não serem bem definidas, existem evidências de que a energética individual<br />
possa influenciar os padrões e processos do ecossistema (Parmelee 1995; DeAngelis<br />
1995). Diversas técnicas podem ser utilizadas, em campo, para avaliar o equilíbrio<br />
energético dos animais, com mínimo de estresse, como por exemplo: a biotelemetria, que<br />
nos possibilita detectar alterações comportamentais e fisiológicas (freqüência cardíaca,<br />
temperatura corpórea, taxa opercular, batimento caudal, da asa ou de outros apêndices) em<br />
tempo real, e a água duplamente marcada (quantificação de produção de CO2 através de<br />
isótopos (Speakman 1997; Nagy et al. 1999; Costa & Gales 2003).<br />
Utilizando os dados obtidos por esses estudos, a fisiologia da conservação também<br />
pode destacar os principais organismos mais vulneráveis aos diversos fatores estressores<br />
imposto pelo homem (Mangum & Hochachka 1998; Somero 2000; Costa & Sinervo 2004).<br />
Estudos sobre a susceptibilidade dos organismos diante aos fatores estressantes,<br />
juntamente com dados básicos a respeito de sua biologia e fisiologia, são essenciais para o<br />
desenvolvimento, ainda mais a longo prazo, de planos para monitorar os ambientes<br />
32
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
alterados (Carey 2005; Wikelski & Cooke 2006). Wikelski & Cooke (2006) sugerem que os<br />
programas de conservação sejam acompanhados de avaliações fisiológicas para que<br />
possamos obter uma compreensão geral dos problemas que concernem à conservação<br />
ambiental. Posteriormente, as estratégias de conservação devem ser disponibilizadas em<br />
um catálogo contendo os dados sobre os diversos tipos de manipulações utilizados para<br />
cada tipo de estressor, facilitando assim a divulgação integrada dos dados sobre todos os<br />
aspectos biológicos, fisiológicos e ecológicos das espécies juntamente com os programas<br />
de conservação já realizados, constando seus principais problemas e sucessos. De fato, a<br />
Rede de Observatório Ecológico Nacional (NEON - http:// www.neoninc.org/) já estão<br />
incluindo os parâmetros fisiológicos para o acompanhamento de diversas espécies de<br />
animais, a fim de tornar disponível a maior quantidade de dados para incorporá-los à metaanálises<br />
do impacto dos estressores sobre as populações (Wikelski & Cooke 2006).<br />
Tendo em vista que variabilidade na capacidade das diversas espécies de animais<br />
para tolerar a modificação antrópica do ambiente guarda relação como a fisiologia e a<br />
capacidade para manter o balanço energético e o equilíbrio interno (homeostase), o<br />
presente capítulo tratará de oito tópicos mais detalhadamente. Em primeiro lugar serão<br />
discutidos como alguns disruptores ambientais acarretam na deficiência imunológica dos<br />
organismos, tornando-os mais vulneráveis aos patógenos. Existem casos em que surtos de<br />
doenças podem estar relacionados a alguns casos de declínio e extinção de populações,<br />
como é o caso de algumas espécies de anfíbios. Em segunda estância, serão abordados os<br />
mecanismos comportamentais, fisiológicos e bioquímicos relacionados à depressão<br />
metabólica em diferentes grupos de vertebrados frente a variações ambientais sazonais, e<br />
de que maneira as acentuadas mudanças ambientais globais causadas pela ação do<br />
homem atuam sobre estes padrões e afetam a sobrevivência dos animais. Dando<br />
continuidade a este tema, serão realizados um estudo de caso sobre as alterações sofridas<br />
por um dos mais típicos bioma brasileiro, a Caatinga. Nesse momento, analisaremos como<br />
as atividades antrópicas estão alterando o bioma e quais as conseqüências sobre a<br />
fisiologia e, conseqüentemente, a aptidão das espécies ali presentes.<br />
Em quarto lugar, analisaremos como a resposta celular ao estresse está relacionada<br />
à proteção do organismo contra danos provocados pela exposição a uma ampla variedade<br />
de agentes estressores, como por exemplo, calor, luz ultravioleta, metais pesados e<br />
xenobióticos. Além de avaliar como essa resposta levam a conseqüências fisiológicas<br />
(disrupção endócrina, disfunções metabólicas, osmorregulatórias, reprodutivas) e ecológicas<br />
(influência sobre a distribuição geográfica, alteração sobre a dinâmica de populações e até<br />
mesmo a estrutura de ecossistemas). Como quinto tópico, termos uma visão mais detalhada<br />
de como o pH da água pode ser alterado e quais as suas conseqüências sobre os<br />
organismos aquáticos. Em seguida, será discutida a importância e os métodos de utilização<br />
dos biomarcadores como instrumentos que possibilitam a identificação de substâncias<br />
tóxicas ou uma condição adversa antes que sejam evidenciados danos à saúde organismal.<br />
33
V Curso de Inverno<br />
O sétimo tópico relatará a ação de disruptores endócrinos sobre os hormônios esteróides, e<br />
os seus efeitos na reprodução, principalmente, dos organismos aquáticos. Por fim, a<br />
construção de reservatórios nos rios será analisada com relação aos grandes impactos<br />
causados no ciclo de vida dos animais, relatando estudos de casos em peixes.<br />
Apesar de tratarmos principalmente sobre a fisiologia e conservação dos animais, é<br />
importante ressaltar que esta área também é relevante para outros organismos não animais.<br />
No caso das plantas, por exemplo, Pywell e colaboradores (2003) utilizou-se de dados<br />
fisiológicos para predizer o desempenho de pastagens e de reflorestamentos. Orth e<br />
colaboradores (2000) basearam-se em estudos sobre a fisiologia de dormência e<br />
germinação de sementes para projetos de conservação de plantas marinhas. Outros autores<br />
têm utilizado as informações sobre tolerâncias fisiológicas para predizer respostas de<br />
plantas marinhas (Beardall et al. 1997) e terrestres (Tilman & Lehman 2001) frente às<br />
alterações climáticas. Conseqüentemente, a diversidade e os padrões de distribuição de<br />
animais e plantas estão relacionados com o potencial de diferentes grupos sistemáticos para<br />
produzir ajustes comportamentais, morfológicos ou fisiológicos, ao longo de gradientes<br />
ecológicos espaciais e temporais. Dessa maneira, a fisiologia da conservação tem um papel<br />
fundamental ao estabelecer os limites ambientais que garantem a reprodução dos indivíduos<br />
e, conseqüentemente, a viabilidade das populações, comunidades e ecossistemas.<br />
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Revisado por José Eduardo de Carvalho<br />
37
V Curso de Inverno<br />
Mudanças Ambientais: Uma Perspectiva Imunológica<br />
Ananda Brito de Assis<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
ananda_wu@yahoo.com.br<br />
1. O Sistema Imunológico<br />
O conceito corrente de sistema imunológico está baseado em estudos realizados<br />
com humanos e outros mamíferos. Este sistema é caracterizado pelo conjunto de órgãos<br />
relacionados às reações imunológicas, à diferenciação e maturação das células<br />
encarregadas das respostas imunitárias (Manning & Turner, 1976). Este sistema possui<br />
grande eficiência na inativação e eliminação de organismos invasores, particularmente<br />
microrganismos patógenos, e na remoção de células mortas ou mutantes e constitui um dos<br />
mecanismos adaptativos mais importantes ao permitir a permanência dos organismos em<br />
ambientes potencialmente lesivos Considerado um dos maiores mecanismos fisiológicos<br />
reguladores da sobrevivência, esse sistema é de fundamental importância na<br />
sustentabilidade das populações (Russo 2001).<br />
O sistema imunológico compreende mecanismos inespecíficos e específicos. Os<br />
primeiros, protegem o corpo de qualquer material ou microorganismo estranho e tem duas<br />
linhas de ação: as barreiras naturais, como a própria pele, saliva, ácido clorídrico do<br />
estômago, a cera da orelha externa, as mucosas no geral, cílios, pêlos e outros. Os<br />
mecanismos específicos são caracterizados pela presença de células fagocitárias,<br />
substâncias antimicrobianas e aumento da temperatura, componentes do processo<br />
inflamatório. Se a inflamação não for eficiente para conter a invasão do patógeno, os<br />
mecanismos específicos são ativados, onde vários tipos celulares são recrutados<br />
(Abrahamsohn 2001; Russo 2001).<br />
A resposta imune compreende dois processos: a imunidade humoral, mediada por<br />
anticorpos, proteínas presentes no plasma e nas superfícies dos linfócitos que possuem<br />
especificidade com o antígeno; e a imunidade celular, mediada por células (Abrahamsohn<br />
2001) (Figura1). Tanto as células fagocitárias (fagócitos) quanto os componentes do sistema<br />
complemento, constituído por proteínas com atividade enzimática, são filogeneticamente<br />
mais antigos que os linfócitos (células de reconhecimento que dão início à etapa específica<br />
da resposta imune). Os fagócitos estão representados praticamente em toda a escala<br />
filogenética enquanto que os linfócitos só aparecem nos vertebrados, a partir de Agnatha.<br />
Da mesma forma, outros órgãos como o timo e o baço, assim como uma grande<br />
diversidade de moléculas da superfamília das imunoglobulinas (as moléculas-chave na<br />
imunologia) já aparecem a partir deste grupo de vertebrados (Marchalonis 1977).<br />
38
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
Figura 1: Esquema simplificado do dos mecanismos de defesa imunológica<br />
Fonte: http://www.afh.bio.br/imune/imune2.asp#propriedades<br />
1.1. O sistema imunológico nos diversos grupos<br />
1.1.1. Invertebrados<br />
Até a década de 70, considerava-se que invertebrados não possuíam sistema<br />
imunológico, isto este porque, segundo os estudos até aquele momento, nesses animais o<br />
sistema baseava-se apenas em fagocitose e detinham pouca especificidade. No entanto,<br />
esse paradigma foi quebrado quando estudos mostraram que nem todos os vertebrados<br />
possuem um sistema imunológico completo, ou seja, incluindo memória e reconhecimento<br />
com células-mediadas e reações imunes humorais. A partir disso, o sistema dos<br />
invertebrados, mesmo sendo, em complexidade, mais simples que a grande maioria dos<br />
vertebrados, passou a ser considerado.<br />
39
V Curso de Inverno<br />
Os invertebrados não secretam imunoglobulinas, mas hemaglutininas são<br />
encontradas em vários filos destes. Estas moléculas assemelham-se aos anticorpos dos<br />
vertebrados, uma vez que possuem um alto grau de especificidade, além de se ligarem a<br />
carboidratos específicos na superfície de células de maneira a formar receptores (Manning e<br />
Turner 1976). A imunidade célula-mediada específica surgiu muito cedo na evolução e é<br />
bem estabelecida nos invertebrados superiores. Apesar da grande diversidade de grupos, o<br />
padrão básico de resposta a um invasor e a injúria a um tecido nos invertebrados se<br />
mantém constante ao longo dos grupos desde amebas (Marchalonis 1977).<br />
1.1.2. Vertebrados<br />
O aparecimento e a evolução de um sistema de defesa altamente complexo e<br />
específico são evidentes nos vertebrados. O grupo dos Agnatha, primeiramente, possui os<br />
requerimentos funcionais básicos de um sistema imunológico: especificidade, memória e<br />
proliferação. Apesar disso, os organismos desse grupo não dispõem de um sistema linfóide<br />
tendo, por isso, limitações evidentes na resposta imune. Chondrichthyes e Osteichthyes já<br />
possuem um sistema imune bastante eficiente, com um timo definitivo e estrutura 2H-2L de<br />
imunoglobulina, possivelmente herdados de um ancestral Gnatostomata, além de um<br />
sistema linfóide funcional (Manning e Turner 1976).<br />
A passagem da água para a terra foi provavelmente a etapa mais importante na<br />
evolução dos vertebrados e envolveu profundas modificações no corpo dos indivíduos.<br />
Essas alterações podem ser percebidas no sistema imune dos anuros, onde o rim atua<br />
como um órgão linfóide, o esqueleto adquire adaptações provendo sítios para a medula<br />
óssea, a migração de células imunes dos vasos aos tecidos, torna-se mais eficiente, surgem<br />
grande diversidade de imunoglobulinas e os primeiros nódulos linfáticos.<br />
No grupo de animais ectotérmicos, justamente onde tem-se a maior quantidade de<br />
informações acerca da diversidade imunológica dos vertebrados. Comparados com muitos<br />
anfíbios, segundo dados disponíveis até o momento, alguns répteis mostram uma<br />
imunocompetência inferior e uma lenta diferenciação de órgãos linfóides. A organização<br />
desses órgãos é mais simples, em todos os grupos de répteis, quando comparada à<br />
observada em aves e mamíferos. Aves possuem um órgão linfóide primário, a “Bursa de<br />
Fabrício”, onde se diferenciam alguns anticorpos específicos. Neste grupo de animais e em<br />
mamíferos, a homeotermia proveu incremento na eficiência do sistema imune. Em<br />
mamíferos, a viviparidade, que envolve um complexo relacionamento materno-fetal,<br />
somado ao cuidado parental, permitem o estabelecimento populações celulares no sistema<br />
imune e isto favorece a heterogeneidade funcional, uma característica fundamental de<br />
mamíferos. Estes mecanismos permitem uma fina descriminação, especializações e<br />
refinamentos em mecanismos de feed-back que contribuem para a eficiência imunológica.<br />
Todas essas reações e interações ocorrem nos tecido linfóides. Nos mamíferos, os nódulos<br />
linfáticos são, em eficiência, uma inovação evolutiva, e são provenientes de órgãos<br />
40
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
rudimentares em outros vertebrados. Respostas de localização específica nas diferentes<br />
regiões dentro do sistema de nódulos linfáticos promovem reações discretas e bem<br />
controladas. Essa descrição do sistema imune torna evidente a progressão filogenética<br />
desse sistema e é de grande valor para os estudos de fisiologia comparada, podendo<br />
também ser utilizados em pesquisas conservacionistas (Manning &Turner 1976).<br />
2. Ambiente e Imunidade<br />
A influência do meio ambiente na saúde dos indivíduos deve ter sido observada a<br />
partir do momento em que se começou a pensar em doenças. Hipócrates em seus estudos<br />
sobre as causas dos estados doentios, já mencionava a importância do ambiente total<br />
nesses processos. Segundo dados da Wold Health Organization – WHO globalmente,<br />
estima-se que, 24% da sobrecarga doença (esperança de vida saudável perdidos) e 23%<br />
de todas as mortes (mortalidade prematura) foram atribuídos a fatores ambientais (Daszak<br />
et al. 2000; Prüss-Üstün & Corvalán 2006). Existe um senso comum de que fatores<br />
ambientais têm influência sobre o estado físico dos organismos. Todavia, são poucos os<br />
estudos que se aprofundam nessa temática, no sentido de investigar os mecanismos pelos<br />
quais os sinais ambientais ditam alterações fisiológicas que culminam em doenças.<br />
Devido ao histórico de epidemias que acometeram a população humana e estas<br />
terem sido apontadas atualmente como um importante fator de perda da biodiversidade, as<br />
“doenças infecciosas emergentes”, ou do inglês EIDs (Emerging Infectious Diseases) têm<br />
recebido atenção agora. Estas são definidas como doenças que: recentemente têm<br />
aumentado em incidência ou em extensão geográfica, circulam entre novas populações<br />
hospedeiras, foram descobertas recentemente ou envolvem novos patógenos. (Daszak<br />
2001) O aparecimento e evolução desses surtos de doenças devem-se a mudanças na<br />
ecologia do parasita, do hospedeiro, ou de ambos, resultado de fatores essencialmente<br />
antropogênicos. O impacto das mudanças ambientais humanas sobre as populações<br />
selvagens é claro e sem precedentes (Daszak et al. 2000).<br />
A expansão da população humana tem dirigido a emergência das doenças<br />
infecciosas mediante o aumento da densidade populacional, especialmente em áreas<br />
urbanas, e da invasão no habitat natural. O impacto sobre as populações selvagens<br />
certamente desequilibra relações ecológicas, como aquela patógeno-hopedeiro, promovida<br />
pela instalação e expansão da agricultura, introdução de espécies exóticas, destruição de<br />
habitat.<br />
41
V Curso de Inverno<br />
Tabela 1: Doenças infecciosas emergentes que envolvem humanos, animais domésticos e selvagens, suas<br />
posições geográficas e relação com o meio ambiente (Daszak et al. 2000).<br />
42
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
2.1.1. Mecanismos imunológicos em anfíbios<br />
Os mecanismos de resistência dos anfíbios aos patógenos envolvem o sistema<br />
imune inato bem como o sistema imune adaptativo. O sistema imune inato é aquele que<br />
promove proteção rápida e inespecífica. A primeira linha de defesa ocorre através da pele e<br />
do trato digestório, e é realizada por peptídeos antimicrobianos. Como todos os vertebrados,<br />
anfíbios também possuem células fagocíticas, macrófagos primários e neutrófilos que<br />
podem fagocitar diretamente um patógeno. Anfíbios compartilham com outros vertebrados<br />
um sistema complemento que pode matar diretamente o organismo invasor através de um<br />
complexo de ataque à membrana, e atua também em conjunto com anticorpos. Citotoxinas<br />
naturais produzidas por células “natural killers” (NK) também estão presentes, assim como<br />
em todos os vertebrados. O sistema imune adaptativo requer tempo para ser ativado,<br />
seguido da detecção de um antígeno. É altamente específico e promove a geração de<br />
memória celular. O sistema é composto de linfócitos T e B que expressam receptores de<br />
superfície celular e receptores imunoglobulinas (Ig). O Timo e o baço são órgãos linfóides<br />
central e periférico, respectivamente. Embora salamandras possuam a estrutura básica do<br />
sistema adaptativo imune, a resposta imunológica in vivo é tipicamente menos robusta que<br />
em anuros (Manning e Turner 1976; Carey et al. 1999).<br />
Dado que anfíbios possuem um aparato imunológico sofisticado, a mortalidade em<br />
massa desse grupo não pode ser atribuída simplesmente à possibilidade de mecanismos de<br />
defesa deficientes. Alguns fatores ambientais podem modular a resistência dos anfíbios aos<br />
patógenos:<br />
•Desenvolvimento: Durante a metamorfose, anfíbios anuros sofrem total reorganização de<br />
todos os sistemas fisiológicos, inclusive o sistema imune, sendo que mudanças<br />
decorrentes da metamorfose em urodelos são menos acentuadas. A imunocompetência<br />
completa não é alcançada até o momento após a metamorfose, pelo menos para as<br />
poucas espécies estudadas até o momento. Na ontogenia, a população de linfócitos<br />
expande durante o crescimento do girino e decresce acentuadamente em órgãos como o<br />
timo, o fígado e o baço durante o clímax da metamorfose. Quando a metamorfose é<br />
completada, a população de linfócitos expande novamente até alcançar os níveis da<br />
população do adulto, cerca de 4 a 8 meses. Linfócitos B também aumentam em duas<br />
ondas que são separadas pela metamorfose. Adicionalmente, o sistema imune é muito<br />
sensível à corticoesteróides, e estes têm uma alta produção durante a metamorfose, e a<br />
queda dos níveis dos parâmetros gerais durante esse período é atribuída à elevação dos<br />
níveis desse hormônio. A imunossupressão logo após e durante a metamorfose, torna os<br />
anfíbios susceptíveis às doenças. Alguns estudos afirmam que quando os girinos<br />
desenvolvem-se em condições de escassez de alimento eles metamorfoseiam tarde e em<br />
tamanho menor que o normal. Dessa forma, o sistema imune pode ser seriamente<br />
43
V Curso de Inverno<br />
comprometido. Deste modo, perturbação e destruição dos hábitats leva ao<br />
desenvolvimento e metamorfose em ambientes menos que o ótimo, isso poderia levar a<br />
uma perda de linfócitos maior que a normal e um concomitante aumento da<br />
susceptibilidade a doenças durante esse momento de transição (Rollins-Smith 1998).<br />
• Temperatura: Mudanças nas condições climáticas têm sido apontadas como um<br />
importante fator para o declínio das populações de anfíbios. Sabemos que o sistema<br />
imune em ectotérmicos é temperatura-dependente, por isso esse fator ambiental pode<br />
diretamente influenciar a susceptibilidade desse grupo às doenças infecciosas. Algumas<br />
taxas de componentes do sistema imune diminuem durante períodos de baixas<br />
temperaturas, o qual pode ser uma resposta adaptativa ao decréscimo do risco de<br />
adquirir uma infecção no inverno. Linfócitos e eosinófilos permanecem a níveis basais em<br />
baixas temperaturas, em anfíbios aclimatados, neutrófilos e fagócitos deprimem suas<br />
atividades inicialmente quando a temperatura cai, mas retornam aos níveis normais uma<br />
vez que o animal está aclimatado, sugerindo que esses parâmetros são temperaturadependente.<br />
O aumento da variabilidade das condições climáticas pode conduzir a<br />
períodos de imunossupressão mais longos ou mais freqüentes, o que tem implicações<br />
para a emergência das doenças e o potencial para as mudanças climáticas exacerbar o<br />
declínio dos anfíbios (Raffel et al. 2006; Marchalonis b 1977)<br />
• Pesticidas: Muitas substâncias, incluindo os pesticidas utilizados em agricultura,<br />
modulam a resposta imunológica podendo alterar tanto aspectos morfológicos quanto<br />
fisiológicos. Anfíbios expostos a pesticidas sofrem um decréscimo no número de células<br />
em órgãos linfóides, como o baço. O número de esplenócitos, por exemplo, é<br />
inversamente proporcional à quantidade do agente químico ao o indivíduo foi exposto,<br />
esse parâmetro indica, portanto, que mesmo a exposição prolongada a baixas<br />
concentrações, também têm efeito no sistema imune desses animais. Pesquisas<br />
mostram que rãs (Rana temporária) expostas a altas concentrações de inseticidas<br />
organofosforados possuíam baixos níveis de leucócitos no sangue, quando comparados<br />
a animais não expostos. Os mecanismos como ocorrem essas alterações ainda não são<br />
conhecidos; contudo, é possível que os contaminantes tenham um efeito citotóxico nas<br />
células hematopoéticas primordiais e/ou pode modificar a hematopoese. Esses<br />
contaminantes também modulam respostas-chave da imunidade, como a fagocitose, e<br />
também apresenta uma relação dose-resposta, ou seja, quanto mais alta a concentração,<br />
menor o número de fagócitos. Certos poluentes, por outro lado, têm a propriedade de<br />
hiper-estimular células imunes e conduzem, portanto, à reações de hipersensibilidade ou<br />
doenças auto-imunes, o que poderia induzir lesões em diferentes tecidos. Pesticidas<br />
também modulam a função-chave básica dos linfócitos, que reagem à estimulação<br />
antigênica, e estes adquirem certa incompetência de proliferar mesmo quando expostos a<br />
44
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
baixas concentrações de pesticidas. O estado de imunossupressão, decorrente da<br />
exposição aos pesticidas , leva portanto ao decréscimo da resistência a patógenos<br />
oportunistas (Vos et al. 1989; Christin et al. 2004).<br />
• Corticoesteróides: Nos anfíbios, a produção de hormônios corticoesteróides, pelo eixo<br />
hipotalâmico-pituitário-inter-renal (sistema neuro-endócrino), tem um efeito inibitório no<br />
sistema imunológico. Segundo alguns estudos, a exposição a esses hormônios reduz o<br />
tamanho do timo, em Rana perezi, devido à perda de linfócitos corticais, além da<br />
diminuição no número de linfócitos circundantes. A rejeição de tumores é diminuída por<br />
corticoesterona e aldosterona em Rana pipiens e o tratamento com corticoesteróides<br />
causa disseminação de doenças através da infecção desta espécie com o fungo<br />
Mycobacterium marinum. O efeito desses hormônios in vitro é evidente: inibição da<br />
proliferação de linfócitos, diminuição da viabilidade de esplenócitos e timócitos e indução<br />
de apoptose nos linfócitos. A observação dos corticoesteróides é importante no sentido<br />
de que fatores ambientais, como tóxicos químicos e radiação ultravioleta, considerados<br />
estressores, levam a uma ativação crônica do eixo neuro-endócrino e uma conseqüente<br />
liberação desequilibrada desses hormônios imunossupressores, favorecendo a<br />
susceptibilidade dos animais às doenças (Rollins-Smith 2001).<br />
2.2 Outros casos<br />
A diminuição da camada de ozônio resulta em um aumento na quantidade de<br />
radiação ultravioleta que alcança o solo, particularmente em altitudes elevadas. A exposição<br />
à radiação UV-B,portanto, pode exceder os níveis para os quais existem mecanismos de<br />
proteção imunológica. Mamíferos expostos à quantidades sub-letais dessa radiação podem<br />
ter a função imune suprimida, incluindo os humanos. Os efeitos no sistema imunológico são<br />
expressos imediatamente ou ao longo de anos. Ratos expostos a relativamente baixos<br />
níveis de UV-B, prejudicam a sua habilidade de rejeitar tumores e de detectar antígenos, o<br />
que leva a uma maior predisposição à infecções por fungos, bactérias, vírus e parasitas na<br />
pele (Carey et al. 1999).<br />
Estudos de laboratório com espécies de roedores, mostraram que o sistema<br />
imunológico pode ser afetado por um grande número de poluentes ambientais. Em<br />
conseqüência ao contato com esses químicos, as respostas imunes dependentes do timo<br />
são suprimidas e essa supressão é particularmente evidente durante o período perinatal, ou<br />
seja, durante o desenvolvimento do sistema imune (Vos et al. 1989).<br />
A maior preocupação quanto aos efeitos da contaminação por químicos tem sido<br />
focada nos ecossistemas aquáticos. Alterações em certos parâmetros imunológicos após a<br />
exposição à poluentes químicos tem sido demonstrada tanto em condições experimentais<br />
quanto no campo (Vos et al. 1989).<br />
45
V Curso de Inverno<br />
3. Considerações Finais<br />
Diante das condições atuais do ambiente terrestre e a desenfreada marcha pelo<br />
desenvolvimento, é urgente e necessário compreendermos de que forma a vida, em todas<br />
as suas formas, é afetada por esse processo. O sistema imunológico dos organismos é<br />
altamente reativo às mudanças externas e um importante mediador da integridade dos<br />
indivíduos, por isso, esforços no sentido de nos aprofundarmos nesse estudo fisiológico nos<br />
trarão, indubitavelmente, contribuições sem precedentes para a preservação da vida.<br />
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Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
As Estratégias Comportamentais e Fisiológicas dos Animais<br />
Frente a Mudanças nas Condições Ambientais<br />
Lucas Francisco Ribeiro do Nascimento / Laura Haddad<br />
Laboratório de Tecidos Moles<br />
lribeiro_bio@yahoo.com.br<br />
Todo ser vivo necessita de um fornecimento contínuo de energia para realizar suas<br />
funções vitais. Nos vertebrados, o fornecimento de energia é garantido pela ingestão de<br />
alimento na forma de grandes moléculas, as quais são reduzidas a formas estruturalmente<br />
menores e mais simples no trato gastrintestinal, possibilitando seu transporte através de<br />
membranas celulares e, conseqüentemente, sua absorção e utilização nos processos<br />
metabólicos de conversão de energia.<br />
Toda a energia adquirida é geralmente usada nos processos metabólicos de<br />
manutenção, ou para crescimento e reprodução, ou perdida e eliminada, e esses<br />
componentes integram o orçamento energético (‘energy budget’) conforme a equação:<br />
Ein = Eperd + Eprod + Em,<br />
onde Ein é a energia ingerida na forma de alimento, Eperd é a soma da energia perdida, Eprod<br />
é a energia associada com a produção (crescimento e reprodução – produção de gametas)<br />
e Em representa a energia relacionada com o metabolismo de manutenção (Willmer et al.<br />
2000).<br />
A taxa de ingestão de alimentos varia com a massa corpórea e essa relação<br />
independe da dieta (Farlow 1976). Além disso, animais com baixas taxas metabólicas<br />
tendem a exibir menores taxas de ingestão, em contraposição a animais metabolicamente<br />
mais ativos. Outros fatores que influenciam a taxa de ingestão incluem os ciclos sazonais de<br />
crescimento, reprodução e acúmulo de estoques de gordura, os quais são intimamente<br />
relacionados a mudanças nas condições ambientais dados por variações no fotoperíodo,<br />
temperatura e disponibilidade de alimento. De acordo com o modelo apresentado por<br />
Speakman & Król (2005; figura 1), a taxa de ingestão alimentar e a transferência de energia<br />
nos animais, pode ser limitada centralmente pela capacidade do trato digestório de<br />
processar, assimilar e distribuir os nutrientes (A) ou perifericamente, pela capacidade dos<br />
tecidos de consumir a energia fornecida pelo trato digestório (B), pela capacidade de<br />
produção de calor (C) e ainda pela capacidade de excreção de produtos finais do<br />
metabolismo (D). Adicionalmente, a oferta de alimento no ambiente (E) representa um fator<br />
crítico, como evidenciam os vários exemplos de animais que apresentam longos períodos<br />
de inatividade e depressão metabólica sazonal em resposta à escassez de alimento. No<br />
conjunto, esses fatores atuam estabelecendo um ‘teto’ ou limite máximo da capacidade de<br />
transferência de energia nos animais, podendo agir diretamente ou, alternativamente,<br />
influenciar o investimento na captura e ingestão de alimento via sistema nervoso central.<br />
47
V Curso de Inverno<br />
Além disso, o cérebro pode também influenciar a taxa de ingestão devido a um sistema<br />
neuroendócrino que age independentemente do suprimento imediato de alimento.<br />
Figura 1 – Esquema do fluxo de energia em animais extraído de Speakman & Król (2005). As letras<br />
(A-E) e os triângulos indicam os possíveis pontos do sistema nos quais o fluxo pode ser limitado (ver<br />
explicações detalhadas no texto).<br />
O trato alimentar possui certa capacidade de estocagem, armazenando<br />
temporariamente o alimento ingerido. Adicionalmente, parte da energia proveniente dos<br />
nutrientes absorvidos e pode ser direcionada para dois tipos de estoques: estoques de<br />
curto-prazo, geralmente uma reserva de glicogênio no fígado e estoques de longo-prazo,<br />
geralmente lipídio depositado no tecido adiposo. Para o crescimento e reprodução, a<br />
energia poder ser retirada diretamente dos nutrientes ingeridos ou, excepcionalmente, da<br />
mobilização desses estoques energéticos no animal, além de ser usada nos processos<br />
celulares, termorregulação e contração muscular. Durante os processos metabólicos de<br />
conversão, parte da energia é perdida como calor ou eliminada como produto final de<br />
reações metabólicas como, por exemplo, compostos nitrogenados resultantes do<br />
catabolismo de proteínas. O restante pode ser eliminado na forma de compostos<br />
específicos, por exemplo, a perda de energia em secreções corpóreas. A limitação da<br />
48
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
capacidade funcional do trato digestório resulta numa ineficiência da utilização dos<br />
nutrientes, sendo a outra parte da energia ingerida perdida nas fezes.<br />
O custo energético associado com a ingestão, digestão, absorção e assimilação de<br />
nutrientes, comumente denominado ação dinâmica específica, resulta num aumento de<br />
30-40% do consumo de oxigênio basal ou de repouso. Em animais que se alimentam<br />
esporadicamente, como cobras boas e pítons, a ação dinâmica específica pode elevar a<br />
taxa metabólica a valores até 40 vezes maiores do que o observado na condição basal.<br />
Esse grande aumento resulta da regulação de processos que incluem um aumento da<br />
atividade de enzimas, transportadores e secreções gástricas e um rápido crescimento de<br />
órgãos que atrofiaram no jejum, como intestino, estômago, coração, fígado, pulmões e rins<br />
(Willmer et al. 2000). A atrofia desses órgãos no jejum, quando estão em desuso ou<br />
funcionando a taxas reduzidas, e a rápida recuperação de sua estrutura e capacidade<br />
funcional após a retomada da alimentação são exemplos notáveis de plasticidade fenotípica.<br />
O jejum prolongado ocorre naturalmente nos animais que se alimentam<br />
esporadicamente, em geral carnívoros restritos, ou quando algumas atividades competem<br />
com a alimentação ou forrageamento, como na reprodução de pingüins e focas ou durante o<br />
cuidado com os ovos e com as crias. Em outros casos, o jejum prolongado está associado a<br />
condições ambientais desfavoráveis, como o frio ou calor intenso, seca, hipóxia ou anóxia, e<br />
os animais exibem comportamentos compensatórios como a migração, em algumas<br />
espécies de aves e peixes, ou a dormência sazonal, em mamíferos hibernantes e anfíbios e<br />
répteis estivantes. Animais adaptados ao jejum exibem uma gama de respostas fisiológicas<br />
e comportamentais que incluem uma fase de preparação em antecipação ao fenômeno.<br />
Como um padrão geral, há formação de grandes reservas de água e nutrientes,<br />
principalmente lipídios, cuja contribuição para o período de jejum excede a de outros<br />
substratos. Durante o jejum, a perda evaporativa de água é minimizada por uma redução<br />
acentuada da ventilação e por barreiras químicas ou físicas no tegumento, como a secreção<br />
de muco ou a permanência em abrigos, os quais reduzem o grau de exposição da superfície<br />
corpórea ao ambiente. A geração de energia através do catabolismo de e proteínas é<br />
reduzida, e a redução da taxa metabólica basal é dada por uma diminuição das freqüências<br />
cardíaca e respiratória, da taxa de filtração renal e da atividade muscular (Storey 2002). Em<br />
contraposição, em animais migratórios, como certas aves, o jejum se dá sob condições<br />
extremas de exercício e está associado à formação de grandes reservas lipídicas e de<br />
proteínas, que são catabolizadas a taxas elevadas durante o período de vôo (McWilliams &<br />
Karasov 2001). Ambos os fenômenos envolvem ajustes fisiológicos semelhantes em<br />
resposta ao jejum, embora a dormência corresponda a uma versão em “câmara-lenta” e a<br />
migração ao modo “acelerado”. A pronunciada depressão metabólica que acompanha a<br />
dormência representa, portanto, uma alternativa que reduz a demanda energética,<br />
diminuindo o impacto das alterações do meio e prolongando o tempo de sobrevivência dos<br />
animais.<br />
49
V Curso de Inverno<br />
A sobrevivência dos animais que exibem dormência sazonal depende, em grande<br />
parte, de ajustes na estrutura e na função do trato gastrintestinal, em resposta a variações<br />
na demanda e suprimento energético. Tais ajustes podem ter sido favorecidos pela seleção<br />
natural, reduzindo o custo metabólico de manutenção no período em que o órgão encontrase<br />
em desuso. O intestino é o primeiro órgão a ser diretamente afetado por mudanças nas<br />
taxas de ingestão alimentar. Boa parte da energia ingerida é destinada à manutenção deste<br />
órgão, que apresenta um intenso metabolismo, dado principalmente pela atividade de<br />
transportadores e de síntese protéica, esta última para reposição de componentes celulares,<br />
que resulta em um elevado custo de manutenção do tecido, atingindo cerca de 20-30% do<br />
metabolismo basal em mamíferos (Tracy & Diamond 2005). Em mamíferos hibernantes se<br />
observa uma atrofia da musculatura do intestino e da camada mucosa durante a dormência,<br />
com diminuição pela metade do seu conteúdo protéico, causando um encurtamento da<br />
região das vilosidades. Embora as alterações observadas possam representar um potencial<br />
comprometimento da capacidade total de digestão e absorção do órgão, a arquitetura e a<br />
capacidade funcional do tecido por unidade de massa encontram-se bem preservadas ao<br />
final do período de dormência, inclusive se comparadas a de animais em plena atividade.<br />
Esta característica pode estar associada com a ocorrência de vários episódios de despertar<br />
durante o período total de dormência, típica de pequenos hibernantes, permitindo o<br />
reabastecimento de estoques celulares e a síntese de proteínas (Carey et al. 2003). Desse<br />
modo, apesar da atrofia, a preservação da capacidade funcional do tecido teria grande<br />
relevância na fase crítica que inicia na primavera, garantindo que o animal esteja apto a<br />
digerir e absorver nutrientes, ainda que parcialmente, logo após o despertar, quando os<br />
estoques corpóreos de energia encontram-se reduzidos e há um aumento do consumo de<br />
energia para o forrageamento e alimentação.<br />
Em contraste com mamíferos, a dormência sazonal em certos anfíbios e répteis é um<br />
processo contínuo ao longo de vários meses, não incluindo episódios de despertar, e a<br />
contribuição relativa do tecido intestinal para a economia energética na fase dormente pode<br />
ser maior que a observada em hibernantes típicos. Em lagartos teiú jovens, a depressão<br />
metabólica na dormência atinge 80% das taxas de repouso na fase de atividade (Souza et<br />
al. 2004) e é acompanhada de uma redução de 37% da massa do intestino médio. No<br />
retorno à atividade e retomada da alimentação, há um aumento de três vezes da massa total<br />
do órgão (Nascimento et al. 2007). Em sapos estivantes, a acentuada atrofia do intestino no<br />
período de dormência é seguida de uma recuperação total do órgão, em apenas 36 h após a<br />
realimentação, e ao término deste período o animal responde com um aumento de cinco<br />
vezes da massa intestinal (Cramp & Franklin 2005).<br />
A contribuição relativa de diferentes tecidos para a economia energética na<br />
depressão é variável. O intestino médio, o coração, o fígado e os rins perfazem apenas<br />
cerca de 1/8 da massa corpórea do rato, porém o custo energético de manutenção desses<br />
tecidos é cerca de 25% da taxa metabólica basal. Portanto, a atrofia e/ou redução da<br />
50
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
atividade destes órgãos na dormência sazonal resulta numa economia energética<br />
importante para os animais. Em contraste, o tecido muscular esquelético em condições de<br />
repouso consome energia a taxas muito reduzidas, porém, por ser o tecido mais abundante<br />
nos vertebrados, sua contribuição total para o metabolismo dos animais é também elevada e<br />
a diminuição da atividade contrátil em animais dormentes representa a principal fonte de<br />
economia energética no estado hipometabólico.<br />
A transição do estado ativo para o estado de dormência envolve uma depressão<br />
coordenada de ambos os processos de produção e de consumo de ATP, de forma a atingir<br />
um novo equilíbrio. A principal economia energética em diferentes grupos de animais é dada<br />
por uma acentuada diminuição das taxas de oxidação de substratos, de forma que as<br />
reservas internas tornam-se suficientes para a sobrevivência no jejum prolongado. Por outro<br />
lado, as taxas dos processos celulares que consomem energia encontram-se reduzidas,<br />
garantindo a manutenção do balanço energético no estado dormente e o pronto<br />
restabelecimento de funções vitais no despertar. A identidade dos processos celulares que<br />
constituem alvo da depressão e o grau de inibição de suas taxas têm sido objeto de intensa<br />
investigação. No rato, assim como em outros vertebrados, a atividade de síntese protéica e<br />
de transportadores de íons representa 48-66% do consumo total de ATP no estado basal ou<br />
de repouso (Figura 2) e estes processos constituem, portanto, importantes alvos de<br />
regulação no jejum e depressão metabólica.<br />
Os mecanismos envolvidos na regulação das taxas de processos celulares incluem<br />
expressão gênica diferencial de proteínas, alterações na taxa de síntese protéica por<br />
inibição da transcrição ou da etapa de tradução (RNAm ‘latente’), regulação do grau de<br />
fosforilação ou de defosforilação de proteínas, com conseqüente ativação ou inativação da<br />
molécula, aumento da meia-vida de proteínas por meio de uma diminuição da taxa de<br />
degradação das moléculas, redução do pH intra-celular com inibição da atividade de<br />
diversas enzimas, manutenção de gradientes iônicos com base na redução do vazamento<br />
de íons através das membranas (‘channel arrest’) e/ou de mudanças na composição lipídica<br />
da membrana mitocondrial levando a uma alteração do vazamento de prótons (Storey &<br />
Storey 2004). Estes mecanismos, no conjunto, promovem uma reorganização do<br />
metabolismo celular e uma inibição das taxas de funções vitais, permitindo a extensão do<br />
limite de tolerância dos animais ao jejum e a sua sobrevivência em condições desfavoráveis<br />
à alimentação.<br />
51
V Curso de Inverno<br />
Consumo de O2<br />
Metabolismo Basal<br />
Mitocondrial<br />
90%<br />
Oxidases<br />
10%<br />
ATP<br />
80%<br />
Vazamento de prótons<br />
20%<br />
Síntese<br />
protéica<br />
Na + K + ATPaseCa + ATPase<br />
19-28% 4-8%<br />
ActMio Uréia<br />
ATPase<br />
2-8% Gliconeo 3%<br />
7-10%<br />
mRNA, outros canais<br />
e bombas, etc.<br />
Figura 2- Esquema geral do consumo de oxigênio no metabolismo basal de ratos, dentro e fora da<br />
mitocôndria, e da proporção do consumo de ATP dada por diferentes processos do metabolismo<br />
celular (baseado em Rolfe & Brow 1997). Do oxigênio consumido pela mitocôndria, 80% é acoplado à<br />
síntese de ATP e 20% é perdido no vazamento de prótons através da membrana mitocondrial interna.<br />
As proporções representam a média do consumo de ATP em diferentes tecidos.<br />
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Revisado por Silvia Cristina Ribeiro de Souza<br />
53
V Curso de Inverno<br />
Fisiologia e Conservação das Caatingas<br />
Isabel Cristina Pereira<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
belcristina@gmail.com<br />
As caatingas formam um domínio morfoclimático exclusivo do Brasil (Ab’Saber 1974)<br />
ocupando uma área de aproximadamente 800.000 Km 2 , o correspondente a quase 10% do<br />
território nacional, caracterizado por índices pluviométricos baixos, ventos fortes e secos,<br />
além de temperaturas elevadas (Souza Reis 1976, Fernandes 1999), características típicas<br />
de um ambiente semi-árido, com longos períodos de estiagem. O nome Caatinga tem<br />
origem Tupi-Guarani e significa floresta branca, o qual descreve o aspecto do ambiente<br />
durante a estação seca (Peralta & Osuna 1952). Um traço marcante das caatingas é a perda<br />
parcial ou total de folhas durante a estação seca (figura 1). A vegetação é basicamente<br />
composta por cactáceas, bromeliáceas, euforbiáceas e leguminosas, encontradas<br />
praticamente em todo seu domínio. As obras do geógrafo Ab’Saber descrevem diferentes<br />
faces, rochas e solos com origens desiguais neste ambiente. Na sua grande maioria os<br />
solos são rasos e litólicos com afloramentos rochosos. Os solos deste domínio estão<br />
sofrendo processos intensos de desertificação ao longo dos anos, devido à substituição da<br />
vegetação natural por culturas, principalmente através de queimadas e mesmo sob essas<br />
condições apenas 2% do solo está protegido como unidade de conservação (Tabarelli et al.<br />
2000).<br />
Figura 1 – Aspecto da vegetação sem folhas durante a estação seca, em dezembro de 2006, três<br />
meses antes da primeira chuva da estação chuvosa.<br />
54
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
O'Connor e colaboradores da Universidade de Michigan mostraram dois estudos<br />
sobre o impacto que as alterações ambientais podem causar sobre répteis e anfíbios. Eles<br />
utilizaram modelos biofísicos para predizer a localização de fontes de água, alimentos e do<br />
animal no ambiente. Para isso, combinaram dados micrometeorológicos do ambiente que<br />
foram ligados pela massa e pela equação do balanço termal do organismo, com dados<br />
termais e fisiológicos dos animais. Eles mostraram que no lagarto Sceloperous merriami, do<br />
Texas (EUA) as mudanças climáticas podem influenciar diretamente no sucesso reprodutivo.<br />
Utilizando um extenso trabalho de campo, baseado no modelo de ciclagem de energia<br />
química e termal eles perceberam que o tempo de exposição do animal no ambiente para o<br />
forrageamento está diretamente ligado à previsão da temperatura corpórea do animal. Além<br />
disso, O'Conner e colaboradores estudaram o impacto das alterações de habitat na<br />
atividade e na dinâmica populacional de rãs Rana sylvatica. Neste estudo foi demonstrado<br />
que as rãs são ativas nos períodos chuvosos, mas sob condições de seca, procuram refúgio<br />
para evitar a desidratação excessiva. Dessa forma, esse trabalho sugere que mudanças<br />
ambientais bióticas ou abióticas podem resultar em estresse fisiológico, podendo alterar a<br />
taxa de mortalidade e a dinâmica de uma população (Tracy et al. 2006). Esses fatores<br />
poderiam de certa forma ocorrer durante o atual processo de transformação que é<br />
observado nas caatingas brasileiras e, consequentemente, modificando o cenário atual de<br />
distribuições de espécies nativas.<br />
A caatinga aparentemente pode ser vista como um ambiente inóspito para os<br />
anfíbios anuros. Contudo a anurofauna desta região é bem conhecida (figura 2), sendo<br />
encontradas pelo menos 48 espécies (Rodrigues 2003). Baseado nos ciclos anuais de seca<br />
e chuva, alguns autores têm sugerido que estas alterações sazonais determinam o modelo<br />
do período de atividade para a hepertofauna local, em particular para os anfíbios, que são<br />
estritamente dependentes das condições do ambiente (Abe 1995). Para ectotermos<br />
terrestres mudanças no ambiente e no perfil da temperatura corpórea podem alterar o<br />
balanço energético, devido a alterações no metabolismo energético e na digestão (Henen et<br />
al. 1998 e Somero 2002).<br />
Em certos grupos de animais a sobrevivência durante o período de estiagem está<br />
associada ao comportamento de estivação (Abe 1995, Storey & Storey 1990, Pinder et al.<br />
1992). Estivação pode ser entendida como um conjunto de estratégias adotadas para<br />
sobrevivência em condições áridas, mas esta também pode estar associada com a falta de<br />
alimentação e com altas temperaturas. Esta estratégia comportamental envolve processos<br />
bastante complexos que dependem de precisos ajustes metabólicos a fim de otimizar as<br />
funções do organismo durante os meses mais adversos. Essas mudanças incluem uma<br />
maior dependência do uso de lipídeos e uma baixa taxa de gluconeogênese de glicerol ou<br />
aminoácidos para manter o suplemento de glicose no organismo (Fuery et al. 1998).<br />
Particularmente em anfíbios, a estivação é também caracterizada por uma drástica redução<br />
na respiração cutânea com conseqüente redução da perda de água (Guppy & Withers 1999,<br />
55
V Curso de Inverno<br />
Abe 1995, Guppy et al. 1994, Hochachka & Guppy 1987).<br />
Figura 2 – Alguma das espécies de anfíbios encontradas nas Caatingas. As espécies acima<br />
representadas foram encontradas na região de Angicos/RN durante a estação chuvosa. (A)<br />
Pleurodema diplolistris, (B) Chaunus jimi, (C) Corynthomantis greeningi, (D) Proceratophys cristiceps,<br />
(E) Physalaemus e (F) Phyllomedusa nordestina.<br />
A estivação também é caracterizada pela redução da taxa metabólica, processo<br />
aparentemente desencadeado em resposta a diminuição da disponibilidade de recursos<br />
tróficos, hídricos ou a exposição à altas temperaturas que acompanham a seca, e parece<br />
contribuir para manutenção do balanço energético no organismo como um todo,<br />
promovendo sua sobrevivência durante esta fase (Pinder at al. 1992). Para certos grupos de<br />
animais, o hipometabolismo que acompanha a estivação é tipicamente caracterizado pela<br />
diminuição dos movimentos, da alimentação, dos batimentos cardíacos e da atividade<br />
56
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
cerebral, (Secor 2005, Storey & Storey 1990, Pinder et al. 1992), assim como parece estar<br />
diretamente associado a importantes modificações nos processos bioquímicos em diversos<br />
tecidos (Hochachka & Somero 1984). Um dos ajustes metabólicos mais visíveis está<br />
relacionado com o acúmulo prévio de reservas energéticas em adição à redução da taxa<br />
metabólica, o que parece sustentar não somente a fase depressiva, mas também a<br />
retomada da atividade durante a re-hidratação (Pinder et al. 1992, Storey & Storey 1990.<br />
No Brasil determinadas espécies de anuros que se mantêm em atividade durante os<br />
meses de estiagem, adotam estratégias alternativas para evitar a perda excessiva de água<br />
neste período. A rã Corythomantis greening, possui a pele da cabeça co-ossificada, esse<br />
animal pode se esconder em pequenos refúgios como fendas em árvores e utilizar sua<br />
cabeça como proteção, uma espécie de tampa, na entrada do esconderijo, o que lhe confere<br />
proteção e auxilia secundariamente na economia de água, ela não se enterra, mas fica entre<br />
fendas nas rochas em estado hipometabólico (Jared et al. 2004). Já os sapos Chaunus jimi<br />
mantém suas atividades mesmo durante a seca, fato que pode estar associado à camada<br />
de grânulos de cálcio (Toledo & Jared 1993), que aparentemente, só não estão presentes na<br />
região dorsal próxima à virilha, local por onde os animais obtêm água do ambiente. Além<br />
disso, estes animais usualmente procuram proteção em microhabitats úmidos e são ativos<br />
apenas à noite quando a temperatura corpórea e as perdas de água são diminuídas (Abe<br />
1995). Alguns outros sapos, como os da espécie Proceratophrys cristiceps, se enterram<br />
durante o período de seca a profundidades que podem atingir mais de 1 metro (Navas et al.<br />
2004); contudo, não se sabe se conhece até o momento a natureza metabólica de tal<br />
comportamento. O fato é que para o sucesso dessa estratégia algumas variáveis físicas no<br />
solo são importantes como a temperatura, a quantidade de água, a concentração de gases<br />
respiratórios e o tipo de solo (Pinder et al.1992). Além disso, os animais enterrados no solo<br />
podem passar por estados sazonais de hipóxia, com conseqüentes implicações<br />
metabólicas. Estes animais devem exibir ajustes comportamentais que favorecem o<br />
aumento na captação da água através da pele (uma vez que anfíbios não bebem água), o<br />
que leva ao aumento do volume da bexiga, habilidade esta desenvolvida para sobreviver em<br />
condições desfavoráveis, quase sempre associadas a formação de uma capa (casulo) para<br />
proteção contra perda de água.<br />
Do ponto de vista celular, alguns mecanismos podem ser identificados na transição<br />
do estado ativo para o hipometabólico em anuros. Rana temporaria, por exemplo, apresenta<br />
uma redução na atividade de enzimas do metabolismo energético no músculo esquelético,<br />
mostrando uma reorganização da produção energética durante a depressão metabólica (St-<br />
Pierre & Boutlier 2001). Já em Bufo paracnemis a diminuição da temperatura corpórea<br />
associada a uma série de respostas fisiológicas à hipóxia contribui para a manutenção da<br />
homeostase do organismo durante a seca ou quando há escassez de alimento (Bicego-<br />
Nahas et al. 2001). Adicionalmente, é reconhecida a capacidade dos anfíbios de tolerarem a<br />
desidratação, chegando estes a suportar uma taxa de até 30% de perda de água do corpo,<br />
57
V Curso de Inverno<br />
enquanto para mamíferos esta taxa chega, no máximo, a 12%. Para sapos do deserto que<br />
estivam, a taxa de desidratação pode chegar a 50%, como visto nos sapos do deserto do<br />
Arizona, que se alimentam por aproximadamente três meses e se enterram pelos outros<br />
nove meses do ano, período no qual eles precisam enfrentar altas taxas de desidratação.<br />
As mudanças ambientais podem afetar o desempenho fisiológico dos animais. O<br />
aquecimento global pode provocar uma mudança no seu desempenho. Ocorrendo o<br />
aumento na temperatura da Caatinga, e conseqüentemente uma diminuição na quantidade<br />
de água disponível, os animais precisarão passar mais tempo em um estado<br />
hipometabólico. Isto provocará uma maior demanda de reservas energéticas a serem<br />
adquiridas durante o período de chuva, todavia, o encurtamento deste período dificulta a<br />
estocagem dessas reservas.<br />
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Revisado por José Eduardo de Carvalho<br />
59
V Curso de Inverno<br />
Implicações Ecofisiológicas nos Mecanismos de Adaptação<br />
Celular a Estressores Ambientais<br />
Tiago Gabriel Correia<br />
Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos<br />
tigabriel@usp.br<br />
Os organismos aquáticos são constantemente afetados pelos fatores abióticos<br />
(físicos e químicos) do ecossistema ao qual pertencem, sendo assim, situações em que tais<br />
fatores tornam-se agentes estressores são inevitáveis. Diante deste quadro, quando os<br />
mecanismos fisiológicos para a manutenção da homeostase excedem sua capacidade<br />
reguladora, ocorre a manifestação de “respostas extremas” e estresse.<br />
A resposta celular ao estresse está relacionada à proteção do organismo contra<br />
danos provocados pela exposição a uma ampla variedade de potenciais agentes<br />
estressores, como por exemplo, disponibilidade de oxigênio, temperatura, luz ultravioleta,<br />
metais pesados e xenobióticos.<br />
As características estruturais e funcionais de um organismo, em geral, parecem ser<br />
especializadas para aumentar as chances de sucesso no ambiente em que se encontra.<br />
Durante a evolução, o metabolismo celular e conseqüentemente a estrutura e função dos<br />
componentes celulares se adaptaram às condições ambientais e celulares (Portner 2002).<br />
Organismos aeróbios utilizam o oxigênio para uma eficiente produção de energia sob<br />
a forma de ATP, mas durante os processos fisiológicos e metabólicos essenciais para as<br />
células ocorre o surgimento de moléculas altamente reativas chamadas de radicais livres, ou<br />
espécies reativas de oxigênio (ERO), por exemplo, o O2 - e OH - .<br />
O estresse oxidativo (EO) ocorre em circunstâncias nas quais os radicais livres<br />
causam danos às células. Esta situação se manifesta quando surge um desequilíbrio entre o<br />
aumento de radicais livres e as defesas antioxidantes, de maneira que os primeiros sejam<br />
predominantes. Um dos principais mecanismos de lesão nas células é a lipoperoxidação, ou<br />
seja, a oxidação da camada lipídica da membrana celular; além disso, o EO pode gerar<br />
danos as proteínas e ao DNA, provocando diversas alterações na função celular e no<br />
organismo como um todo.<br />
As ERO estão sempre sendo produzidas em pequenas quantidades durante o<br />
metabolismo aeróbio normal, cerca de 2-3%, e é importante destacar que todas as células<br />
apresentam mecanismos para defender-se contra estas moléculas, tais mecanismos de<br />
defesa celular são conhecidos como defesas antioxidantes (Gille & Sigler, 1995). As defesas<br />
antioxidantes podem ser enzimáticas, destacando-se as seguintes enzimas: Catalase (CT),<br />
Superoxido dismutase (SOD) e a Glutationa peroxidase (GPX); e em defesas não<br />
enzimáticas (vitamias A, C, E, β caroteno, entre outras) (Schneider & Oliveira 2004).<br />
Eventos de estresse oxidativo ocorrem quando a molécula de O2 recebe um elétron,<br />
dando origem ao ânion superóxido (O2 - ), que por sua vez, pode-se ligar a dois átomos de<br />
60
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
hidrogênio (H), dando origem ao peróxido de hidrogênio H2O2 (dismutação), esta reação é<br />
catalisada pela enzima SOD, enquanto que a CT e a GPX são as enzimas que eliminam as<br />
moléculas de H2O2, evitando dessa forma o aumento de radicais hidroxil OH - (YU 1994).<br />
A exposição a xenobióticos pode resultar na diminuição da capacidade do organismo<br />
em manter suas defesas antioxidantes em perfeito funcionamento, o que acarreta em<br />
estresse oxidativo (Sohal et al. 2002). Eventos desta natureza tem sido o cerne de muitos<br />
estudos toxicológicos com organismos aquáticos, pois efeitos podem ser observados nos<br />
processos reprodutivos de muitas espécies, tais como peixes e invertebrados marinhos, e<br />
conseqüentemente, perturbações sobre a estrutura populacional e trófica das comunidades<br />
aquáticas (Livingstone et al. 1992).<br />
Além das enzimas antioxidantes, as células possuem outros mecanismos de<br />
proteção à sua integridade contra estressores tanto naturais como antrópicos. Da mesma<br />
forma que as enzimas antioxidantes, o sistema enzimático P450, as proteínas de choque<br />
térmico (do inglês Heat Shock Proteins, ou HSPs) e o complexo MXR, podem ser utilizados<br />
como biomarcadores para uma ampla variedade de agentes estressores.<br />
O conjunto de proteínas conhecidas como MXR (mecanismo de resistência múltipla a<br />
xenobióticos), ou também conhecido como glicoproteína-P (Pgp), são proteínas de<br />
membrana que transportam ativamente xenobióticos e substâncias tóxicas para o meio<br />
extracelular e impedem que estas se acumulem no interior da célula (Endicott & Ling 1989).<br />
Estas proteínas têm sido encontradas desde microorganismos, a plantas e animais (Higgins<br />
1992); sua importância para os organismos aquáticos tem sido observada pelo seu potencial<br />
em proteger contra danos no núcleo e evitar efeitos negativos sobre a divisão celular<br />
durante o desenvolvimento embrionário (Toomey & Epel 1993). Estas proteínas são<br />
passíveis de ser induzidas por poluentes, o que permite sua utilização como biomarcador<br />
em programas de monitoramento ambiental.<br />
A nível celular, todos os organismos respondem ao estresse com o aumento na<br />
síntese de proteínas de baixo peso molecular, chamadas de proteínas de estresse (HSPs).<br />
Estas proteínas foram observadas pela primeira vez em células de Drosophila melanogaster<br />
expostas a altas temperaturas e ficaram conhecidas como proteínas de choque térmico.<br />
Funcionalmente, atuam como chaperonas e auxiliam a manter a estrutura de outras<br />
proteínas celulares, ajudando no enovelamento, dês-enovelamento e transporte, além de<br />
impedirem que proteínas malformadas se acumulem e possam ser nocivas.<br />
As HSPs (chaperonas) também estão envolvidas no transporte de proteínas para<br />
dentro de compartimentos da célula (organelas, núcleo) garantindo dessa forma que a<br />
conformação apropriada seja mantida (Cohler et al., 1996). O papel destas proteínas é<br />
fornecer proteção, e sua rápida expressão (síntese) está correlacionada a enfrentar eventos<br />
de estresse, por exemplo, térmico, como também de se recuperar deste tipo de estresse.<br />
(Portner 2001). As HSPs estão subdivididas de acordo com seu peso molecular:<br />
HSP90,HSP70, HSP58, HSP20-30 e 8-kDa.<br />
61
V Curso de Inverno<br />
Atualmente sabe-se, que uma ampla variedade de estressores pode induzir o<br />
aumento na síntese destas proteínas, mas além das HSPs, as metalotioneínas podem ser<br />
incluídas como proteínas cuja síntese aumenta na presença de contaminantes metálicos<br />
(Pedersen et al. 1997).<br />
A presença de xenobióticos impõe sobre as células a necessidade de se ativar<br />
mecanismos de desintoxicação, neste caso, as respostas biológicas dependem da<br />
conversão do xenobiótico em uma substância (metabólito) inofensiva, ou com menor<br />
toxicidade (biotransformação) sempre com a finalidade primordial de eliminação do<br />
metabólito resultante. Entretanto, nem sempre os xenobióticos tornam-se inativos, pois<br />
algumas vezes sua toxicidade se eleva (bioativação) podendo-se observar danos ao DNA<br />
(Franco & Franco 2003).<br />
As reações de biotransformação são catalisadas por enzimas distribuídas em todo<br />
organismo. Entre este grupo de enzimas, existem as enzimas microssomais, que se<br />
localizam predominantemente na superfície do retículo endoplasmático liso e constituem as<br />
monoxigenases de função mista, ou o sistema citocromo P450, que possui importantes<br />
funções metabólicas, além de ser aquele que primeiro apreende e inativa vários<br />
xenobióticos no organismo (Franco & Franco 2003).<br />
Os efeitos causados por poluentes e pelas mudanças ambientais afetam muitos<br />
ecossistemas terrestres e marinhos. Estes efeitos, quando persistentes, estendem-se além<br />
das conseqüências de estresse celular e acabam alcançando conseqüências fisiológicas e<br />
ecológicas muitas vezes irreversíveis. A análise de diferentes biomarcadores celulares,<br />
apresentados pelos organismos como resposta a agentes estressores, constitui um elo<br />
importante para a conservação das espécies neste período de profundas mudanças<br />
impostas pelo homem sobre toda a biosfera.<br />
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Revisado por Renata Guimarães Moreira<br />
63
V Curso de Inverno<br />
Efeito do pH em organismos aquáticos<br />
Marina Granado e Sá<br />
Laboratório de Fisiologia de Crustáceos<br />
marinagranado@usp.br<br />
A vida surgiu no planeta há mais ou menos 3,5 bilhões de anos. Desde então, o<br />
ambiente modifica a biosfera. Em função das condições de temperatura e pressão que<br />
passaram a ocorrer na Terra, houve um acúmulo de água em sua superfície, nos estados<br />
líquido e sólido, formando-se assim o ciclo hidrológico.<br />
A importância da água para a vida terrestre é inegável. Não há ser vivo sobre a face<br />
da Terra que possa prescindir de sua existência e sobreviver.<br />
Mesmo assim, outros<br />
aspectos desta preciosidade também podem representar sérios riscos à vida (CETESB).<br />
O desenvolvimento das cidades sem um correto planejamento ambiental resulta em<br />
prejuízos significativos para a sociedade. Uma das conseqüências do crescimento urbano<br />
foi o acréscimo da poluição doméstica e industrial, criando condições ambientais<br />
inadequadas e propiciando o desenvolvimento de doenças, poluição do ar e sonora,<br />
aumento da temperatura, oscilações de pH das águas e contaminação da água subterrânea,<br />
entre outros problemas.<br />
Atualmente, muitos fatores interferem nesse ciclo, comprometendo a qualidade das<br />
águas urbanas. O desenvolvimento e o crescimento das cidades geram o acréscimo da<br />
poluição doméstica e industrial, propiciando o aumento de sedimentos e material sólido,<br />
bem como a contaminação de mananciais e das águas subterrâneas.<br />
As águas residuais transportam uma quantidade apreciável de materiais poluentes<br />
que se não forem retirados podem prejudicar a qualidade das águas dos rios,<br />
comprometendo não só toda a fauna e flora destes meios, mas também, todas as utilizações<br />
que são dadas a estes meios, como por exemplo, a pesca, balneabilidade, navegação e<br />
geração de energia, dentre outros.<br />
O Brasil tem grande potencial para aqüicultura, principalmente por deter recursos<br />
hídricos abundantes, ictiofauna privilegiada e praticamente inexplorada. Também apresenta<br />
um clima favorável ao crescimento da maioria das espécies (Valenti 2000). A condição do<br />
meio em que os organismos vivem é de fundamental importância para que ocorra um bom<br />
desenvolvimento e sobrevivência de peixes cultivados, de modo que deve existir sempre<br />
uma preocupação com a qualidade da água nos tanques de criação e em ambiente aberto<br />
(Tavares 1994).<br />
No cultivo de peixes existem muitos fatores que alteram a qualidade da água, como a<br />
presença excessiva de fitoplâncton, plantas aquáticas e algas, as quais causam redução da<br />
concentração de oxigênio e aumento de CO2 e conseqüente redução de pH (Pavanelli et al<br />
2002). Sendo assim, é de grande importância o estudo da tolerância e sensibilidade dos<br />
animais aos diferentes pHs da água, assim como observar o desempenho dos peixes nestas<br />
condições.<br />
64
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
A sigla pH vem do latim “pondus hidrogenii”, significando peso do hidrogênio. A<br />
variação do pH (potencial hidrogênio iônico), definido como logaritmo decimal do inverso da<br />
concentração de íons livre de H + , comanda as inúmeras reações químicas das águas,<br />
caracterizando o grau de acidez ou de alcalinidade, ou seja, indicando as relações entre<br />
esses íons de H + com os íons de oxidrilos. Se houver equivalência entre eles, a água é<br />
caracterizada como neutra, mas se houver predominância de íons H + , é ácida e caso<br />
contrário, com o predomínio dos íons oxidrilos, a água é considerada alcalina.<br />
A variação de pH comanda reações químicas da água, caracterizando grau de acidez ou<br />
alcalinidade. Sabe-se que águas com pH inferior a 8.5 (não 7) contêm ácidos fracos e<br />
ácidos minerais fortes. Águas doces alternam-se com pH entre 4 e 8 e as estuarinas de 6 e<br />
8. O pH da água pura é 7 e varia no sentido contrário da temperatura (quanto maior a<br />
temperatura da água, menor pH). Os limites de pH para proteção da vida aquática variam<br />
entre 6 e 8, mas peixes e outros organismos aquáticos podem sobreviver a valores iguais ou<br />
menores que pH 5. Quando o pH se torna ácido, certas substâncias ou elementos metálicos<br />
tornam-se tóxicos, como o metilmercúrio, formado a partir do íon Hg e CH4, em pH restrito,<br />
entre 5 e 6, e logicamente na presença de certas matérias orgânicas.<br />
Por influir em diversos equilíbrios químicos que ocorrem naturalmente ou em<br />
processos unitários de tratamento de águas, o pH é um parâmetro importante em muitos<br />
estudos no campo do saneamento ambiental, já que possui efeito direto sobre o<br />
metabolismo e os processos fisiológicos de peixes e outros organismos aquáticos. A faixa<br />
de tolerância de pH para os peixes está compreendida entre 4 e 9, enquanto que o índice<br />
ideal é entre 6.5 e 8.0 (Wurts & Durborow 1992).<br />
Alterações no pH da água pode afetar o funcionamento branquial, o que prejudica o<br />
equilíbrio osmótico e a respiração. Valores extremos de pH prejudicam o crescimento e a<br />
reprodução dos animais, e até mesmo, podem causar mortalidade massiva dos sistemas<br />
aquáticos, principalmente nas fases iniciais de desenvolvimento (Kubitza 2003). Por outro<br />
lado, o pH também é importante porque afeta a toxicidade de vários poluentes comuns<br />
(como amônia) e metais pesados (como alumínio).<br />
Nas espécies nativas do Brasil pouco se sabe sobre a tolerância às variações na qualidade<br />
da água. O pacu, Piaractus mesopatamicus, encontrado na América do Sul, com<br />
distribuição entre a região Amazônica e bacia Paraná-Paraguai (Severi 1991) é uma espécie<br />
tolerante às variações nas características físico-químicas da água. Habita a bacia<br />
Amazônica e é encontrado em lagos e planícies aluviais que estão muitas vezes hipóxicos<br />
ou mesmo anóxicos. Estes ambientes também estão sujeitos a grandes variações no<br />
conteúdo de CO2/pH devido decomposição de consideráveis quantias de matéria orgânica<br />
em altas temperaturas (Rantin & Kalinin 1996). Segundo Florido (2002) tanto tambaqui<br />
(Colossoma macropomum) quanto o pacu apresentam adaptações morfo-fisiológicas para<br />
suportar águas ácidas, principalmente na época da seca.<br />
65
V Curso de Inverno<br />
Muitos trabalhos confirmam que os efeitos do pH da água em peixes depende da<br />
idade e dos estágios de desenvolvimento; até mesmo a curto prazo a variação do pH pode<br />
influenciar negativamente a população de peixes (Lloyd & Jordan 1964). A tolerância e a<br />
sensibilidade ao pH difere entre as espécies (Daye e Garside, 1997) carpas (Cyprymus<br />
carpio), por exemplo, em pH 8.0 apresentam 11% de mortalidade. Em pH 5.0 ocorrem<br />
mortalidade de 32%, diferente do que foi observado em alevinos de pacu. Com relação à<br />
sobrevivência em águas alcalinas, certas espécies sobrevivem, e inclusive se reproduze, em<br />
locais com pH próximo de 10.0 (Danulat & Selcuk 1992). Quando teleósteos são expostos à<br />
água alcalina, há imediata redução na excreção da amônia, de modo que sua concentração<br />
no plasma sofre aumento (Wilkie & Wood 1996). As brânquias também são as mais<br />
afetadas quando há eventual stress alcalino. Wilkie e Wood (1996), em experimentos com<br />
salmonideos, demonstraram que pH alcalino da água causa sérios distúrbios na excreção e<br />
regulação interna da amônia, balanço ácido-básico e regulação iônica.<br />
Dessa forma, as restrições de faixas de pH são estabelecidas para as diversas<br />
classes de águas naturais, tanto de acordo com a legislação federal (Resolução Conama,<br />
20/06/1986), como pela legislação do Estado de São Paulo (Decreto 8468/76). Os critérios<br />
de proteção à vida aquática fixam o pH entre 6 e 9.<br />
Nos ecossistemas formados nos tratamentos biológicos de esgotos, o pH é também<br />
uma condição que influi decisivamente no processo. Normalmente, a condição de pH que<br />
corresponde à formação de um ecossistema mais diversificado e a um tratamento mais<br />
estável é a de neutralidade, tanto em meios aeróbios como nos anaeróbios. Nos reatores<br />
anaeróbios, a acidificação do meio é acusada pelo decréscimo do pH do lodo, indicando<br />
situação de desequilíbrio. A produção de ácidos orgânicos voláteis pelas bactérias<br />
acidificadoras e a não utilização destes últimos pelas metanobactérias, é uma situação de<br />
desequilíbrio que pode ocorrer devido a diversas causas.<br />
O decréscimo no valor do pH que a princípio funciona como indicador de<br />
desequilíbrio, passa a ser causa se não for corrigido a tempo. É possível que alguns<br />
efluentes industriais possam ser tratados biologicamente em seus valores naturais de pH,<br />
por exemplo, em torno de 5,0. Nesta condição, o meio talvez não permita uma grande<br />
diversificação hidrobiológica, mas pode acontecer que os grupos mais resistentes, algumas<br />
bactérias e fungos, principalmente, tornem possível a manutenção de um tratamento<br />
eficiente e estável. Mas, em geral, procede-se à neutralização prévia do pH dos efluentes<br />
industriais antes de serem submetidos ao tratamento biológico.<br />
Nas estações de tratamento de águas, são várias as unidades cujo controle envolve<br />
as determinações de pH. A coagulação e a floculação que a água sofre inicialmente é um<br />
processo unitário dependente do pH; existe uma condição denominada “pH ótimo” de<br />
floculação que corresponde à situação em que as partículas coloidais apresentam menor<br />
quantidade de carga eletrostática superficial.<br />
66
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
A desinfecção pelo cloro é outro processo dependente do pH. Em meio ácido, a<br />
dissociação do ácido hipocloroso formando hipoclorito é menor, sendo o processo mais<br />
eficiente. A própria distribuição da água final é afetada pelo pH. Sabe-se que as águas<br />
ácidas são corrosivas, ao passo que as alcalinas são incrustantes. Por isso o pH da água<br />
final deve ser controlado, para que os carbonatos presentes sejam equilibrados e não ocorra<br />
nenhum dos dois efeitos indesejados mencionados. O pH é padrão de potabilidade,<br />
devendo as águas para abastecimento público apresentar valores entre 6,5 e 8,5, de acordo<br />
com a Portaria 1469 do Ministério da Saúde.<br />
No tratamento físico-químico de efluentes industriais muitos são os exemplos de<br />
reações dependentes do pH como por exemplo:a precipitação química de metais pesados<br />
ocorre em pH elevado juntamente coma oxidação química de cianeto e o arraste de amônia<br />
convertida à forma gasosa, já a redução de cromo hexavalente à forma trivalente ocorre em<br />
pH baixo; como também a oxidação química de fenóis ea quebra de emulsões oleosas<br />
mediante acidificação; etc. Desta forma, o pH é um parâmetro importante no controle dos<br />
processos físico-químicos de tratamento de efluentes industriais.<br />
Constitui-se também em padrão de emissão de esgotos e de efluentes líquidos<br />
industriais, tanto pela legislação federal quanto pela estadual. Na legislação do Estado de<br />
São Paulo, estabelece-se faixa de pH entre 5 e 9 para o lançamento direto nos corpos<br />
receptores (artigo 18 do Decreto 8486/76) e entre 6 e 10 para o lançamento na rede pública<br />
seguida de estação de tratamento de esgotos (artigo 19-A do Decreto 8486/76).<br />
Águas piscosas devem apresentar pH acima de 6, porém por volta de 9, iniciam-se<br />
os limites letais para várias espécies. Já as águas tidas como ácidas fazem com que peixes<br />
apresentem aumento da freqüência respiratória, sinal evidente da baixa disponibilidade de<br />
O2, selecionando e fazendo prevalecer espécies persistentes. Variações bruscas de pH<br />
ocasionam morte de larvas de camarão, girinos e alevinos. Em pH 8.3 se observa maior<br />
mortandade de girinos/rãs de até 97% do que em pH 7.2 (10%) e que em águas de pH<br />
menor que 4.2 anormalidades se desenvolver em girinos.<br />
Em sistemas aquáticos o pH varia ao longo do dia e nas diferentes camadas de<br />
liquido, prevalecendo nas superfícies valores elevados. Durante as primeiras horas do dia<br />
os valores de pH são menores, tornando-se mais elevados entre as horas de maior<br />
incidência de sol. Durante a noite o pH volta a declinar. O pH e por extensão a temperatura<br />
e oxigênio dissolvido (o oxigênio proveniente da atmosfera se dissolve nas águas naturais,<br />
devido a diferença de pressão parcial. Este mecanismo é regido pela Lei de Henry, que<br />
define a concentração de saturação de um gás na água, em função da temperatura) estão<br />
intimamente ligados a toxicidade da amônia, ou seja, em pH elevado uma grande<br />
porcentagem da amônia total se converte na forma mais tóxica (não ionizada).<br />
Em pH baixo, menos que 1% da amônia total esta sob a forma não ionizada (NH3);<br />
já com pH 8 cerca de 5 a 9% e, em pH 9 de 30 a 50% estando a 80-90% de amônia<br />
ionizada quando em pH 10. A amônia (NH4) se torna cada vez mais tóxica quanto mais alto<br />
67
V Curso de Inverno<br />
o pH, porém menos estável e mais solúvel. Já a amônia (NH3), (mais tóxica), embora se<br />
formando em baixa concentração, em pH mais baixo é facilmente volatilizável, mas aumenta<br />
sua toxicidade à medida que aumenta o pH (alcalino), podendo então tornar-se altamente<br />
tóxico.<br />
Figura 1: Índices de pH onde ocorre a morte de algumas espécies de peixes mais conhecidas<br />
e estudadas, de crustáceos e moluscos presentes na fauna brasileira.<br />
Figura 2<br />
Em níveis de pH muito altos ou baixos, as enzimas sofrem inativação devido às<br />
inúmeras interações entre as cargas dos aminoácidos de uma proteína, situação que altera<br />
enormemente a estrutura protéica, portanto, a correta alcalinização ou a habilidade de<br />
tamponar um sistema é extremamente importante no processo de oxidação do amoníaco<br />
formado em sistemas aquáticos.<br />
68
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
Figura 3: Escala de pH onde são pontuados alguns produtos de conhecimento público e<br />
concomitantemente demonstra os efeitos do pH nos organismos aquáticos, onde afeta principalmente<br />
a reprodução dos animais e culmina na morte desses animais.<br />
Peixes expostos à condições de alta alcalinidade (pH>9.5) sofrem severos distúrbios<br />
fisiológicos, incluindo alcalose do sangue, inibição do influxo de Na, desrregulação da<br />
excreção de amônia e redução da velocidade de natação (Wright & Wood 1985) e estes<br />
mesmos autores constataram que o peixe teleósteo Oreochromis alcalicus grahami pode<br />
estar bem adaptado em águas com pH 10, mesmo sendo uma situação atípica. Este peixe<br />
teleósteo é muito estudado em experimentos envolvendo pH, pois é uma espécie que<br />
apresenta alta sobrevivência em ambientes extremamente alcalinos e o estudo em pauta<br />
apresentou que este animal apresenta dificuldades fisiológicas quando habita ambientes de<br />
pH neutro (7.0 e de concentração total de CO2 menor que 1mmol l-1) (Wright et al 1990).<br />
Diversos autores classificam a capacidade de natação como um dos melhores indicadores<br />
de overall a natação, e dessa forma constataram que o peixe em estudo apresentou<br />
dificuldades de natação e redução de velocidade quando transferido para ambiente neutro.<br />
Além dessa redução, houve aumento de acidose metabólica e distúrbios iônicos e de<br />
volume dos fluidos do animal. Mesmo assim consideraram que o animal é capaz de<br />
sobreviver neste tipo de ambiente, mesmo não apresentando seu melhor desempenho.<br />
A acidificação dos fluidos é relacionada com a alteração das taxas de CO2 e de<br />
HCO3, fazendo com que a concentração de íons H seja ampliada em ate 1000 vezes e<br />
concomitantemente à esse aumento há um aumento dos níveis de cloreto. Quando os<br />
animais foram transferidos para um ambiente neutro houve inversão de todos os níveis dos<br />
íons citados anteriormente.<br />
69
V Curso de Inverno<br />
Dessa maneira os autores desenvolveram 2 hipóteses para o aumento do volume<br />
sanguíneo do animal e possivelmente para o volume do fluido extracelular: 1) os níveis das<br />
proteínas plasmáticas reduzem e 2) aparente bloated in águas neutras. As mudanças no<br />
status ácido-base do plasma e em sua composição iônica pode ter afetado as funções<br />
metabólicas dos animais já que essa espécie excreta nitrogênio como uréia (Randall et al<br />
1989) e quando exposto ao ambiente de pH 7.0 a excreção de uréia é completamente<br />
inibida, provavelmente pela inibição do ciclo ornitina-uréia onde há produção de uréia<br />
enquanto que a redução plasmática de HCO3 pode ser resultante da inibição da<br />
metabolismo hepático de uréia (Wood et al 1989; Randall et al 1989).<br />
Já em tilápia a excreção é predominantemente através da amônia, mas durante<br />
exposição alcalina, há aumento da excreção de uréia sem alteração da concentração de<br />
HCO3 plasmático, porém com aumento da concentração de amônia no plasma. Essa<br />
resposta é encontrada em alguns teleósteos amoniatélicos, os quais são capazes de<br />
aumentar ligeiramente a produção de uréia via uricólise em resposta aos elevados níveis de<br />
amônia no organismo do animal (Wood et al 1989; Randall et al 1989).<br />
Em relação à alteração do influxo de Na ainda é pouco estudado, porém o pH ótimo<br />
para tomada de Na em trutas varia de 7.0 a 8.0 e dessa forma há redução do fluxo quando<br />
os animais são expostos em águas ácidas ou alcalinas. Durante os experimentos os autores<br />
encontraram padrão similar na tilápia, porém a ordem de magnitude do influxo de Na é<br />
relativamente menor do que o encontrado nos teleósteos (Olson & Fromm 1971; Wright &<br />
Wood 1985; Randall & Wright 1986).<br />
Dessa maneira fica claro que com variações de pH que os organismos que habitam<br />
ambiente aquático (água doce, salobra ou marinha) sofrem ocorre uma cascata de reações<br />
fisiológicas que podem culminar na morte desses animais, uma vez que alterações durante<br />
curto intervalo de tempo são suportáveis pelos animais, já que muitos deles são<br />
reguladores; no entanto, quando estes organismos são submetidos à ambientes extremos<br />
ocorrer primeiramente uma regulação, porém com longos intervalos de contato com baixos<br />
ou altos pH´s ocorrem alterações que podem ou não ser permanentes e dessa maneira a<br />
seleção natural acaba atuando nas espécies expostas.<br />
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Revisado por Flavia Pinheiro Zanotto<br />
71
V Curso de Inverno<br />
Biomarcadores e sua aplicação na avaliação da<br />
exposição a poluentes<br />
Amanda de Moraes Narcizo<br />
Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos<br />
amnarcizo@yahoo.com.br<br />
Considerando as conseqüências do processo de modernização, industrialização, e<br />
mudanças na agricultura nacional a partir da década de 1950, o aumento na emissão de<br />
poluentes na atmosfera, degradação do ambiente pela utilização de recursos naturais e<br />
espaço, e o aumento de novos produtos químicos disponibilizados para o controle de<br />
pragas, doenças, plantas daninhas e aumento de produtividade na agricultura, fez com que<br />
o ecossistema aquático fosse um dos mais afetados por estes processos, pois todos estes<br />
despejos chegam aos corpos d`água quer seja pelas chuvas, escoação ou lixiviação. Isso<br />
tudo associado à falta de tratamento de resíduos líquidos, leva a má qualidade da água,<br />
diminuição da diversidade biológica e proliferação excessiva de espécies indesejáveis<br />
(Amorim 2003; Jonsson e Castro 2005; Rossi <strong>2008</strong>).<br />
Diante deste quadro a sociedade moderna tem se preocupado com a<br />
sustentabilidade ambiental. O conceito de sustentabilidade, associado à necessidade de<br />
preservar os recursos ambientais, refere-se a um tipo de desenvolvimento social capaz de<br />
atender às necessidades da geração atual sem comprometer os recursos necessários para<br />
as gerações futuras. Assim, à medida que o ambiente é reconhecido como de extrema<br />
importância para a saúde da coletividade, o conceito de desenvolvimento sustentável se<br />
torna cada vez mais presente no contexto das decisões políticas de saúde ambiental<br />
(Jonsson e Castro 2005).<br />
A saúde ambiental tem como um de seus objetivos a prevenção dos danos à saúde,<br />
à vida e às populações (terrestres e aquáticas). Por isso, processos como o de<br />
monitoramento ambiental, utilizando-se bioindicadores e biomarcadores, propiciam a<br />
implantação de medidas de prevenção e controle, adequadas a cada ambiente e população,<br />
pois muitos destes biomarcadores podem detectar precocemente uma exposição de efeito<br />
adverso e risco a saúde (Amorim 2003).<br />
Desta forma serão apresentados conceitos e concepções que abrangem o uso de<br />
parâmetros biológicos com a finalidade de avaliar a exposição às substâncias químicas e<br />
estimar o risco das populações expostas.<br />
1. Bioindicadores e biomarcadores<br />
Bioindicadores constituem-se em organismos ou uma população de organismos que<br />
nos permitem inferir a qualidade do ambiente ou parte dele através de estudos de alterações<br />
fisiológicas, comportamentais ou de sobrevivência. Já o termo biomarcador é utilizado para<br />
as alterações que são perceptíveis em níveis inferiores de organização biológica, tais como<br />
em componentes bioquímicos ou estruturais celulares (Jonsson e Castro 2005).<br />
72
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
Segundo Amorim (2003) biomarcadores compreendem todas as substâncias ou seu<br />
produto de biotransformação ou qualquer alteração química precoce, que possa ser<br />
determinado em fluídos biológicos, como forma de avaliação da intensidade de exposição<br />
ou risco a saúde, sendo valiosos indicadores de disfunções orgânicas, alterações clínicas e<br />
toxicidade patológica.<br />
Existem alguns cuidados que devem ser tomados ao se escolher um biomarcador, e<br />
esses cuidados fazem parte do processo de validação do biomarcador, desta forma, é<br />
preciso estabelecer sua relação quantitativa e qualitativa com a exposição em função da<br />
substância química e objeto selecionado.<br />
Por isso é desejável que o biomarcador apresente as seguintes características:<br />
• Sua quantificação deve: refletir a interação (qualitativa ou quantitativa) do organismo<br />
com o agente químico (poluente); ter conhecida e apropriada sensibilidade e<br />
especificidade para a interação e ser reprodutível qualitativamente e<br />
quantitativamente.<br />
• Sua medição analítica tem que apresentar exatidão e precisão adequadas.<br />
• É necessário que esteja contido em um meio biológico acessível de análise,<br />
considerando os processos de manutenção da integridade da amostra entre a coleta<br />
e o procedimento analítico, e de preferência não ser invasivo.<br />
• É necessário que se tenha conhecimento dos valores normais do indicador em<br />
populações não expostas ao agente químico de interesse, levando em consideração<br />
as variações intra e inter individuais.<br />
Os biomarcadores podem ser utilizados para várias finalidades dependendo do<br />
objetivo que se tem no estudo e do tipo de exposição. Por exemplo, podem ser utilizados<br />
para avaliar a exposição detectando-se a quantidade absorvida (dose interna); avaliar o<br />
efeito das substâncias químicas, como um produto metabolito, ausência ou presença de um<br />
produto do processo metabólico; e avaliar a suscetibilidade individual; Em relação ao tipo de<br />
exposição apresentam a vantagem de poderem ser utilizados independentemente da forma<br />
de exposição, podendo ser através da dieta, por contato ou respiração (Amorim 2003).<br />
2. Tipos de biomarcadores<br />
Segundo a World Health Organization (1993) apud Amorim (2003), os biomarcadores<br />
podem ser classificados em três tipos independentemente do objetivo do trabalho e da<br />
aplicação do biomarcador:<br />
• Biomarcadores de Exposição: podem ser utilizados para confirmar e avaliar a<br />
exposição individual ou de um grupo a uma substância em particular,<br />
estabelecendo uma ligação entre a exposição externa e a quantificação da<br />
exposição interna.<br />
73
V Curso de Inverno<br />
• Biomarcadores de Efeito: podem ser utilizados para detectar as alterações de<br />
efeitos adversos ou detectar antecipadamente alterações de risco à saúde<br />
decorrentes da exposição e absorção da substância química. Dessa forma, a<br />
ligação dos biomarcadores entre exposição e efeitos contribui para a<br />
definição da relação dose-resposta.<br />
• Biomarcadores de Suscetibilidade: permitem elucidar o grau de resposta da<br />
exposição provocada nos indivíduos, dada a sua validação anteriormente<br />
A mesma classificação foi dada por Walker e Thompson (1991) quando afirmaram<br />
que os biomarcadores podem ser definidos como uma resposta aos poluentes ambientais<br />
que pode ser mensurada indicando a presença, o efeito, e em alguns casos, o grau de<br />
contaminação.<br />
Para os biomarcadores de exposição entende-se que a dose externa se refere à<br />
concentração do agente químico presente no ambiente em contato com o organismo e a<br />
dose interna corresponde ao nível do agente químico que esta biologicamente disponível.<br />
Assim, a distribuição da substância no organismo pode ser traçada através de vários níveis<br />
biológicos, como tecidos e células, até seu alvo definitivo, como mostra a figura 1.<br />
EXPOSIÇÃO EXTERNA (A)<br />
MEDIÇÃO DA DOSE INTERNA<br />
QUANTIDADE ABSORVIDA<br />
QUANTIDADE ALCANÇA O TE<strong>CI</strong>DO<br />
Quantidade Alcança Célula<br />
Quantidade Alcança Macromolécula<br />
Quantidade Alcança Sítio<br />
Crítico<br />
Dose<br />
BiologicamenteEfet<br />
iva (B)<br />
Figura 1: Distribuição das substâncias químicas de uma exposição em um organismo. Ligação com<br />
os efeitos aumenta em direção a (B) e relação com a exposição aumenta em direção a (A).<br />
(adaptado de Amorim, 2003).<br />
Biomarcadores de efeito são potencialmente as alterações bioquímicas que refletem<br />
a interação da substância química com os receptores biológicos, são muito utilizados para<br />
confirmação de diagnósticos clínicos e prevenção de doenças (Figura 2).<br />
74
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
A.Q.<br />
Exposição<br />
Dose<br />
Interna<br />
Dose<br />
Biologicamente<br />
Efetiva<br />
Efeito<br />
Biológico<br />
Precoce<br />
Alteração<br />
Estrutural<br />
Funcional<br />
Doença<br />
SUSCETIBILIDADE<br />
Figura 2: Diagrama esquemático dos processos de progressão a doenças por exposição a<br />
agentes químicos (A.Q.) indicando biomarcadores em pontos de prevenção e suscetibilidade<br />
entre as caixas azuis (adaptado de Amorim, 2003).<br />
Alguns pesquisadores classificam os biomarcadores como de exposição ou de efeito,<br />
apresentando cada um o mesmo conceito apresentado pelos autores anteriores, ou seja, um<br />
biomarcador de exposição permite detectar ou quantificar a presença de um xenobionte,<br />
seus metabólitos ou sua associação a componentes celulares ou moleculares do organismo.<br />
A atividade de enzimas antioxidantes e a concentração de metalotioneínas são exemplos<br />
deste tipo de biomarcador. Biomarcadores evidenciam algum efeito tóxico associado à<br />
exposição do organismo ao poluente, como por exemplo, a peroxidação de lipídios ou o<br />
dano de DNA (Domingos 2006; Rossi <strong>2008</strong>).<br />
Dentro das classificações apresentadas podem ser feitas subclassificações:<br />
• Como os biomarcadores bioquímicos: exemplo, atividade enzimática e que<br />
dependendo do órgão estudado pode ter nomes referentes ao mesmo como,<br />
biomarcadores de nefrotoxicidade, biomarcadores de hepatoxicidade,<br />
biomarcadores de neurotoxicidade, podendo ser classificados como de exposição<br />
ou de efeito dependendo do fator de avaliação.<br />
• Biomarcador genético: exemplo, ensaio de micronúcleo.<br />
Considerados biomarcadores de efeito.<br />
• Biomarcador morfológico: exemplo, histopatologia.<br />
Considerado biomarcador de exposição (Amorim 2003; Rossi <strong>2008</strong>).<br />
3. Exemplos de biomarcadores<br />
A alteração da atividade metabólica de um composto em um organismo e/ou em uma<br />
célula se dá por sua transformação metabólica. O metabolismo inclui vários e diferentes<br />
sistemas enzimáticos que atuam em diversos tipos de substratos. Muitas das enzimas que<br />
compõem estes sistemas têm em comum a função de converter estruturas tóxicas para<br />
menos tóxicas, e converter químicos lipofílicos em estruturas hidrofílicas, que são mais<br />
rapidamente excretadas.<br />
O metabolismo envolve dois tipos de reações bioquímicas conhecidas como<br />
catabólicas e anabólicas. Reações catabólicas envolvem os processos de oxidação,<br />
redução e hidrólise, sendo estes produtos freqüentemente mais reativos e, portanto algumas<br />
vezes mais tóxicos ou carcinogênicos que a substância original, enquanto as reações<br />
anabólicas envolvem conjugação que geram produtos inativos embora haja exceções (Rossi<br />
<strong>2008</strong>).<br />
75
V Curso de Inverno<br />
3.1. Biomarcadores Bioquímicos<br />
3.1.1. Glutationa S-transferase<br />
A enzima Glutationa S-transferase (GST) é uma enzima que tem função em reações<br />
anabólicas sendo responsável por conjugar componentes eletrofílicos ou componentes<br />
vindos do processo de catabolismo como a glutationa reduzida (GSH) (Van Der Oost et al.<br />
2002).<br />
A GSH é formada pelos aminoácidos glicina, cisteína e glutamato, e atua como cofator<br />
para a GST, devido a este fato a atividade da GST está indiretamente associada ao<br />
estresse oxidativo, pois a utilização deste co-fator também tem relação com a degradação<br />
do peróxido de hidrogênio (H2O2) através da atuação da enzima Glutationa peroxidase<br />
(GPx).<br />
Portanto, a GST pode ser utilizada como biomarcador para taxas anabólicas e pela<br />
sua relação indireta com os processos de estresse oxidativo exige outros biomarcadores<br />
para este fim (Van Der Oost et al. 2002; Rossi, <strong>2008</strong>).<br />
3.1.2. Catalase<br />
A catalase é uma enzima intracelular, encontrada no peroxissomo, e tem a função de<br />
remover o peróxido de hidrogênio (H2O2), metabolizando-o em oxigênio (O2) e água (H2O) e<br />
por isso, é considerada um importante biomarcador (Van Der Oost et al. 2002).<br />
O peróxido de hidrogênio é uma espécie reativa de oxigênio (ERO), que assim como<br />
os radicais livres são formados durante o metabolismo oxidativo e de xenobiontes, no<br />
entanto, sob condições normais nosso organismo possui enzimas antioxidantes capazes de<br />
reparar 99% dos danos causados pela oxidação. Quando há um desequilíbrio entre a<br />
produção das espécies reativas de oxigênio e sua retirada pelo sistema de defesa<br />
antioxidante, permitindo um excesso das ERO, ocorre então, um processo denominado<br />
estresse oxidativo (Rossi <strong>2008</strong>).<br />
O estresse oxidativo é uma condição celular ou fisiológica de elevada concentração<br />
de ERO que causa danos às estruturas celulares, inativações de enzimas, peroxidação<br />
lipídica (LPO), danos de DNA, até a morte celular (Vancini et al. 2005).<br />
Muitos contaminantes ambientais (ou seus metabólitos) têm sido relatados por<br />
causar estresse oxidativo, portanto, a detecção da atividade de enzimas antioxidantes e a<br />
quantificação de componentes não enzimáticos são biomarcadores adequados para estas<br />
situações sobre os efeitos da oxidação e suas respostas adaptativas (Van Der Oost et al.<br />
2002).<br />
3.1.3. Acetilcolinesterase<br />
Existem dois tipos de colinesterases (ChE), as acetilcolinesterases (AChE) que são<br />
as de alta afinidade pela acetilcolina e as butirilcolinesterases (BChE) aquelas de baixa<br />
afinidade pela acetilcolina (Walker e Thompson 1991; Sturm et al. 2000).<br />
76
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
As ChE são importantes nas funções neurais, tendo as AChEs função na<br />
desativação da acetilcolina na fenda sináptica, evitando o estímulo contínuo do neurônio, o<br />
que é vital para o funcionamento normal do sistema sensorial e motor. Em peixes somente<br />
AChE foi encontrada no cérebro, enquanto no músculo ambas são encontradas. A AChE é<br />
um biomarcador muito utilizado para diagnosticar a exposição a tóxicos anticolinesterásicos<br />
em peixes (Payne et al. 1996; Sturm et al. 2000; Rossi <strong>2008</strong>).<br />
3.1.4. Vitelogenina em peixes<br />
A vitelogenina (Vg) é uma lipoglicofosfoproteína, produzida no fígado sob a ação do<br />
hormônio estradiol, é essencial para formação de oócitos e para o desenvolvimento do<br />
embrião.<br />
O estradiol é produzido nos ovários de fêmeas sob a ação do hormônio folículo<br />
estimulante (FSH) (Baldisserotto 2002), por isso, em condições normais do ambiente<br />
somente as fêmeas apresentam Vg, entretanto, machos e animais imaturos sexualmente<br />
possuem toda a maquinaria genética para sintetizar a Vg, desta forma a detecção da Vg<br />
neste grupo de animais é comumente utilizada como biomarcador de esteróides<br />
xenobióticos.<br />
3.1.5. Micronúcleo Písceo<br />
Micronúcleos são caracterizados pela condensação de fragmentos cromossômicos<br />
acêntricos ou por cromossomos inteiros que não foram incluídos no núcleo principal durante<br />
a anáfase. Assim, o teste para a avaliação do micronúcleo é uma ferramenta qualitativa<br />
importante nos estudos da genética toxicológica, pois evidencia danos no DNA e quebra<br />
cromossômica, sendo muito utilizados como um sensível método para examinar a exposição<br />
de peixes a agentes genotóxicos (Al-Sabti 1991; Rossi <strong>2008</strong>).<br />
3.2. Histologia de Brânquias<br />
Através da análise morfológica e de efeitos em estruturas celulares e tecidual é<br />
possível identificar o potencial tóxico de um contaminante sobre um organismo. Uma análise<br />
histológica pode revelar a sensibilidade do organismo em relação ao agente químico, o<br />
tempo de exposição, quais os órgãos mais afetados, além de permitir a diferenciação de<br />
lesões causadas por doenças daquelas causadas por outros fatores ambientais como a<br />
exposição a poluentes (Domingos 2006; Rossi <strong>2008</strong>).<br />
Sendo assim, a histologia de brânquias é comumente utilizada como um importante<br />
biomarcador em peixes, já que essas estruturas estão em contato direto e constante com a<br />
água do meio, por desempenhar a função de respiração. Para a realização das trocas<br />
gasosas há a exposição de um sistema de capilares à água, o que torna o tecido branquial<br />
extremamente vulnerável em relação ao meio ambiente, como partículas de sedimentos,<br />
parasitas e xenobióticos (Rossi <strong>2008</strong>).<br />
77
V Curso de Inverno<br />
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Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
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universalmente encontradas em cordados e artrópodes. Em ambos os filos, os esteróides<br />
são requerimentos absolutos para o desenvolvimento, manutenção da homeostase e<br />
reprodução (Young et al. 2005).<br />
Em vertebrados adultos, três tipos de hormônios esteróides que afetam a reprodução<br />
(os estrógenos, andrógenos e progestágenos) são produzidos em momentos apropriados<br />
em células especializadas na produção dos mesmos, nas gônadas e no córtex adrenal de<br />
ambos os sexos. Estas células expressam uma série de enzimas esteroidogênicas que<br />
modificam o colesterol em seus esteróides derivados. Os esteróides sexuais, assim como os<br />
outros hormônios esteróides, ligam-se a receptores intracelulares e modificam a expressão<br />
de genes específicos.<br />
Os esteróides sexuais agem diretamente no desenvolvimento de células<br />
germinativas e nas glândulas acessórios e órgãos, assim como atua na modificação do<br />
comportamento, para assegurar que a reprodução ocorra. Embora muitos esteróides sejam<br />
quimicamente idênticos na maioria das classes de vertebrados, seu papel pode diferir em<br />
funções especializadas.<br />
1. Controle Endócrino da Reprodução em Vertebrados<br />
O controle endócrino da reprodução nos vertebrados responde ao estímulo sensorial<br />
de várias partes do corpo que agem sobre o eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, culminando<br />
com a síntese dos esteróides gonadais.<br />
Nos mamíferos, a produção e secreção dos esteróides gonadais tanto em machos<br />
quanto em fêmeas são promovidas pelo hormônio folículo estimulante (FSH) e pelo<br />
hormônio luteinizante (LH) que são sintetizados na hipófise anterior ou adenohipófise. De<br />
uma forma geral o controle da reprodução poderia ser sintetizado da seguinte forma: nas<br />
fêmeas adultas, estímulos sensoriais captados por diversas partes do corpo estimulam o<br />
hipotálamo a produzir o hormônio liberador de gonadotropinas (GnRH). Este por sua vez<br />
estimula a adenohipófise a secretar o hormônio folículo estimulante (FSH). O FSH chega<br />
aos ovários, promovendo a síntese de 17β-estradiol, convertendo o colesterol à<br />
testosterona, que é transportada à camada granulosa, onde é aromatizada a 17β-estradiol<br />
pela enzima aromatase, também sob influência do FSH. Os altos níveis de 17β-estradiol,<br />
característico do período que antecede a ovulação, ativa o hipotálamo e a adenohipófise a<br />
produzir o hormônio luteinizante (LH). O FSH acelera a maturação dos folículos em<br />
desenvolvimento onde apenas um folículo completa sua maturação e, sob influência do LH,<br />
79
V Curso de Inverno<br />
se rompe da superfície do ovário, liberando o ovo. O folículo rompido transforma-se num<br />
tecido endócrino temporário, o corpo lúteo, que secreta estrógeno e progesterona. A<br />
progesterona estimula a secreção do líquido endometrial, preparando-o para a implantação<br />
de um ovo fertilizado. Na ausência de fertilização e implantação do ovo, o corpo lúteo<br />
degenera-se e a secreção de estrógenos e progesterona diminui precipitando a<br />
menstruação. Se o ovo fertilizado for implantado no endométrio, a placenta em<br />
desenvolvimento começa a produzir gonadotropina coriônica, cuja ação é similar ao LH, que<br />
induz novo crescimento do corpo lúteo ativo, de modo que a secreção de estrógeno e<br />
progesterona continua. O FSH e LH hipofisário não são secretados novamente até o parto<br />
(Randall et al. 2000).<br />
Em peixes, o controle endócrino do ciclo reprodutivo em fêmeas é modulado por<br />
fatores ambientais que agem sobre o hipotálamo, conduzindo à secreção de GnRH, e sobre<br />
a hipófise, resultando na produção e liberação de GtHs (gonadotropinas) na corrente<br />
sanguínea. Estas, por sua vez, chegam aos ovários, promovendo a síntese dos esteróides<br />
gonadais (Peter & Yu 1997). As funções dos esteróides gonadais são diferenciadas quando<br />
comparado aos mamíferos e serão discutidas a seguir.<br />
Em peixes imaturos, os hormônios gonadais geralmente estimulam a diferenciação<br />
sexual e nos maduros, estimulam a gametogênese e a desova ou espermiação<br />
(Baldisserotto 2002).<br />
O 17β-estradiol age no fígado, estimulando a síntese de vitelogenina, lipoproteína<br />
que promove crescimento no oócito e incorporação de vitelo. A entrada de vitelogenina no<br />
oócito ocorre por micropinocitose e é também dependente da presença de FSH.<br />
Um aumento nos níveis plasmáticos de 17β-estradiol e testosterona ocorre na fase<br />
de vitelogênese. Estes níveis elevados induzem a produção de LH (Kobayashi et al.1989). O<br />
LH estimula a teca do folículo a produzir 17α-hidroxiprogesterona, que é transportada à<br />
camada granulosa e convertida a 17α-20β dihidroxiprogesterona conhecido como o<br />
hormônio indutor da maturação final e da ovulação na maioria dos teleósteos.<br />
Em machos adultos, o controle da síntese de esteróides é semelhante ao das<br />
fêmeas. FSH e LH estimulam a esteroidogênese testicular e espermatogênese, sendo os<br />
andrógenos testosterona e 11-ceto-testosterona produzidos pelas células de Leydig e<br />
células de Sertoli nos testículos. Ambas gonadotropinas estimulam além da produção de<br />
andrógenos, os progestágenos, principalmente a 17α-20β-dihidroxiprogesterona, sendo esta<br />
última produzida em maior quantidade pela ação da LH (Cyr & Eales 1996).<br />
2. Esteroidogênese e Principais Enzimas Envolvidas<br />
Todos os esteróides de vertebrados são sintetizados a partir do colesterol, uma<br />
molécula de 27 carbonos. O colesterol é sintetizado a partir do acetato (acetil CoA)<br />
produzido pela glicólise ou via oxidação dos ácidos graxos.<br />
80
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
A síntese do núcleo esteróide a partir do acetato é chamada esteroidogênese e<br />
envolve uma série de reações catalíticas enzimáticas. O colesterol sintetizado do acetato<br />
pode ser usado diretamente na biossíntese de vários hormônios esteróides, mas não pode<br />
ser degradado de novo em acetato. A maioria do colesterol é sintetizada no fígado e é<br />
liberado no sangue como lipoproteínas. Córtex adrenal, ovários e testículos também podem<br />
sintetizar colesterol, mas utilizam preferencialmente complexos lipoprotéicos absorvidos pelo<br />
intestino ou sintetizados no fígado como fonte de colesterol (Norris 1997).<br />
Para a produção das diferentes classes de esteróides gonadais, o colesterol passa<br />
por subseqüentes conversões pelas três enzimas pertencente à superfamília do citocromo<br />
P450. A primeira enzima, citocromo P450scc (P450 side-chain cleavage) está localizada na<br />
membrana mitocondrial interna e converte o colesterol em pregnenolona. A produção de<br />
pregnenolona pela P450scc é limitada à disponibilidade do colesterol. Uma proteína<br />
transportadora é necessária para transportar o colesterol através da membrana mitocondrial<br />
onde se encontra a enzima P450scc. Em mamíferos, essa proteína foi isolada pela primeira<br />
vez em 1994 por Clark et al. (1994) e foi chamada de proteína regulatória esteroidogênica<br />
aguda ou StAR (Young et al. 2005).<br />
O transporte do colesterol para a membrana mitocondrial é um pré-requisito para<br />
esteroidogênese gonadal e adrenal para a produção do esteróide basal, a pregnenolona. A<br />
pregnenolona por sua vez, serve como substrato para a enzima citocromo P450 17-<br />
hydroxylase (P450C17). A P450C17 possui duas atividades enzimáticas: catalisa a hidroxilação<br />
da pregnenolona para 17α-hidroxipregnenolona e a subsequente remoção de dois resíduos<br />
de carbono, originando o andrógeno dehidroepiandrosterone (com uma dupla ligação entre<br />
o carbono 5 e 6) ou androstenediona (com uma dupla ligação entre o carbono 4 e 5) (Young<br />
et al. 2005).<br />
Pregnene-, androstene-, e estrene-derivativos podem ser modificados mais adiante<br />
em outros esteróides por uma série de hidroxilases, redutases, oxiredutases e isomerases.<br />
As enzimas 3β-hidroxiesteróide desidrogenase (3βHSD) e 17β-hidroxiesteróide<br />
desidrogenase (17βHSD) merecem atenção por promover importantes oxiredutases na<br />
síntese de esteróides bioativos (Young et al. 2005).<br />
Em vertebrados mamíferos, a testosterona é o hormônio efetivo nas respostas<br />
reprodutivas em machos enquanto que 17β-estradiol, um subproduto da testosterona<br />
convertida pela enzima P450 aromatase (P450arom), é o hormônio efetivo em fêmeas. A<br />
progesterona é um produto intermediário na síntese de testosterona e 17β-estradiol e<br />
também possui ação efetiva em fêmeas na fase lútea do ciclo ovariano.<br />
Em fêmeas de peixes, a enzima 20β-hidroxiesteróide desidrogenase (20βHSD) leva<br />
à formação de 17α-hidroxiprogesterona para 17α20β-dihidroxy-4-pregnen-3-one (17α20βP),<br />
o esteróide indutor da maturação (MIS). Esse é o hormônio efetivo da maturação final dos<br />
oócitos e ovulação em peixes. Gônadas de machos e de algumas fêmeas de teleósteos<br />
81
V Curso de Inverno<br />
também produzem um único e potente andrógeno chamado 11-cetotestosterona (11-KT)<br />
sendo este efetivo na espermatogênese. A síntese desse composto é feita pela enzima<br />
citocromo P450 11β-hidroxilase (11β-HSD) a partir da testosterona (Young et al. 2005).<br />
3. Mecanismos de Ação dos Esteróides<br />
Esteróides podem passar através de membranas celulares e interagir com<br />
receptores intracelulares. Estes receptores geralmente estão no citosol de células alvo para<br />
corticosteróides e no núcleo para estrógenos, andrógenos e progestágenos. O modelo<br />
original da ação dos hormônios esteróides foi proposto por Elwood Jensen em 1970.<br />
Embora o modelo precise de uma revisão considerada, as características básicas são ainda<br />
válidas (Norris 1997).<br />
Estrógenos e andrógenos são capazes de produzir efeitos celulares de mecanismos<br />
similares. Uma vez que os esteróides entram em suas células alvo, eles difundem-se para o<br />
núcleo onde se ligam a receptores específicos. Uma vez ligado ao receptor, conduz fatores<br />
de transcrição, ligando-se em elementos específicos de resposta hormonal (hormoneresponsive<br />
elements HREs) ou em sítios no DNA e inicia uma nova síntese de RNAm.<br />
Uma vez que o receptor é ocupado, ele é fosforilado formando um dímero antes de se ligar<br />
ao HRE associado com a região promotora do gene. Uma segunda fosforilação ocorre<br />
depois de se ligar ao DNA. A síntese resultante de novas proteínas pelas células alvo traz<br />
eventos clássicos associados com a ação desses hormônios (Norris 1997).<br />
4. Disruptores Endócrinos<br />
As substâncias que poluem os ecossistemas e de alguma forma alteram o sistema<br />
endócrino dos animais são conhecidos como Endocrine Disrupting Chemicals<br />
(substâncias disruptoras ou desreguladoras endócrinas).<br />
Os termos estrógenos ambientais, disruptores endócrinos, moduladores endócrinos,<br />
hormônios ambientais, xenoestrógenos, fitoestrógenos, também servem para descrever<br />
sintéticos químicos e componentes de plantas e animais naturais que podem afetar o<br />
sistema endócrino (mensageiros bioquímicos ou sistema de comunicação das glândulas,<br />
hormônios e receptores celulares que controlam o funcionamento interno do corpo) de<br />
vários organismos. Muitos dos efeitos causados por essas substâncias têm sido associados<br />
com o desenvolvimento, reprodução e outros problemas de saúde ao longo da vida dos<br />
animais (Toppari et al. 1996).<br />
As águas continentais encontram-se impactadas por uma grande variedade de<br />
poluentes cujas fontes principais são os efluentes líquidos de origem doméstica e industrial<br />
que muitas vezes não recebem o tratamento adequado. A enorme diversidade e<br />
complexidade destes poluentes resultam em efeitos biológicos diversos. Tais efeitos e<br />
conseqüências estão relacionados com a composição química de cada poluente despejado<br />
no ambiente aquático e da interação entre ambos (Zagatto & Bertoletti 2006).<br />
82
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
As vastas categorias químicas dos poluentes aquáticos se expressam de maneiras<br />
diferentes dependendo do tipo de ambiente (dulcícola, marinho, estuarino), e além disso, os<br />
efluentes aquáticos contêm mais de um contaminante, que pode resultar em interações<br />
toxicológicas com possíveis efeitos sinérgicos, antagônicos, de potenciação ou de adição<br />
(Mozeto & Zagato 2006).<br />
O exato modelo de ação de todos os disruptores endócrinos não é bem<br />
compreendido, mas sabe-se que esses componentes podem alterar as funções hormonais<br />
em diferentes níveis:<br />
1) Mimetizando total ou parcialmente os hormônios naturais pela ligação aos receptores ou<br />
influenciando padrões de sinalização celular.<br />
2) Bloqueando, impedindo e alterando a ligação dos hormônios em seus receptores ou<br />
influenciando padrões de sinalização celular.<br />
3) Alterando a produção e a quebra de hormônios naturais.<br />
4) Modificando a produção e função de receptores hormonais.<br />
Os disruptores endócrinos são no mínimo parcialmente responsáveis por disfunções<br />
reprodutivas e desenvolvimento das populações selvagens, e ambos vertebrados e<br />
invertebrados são suscetíveis à ação dos disruptores endócrinos. Em peixes, esses incluem<br />
mudanças hormonais (esteróides e hormônios da tireóide), desenvolvimento gonadal<br />
anormal, baixa viabilidade dos gametas, alterações em algumas atividades enzimáticas<br />
(aromatase) e concentrações de proteínas (vitelogenina, proteínas da zona radiata).<br />
Disrupções na reprodução de peixes podem ser ocasionadas pelo estrógeno<br />
ambiental por promover uma grande síntese de receptores de estrógenos (ER). O gene para<br />
a produção de ER está presente nos machos, mas geralmente não são estimulados devido<br />
à quase completa ausência do estradiol endógeno. A síntese de ambas as moléculas como<br />
a vitelogenina e proteína da zona radiata, exclusivas em fêmeas na fase reprodutiva, foram<br />
detectadas em machos expostos aos xenoestrógenos, assim como também foi notada uma<br />
redução no crescimento testicular. Essas substâncias não têm função em machos, e as<br />
conseqüências diretas da síntese de vitelogenina e proteína da zona radiata podem<br />
promover redução de cálcio na escama e esqueleto, hipertrofia do fígado e dano no rim<br />
(Goksǿyr et al. 2003). Eles também representam uma substancial perda de energia para os<br />
peixes machos, afetando o desempenho reprodutivo. Em fêmeas, o efeito da exposição aos<br />
xenoestrógenos pode ser menos sério, embora haja relatos de maturação prematura em<br />
linguados (Solea solea), que pode ter ocorrido em decorrência da exposição ao estrógeno<br />
com a produção inapropriada de gonadotropinas, causando desenvolvimento precoce do<br />
ovário (Goksǿyr et al. 2003).<br />
Estrógenos e seus análogos sintéticos são capazes de agir como agonistas<br />
completos dos ER, e essas substâncias podem ser ainda mais potentes do que os<br />
hormônios naturais, mas o estrogênio ambiental contaminante é somente agonista parcial e<br />
são centenas a dez mil vezes menos potente do que os hormônios naturais. Isso é devido<br />
83
V Curso de Inverno<br />
ao fato de que se assemelham parcialmente com a estrutura tridimensional dos estrógenos<br />
verdadeiros e então se encaixa imperfeitamente ao receptor. Poucas moléculas mimetizante<br />
de estrógenos realmente engatilham a cascata dos efeitos estrogênicos, na qual<br />
normalmente resulta da exposição estrogênica e então os efeitos globais são alterados.<br />
Entretanto, contaminantes ambientais antiestrogênicos podem agir como<br />
antagonistas fracos nos ER, se ligando irreversivelmente, bloqueando a ação natural dos<br />
agonistas estrogênicos, enfraquecendo a ação do hormônio.<br />
Duas formas diferentes de ER têm sido identificadas em mamíferos e possivelmente<br />
mais formas ocorrem em outras espécies de peixes. Um ER testicular possui maior<br />
afinidade do que o ER do fígado para estrógenos e xenoestrógenos, mostrando que tecidos<br />
diferentes podem então ter diferente suscetibilidade à disrupção endócrina.<br />
Os possíveis efeitos dos disruptores endócrinos em alguns vertebrados marinhos,<br />
como os predadores de topo de cadeia trópica, representam uma preocupação séria,<br />
principalmente em áreas como o Mar Mediterrâneo, caracterizado pelo alto impacto de<br />
contaminantes e troca limitada de água. Neste ambiente peculiar, os predadores de topo de<br />
cadeia trófica, como peixes pelágicos e mamíferos marinhos tendem a acumular grandes<br />
quantidades de contaminantes organoclorados e metais pesados. Os níveis desses<br />
compostos no golfinho riscado (Stenella coeruleoalba) são da ordem de magnitude de 1-2<br />
maior do que nos golfinhos da mesma espécie do Atlântico e do Pacífico. Isso demonstra<br />
que espécies importantes para o ecossistema aquático como os predadores de topo estão<br />
potencialmente “em risco” devido aos disruptores endócrinos contaminantes (Goksǿyr et al.<br />
2003).<br />
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Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
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Zagato AP & Bertoletti E (2006). Ecotoxicologia Aquática: Princípios e Aplicações. São Carlos. Rima.<br />
Revisado por Renata Guimarães Moreira<br />
85
V Curso de Inverno<br />
Efeitos do represamento sobre a fisiologia de organismos aquáticos<br />
com ênfase na reprodução de peixes teleósteos.<br />
Renato Massaaki Honji<br />
Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos<br />
honjijp@usp.br<br />
A Terra possui em torno de 510x10 6 Km 2 de superfície terrestre, dos quais 310x10 6<br />
Km 2 são cobertos pelos oceanos, além disso, uma pequena fração dessa superfície (se<br />
comparado com os oceanos) é coberta por rios, lagos, calota e gelo polar. Com base nesses<br />
dados, aproximadamente 71% da superfície da Terra são cobertos por água e, neste<br />
sentido, o ambiente aquático oferece assim mais espaço habitável se comparado com o<br />
ambiente terrestre (Moyle & Cech 2003).<br />
Quando nos referimos aos habitantes encontrados no ambiente aquático, lembramos<br />
rapidamente dos teleósteos (peixes ósseos). Os peixes em geral são os representantes<br />
mais numerosos e diversos entre os vertebrados, contando com aproximadamente 50%<br />
deste grupo (Figura 1a). São conhecidas cerca de 28000 espécies viventes de peixes que<br />
ocupam os mais diversos ambientes aquáticos, ocorrendo desde as altas altitudes até as<br />
fossas submarinas dos oceanos. Em relação à sua distribuição, 58% são marinhos, 41%<br />
são dulciaqüícolas e 1% vivem entre esses dois ambientes, ou seja, essas espécies<br />
realizam migrações entre o ambiente marinho e o ambiente de água doce (Figura 1b). Além<br />
da importância como fonte alternativa de alimento, os peixes também constituem uma rica<br />
fonte de material biológico que podem ser utilizados como modelos para entender os<br />
controles dos processos biológicos (Wooton 1990; Nelson 1994; King 1995; Blázquez et al.<br />
1998; Moyle & Cech 2003).<br />
Desta maneira, com esse grande número de espécies existentes, a constantes<br />
descobertas de novas espécies e a distribuição mundial, esse sucesso do grupo é atribuído<br />
a uma série de adaptações fisiológicas, anatômicas, morfológicas, comportamentais entre<br />
outras características relacionadas aos processos de respiração, nutrição, osmorregulação,<br />
flutuação, percepção sensorial e reprodução (Hoar 1969; Wooton 1990; Vazzoler 1996;<br />
Moyle & Cech 2003; Zavala-Camin 2004). Em relação à reprodução, os peixes são ótimos<br />
exemplos da complexidade reprodutiva, com as diferentes formas anatômicas observadas<br />
nas gônadas entre as espécies; as diferentes formas de liberação dos gametas para a<br />
fertilização externa (como por exemplo, a desova total ou a desova parcelada);<br />
desenvolvimento de diferentes órgãos especializados para a fertilização interna (gonopódio,<br />
por exemplo); as diferentes formas de cuidado com a prole (guardadores e não guardadores<br />
de ovos e larvas); além das diferentes formas de construções de ninhos e a migração<br />
reprodutiva, seja na forma de “piracema” ou daquelas longas migrações entre os mares e os<br />
rios e vice-versa, que são acompanhadas por grandes alterações osmóticas e metabólicas<br />
86
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
(Wooton 1990; Vazzoler 1996; Hochachka & Somero 2002; Moyle & Cech 2003; Zavala-<br />
Camin 2004).<br />
Figura 1: (A) Representação esquemática da diversidade de espécies de vertebrados existentes.<br />
Detalhe da porcentagem de espécies de peixes (em torno de 50%). (B) Representação<br />
esquemática da distribuição de peixes considerando-se os diferentes tipos de ambiente (marinho e<br />
dulciaqüícola). Espécies diádromas, são animais que migram entre o ambiente marinho e<br />
dulciaqüícola (em torno de 1%). Adaptado de: Wooton, 1990; Nelson, 1994; Moyle & Cech, 2003.<br />
No Brasil, grande parte dos peixes dulciaqüícolas de valor comercial são<br />
representadas pelas espécies migradoras (reofílicas), ou seja, são peixes que durante um<br />
determinado período (que pode variar entre as espécies), realizam migrações ao longo do<br />
rio e vencem obstáculos naturais (corredeiras e cachoeiras), para se reproduzir (Lucas &<br />
Baras 2001; Baldisserotto & Gomes 2005). A migração é necessária para o desenvolvimento<br />
das gônadas (ovários e testículos), maturação dos gametas e posterior desova, e o sucesso<br />
reprodutivo em espécies migradoras fica prejudicado quando estes animais são impedidos<br />
de migrar. Esse problema ocorre freqüentemente, em decorrência de bloqueios no percurso<br />
natural dos rios (reservatórios) ou no confinamento em viveiros de cultivo.<br />
Apesar da indiscutível importância desses reservatórios, também são incontestáveis<br />
os problemas associados a estas interrupções no curso natural dos rios. Os reservatórios<br />
são, por outro lado, recentes e suas comunidades mostram notáveis alterações estruturais<br />
em relação às que lhes deram origem, ou seja, as de um sistema fluvial com história<br />
evolutiva distinta. Verifica-se durante o processo de colonização a depleção de algumas<br />
populações, para as quais novas condições são restritivas, e a explosão de outras, que têm<br />
no novo ambiente condições favoráveis, geralmente transitórias, para manifestar o seu<br />
potencial de proliferação. Entre as espécies de peixes, a depleção populacional afeta<br />
principalmente as de maior porte, geralmente de hábito migratório, alta longevidade e baixo<br />
87
V Curso de Inverno<br />
potencial reprodutivo. Já a proliferação massiva é constatada entre as espécies de pequeno<br />
porte, sedentárias, com alto potencial reprodutivo e baixa longevidade (r-estrategistas), para<br />
as quais a disponibilidade alimentar é elevada (Agostinho et al. 1999; Agostinho & Gomes<br />
2005).<br />
No sentido de minimizar os impactos causados pelos reservatórios, a aqüicultura<br />
mundial demonstra-se como uma fonte alternativa de produção de alimento devido ao<br />
crescimento populacional descontrolado, obrigando o homem a procurar recursos<br />
alimentares alternativos para sanar os problemas relacionados à fome. Em 2004, a<br />
produção total da aqüicultura, incluindo peixes, crustáceos e plantas aquáticas foi estimada<br />
em 30 milhões de toneladas, sendo que, 51% dessa produção total é representada pela<br />
maricultura, 43% pela produção dulciaqüícola e 6% são representados pela produção<br />
estuarina. Levando em consideração toda essa produção mundial, o principal grupo utilizado<br />
na aqüicultura é formado pelos peixes (Borghetti et al. 2003; FAO 2006).<br />
Ainda que, portador do maior número de espécies ícticas do mundo, a produção<br />
aqüícola brasileira está baseada principalmente no cultivo de espécies exóticas, como por<br />
exemplo, carpas, tilápias e trutas, sendo as espécies nativas produzidas em menor escala.<br />
Além da produção de alimentos, a aqüicultura brasileira possui grande importância<br />
na preservação das espécies ameaçadas de extinção, devido ao cultivo dessas espécies em<br />
cativeiro e posteriormente, na instalação de programas de repovoamento em áreas<br />
impactadas. Ao analisar a Lista Nacional das Espécies de Animais Ameaçadas de Extinção,<br />
pode-se constatar a presença de várias espécies de peixes em situações críticas, sendo que<br />
uma inversão nesse quadro só é possível com base em programas adequados de<br />
repovoamento, que só podem atingir algum sucesso quando as técnicas de reprodução e<br />
produção são dominadas. Adicionalmente, sabe-se que o sucesso no cultivo de uma<br />
espécie só é obtido com o conhecimento da biologia dessa espécie e, em especial da<br />
biologia reprodutiva.<br />
A reprodução em peixes, apesar de ser modulada por fatores ambientais, como por<br />
exemplo, a temperatura, o fotoperíodo nas espécies de clima temperado e possivelmente a<br />
temperatura e as chuvas nas espécies de clima tropical, é controlada endogenamente por<br />
um sistema endócrino, principalmente pelo eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, que sintetiza<br />
e libera gonadotropinas, esteróides gonadais e hormônios moduladores do processo<br />
reprodutivo entre outras substâncias (Weltzien et al. 2004; Kawauchi & Sower 2006). Esse<br />
processo ocorre naturalmente com o desenvolvimento das gônadas, maturação, liberação e<br />
fertilização dos gametas, sendo que em geral, em peixes, a desova e a fertilização ocorrem<br />
no ambiente externo. Os ovos fertilizados originam embriões e posteriormente larvas, que<br />
crescem e se tornam adultos, reiniciando o ciclo.<br />
Neste contexto, todo o controle endócrino deve ser alterado de alguma forma,<br />
quando espécies migradoras são transferidas para o cativeiro, em operações de cultivo,<br />
pois, neste ambiente confinado, os peixes reofílicos (peixes de piracema) não conseguem<br />
88
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
eliminar os seus gametas de forma natural. Neste caso, intervenções hormonais exógenas<br />
em determinados níveis do eixo hipotálamo-hipófise-gônadas são necessárias para dar<br />
continuidade ao processo de maturação gonadal. Assim, demonstra-se a importância de<br />
estudar o controle fisiológico do eixo-hipotálamo-hipófise-gônadas nas espécies nativas,<br />
ainda pouco investigadas.<br />
1. Fisiologia da reprodução em peixes (eixo hipotálamo-hipófise-gônadas)<br />
Em geral, a fisiologia da reprodução em peixes pode ser sintetizada da seguinte<br />
forma (Nagahama 1994; Peter & Yu 1997; Blázquez et al. 1998; Weltzien et al. 2004;<br />
Lethimonier et al. 2004; Guilgur et al. 2006; Honji 2007; Honji et al. <strong>2008</strong>): a partir do<br />
momento em que a idade e o peso mínimo são atingidos para o início da reprodução,<br />
alterações ambientais como o fotoperíodo, a temperatura e, possivelmente as chuvas, são<br />
captadas através dos olhos, pineal, narinas e receptores cutâneos, que as convertem em<br />
sinais eletroquímicos e, são transmitidos via neurônios sensoriais até o hipotálamo. Os<br />
fatores ambientais citados estimulam o hipotálamo a sintetizar e liberar o hormônio liberador<br />
de gonadotropinas (GnRH), que estimula as células gonadotrópicas na hipófise a sintetizar e<br />
liberar o hormônio folículo estimulante (FSH), que via corrente sangüínea chega às camadas<br />
foliculares dos oócitos em desenvolvimento e na camada teca, converte o colesterol em<br />
testosterona. Esta é transportada à camada granulosa, na qual é aromatizada a 17βestradiol<br />
pela enzima aromatase, também sob influência do FSH. O 17β-estradiol age no<br />
fígado (via corrente sangüínea), estimulando a síntese da glicolipofosfoproteína<br />
(vitelogenina) que, também via corrente sangüínea, é “seqüestrada” pelo oócito por<br />
micropinocitose (processo dependente de FSH), promovendo o crescimento do oócito e<br />
incorporação de vitelo.<br />
A detecção da vitelogenina, como precursora do vitelo protéico tem sido<br />
intensamente pesquisada nas últimas décadas, desde a síntese de 17β-estradiol como<br />
produto de ação no fígado até estudos com enfoques ambientais, como por exemplo, os<br />
disruptores endócrinos que são compostos que podem afetar o sistema endócrino e assim<br />
toda a fisiologia reprodutiva. Os machos de teleósteos também possuem o gene para<br />
vitelogenina, entretanto, o mesmo não é expresso devido ao baixo nível de estradiol<br />
circulante, podendo ser expresso em raras situações, como por exemplo, na exposição dos<br />
indivíduos aos poluentes com ação estrogênica (Moncaut et al. 2003).<br />
Na fase de vitelogênese, que é um processo pelo qual o citoplasma do oócito<br />
acumula substâncias de reservas para posterior utilização pela larva, ocorre um aumento<br />
nos níveis plasmáticos de 17β-estradiol e testosterona e esse aumento inibe a síntese de<br />
FSH (feed back negativo) e juntamente com a ação do GnRH estimulam a secreção<br />
hipofisária do hormônio luteinizante (LH) nas fases finais dessa vitelogênese. O LH estimula<br />
a camada teca do folículo a produzir 17α-hidroxiprogesterona, que é transportada à camada<br />
89
V Curso de Inverno<br />
granulosa e convertida a 17α,20β-dihidroxy-4-pregnen-3-one ou 17α,20β-21-trihidroxy-4-<br />
pregnen-3-one pela enzima 20α-hidroxiesteróide-desidrogenase, dependendo da espécie<br />
considerada (Nagahama 1994; Mylonas et al. 1997; Peter & Yu 1997; Blázquez et al. 1998).<br />
O hormônio 17α-20β-dihidroxy-4-pregnen-3-one é conhecido como o hormônio indutor da<br />
maturação final e da ovulação (MIS) na maioria dos peixes.<br />
Nos machos, o controle da síntese de esteróides é semelhante ao das fêmeas. FSH<br />
e LH estimulam a esteroidogênese testicular e espermatogênese, sendo os andrógenos,<br />
testosterona e 11-cetotestosterona produzidos pelas células de Leydig no tecido intersticial<br />
dos testículos, sendo, esses hormônios gonadais os mais importantes no desenvolvimento<br />
do testículo e das características sexuais secundárias nos machos (Grier 1980; Pudney<br />
1995; Cyr & Eales 1996; Haider 2004; Parenti & Grier 2004).<br />
A Figura 2 apresenta um resumo funcional do eixo hipotálamo-hipófise-gônadas na<br />
reprodução de peixes teleósteos.<br />
De uma forma geral, apesar do eixo hipotálamo-hipófise-gônadas ser responsável<br />
pelo controle endócrino da reprodução em peixes, como visto anteriormente, o<br />
conhecimento da fisiologia deste eixo para as espécies nativas ainda é bastante escasso.<br />
Os mecanismos fisiológicos que levam ao bloqueio da reprodução em peixes reofílicos<br />
(peixes de piracema) quando estes são impedidos de migrar, por exemplo, quando ocorre à<br />
construção de barragens ou quando são transferidos para o cativeiro em operações de<br />
cultivo, ainda não são bem compreendidos. Zohar & Mylonas, (2001) sintetizam três tipos de<br />
disfunção endócrina observadas na reprodução de espécies de peixes migradoras. O<br />
primeiro problema e o mais severo ocorre em enguias (Anguilla anguilla), nas quais a<br />
vitelogênese e a espermatogênese falham completamente quando os reprodutores são<br />
mantidos em cativeiro. A segunda disfunção é a ausência da maturação final nos oócitos e o<br />
último problema é a falha na desova ao final do ciclo reprodutivo. Para as espécies<br />
nacionais a disfunção que ocorre normalmente é a ausência da maturação final dos oócitos<br />
(migração da vesícula germinativa) e o seu motivo ainda não está claro.<br />
Neste contexto, considerando-se que as espécies de peixes de piracema, quando<br />
são impedidas de migrar, apresentam um bloqueio na reprodução, fica evidente, que a<br />
construção de reservatórios nos rios brasileiros causa grandes impactos no ciclo de vida dos<br />
peixes reofílicos, principalmente nos aspectos relacionados à fisiologia reprodutiva. Este<br />
bloqueio, como mencionado anteriormente, também é observado nas espécies de peixes de<br />
piracema quando transferidas para o cativeiro (piscicultura) em operações de cultivo. Assim,<br />
nesta obra é apresentado de modo sucinto e discutido de forma preliminar o conhecimento<br />
disponível acerca do estado de arte da fisiologia da reprodução de peixes, impactos a que<br />
algumas espécies estão sujeitas pelos represamentos e a importância dos estudos de<br />
fisiologia da conservação na preservação de espécies ameaçadas. Pretende-se ainda, com<br />
esta obra, fornecer subsídios às discussões sobre o tema, sem a pretensão de fazê-lo de<br />
90
Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />
modo completo, visto que a maioria das informações disponíveis tem caráter disperso e<br />
provisório.<br />
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V Curso de Inverno<br />
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Revisado por Renata Guimarães Moreira e Maria Inês Borella<br />
92
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Capítulo 3<br />
Termodinâmica e<br />
Complexidade em Sistemas<br />
Biológicos<br />
Autores:<br />
Breno Teixeira Santos<br />
José Eduardo Natali<br />
Fernando Marques<br />
Vitor Hugo Rodrigues<br />
93
V Curso de Inverno<br />
94
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Algumas Definições:<br />
Breno Santos<br />
Laboratório de Fisiologia Teórica<br />
Antes de começarmos nossa discussão sobre termodinâmica e complexidade em<br />
sistemas biológicos precisamos, primeiramente, estabelecer duas definições: a definição de<br />
complexidade e a definição de sistema, começando pela segunda delas. Vamos observar<br />
definições de sistema advindas de mundos (aparentemente!) muito distintos.<br />
“A system is a combination of components that act together and perform a certain objective.<br />
A system is not limited to physical ones. The concept of the system can be applied to<br />
abstract, dynamic phenomena such as those encountered in economics. The word system<br />
should, therefore, be interpreted to imply physical, biological, economics, and the like,<br />
systems.”<br />
Ogata, K., Modern Control Engineering<br />
“... system is defined as a unit by the relations between its components which realize the<br />
system as a whole, and its properties as a unity are determined by the way this unity is<br />
defined, and not by the particular properties of its components.”<br />
Varela, F. G., Maturana, H. R. e Uribe, R., Autopoiesis: The Organization of Living Systems,<br />
Its Characterization and a Model<br />
Podemos perceber então, que as ciências exatas e as ciências biológicas possuem<br />
um denominador comum a respeito da definição do termo sistema; é um conjunto de partes<br />
as quais estabelecem relações entre si. Se podemos reduzi-lo à soma de suas partes<br />
constituintes, ou se apresenta as chamadas propriedades emergentes, isso é discussão<br />
para outra hora e local!<br />
E quanto à complexidade? O senso comum chama de simples os sistemas que,<br />
aparentemente, possuem um ou poucos objetos e ações constituintes. Imagine um mol de<br />
um gás às CNTP, em equilíbrio, encerrado em uma caixa de 1cm³. Isso é um sistema<br />
simples ou complexo? Muitos diriam que é um sistema simples, pois não percebemos<br />
nenhuma atividade coordenada ou forma de dinâmica, esse sistema “não faz nada” nem “vai<br />
para lugar algum”. Porém perceba que estamos falando de, nessas condições, 6,023 x 10²³<br />
moléculas de gás, comportando-se individualmente (dado que a interação entre elas ocorre<br />
em escalas de angstroms), ou seja, estamos falando do que Boltzmann chamou de caos<br />
95
V Curso de Inverno<br />
molecular. Complexo ou não? Observemos o seguinte trecho escrito pelo físico Murray Gell-<br />
Mann (grifos meus):<br />
“As measures of something like complexity for an entity in the real world, all such quantities<br />
are to some extent context-dependent or even subjective. They depend on the coarse<br />
graining (level of detail) of the description of the entity, on the previous knowledge and<br />
understanding of the world that is assumed, on the language employed, on the coding<br />
method used for conversion from that language into a string of bits, and on the particular<br />
ideal computer chosen as a standard.”<br />
Gell-Mann, M., What is Complexity?<br />
O que Gell-Mann quer nos dizer é que uma medida de complexidade está<br />
intimamente conectada a idéias sobre informação. Na teoria da informação proposta por<br />
Shannon, uma seqüência de bits aleatória é a que possui a maior quantidade de informação.<br />
Ouvir o chiado (“random sequence”) de um rádio mal sintonizado lhe traz alguma<br />
informação? Não. Porém o chiado começar ou parar sim. Vejamos o que diz Russel<br />
Standish:<br />
“Random sequences have maximum complexity, as by definition a random sequence can<br />
have no generating algorithm shorter than simply listing the sequence. ..., this contradicts the<br />
notion that random sequences should contain no information.”<br />
Standish, R. K., On Complexity and Emergence.<br />
No capítulo intitulado Informação, será apresentado o conceito de Informação<br />
Pragmática, que está ligado ao fato de que, se algo é informativo, é informativo para alguma<br />
entidade e deve, portanto, causar mudanças de estado nessa entidade.<br />
A imensa maioria dos sistemas complexos se apresentará na forma de sistemas nãolineares<br />
e muitos desses serão ainda, sistemas com memória, ou seja, o passado (os<br />
valores de suas variáveis em instantes anteriores ao presente), interfere no estado atual do<br />
mesmo. O modelo teórico utilizado para descrever o sistema deverá levar isso em conta<br />
além de outras duas características, se o sistema é de tempo contínuo ou discreto e a<br />
parâmetros concentrados ou distribuídos. Vejamos o que Steven Strogatz nos diz a respeito:<br />
“... a linear system is precisely equal to the sum of the parts. But many things in nature don’t<br />
act this way. Whenever parts of a system interfere, or cooperate, or compete, there are<br />
nonlinear interactions going on. Most of every day life is nonlinear, and the principle of<br />
superposition fails spectacularly.”<br />
Strogatz, S. H., Nonlinear Dynamics and Chaos.<br />
96
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Dessa maneira, se estamos interessados em modelar matematicamente sistemas<br />
biológicos, teremos que estar preparados para lidar com fenômenos não lineares como, por<br />
exemplo, saturações e crescimentos ou decaimentos exponenciais, para citar dois<br />
extremamente simples! No mesmo livro, Strogatz apresenta a tabela, figura 1, abaixo.<br />
Observe que os modelos de sistemas biológicos mais simples se inserem em sistemas<br />
lineares com muitas variáveis ou sistemas não lineares com duas variáveis sendo que, a<br />
imensa maioria de fenômenos, reside após a fronteira dos sistemas não lineares com muitas<br />
variáveis!<br />
Ruído, Caos e Fractais<br />
Toda a medida realizada em um sistema está sujeita à presença de ruído, seja ele<br />
ruído térmico (inerente às oscilações térmicas dos elétrons que compõem a matéria) do<br />
próprio sistema, ou dos instrumentos de medida ou, ainda, o ruído de quantização quando<br />
digitalizamos dados ao passá-los para um microcomputador. Portanto, como é possível<br />
discernir entre ruído e comportamento caótico? Essa é uma pergunta bastante complicada<br />
e, ainda hoje, se procuram métodos para responder essa questão de maneira definitiva, se é<br />
que isso será possível (ao menos no que tange a medidas experimentais). Todo ruído<br />
térmico, também chamado ruído branco ou ruído Gaussiano, é definido através de uma<br />
distribuição normal de probabilidades mas muitas séries temporais caóticas também o são.<br />
O aparecimento de caos na dinâmica de um sistema está vinculado a:<br />
- imprevisibilidade: o conhecimento do estado do sistema durante um tempo arbitrariamente<br />
longo não permite predizer, de maneira imediata, sua evolução posterior.<br />
- espectro contínuo de freqüências: a energia do sistema está igualmente distribuída ao<br />
longo de diferentes freqüências. Essa característica indica comportamento aperiódico.<br />
- invariância de escala: não importa a escala em que se observe o fenômeno (pense nisso<br />
como um zoom) a estrutura hierárquica do mesmo apresenta características de autosimilaridade.<br />
- estacionariedade: grosso modo, embora aperiodicamente, os padrões tendem a repetição.<br />
Todas essas características estão associadas ao que chamamos de dependência<br />
sensitiva às condições iniciais (D<strong>CI</strong>). O caos determinístico é essencialmente devido à D<strong>CI</strong>.<br />
Essa dependência resulta das não-linearidades presentes no sistema, as quais amplificam<br />
exponencialmente pequenas diferenças nas condições iniciais do sistema. Isso foi<br />
97
V Curso de Inverno<br />
observado por Edward Norton Lorenz, matemático e meteorologista que, quando<br />
trabalhando com previsão do tempo no exército norte americano durante a II Grande<br />
Guerra, observou que o resultado dos cálculos de seu modelo de movimentação do ar na<br />
atmosfera eram sempre diferentes a cada vez que ele os computava em seu computador<br />
analógico (sim, analógico!!!). O problema era que a impressão de seus resultados estava<br />
limitada a uma determinada quantidade de casas decimais e quando ele utilizava esses<br />
dados truncados para uma nova computação (ou seja, usava-os como novas condições<br />
inicias, levemente diferentes das anteriores devido ao truncamento) o resultado era<br />
absurdamente diferente. Isso ficou então conhecido como efeito borboleta, e a figura 2, o<br />
atrator de Lorenz, ganhou o mundo.<br />
Figura 1: Onde os sistemas biológicos se inserem, retirado de [Strogatz, 1994].<br />
Temos então ainda um novo conceito a ser esclarecido, o conceito de atrator.<br />
Imagine que uma bolinha será colocada na superfície apresentada na figura 3. Dependendo<br />
da posição inicial da bolinha e se a mesma foi apenas colocada ou foi impulsionada em<br />
alguma direção, ninguém duvidaria que a bolinha, em algum momento, irá parar dentro de<br />
algum dos poços da figura. Após ela parar seu movimento dentro de algum desses poços,<br />
ela nunca mais sairá de lá a menos que lhe seja cedida energia de alguma forma. Pois bem,<br />
os fundos dos poços são o que chamamos de atratores. Se algo estiver próximo o suficiente<br />
desse atrator e se esperarmos o tempo necessário, esse algo irá se dirigir ao atrator.<br />
98
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Figura 2: O atrator de Lorenz.<br />
Figura 3: Poços de potencial são atratores pontuais.<br />
Mas isso é bem diferente do que podemos observar na figura 2, isso porque o atrator<br />
apresentado lá é de outro tipo, chamado atrator estranho. Perceba que, embora o sistema<br />
não evolua para um determinado ponto, ele está confinado em um determinado volume e no<br />
caso de um sistema dissipativo (ou seja, um sistema no qual a energia interna do mesmo vai<br />
sendo perdida através de alguma ineficiência do processo), esse volume se tornará cada<br />
vez menor. Para que exista uma D<strong>CI</strong> é necessário um atrator estranho e, sistemas<br />
determinísticos que apresentam evolução temporal que conduz assintoticamente a atratores<br />
99
V Curso de Inverno<br />
estranhos, apresentam dinâmica caótica. Os fundos dos poços, tendo em mente o espaço<br />
euclidiano tridimensional representado (X, Y e Z ou largura, altura e profundidade), são na<br />
verdade pontos (mais matematicamente, uma tríade (x, y, z)), portanto possuem dimensão<br />
menor (um ponto tem dimensão 0) do que a do espaço no qual estão incluídos. Um atrator<br />
sempre terá dimensão menor do que a do espaço que o contém, caso contrário ele seria o<br />
próprio espaço e, portanto, poderíamos “passear” livremente sem necessariamente<br />
convergir para nenhum lugar restrito do mesmo. Observando novamente o atrator de Lorenz<br />
e sem nenhum rigor matemático, percebemos que esse atrator é “maior do que um ponto,<br />
maior do que uma reta, mas menor do que uma superfície”. Estamos nos aproximando do<br />
conceito de fractal, ou melhor, dimensão fractal. Vamos a um exemplo mais simples, porém<br />
altamente elucidativo. Observe a figura 4 que mostra geometricamente a maneira de se<br />
construir um conjunto de Cantor. Para termos um conjunto de Cantor tome a barra inicial e<br />
divida-a em três partes iguais. Agora jogue fora o terço central e repita o mesmo processo<br />
para os dois terços restantes e assim por diante.<br />
Figura 4: O conjunto de Cantor.<br />
Para n muito grandes, teremos uma nuvem de pontos que possui dimensão maior do<br />
que a de um único ponto, porém, obviamente, menor do que a de uma reta, ou seja, o<br />
conjunto de Cantor tem dimensão maior que 0 e menor do que 1! Utilizando processos que<br />
não iremos descrever aqui (para maiores detalhes consulte nas bibliografias sugeridas o<br />
assunto: algoritmos de contagem de caixas – box counting algorithms), calculamos que a<br />
dimensão do conjunto de Cantor é 0,63! Estamos lidando com entidades que possuem<br />
dimensão não inteira e, para tanto, Benoît Mandelbrot cunhou o termo fractal que vem do<br />
latim fractus que significa quebrado, fraturado. Agora, com uma definição um pouco<br />
melhorada do que vem a ser uma dimensão fractal, podemos dizer que atratores estranho<br />
possuem dimensão fractal, como o atrator de Lorenz.<br />
Na figura 6 temos um outro famoso fractal, o conjunto de Mandelbrot. Observe, nas<br />
miniaturas, que mostram zooms cada vez maiores, que a invariância de escala é marcante.<br />
100
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Existem diversos exemplos de dimensão fractal na biologia, a ramificação dendrítica neural,<br />
a superfície pulmonar, a ramificação arterial, a superfície interna das cristas mitocondriais,<br />
microvilosidades intestinais e acoplamento entre osciladores (disparo de neurônios ou canto<br />
de animais, por exemplo).<br />
Biologia e Sistemas Complexos<br />
Sistemas biológicos são inerentemente complexos, pois, mesmo o mais simples<br />
deles, possui um grande número de partes constituintes cujas interações levam a<br />
comportamentos coletivos complicados. Esse conjunto de interações e a existência de uma<br />
hierarquia funcional e estrutural tornam os sistemas biológicos não-lineares. Quando um<br />
sistema é reconhecidamente não-linear não podemos, por exemplo, utilizar o princípio de<br />
superposição para estudá-lo. Esse princípio rege que, sendo o sistema linear, é possível<br />
estudar as respostas de cada parte e combiná-las de forma a obter sua resposta, ou seja,<br />
sua dinâmica evolucionária global. Portanto, a esperança de Newton e seus<br />
contemporâneos em serem capazes de prever a dinâmica de qualquer sistema, dado o<br />
conjunto completo de suas condições iniciais e de todas as interações entre as partes, foi<br />
inútil. Isso foi percebido pelos cientistas dos séculos XVII e XVIII ao se depararem com a<br />
impossibilidade de criar uma descrição analítica para o problema do movimento de três<br />
corpos sob interação da lei da atração gravitacional (sim, apenas 3!).<br />
No século XIX, Boltzmann e seus contemporâneos obtiveram resultados que<br />
demonstravam que era possível prever o comportamento médio de um sistema que fosse<br />
constituído por partículas idênticas com fraca interação entre si. Nasciam as leis da<br />
Termodinâmica, baseadas nas descrições estatísticas das partes microscópicas do sistema.<br />
Mas nem os princípios aplicáveis aos sistemas lineares, nem as leis da Termodinâmica, são<br />
capazes de descrever de maneira completa os sistemas complexos, principalmente nos<br />
quais as interações não são fracas.<br />
Antes que possamos partir para uma tentativa de clarificar de que forma podemos<br />
então estudar um sistema complexo, já que aparentemente nada visto até aqui se presta a<br />
isso, precisamos de dois conceitos bem estabelecidos, calor e entropia (detalhes mais<br />
formais serão vistos nos próximos capítulos). Vamos tentar definir esses dois termos de<br />
forma termodinâmica e intuitiva. Quando dizemos “estou morrendo de calor” não estamos<br />
utilizando o termo “calor” como definido pelos físicos. Calor é o processo espontâneo de<br />
transferência de energia térmica entre dois corpos de temperaturas diferentes e ocorre<br />
sempre do corpo mais quente para o corpo mais frio. Benjamin Thompson, enquanto<br />
ocupava a superintendência de broqueamento de canhões, nas oficinas do arsenal militar<br />
em Munique, percebeu que trabalho mecânico e calor eram ambos formas de transferência<br />
de energia. Lembre que trabalho mecânico se calcula como o produto entre uma força e o<br />
deslocamento sofrido pelo corpo. Devido ao atrito entre a ferramenta de corte e o cobre do<br />
101
V Curso de Inverno<br />
corpo dos canhões; trabalho mecânico, tem-se o aumento de temperatura do cobre<br />
(perceba que se transmitiu energia, sem transferência de calor). As aparas metálicas então,<br />
com temperaturas elevadas, eram capazes de iniciar o processo de ebulição da água (agora<br />
temos calor transferindo energia térmica das aparas, mais quentes, para a água, mais fria).<br />
Figura 6: Detalhes do conjunto de Mandelbrot.<br />
Entropia, S, foi definida inicialmente por Rudolph Clausius e sua variação, dS, pode<br />
ser calculada, pra um processo reversível, como a variação de calor, dQ (calor transferido<br />
ou recebido) dividido pela temperatura T, do sistema durante essa transferência de calor.<br />
Portanto, se tivermos uma variação de entropia nula, isso significa que cessou o processo<br />
de transferência de energia térmica, ou seja, lembrando do que Thompson observou,<br />
102
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
cessou nossa capacidade de realizar trabalho. Assim, podemos encarar a entropia de um<br />
sistema como uma medida de sua capacidade de realizar trabalho.<br />
Munidos desses novos conceitos podemos ver que evolução temporal em física, está<br />
ligada à aproximação do equilíbrio térmico, ou seja, a incapacidade de realizar trabalho e,<br />
portanto, a eliminação de não-uniformidades nas variáveis macroscópicas que caracterizam<br />
o sistema. Porém, biologicamente falando, evolução está associada a aumento de<br />
complexidade, organização e especialização. Nas últimas décadas tem-se recorridos às<br />
teorias de auto-organização para explicar a dinâmica dos sistemas complexos. Essas<br />
teorias mostram que para um dado valor crítico de um parâmetro de ordem, valor esse que<br />
pode ser atingido devido às flutuações aleatórias internas ao sistema, amplificam-se<br />
interações entre partes que disparam um processo auto-organizante. Ou seja, o sistema<br />
será auto-organizante se for capaz de adquirir espontaneamente uma estrutura de natureza<br />
funcional, temporal e/ou espacial, demonstrada pelo surgimento de uma coerência de longo<br />
alcance entre as variáveis do sistema. Um exemplo de estruturas auto-organizantes são<br />
micelas, como a camada bi-lipídica da membrana celular e os lipossomos. Existem, então,<br />
sistemas capazes de operar de forma a não evoluírem da maneira como prevê a<br />
termodinâmica clássica, são sistemas regidos pela termodinâmica fora de equilíbrio, um<br />
ramo da ciência bastante desenvolvido por Ilya Prigogine. O fato é que as leis da<br />
termodinâmica garantem que a entropia total do universo está sempre aumentando e,<br />
portanto, utilizando todo o universo como o nosso sistema o mesmo tende a tornar-se<br />
homogêneo. Como então explicar a existência dessas “ilhas de ordem”? Um sistema só<br />
pode diminuir ou manter estável sua entropia às custas de aumentar a entropia do meio<br />
externo. Só conseguimos nos manter vivos graças a degradação dos alimentos que<br />
ingerimos, ou seja, nossa organização em detrimento do aumento de entropia do pé de<br />
alface, do boi, do refrigerante, que agora não passam de um aglomerado de moléculas.<br />
Conclusões:<br />
Apesar de superficial, essa pequena introdução ao mundo dos sistemas complexos<br />
mostrou a enorme aplicabilidade dessa teoria para o estudo dos sistemas biológicos que<br />
são, na sua maioria absoluta, sistemas regidos por dinâmicas não lineares. Durante a<br />
evolução temporal desses sistemas podemos passar por dinâmicas caóticas, sincronização,<br />
“edge of chaos”, ou seja, estudar esses sistemas com as técnicas aplicadas a sistemas<br />
lineares e, muitas vezes admitindo-os no equilíbrio (ou muito próximos deles) pode nos levar<br />
a conclusões nebulosas sobre o seu funcionamento. Cada vez mais estamos observando<br />
que a biologia não pode mais evoluir sem unir forças com outros ramos do conhecimento<br />
como matemática, física e engenharia o que pode, no futuro, culminar em teorias gerais da<br />
biologia.<br />
103
V Curso de Inverno<br />
Para saber mais:<br />
Fiedler-Ferrara, N. e Prado, C. P. C. 1994. Caos – Uma Introdução. Edgard Blucher.<br />
Gell-Mann, M. 1995. What is Complexity? In: Complexity, vol. 1, no. 1. John Wiley and Sons.<br />
Glass, L. e Mackey, M. C. 1997. Dos Relógios ao Caos: Os Ritmos da Vida. Edusp.<br />
Monteiro, L. H. A. e Piqueira, J. R. C. O que Orienta a Evolução Biológica. In: Ítala Maria D'Ottaviano;<br />
Maria Eunice Quilicci Gonzales. (Org.). Auto-organização: estudos multidisciplinares. 1 ed.<br />
Campinas: Editora da UNICAMP, 2000<br />
Monteiro, L. H. A. 2006. Sistemas Dinâmicos. 2ª edição. Editora Livraria da Física.<br />
Ogata, K. 2001. Modern Control Engineering. 4ª edição. Pearson.<br />
Prigogine, I. 2002. As Leis do Caos. Editora Unesp.<br />
Serway, R. A. e Jewett, J. W. Princípios de Física: Movimento Ondulatório e Termodinâmica - Vol. 2.<br />
LTC.<br />
Standish, R. K. On Complexity and Emergence. http://parallel.hpc.unsw.edu.au/rks<br />
Strogatz, S. H. 1994. Nonlinear Dynamics and Chaos: With Applications in Physics, Biology,<br />
Chemistry, and Engineering (Studies in Nonlinearity). Addison Wesley.<br />
Varela, F. G., Maturana, H. R. e Uribe, R. 1974. Autopoiesis: The Organization of Living Systems, Its<br />
Characterization and a Model. Biosystems, 5, 187-196.<br />
Belas Figuras com Dimensões Fractais:<br />
http://local.wasp.uwa.edu.au/~pbourke/fractals/<br />
http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_fractals_by_Hausdorff_dimension<br />
Revisado por José Guilherme de Souza Chauí Matos Berlinck<br />
104
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Primeira Lei da Termodinâmica<br />
José Eduardo Natali<br />
Laboratório de Fisiologia Teórica<br />
O surgimento da termodinâmica está ligado ao crescimento das cidades e a<br />
descoberta do “novo continente” nos séculos XV e XVI. Esses acontecimentos provocaram<br />
uma grande expansão do comércio de mercadorias, o qual não conseguia mais ser suprido<br />
apenas pelo trabalho artesanal. Nesse contexto, surgiu a máquina a vapor, desenvolvida por<br />
Watt entre 1765 e 1769, que permitia transformar a energia química do combustível em<br />
energia térmica, e essa, em trabalho mecânico; revolucionando assim os meios de produção<br />
e transporte. A termodinâmica surgiu da necessidade de entender o funcionamento das<br />
maquinas térmicas, e suas duas leis foram fundamentais nesse entendimento (Brush, 1966<br />
apud Monteiro & Piqueira, 2000).<br />
A primeira lei da termodinâmica foi sugerida independentemente por vários cientistas<br />
entre 1842 e 1847, mas o crédito é normalmente atribuído a Joule e Mayer (Brush, 1983<br />
apud Monteiro & Piqueira, 2000). Podemos entender melhor sua formulação a partir de um<br />
exemplo simples. Se levarmos em conta que temos um sistema genérico (um gás contido<br />
em uma caixa com um pistão), ele pode trocar calor (Q) ou trabalho (W) com seu entorno<br />
(Figura 1). Podemos imaginar que a troca de calor ocorrerá se o gás estiver em uma<br />
temperatura maior que o ambiente, perdendo parte dessa grandeza física para o ambiente;<br />
por sua vez se o gás for capaz de levantar o pistão ele estará realizando trabalho no meio<br />
externo (lembrando que nos dois casos o contrário também é possível). Historicamente o<br />
trabalho era medido em unidades mecânicas (força x metro ou joule) e o calor em unidades<br />
térmicas (caloria).<br />
W<br />
Sistema<br />
Q<br />
Figura 1 – Exemplo de um sistema com trocas de calor e trabalho.<br />
A primeira lei da termodinâmica surgiu a partir da observação de que existia uma<br />
proporcionalidade entre a troca de calor e o trabalho realizado, ou seja, no nosso sistema<br />
hipotético, se aquecêssemos o gás deveríamos ter uma ascensão proporcional do pistão.<br />
105
V Curso de Inverno<br />
Atualmente, sabemos que tanto o trabalho quanto o calor são medidas de troca de energia<br />
do sistema, e que aquela proporcionalidade é na verdade uma igualdade.<br />
Além de calor e trabalho, existem outras formas de energia (E), cuja unidade no<br />
Sistema Internacional de Unidades é joule (J), associadas às mudanças de estado que<br />
também estão contidas na primeira lei da termodinâmica. Isso pode ser evidenciado pois,<br />
caso não existisse o pistão no exemplo acima, uma transferência de energia térmica para o<br />
sistema iria contra a conservação de energia imposta pela primeira Lei. O que ocorre nesse<br />
caso é uma mudança de estado do sistema associada às mudanças em outras formas de<br />
energia como: a energia cinética (EC), a energia potencial (EP) e energia interna (U) uma<br />
forma de energia do sistema que não está associada a um sistema de coordenadas. Essa<br />
diferença quer dizer que temos algumas energias associadas com a posição do sistema (EC<br />
e EP), e outras que são totalmente independentes (U). Existem ainda outras formas de<br />
energia, como elétrica ou química, que não levaremos em conta para facilitar o<br />
entendimento.<br />
Temos então que:<br />
(1)<br />
Sendo que:<br />
Para m=massa,<br />
=velocidade, g = gravidade e Z=distância em relação a um plano<br />
de referência. Aqui fica clara a dependência dessas duas energias de um sistema de<br />
coordenadas, já que energia potencial depende da altura, e a cinética da velocidade, e<br />
consequentemente da posição. Por exemplo, para calcularmos a energia cinética de um<br />
carro, devemos saber sua velocidade em relação a uma referencial, o mesmo acontece para<br />
calcularmos a energia potencial, devemos saber a altura em relação a um plano de<br />
referência. Por outro lado, para sabermos a energia térmica (temperatura) de um corpo não<br />
precisamos de nenhuma informação em relação a sua posição, ou seja, não importa onde<br />
ele está.<br />
Assim podemos reescrever a primeira lei da termodinâmica para uma mudança de<br />
estado da seguinte maneira:<br />
(2)<br />
106
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Verbalmente, essa equação estabelece que energia pode cruzar a fronteira de um<br />
sistema na forma de calor e trabalho, e que a transferência líquida de energia será igual a<br />
variação líquida da energia do sistema, que ocorre por mudanças na energia cinética,<br />
potencial e interna. Podemos tirar dessa formulação que a quantidade total de energia é<br />
sempre conservada, o que ocorre é a transição entre suas diversas formas.<br />
Enquanto as reais implicações da segunda lei da termodinâmica em sistemas<br />
biológicos ainda são um pouco obscuras e motivo de estudo, a contribuição da primeira lei é<br />
natural. No ponto em que estamos, ninguém mais acredita que a energia que utilizamos<br />
p a r a<br />
d e s e m p e n h a r<br />
n o s s a s<br />
atividades vitais<br />
surja espontaneamente do nada. Sabemos que o trabalho necessário para realizarmos<br />
atividades físicas, a energia térmica dos endotérmicos ou ainda a energia associada à<br />
movimentação do líquido no sistema circulatório são provenientes da energia interna de<br />
moléculas orgânicas que os animais ingerem. Todas essas são transições entre formas de<br />
energia que obedecem à conservação de energia.<br />
O exemplo do sistema circulatório é bem interessante para analisarmos outra<br />
formulação da primeira lei, quando analisamos um trecho de uma artéria com influxo e saída<br />
de sangue, passamos a ter outro problema, nesse caso temos a entrada e saída de matéria<br />
(e energia associada a ela) na região que estamos estudando (Figura 2). Chamamos esse<br />
tipo de situação, que permite a entrada e saída de massa, de volume de controle.<br />
Entrada<br />
Q<br />
W<br />
Q<br />
W<br />
Saída<br />
We<br />
Ue<br />
ECe<br />
EPe<br />
Ws<br />
Us<br />
ECs<br />
EPs<br />
generalizado.<br />
Figura 2 – Balanço das energias que entram e saem de um segmento de artéria<br />
Nesse caso, continuamos a ter troca de trabalho e calor na fronteira do volume<br />
analisado, porém passamos a ter uma entrada e saída de matéria, que por sua vez traz e<br />
leva consigo energia (cinética, potencial, interna e trabalho).<br />
107
V Curso de Inverno<br />
A potencia associada a esse escoamento (a notação de um ponto em cima do<br />
parâmetro, indica estamos interessados na variação do trabalho no tempo) pode ser definido<br />
como uma força multiplicada por um deslocamento:<br />
Se multiplicarmos por<br />
ficamos com:<br />
Como<br />
e<br />
Temos que:<br />
Sendo<br />
, ou seja, estamos observando o trabalho por unidade de massa, ficamos com:<br />
(4)<br />
Ou seja, a potencia associado ao escoamento pode ser calculado pela multiplicação<br />
da pressão pelo fluxo de líquido, por unidade de massa. Se considerarmos agora as outras<br />
formas de energia envolvida temos que a energia total associada ao escoamento, por<br />
unidade de massa, é dada por:<br />
(5)<br />
Nesse momento é importante definir uma outra propriedade termodinâmica. Quando<br />
analisamos tipos específicos de processos muitas vezes combinações de propriedades<br />
aparecem recorrentemente, isso faz com que seja interessante nomear uma nova<br />
propriedade que facilite o entendimento do assunto, sem deixar de apresentar as<br />
características originais. No caso de processos que envolvem fluxos em volumes de<br />
controle, frequentemente lidamos com a soma (como visto na equação 5), tornandose<br />
conveniente definir uma nova propriedade, dependente da massa, chamada entalpia (h):<br />
108
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
(6)<br />
Juntando a equação (5) com a (6) temos que:<br />
(7)<br />
Agora que sabemos a energia associada ao escoamento, podemos definir a primeira<br />
lei da termodinâmica para volumes de controle. Para isso, sabemos que ela varia com o<br />
calor e trabalho trocado (equação (3)), e também com a energia associada ao fluxo que<br />
entra e sai (equação (7)). Temos assim que:<br />
(8)<br />
Sendo que o sobrescrito “v.c.” se refere á volume de controle, “e” a energias<br />
associadas a entrada de matéria e “s” a energias associadas a saída de matéria. Essa forma<br />
da primeira lei define que a variação da energia é dada pelo taxa líquida de transferência de<br />
calor, pela taxa líquida da realização de trabalho e aos fluxos de energia nas fronteiras do<br />
volume de controle.<br />
A grande questão que fica é qual a contribuição disso para o sistema circulatório. O<br />
ponto é que isso tudo é o sistema circulatório, ou pelo menos o cerne do que o faz funcionar.<br />
O sangue só circula porque temos no coração uma grande bomba, que coloca entalpia no<br />
sistema, levando a uma diferença de energias que possibilita o movimento. Movimento esse,<br />
que só é contínuo porque a conservação de energia permite que o trabalho seja<br />
Energia<br />
armazenado na parede das grandes artérias na sístole, para depois ser devolvido ao<br />
Máquina<br />
Trabalho<br />
sistema circulatório na diástole. Associado a isso tudo temos a transformação dessa energia<br />
em energia cinética, o que implica no movimento do sangue e de todos seus constituintes.<br />
Fonte É importante de Quenteenfatizar que, apesar desses exemplos mais pontuais, a primeira lei<br />
está presente em todos os processos que envolvem energia, desde reações químicas até<br />
Energia<br />
movimentos musculares, sendo o seu entendimento formal<br />
Perdida<br />
fundamental para<br />
compreendermos a segunda lei da termodinâmica e suas conseqüências na biologia.<br />
Para saber mais:<br />
Brush, S.G. 1966. Kinetic theory. Pergamon Press.<br />
Brush, S.G. 1983. Statistical physics and the atomic theory of matter. Princeton University Press.<br />
109
V Curso de Inverno<br />
Van Wylen, G. J., Sonntag, R. E. & Borgnakke, C. 2003. Fundamentos da Termodinâmica. Editora<br />
Edgard Blücher ltda. São Paulo. 577 páginas<br />
Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano, I.M.L &<br />
Gonzáles, M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />
Pressão<br />
A<br />
Qa<br />
D<br />
W<br />
B<br />
Ta<br />
Qb<br />
C<br />
Tb<br />
Volume<br />
Revisado por José Guilherme de Souza Chauí Matos Berlinck<br />
110
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Segunda Lei da Termodinâmica<br />
José Eduardo Natali, Fernando Marques e<br />
Vitor Hugo Rodrigues<br />
Laboratório de Fisiologia Teórica<br />
Todos nós utilizamos carro, ônibus ou qualquer outro meio de transporte que<br />
necessita, obrigatoriamente, de um combustível (seja ele fóssil ou não) para que se<br />
locomova. Todos nós sabemos que o motor dos meios de transporte aquece. Por que será?<br />
As bases da segunda lei da termodinâmica foram desenvolvidas pelo físico francês<br />
Sadi Carnot em 1824, antes da primeira lei (BRUSH, 1976, 1983 apud MONTEIRO &<br />
PIQUEIRA, 2000). Carnot, fascinado pelo impacto das máquinas na Inglaterra e também<br />
interessado em aumentar o rendimento das máquinas térmicas (como os motores de nossos<br />
meios de transporte, por exemplo), publicou a monografia “Reflexões sobre a força motriz do<br />
fogo e sobre as máquinas que desenvolvem essa força”, na qual mostra que o contato entre<br />
corpos de temperaturas diferentes gerava um fluxo de energia (calor) que deixava de ser<br />
utilizada para executar trabalho mecânico.<br />
Em outras palavras, ele notou que parte da energia fornecida pelos combustíveis aos<br />
nossos meios de transporte, por exemplo, é perdida sob a forma de energia térmica em vez<br />
de ser transformada em movimento pura e simplesmente, porque há uma diferença de<br />
temperatura entre o motor e o meio externo (ar, água) que o circunda (Figura 1) [lembre-se<br />
que dU (energia interna) = dQ (calor) - dW (trabalho)]. Além disso, Carnot mostra que é<br />
fundamental que uma parte da energia seja perdida, pois só assim a máquina pode<br />
continuar a realizar trabalho.<br />
Figura 1. A queima do combustível fornece energia (fonte quente). A energia é utilizada pela máquina<br />
na geração de trabalho. Contudo, parte é perdida para o meio externo, que possui uma temperatura<br />
menor que a da máquina.<br />
111
V Curso de Inverno<br />
Podemos começar a entender esse fenômeno estudando o ciclo de Carnot (Figura<br />
2). Neste ciclo, estão representados quatro pontos com diferentes parâmetros que os<br />
descrevem (pressão, volume e temperatura): A, B, C e D. A mudança de cada um dos<br />
pontos (ou estados) para outro ocorre espontaneamente, sendo assim isoentrópico, porém<br />
para o ciclo ser completo é necessário que a magnitude da transferência de energia Qa seja<br />
igual à Qb. Isso em um sistema isolado (na mesma escala de do ciclo de Carnot) implica na<br />
transferência de energia de um corpo mais frio para um corpo mais quente. Isto torna esse<br />
ciclo impossível, pois sabemos que só há fluxo de calor de um corpo mais quente (T<br />
maior) para um mais frio (T menor), e nunca o contrário (FEYNMAN et al,1970), o que<br />
torna a condução de calor um processo irreversível (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000).<br />
Dizemos que um processo é irreversível quando a probabilidade de que ele aconteça é tão<br />
baixa que sua ocorrência chega a ser considerada impossível (HOPF, 1988 apud<br />
MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000).<br />
1. Figura 2 - Ciclo de Carnot. Note que Ta>Tb e que as curvas Ta e Tb são isotermas, assim as<br />
transições A->B e C->D ocorrem à temperatura constante e B->C e D->A são transições<br />
adiabáticas (sem troca de energia com o meio). Todas as expansões e contrações do clico de<br />
Carnot são reversíveis, neste modelo a entropia aumenta e diminui, porém em uma<br />
transformação de A->B->C->D->A, a variação de entropia é igual zero (isoentrópica).<br />
Lembre-se que o trabalho útil é dado pela área hachurada da figura.<br />
Este ciclo foi criado por Carnot como modelo de uma máquina que minimizaria o tão<br />
famigerado problema da perda de energia sob a forma de calor, mas, infelizmente, não é<br />
possível construí-la (não até agora, pelo menos).<br />
A segunda lei da termodinâmica está associada exatamente a essa perda de<br />
energia. Porém, para melhor entendermos o que está por trás da segunda lei, uma<br />
formalização maior é necessária.<br />
Clausius deu à segunda lei seu formato mais famoso ao introduzir uma função de<br />
estado denominada entropia (representada por S), a qual era, segundo ele, uma medida de<br />
capacidade de mudança de um sistema: em um sistema isolado, a quantidade de energia é<br />
112
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
constante, contudo a quantidade de energia capaz de ser transformada em trabalho pode se<br />
alterar (tendendo a diminuir) com o passar do tempo (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000).<br />
Desta maneira, sempre que passamos de um estado de equilíbrio a outro (as transições do<br />
ciclo de Carnot, por exemplo), temos um aumento de entropia.<br />
Em sistemas isolados, ou seja, nos que não apresentam troca de calor com o meio,<br />
a entropia varia da seguinte forma:<br />
em processos reversíveis, não há variação (∆S=0);<br />
em processos irreversíveis, a entropia sempre aumenta (∆S>0).<br />
Em sistemas não isolados operando de maneira reversível a variação de entropia é<br />
dada por:<br />
,<br />
sendo dS a variação de entropia, ∂Q, a quantidade de calor transferida para o sistema e T,<br />
sua temperatura absoluta.<br />
Lembra da irreversibilidade da troca de calor? Se pensarmos que o mesmo calor que<br />
sai de um corpo com temperatura Ta é TRANFERIDO por outro corpo de temperatura Tb, ao<br />
olharmos bem a equação acima podemos notar que ∆S>0, fato típico de processos<br />
irreversíveis.<br />
Sendo assim, podemos concluir que ∆S (variação de entropia) está ligada à variação<br />
de calor em dada temperatura em cada um dos corpos do sistema:<br />
EM princípio, a definição de entropia de Clausius pode parecer estranha, mas esta<br />
entropia é a mesma que talvez você conheça de outra forma ou com outra representação,<br />
como as apresentadas a seguir.<br />
A maneira mais comum de se definir entropia é como sendo uma medida de (des)<br />
organização: quanto maior a entropia, menor a organização do sistema. Neste caso,<br />
assumimos que os sistemas caminham todos espontaneamente para um estado de maior<br />
“bagunça”, haja visto que a entropia sempre tende a aumentar (Figura 3).<br />
Entretanto, isto não se reflete em exatamente todos os sistemas existentes. Um<br />
exemplo bem interessante é o de uma solução supersaturada do sal tiossulfato de sódio<br />
que, espontaneamente, forma cristais bastante organizados espacialmente (MONTEIRO &<br />
PIQUEIRA, 2000), o que implica que seu estado de maior entropia é o de maior<br />
organização.<br />
Dessa forma, fica mais claro pensarmos que o aumento da entropia está relacionado<br />
a uma maior desordem estatística, mas não necessariamente a uma desorganização<br />
113
V Curso de Inverno<br />
(WICKEN, 1978). A importância estatística da segunda lei da termodinâmica será abordada<br />
mais para frente.<br />
Figura 3 – Em (a), temos moléculas com disposição “ordenada”. Se isso ocorreu em um determinado<br />
momento, o mais provável é que, em tempos futuros, a disposição seja mais “desordenada”, como<br />
em (b). Isto significa, portanto, que os processos naturais em sistemas isolados tendem para uma<br />
entropia maior. (Fonte: http://www.mspc.eng.br/termo/termod0120.shtml)<br />
Um outro modo de definir entropia é a entropia molecular ou estatística, que foi<br />
desenvolvida por Boltzmann. Aqui, entropia é considerada uma medida de energia dispersa<br />
entre microestados acessíveis, ou seja, é uma medida de uma combinação particular de<br />
moléculas distribuídas entre níveis de uma dada quantidade de energia (KOZLIAK, 2004).<br />
Microestados são estados do sistema no qual a localização e o momento de cada<br />
molécula e átomo são especificados em grande detalhe (KOZLIAK, 2004), e o número de<br />
microestados possíveis está diretamente, mas não apenas, relacionado às alterações na<br />
temperatura (assim como a entropia de Clausius também está).<br />
Boltzmann demonstrou que a entropia de Clausius pode ser escrita relacionando os<br />
W modos em que um microestado poderia gerar um macroestado (o estado macroscópico<br />
formado pelos microestados). Nessa visão estatística, quanto maior a quantidade de<br />
microestados acessíveis, maior o número de possibilidades em que o sistema pode se<br />
arranjar e, conseqüentemente, maior a entropia:<br />
S = kB ln W ,<br />
sendo S entropia, kB, a constante de Boltzmann, de valor pré-definido, e W, o número de<br />
microestados acessíveis.<br />
Porém podemos ter esta formulação em termos de probabilidade, onde se<br />
considerarmos que a energia total do sistema (E), foi dividida entre as partículas que o<br />
constituem. Se tivermos N partículas no sistema, existem muitas maneiras de distribuir a<br />
energia total E entre as N partículas, onde cada uma dessas maneiras é específica de cada<br />
microestado (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000).<br />
114
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Então, expressando entropia de uma maneira probabilística, o sistema tem uma<br />
probabilidade pi de estar num instante qualquer em qualquer um dos W os microestados,<br />
onde ∑ipi=1, para isso, temos que:<br />
S = -kB ∑i pi ln pi<br />
(PIQUEIRA & MONTEIRO, 2000).<br />
A grande contribuição da definição estatística da entropia é fazer a ligação entre os<br />
estados macroscópicos com os microscópicos. É importante ressaltar que, apesar de agora<br />
podermos calcular a entropia sem estar necessariamente associada A fluxos de calor e<br />
energia, as duas formulações são essencialmente a mesma coisa, e os conceitos<br />
inicialmente definidos continuam valendo. Sendo assim, pensar a entropia nesta abordagem<br />
molecular pode ser uma forma mais fácil (e correta) de entender o conceito.<br />
Entropia e os sistemas vivos:<br />
“Seres vivos são sistemas termodinâmicos fora do equilíbrio”. Esta frase talvez cause<br />
certo impacto ao ser lida, no entanto o quanto ela pode ter de verdade? Se considerarmos<br />
entropia como o grau de organização apresentado por um sistema, então, realmente, ela faz<br />
sentido. Seres vivos mantêm organização interna, à custa de criar desordem no meio<br />
externo, ou seja, operam em baixos níveis de entropia, mas aumentam a entropia presente<br />
no ambiente. Isso, lógico, se tomarmos entropia como o grau de desorganização do sistema<br />
observado.<br />
Isso foi proposto por Schroedinger em 1944 (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000), no<br />
entanto Ilya Prigogine leva estas idéias mais a fundo. Em seus trabalhos com sistemas<br />
abertos (sistemas abertos são aqueles que trocam massa e energia com o ambiente), ele<br />
propõe que as mudanças de entropia nestes sistemas podem ser decompostas em uma<br />
medida de entropia que o sistema troca com o meio e uma medida de entropia de processos<br />
irreversíveis internos do sistema (e.g.: reações químicas). Nesse balanço de forças entre as<br />
entropias, é possível para este sistema atingir um estado onde sua entropia é menor que a<br />
do início sem infringir a segunda lei (PRIGOGINE, 1955, 1980; PRIGOGINE, 1972 a, 1972<br />
b, apud MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000)<br />
Esse balanço entre entropias está associado a manter entropia interna baixa ao<br />
custo de uma geração de entropia alta no meio. Por exemplo, quando o sistema troca<br />
matéria com o ambiente (por exemplo, ingestão de alimento), ocorre uma variação de<br />
entropia. O sistema consegue compensar essa variação e assim manter uma entropia baixa<br />
aumentando a entropia externa (e. g. dissipação de energia térmica).<br />
Manter uma entropia interna baixa também é importante se lembrarmos que um<br />
aumento na entropia acarreta em uma menor capacidade de realizar trabalho. Assim,<br />
115
V Curso de Inverno<br />
podemos definir que uma menor geração de entropia está relacionada à diminuição da<br />
destruição de “energia útil” num sistema (BEJAN, 2002), o que parece ser altamente<br />
adaptativo.<br />
Alguns acreditam que como a segunda lei da termodinâmica é a única lei física que<br />
indica a direção temporal na qual um sistema evolui, a evolução biológica é uma<br />
conseqüência direta desta lei (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000), o que nos remete à frase<br />
que inicia esta sessão. Por mais que se tente pensar evolução num sentido não finalista, ela<br />
parece ter uma direção no tempo. Isto pode estar ligado à segunda lei, e também a todos os<br />
fenômenos citados acima. A vida, arrumando uma “solução” para problemas que o ambiente<br />
impõe a ela, mas sem entrar em equilíbrio com o mesmo, porque afinal, se ela entrasse<br />
neste estado, ela provavelmente não existiria.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Bejan, A. 2002. Fundamentals of exergy analysis, entropy generation minimization, and the generation<br />
of flow architecture. International Journal of Energy Research 26: 545-565.<br />
Brush, S.G. 1976. The kind of motion we call heat. Elsevier Science Publishers. (vol. 2) apud<br />
Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano,<br />
I.M.L & Gonzáles, M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />
Brush, S.G. 1983. Statistical physics and the atomic theory of matter. Princeton University Press. apud<br />
Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano,<br />
I.M.L & Gonzáles, M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />
Feynman, R.P.; Leighton, R.B.; Sands, M. 1970. The laws of Thermodynamics. In Feynman, R.P.;<br />
Leighton, R.B.; Sands, M. The Feynman Lectures on Physics – volume 1. p. 44-1 – 44-13.<br />
Addison Wesley Longman.<br />
Hopf, F.A. 1988. Entropy and evolution: sorting through the confusion. In Weber, B.H. et al. (eds)<br />
Entropy, information and evolution. p. 236-274. The MIT Press. apud Monteiro, L.H.A. &<br />
Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano, I.M.L & Gonzáles,<br />
M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />
Kozliak, E.I. 2004. Introduction of entrropy via the Boltzmann distribution in undergraduate Physical<br />
Chemistry: a molecular approach. J. Chem. Educ. 81 (11): 1595-1598.<br />
Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano, I.M.L &<br />
Gonzáles, M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />
Prigogine, I. 1950. Introduction to thermodynamics of irreversible processes. John Wiley & Sons.<br />
Prigogine, I. 1972a. Thermodynamics of evolution I. Phys. Today, v. 25, n. 11, p.23-28.<br />
Prigogine, I. 1972b. Thermodynamics of evolution II. Phys. Today, v. 25, n. 12, p.38-44.<br />
Prigogine, I. 1980. From being to becoming. W.H.Freeman.<br />
Wicken, J. 1978. Information Transformations in Molecular Evolution. J. Theo. Biol. 72, 191-204.<br />
Revisado por José Guilherme de Souza Chauí Matos Berlinck<br />
116
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
Informação<br />
Vitor Hugo Rodrigues<br />
Laboratório de Fisiologia Teórica<br />
Esta é uma palavra utilizada em muitos contextos, comumente citada em diversos<br />
meios, e que assume, no geral, uma gama de significados, como por exemplo, “Conjunto de<br />
conhecimentos sobre alguém ou alguma coisa, conhecimentos obtidos por alguém, fato ou<br />
acontecimento que é levado ao conhecimento de alguém ou de um público através de<br />
palavras, sons ou imagens, elemento de conhecimento susceptível de ser transmitido e<br />
conservado graças a um suporte e um código”, ou “informação vem do latim informationem,<br />
("delinear, conceber idéia"), ou seja, dar forma ou moldar na mente, como em educação,<br />
instrução ou treinamento”, ou ainda “aquilo que reduz incerteza”.<br />
Essa palavra descreve fenômenos que são comuns a diversos tipos de sistemas, não<br />
somente a nós, humanos, pois o processo de comunicação se dá em diversos níveis que<br />
vão de células a populações inteiras, passando, inclusive, por sistemas inanimados. Frente<br />
à definição de informação dada, podemos ver que, na verdade, nos processos de<br />
comunicação, há transmissão de informação: se obtemos conhecimento sobre algo, alguém,<br />
ou algum fato, isto ocorre porque fomos comunicados de alguma forma.<br />
Quando observamos algo, procuramos de alguma forma, reduzir a incerteza que<br />
temos sobre aquilo que observamos, e, para isso, tentamos obter o máximo de informação<br />
sobre o objeto (aqui definido em senso amplo). Por exemplo, quando se está em uma festa<br />
e uma pessoa nos chama a atenção, podemos, de pronto, tomar duas posturas:<br />
De alguma forma tentar nos aproximar e nos apresentar para iniciar uma<br />
conversa.<br />
Ou não ir conversar com a pessoa, observá-la a noite inteira, e nos remoer<br />
em algum canto, torcendo para ela vir falar conosco (o que não vai<br />
acontecer, a não ser que você seja o Giannechinni).<br />
Supondo que a primeira opção tenha sido escolhida, e, a abordagem tenha sido feita<br />
(seja lá de que forma for), o diálogo (que pode virar um monólogo dependendo da reação da<br />
outra pessoa) certamente vai envolver perguntas como “Você vem sempre aqui?”, “Qual é<br />
seu nome?”, entre outras. Tudo isso sempre observando o comportamento da pessoa com<br />
quem se fala, para obter o máximo de informação possível, e assim, reduzir algumas<br />
incertezas as quais, por ventura, possam surgir, como “Será que ela vai sequer falar<br />
comigo?” ou “Vou sair sozinho desta festa hoje?”.<br />
Então, do exemplo, podemos dizer que o ambiente fornece parte das mensagens<br />
(reação, aparência, ou se a pessoa está acompanhada), assim como a própria conversa<br />
(informações relevantes (ou não!), como nome, idade, o que gosta, etc.).<br />
117
V Curso de Inverno<br />
Um pouquinho de história<br />
A história da Teoria da Informação remonta aos idos de 1928, quando Ralph Hartley,<br />
no artigo “Transmission of information”, apresenta uma formula para a quantificação de<br />
informação, o qual ressalta que o fator importante nesse processo é a habilidade do receptor<br />
em selecionar símbolos em um dado vocabulário. Então, tendo W símbolos disponíveis, a<br />
quantidade de informação H em uma dada seleção é H = logW. Hartley estava interessado<br />
em comparar a capacidade de transmissão de diversos sistemas elétricos de<br />
telecomunicação.<br />
Durante a segunda Guerra Mundial, Claude Shannon trabalhava com criptografia e<br />
sistemas de controle e automação no Bell Lab, nos Estados Unidos. Com o fim da guerra, e<br />
com muitas idéias advindas de seu trabalho com criptografia, Shannon desenvolveu a<br />
importante e controversa (ao menos na sua aplicabilidade em biologia) teoria da informação<br />
em 1948, com a publicação de um artigo, A Methematical Theory of Communication<br />
(Shannon,1948). Esse artigo foi publicado em forma de tese em 1949, com uma pequena<br />
alteração no titulo (a qual, sinceramente, faz toda a diferença), para The Mathematical<br />
Theory of Communication (Shannon & Weaver, 1949).<br />
Tá, chega de enrolação e fala logo da Teoria<br />
Shannon, logo no começo de seu artigo, inicia sua linha de raciocínio dizendo que o<br />
principal problema da comunicação é reproduzir num ponto exatamente ou da maneira mais<br />
próxima possível, uma mensagem que foi selecionada e enviada de outro ponto, e que a<br />
verdadeira mensagem é uma que é escolhida de um conjunto de mensagens possíveis.<br />
Então, o sistema tem que operar sobre qualquer seleção possível, e não com a que vai<br />
realmente ser escolhida uma vez que essa é desconhecida no momento anterior à<br />
mensagem ser enviada, ou seja, não é possível prever qual é a mensagem que será<br />
transmitida. Isso só será conhecido no momento da recepção (Shannon, 1948).<br />
A partir disso, vemos que, para Shannon, comunicação é um processo probabilístico,<br />
e que para problemas de engenharia (com os quais ele estava preocupado), o significado e<br />
veracidade das mensagens não importavam. Portanto, a teoria da informação está<br />
relacionada com a redução da incerteza do receptor, pois a mensagem tem uma<br />
probabilidade de fazer com que o receptor mude de estado, depois da transmissão da<br />
mensagem, narrando algum evento.<br />
Imagine, então, um sistema como o da figura 1, onde se tem uma fonte de<br />
informação que produz uma mensagem, ou seqüência de mensagens, as quais serão<br />
transmitidas pelo... Adivinha só? Se estiver olhando a figura e falou transmissor, acertou.<br />
Esse transmissor enviará um sinal para o receptor, por um canal, que nada mais é do que o<br />
meio pelo qual essa mensagem é enviada (sejam letras que se concatenam formando<br />
palavras, ou variação de voltagem, ou traços e pontos de código Morse, etc.). O receptor<br />
tem o papel de receber (porque isso me soa redundante?), e reconstruir a mensagem<br />
118
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
enviada, e, por fim, existe o destino que é quem deve receber a mensagem (seja uma<br />
pessoa ou coisa).<br />
Então, imagine um evento que você gostaria muito que acontecesse; como ganhar<br />
na loteria e passar o resto da vida deitado numa rede tomando seu drinque favorito. Para<br />
você saber se ganhou ou não, alguém precisa comunicá-lo, e, para isso, é necessária uma<br />
mensagem. Imagine que H é uma medida de informação e pi é a probabilidade de<br />
ocorrência de um evento dentre vários possíveis (quantidade de números acertada) e h é a<br />
informação recebida pela transmissão de uma mensagem informando um dos possíveis<br />
eventos ocorridos (por exemplo, você acertou todos os números), temos que h= - log pi.<br />
Então, a medida informação H, que é uma somatória da quantidade de informação de todos<br />
os h, ou na forma matemática, vale H=<br />
, sendo que H é chamado de entropia<br />
informacional.<br />
Re-analisando tudo isso a partir do exemplo acima, podemos ver que existiu um<br />
transmissor de informação (Caixa Econômica Federal, que é quem faz os sorteios), por um<br />
meio (transmitiu o sorteio pela TV ou rádio, ou publicou o resultado no jornal). Então o<br />
receptor (seus olhos ou ouvidos, ou os dois) recebeu a mensagem, e seu cérebro atento,<br />
que é o destino (ou destinatário) da mensagem, é quem vai processar a mensagem enviada<br />
e comparar com os números contidos no seu bilhete. Aí, a glória celestial vai preencher seu<br />
coração, ou a frustração do “droga, perdi de novo” vai amargurá-lo, mais uma vez.<br />
Sendo assim, se quiséssemos medir a quantidade de informação presente na<br />
transmissão deste evento:<br />
Tomaríamos a probabilidade de cada evento que no exemplo seria não<br />
acertar nenhum número (p0), acertar um (p1), dois (p2), três (p3), quatro (p4),<br />
cinco (p5) ou o bilhete irradiar uma imensa quantidade de felicidade<br />
mostrando que você acertou os seis números (p6, sem querer ser estraga<br />
prazeres, essa é irrisória).<br />
Então, multiplicaríamos, as probabilidades, pelos logaritmos das<br />
respectivas probabilidades (h0= p0 log (p0); h1=p1log(p1); e assim por<br />
diante).<br />
E somaríamos todos os h. Fácil, não?<br />
Teríamos, portanto, uma medida da informação contida na transmissão deste evento,<br />
segundo a teoria de Shannon. Isso, realmente, pode parecer um tanto esquisito, pois se ele<br />
partiu do pressuposto de que comunicação é um evento probabilístico, fica fácil ver o porquê<br />
de usar a probabilidade de cada evento, mas porque usar o logaritmo da probabilidade????<br />
Shannon explica:<br />
<br />
Alguns parâmetros em engenharia como tempo, comprimento de onda,<br />
variam linearmente com o logaritmo do numero de possibilidades. Por<br />
119
V Curso de Inverno<br />
<br />
<br />
exemplo, dobrando o tempo de uma série temporal, eleva-se ao quadrado o<br />
numero de mensagens possíveis, ou dobra-se o logaritmo dessas<br />
possibilidades num logaritmo de base 2.<br />
É próximo do que intuitivamente se chamaria de medida apropriada, pois se<br />
costuma comparar coisas por comparações lineares. Por exemplo, dois<br />
DVD’s tem o dobro de capacidade de armazenar informação do que um<br />
único DVD (nota: no exemplo de Shannon, foi usado cartão furado. Observe<br />
o quanto os meios de armazenamento de informação, e o tamanho dos<br />
computadores mudou de lá pra cá).<br />
É matematicamente mais apropriado, pois facilita algumas operações.<br />
Entropia...palavra recorrente...<br />
Se olhadas mais de perto, as funções de Boltzmann e de Shannon são bem<br />
parecidas, este, aliás, foi um motivo pelo qual a fórmula de Shannon citada acima foi<br />
batizada de “Entropia”. As principais diferenças são as constantes de proporcionalidade e as<br />
bases logarítmicas, que, ainda assim, não trazem diferenças significativas às duas formas.<br />
Acredita-se que a entropia de Shannon tira a definição de entropia do âmbito<br />
termodinâmico, e trás mais perto de referenciais de distribuições de probabilidade no geral.<br />
Uma das idéias associadas à noção de entropia é a da quantidade de energia distribuída<br />
pelos microestados ocupados pelo sistema, quanto mais homogênea é a distribuição (ou<br />
seja, a energia das partículas que compõem o sistema é igualmente distribuída entre os<br />
microestados do sistema) e a generalização de Shannon, pode ser encarada como a<br />
organização de um sinal ou série temporal qualquer. Quanto maior a Entropia Informacional<br />
contida naquele sinal, maior a “desorganização” do sinal como, por exemplo, ruído branco<br />
(que pode ser estática de rádio, ou da TV, que é um sinal que tem sua energia igualmente<br />
distribuída por todas as freqüências). Ou seja, mesmo tendo origens diferentes, a Entropia<br />
de Shannon dá um sentido um pouco mais geral ao conceito de Entropia.<br />
Além disso, a entropia termodinâmica pode se relacionar com a entropia<br />
informacional, já que a quantidade de microestados possíveis pode ser limitada por um<br />
acréscimo de informação ao observador. Esse é o principio de neguentropia da informação<br />
de Briollouin que leva em conta que nesse processo a entropia e a informação são<br />
intercambiáveis.<br />
Acho que entendi, mas o que isso tem a ver com Biologia?<br />
Alguns pesquisadores tentaram se utilizar da entropia informacional de Shannon para<br />
quantificar informação biológica. Considerando que informação é uma propriedade<br />
importante dos seres vivos, pois desde alguns dos menores níveis de organização (células,<br />
tecidos) envolve comunicação, ou transmissão de informação por moléculas (DNA no<br />
120
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
processo de transcrição e replicação por exemplo), uma medida como essa permitiria<br />
quantificar o nível de organização ou complexidade de um organismo.<br />
No entanto, alguns pesquisadores faziam criticas severas ao uso desta teoria em<br />
biologia evolutiva. Primeiro que, para o cálculo desta complexidade, as unidades de<br />
informação são arbitrárias, sendo que diferentes quantidades de informação serão obtidas<br />
dependendo do que se chama de unidade de informação. Um zigoto seria menos complexo<br />
que o Homem, pelo simples fato dele ser menor. Em segundo, quando se utilizam, por<br />
exemplo, proteínas constituintes como unidades de informação, calcula-se que a informação<br />
contida em um homem é de 5.10 25 bits. No entanto, outra critica curiosa e bem apropriada é<br />
que isto não pode ser levado em conta pelo fato de que tanto um homogeneizado de<br />
homem quanto um homem inteiro teriam a mesma quantidade de informação. Contudo, de<br />
todos os arranjos moleculares possíveis entre as moléculas que formam o Homem, apenas<br />
alguns podem formar um Homem vivo.<br />
Outra crítica que se coloca é a de que não se pode utilizar a teoria de Shannon, na<br />
qual se tem emissor, receptor e decodificador, para moléculas como o DNA, pois aqueles<br />
componentes não são aparentes em um sistema químico e, portanto, estes processos não<br />
carregam informação. Alem disso, a Teoria de Shannon não se preocupa com a veracidade<br />
ou com o significado da informação e, em sistemas biológicos, a qualidade da informação é<br />
tão importante quanto a quantidade de informação.<br />
Se há críticas por um lado, há, por outro, interesse na Teoria de Shannon. Segundo<br />
Maynard-Smith, se é possível transmitir informação por ondas elétricas, sonoras ou por<br />
eletricidade, por que não seria possível transmitir informação por meios químicos? Para ele,<br />
um dos grandes ganhos da teoria de Shannon é que a mesma informação pode ser<br />
transmitida por diferentes carreadores físicos. Engenheiros não usaram carreadores<br />
químicos justamente pela dificuldade de colocar ou tirar informação de meios químicos, uma<br />
dificuldade que segundo ele, os sistemas vivos conseguiram superar. É realmente difícil ver<br />
todos os elementos da teoria de Shannon no modelo de transcrição do DNA para RNA e da<br />
tradução deste RNAm para proteína. Se pensarmos na comunicação entre duas pessoas<br />
por código Morse, por exemplo, podemos identificar todos os elementos da figura 1, pois<br />
uma pessoa é a fonte da informação, existe o aparelho onde a mensagem será “digitada”,<br />
que é o transmissor, existe o meio de transmissão (eletricidade através de fios e cabos),<br />
existe o receptor, e o decodificador do código, que é o operador da maquina que recebe a<br />
mensagem. No entanto, é difícil imaginar uma decodificação de mensagem do RNAm para<br />
proteína, uma vez que o código não foi codificado por uma proteína para RNAm.<br />
Porém, nesse caso, Maynard Smith se utiliza de uma analogia que se estende por<br />
parte do artigo, que é da comunicação por código Morse. Neste caso, o codificador não é a<br />
maquininha que produz o sinal do código, e sim, a pessoa que converte significado em um<br />
encadeamento de fonemas, e que depois é convertido em código Morse. Já no exemplo do<br />
aparato celular de transcrição/tradução gênica, é a seleção natural. Por quê? Pelo simples<br />
121
V Curso de Inverno<br />
fato de que foi por seleção natural que selecionaram as seqüências de bases, dentre muitas<br />
seqüências possíveis, que originariam proteínas funcionais e constituintes dos sistemas<br />
vivos, por meio do canal de transmissão de informação descrito pela teoria de Shannon.<br />
Como ele diz em seu artigo: “Onde um engenheiro vê design, um biólogo vê seleção<br />
natural!”.<br />
Maaaasss... como nem tudo são flores, existem alguns pontos em que a teoria da<br />
Informação realmente peca quando aplicada em biologia. Warren Weaver, que trabalhou<br />
com Shannon no artigo em que se apresenta a teoria, diz que se pode medir a efetividade<br />
num processo de comunicação observando três preceitos básicos:<br />
1. O quão acuradamente os símbolos que codificam a mensagem podem ser<br />
transmitidos (o problema técnico).<br />
2. O quão precisamente os símbolos transmitidos transportam o significado desejado<br />
(o problema de significado).<br />
3. A efetividade da mensagem recebida na mudança de estado do receptor.<br />
E a teoria da Informação está apenas preocupada com o preceito 1, e em biologia,<br />
os outros dois preceitos são muito importantes, também. Então, baseado na teoria de<br />
Shannon, e focando no preceito 3, Weinberger, em 2002 propôs uma medida chamada<br />
informação pragmática, com o intuito de “medir” evolução. Na verdade, a informação<br />
pragmática vai medir a capacidade que uma mensagem tem de fazer com que o receptor<br />
mude de estado (e com isso quero dizer que se o sistema estava operando de uma<br />
determinada forma, vai passar, após a recepção da mensagem, a operar em outra; por<br />
exemplo, se você estiver parado, e seus olhos virem no relógio de que você está atrasado<br />
para a prova, seu coração disparará, e suas pernas se moverão loucamente... percebeu a<br />
mudança de estado?). Se imaginarmos um conjunto M de mensagens m, que chega a um<br />
receptor que por sua vez está ligado a um “tomador de decisão”, que enviará uma<br />
alternativa a um efetor. Esse efetor tinha um conjunto de possíveis “saídas” oi, cada uma<br />
com uma probabilidade q(oi) antes da mensagem atingir o receptor (maiores detalhes na<br />
figura 2). Até aí, nenhuma novidade. A grande novidade desse modelo é que quando o<br />
receptor capta a mensagem, as probabilidades q(oi) são revistas e as probabilidades de<br />
uma determinada “saída” se torna p(oi). Ou seja, imagine a festa do começo do capítulo, e<br />
imagine que aquela pessoa que te despertou o interesse está momentaneamente sozinha<br />
em algum canto, e deu uma olhadela sexy e uma piscadela marota pra você. Com essa<br />
mensagem, as probabilidades de uma possível postura que você pode tomar (como por<br />
exemplo, ir até a pessoa, ou ir até a pessoa com um drinque, ou ir até a pessoa chegando<br />
pelas costas; por que convenhamos, a probabilidade q(não chegar na pessoa), é quase nula<br />
nesse caso), no entanto, numa segunda observada que você dá nessa pessoa, você se<br />
depara com ela um pouco distraída, e ela enfia o dedo no nariz. Bem, depois dessa outra<br />
mensagem, as probabilidades vão ser revistas, e a probabilidade de você se aproximar se<br />
torna menor, e a de você não se aproximar, maiores.<br />
122
Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />
A informação pragmática torna-se uma medida, então, onde o contexto, e a<br />
semântica são relevantes, e então é uma medida que pode ser muito mais útil para ser<br />
usada em processos biológicos, apesar de algumas dificuldades, como por exemplo,<br />
determinar os conjuntos de ações possíveis, de mensagens possíveis e suas<br />
probabilidades.<br />
Fonte de<br />
informação<br />
Transmissor<br />
sinal<br />
recept<br />
or<br />
desti<br />
no<br />
Figura 1: Diagrama esquemático simplificado de um sistema de informação, com seus componentes<br />
(adaptado de Shannon, 1948).<br />
Teoria da Informação tem sido (mas não amplamente) usada em neurofisiologia, e<br />
em alguns estudos de comunicação de sapos e golfinhos para caracterização sonora dos<br />
cantos emitidos por estes animais (para maiores detalhes ver Suggs & Simmons, 2005 e<br />
Mcgowan, 1999). E pode ser uma base para projetos que tentem ver processamento no<br />
sistema nervoso central de algum animal, a partir de eventos de comunicação (como cantos,<br />
para animais que cantam). Por isso, apesar das limitações a Teoria da Informação de<br />
Shannon, ela abre precedentes para se pensar em transmissão de informação em<br />
processos de comunicação. Shannon, relembrando, se focou em problemas de<br />
comunicação na engenharia, e obviamente não se pode transpor diretamente esse tipo de<br />
teoria para a biologia. Mas tentativas de adaptação, como a de Weinberger com a<br />
Informação Pragmatica, são muito bem-vindas, pois tentar entender e quantificar<br />
comunicação e informação em processos biológico pode trazer grandes ganhos no<br />
entendimento desses sistemas malucos que são os sistemas vivos.<br />
Figura 2: Diagrama esquemático simplificado dos componentes que aparecem na informação<br />
pragmatica, (adaptado de Weinberger, 2002).<br />
123
V Curso de Inverno<br />
Nossa, que confusão!<br />
É, a coisa é realmente confusa. E provavelmente essa confusão ainda perdure na<br />
cabeça das pessoas por muito tempo. Mas, mesmo assim, algumas coisas bem legais estão<br />
surgindo da Teoria de Sannon. A própria informação pragmática é uma tentativa de<br />
quantificar informação, derivada da teoria de Shannon, mas que tenta estabelecer uma<br />
aplicabilidade para questões evolutivas.<br />
Para saber mais (plagiando uma famosa revista):<br />
Shannon, C.E. (1948). A Mathematical theory of communication. The Bell Sys. Tech. J.<br />
27:379-423,623-656.<br />
Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. (2000). O que orienta a evolução biológica? In. Auto-organização,<br />
D´Ottaviano I.M.L & Gonzáles, M.E.Q. Coleção CLE30, Campinas.<br />
Smith, M.J. (2000). The concept of information in biology. Phylosophy of Science, 67, 177-194.<br />
McCowan,B; Hanser, S.F; Doyle, L. R. (1999). Quantitative tools for comparing animal communication<br />
systems: Information theory applied to bottlenose dolphin whistle repertoires. Anim. Behav.<br />
57:409-419.<br />
Suggs, D & Simmons, A (2005). Information theory analysis of patterns of modulation in the<br />
advertisement call of the male bullfrog, Rana catesbeiana. J. Acoust. Soc. Am.<br />
117:2330-2337.<br />
http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_information_theory<br />
http://pt.wikipedia.org/wiki/Informa%C3%A7%C3%A3o#Etimologia<br />
Revisado por José Guilherme de Souza Chauí Matos Berlinck<br />
124
Cronobiologia<br />
Capítulo 4<br />
Cronobiologia<br />
Autores:<br />
Erika Cecon<br />
Gisele Akemi Oda<br />
Sanseray da Silveira Cruz-Machado<br />
Marco Antônio Pires Camilo Lapa<br />
Eduardo Koji Tamura<br />
Daiane Gil Franco<br />
Saulo Henrique Pires de Oliveira<br />
125
126<br />
V Curso de Inverno
Cronobiologia<br />
Introdução à Cronobiologia<br />
Gisele Akemi Oda<br />
Laboratório de Cronobiologia<br />
gaoda@ib.usp.br<br />
A Cronobiologia é o estudo da organização temporal dos seres vivos. Essa<br />
organização manifesta-se na ocorrência de ritmos biológicos em processos fisiológicos e<br />
comportamentais, desde seres unicelulares a pluricelulares, apresentando periodicidades<br />
que vão de milissegundos a anos.<br />
Ritmos biológicos com periodicidades iguais aos de ciclos ambientais são bastante<br />
evidentes: ritmos de vigília-sono, em humanos, têm períodos de 24 horas. Ritmos de<br />
hibernação e de migração têm períodos anuais. A reprodução e as atividades de muitos<br />
animais marinhos estão diretamente relacionadas com os ciclos lunares.<br />
A adaptação de um organismo, em seu aspecto temporal, está relacionada com a<br />
programação da melhor hora do dia, melhor estação do ano, melhor fase da maré, para<br />
realizar determinada atividade. Essa adaptação implica em um encadeamento de processos<br />
fisiológicos, os quais se organizam internamente, resultando em um organismo que<br />
expressa comportamentos e funções nos intervalos de tempo mais convenientes. A<br />
importância e a eficiência desse ajuste verificam-se em uma ampla diversidade de<br />
processos como a busca por alimento, interação predador-presa, sobrevivência a estações<br />
adversas, migração, reprodução, etc.<br />
Os ritmos circadianos são aqueles que apresentam períodos em torno de 24 horas<br />
e são os mais estudados na Cronobiologia. Acreditou-se, por muito tempo, que os ritmos<br />
circadianos decorriam apenas de uma resposta direta do organismo aos fatores ambientais<br />
cíclicos, como a temperatura e as alternâncias de claro e escuro. A persistência dos ritmos<br />
sob condições ambientais constantes controladas em laboratório explicitou o caráter<br />
endógeno dos mesmos, ou seja, a existência de osciladores circadianos nas diversas<br />
espécies. Sob condições constantes, o oscilador entra em ”livre-curso”, apresentando seu<br />
período natural (τ “tau”) que é sempre ligeiramente diferente de 24 horas. Fatores<br />
ambientais cíclicos podem sincronizar os ritmos biológicos, sendo chamados de<br />
“zeitgebers”. A natureza dos zeitgebers é bastante variada e dependente para cada<br />
espécie: ciclo de claro/escuro, ciclo de temperatura, ciclo de som, ciclo de disponibilidade<br />
alimentar, ciclos de estímulos sociais (Moore-Ede et al., 1982).<br />
O sentido de se ter um relógio endógeno, auto-sustentado, ao invés de apenas um<br />
simples mecanismo de resposta direta ao ciclo ambiental, está na necessidade do<br />
organismo de se preparar fisiologicamente, com antecipação, para uma determinada<br />
127
V Curso de Inverno<br />
atividade no ambiente terrestre essencialmente cíclico. Os desafios ambientais enfrentados<br />
pelos seres vivos recorrem com períodos regulares e são, portanto, previsíveis,<br />
possibilitando uma antecipação. Em muitos casos, essa necessidade torna-se bastante<br />
evidente: animais hibernadores e migradores precisam ir acumulando peso para estarem<br />
com reservas suficientes no momento ideal de se recolherem, ou de começarem uma longa<br />
viagem, respectivamente. Animais que vivem sob a areia e que precisam migrar<br />
continuamente de acordo com as marés não podem se confundir com as flutuações típicas<br />
do mar: relógios endógenos também protegem o organismo de distúrbios ambientais<br />
menores (Enright, 1970).<br />
O sistema circadiano é constituído, basicamente, de três componentes principais (fig.<br />
1):<br />
1-oscilador circadiano;<br />
2-aferências: vias de percepção e condução da informação do zeitgeber para o<br />
oscilador;<br />
3-eferências: vias de transmissão da informação temporal do oscilador para o<br />
organismo.<br />
Figura 1: Principais componentes do sistema circadiano<br />
A Identificação Anatômica do Oscilador Circadiano<br />
A identificação anatômica do oscilador circadiano, em vertebrados, iniciou-se nos<br />
anos 60 com os experimentos de Curt Richter, o qual lesionou diversos órgãos, verificando o<br />
efeito da lesão no ritmo de atividade locomotora de ratos. A lesão do hipotálamo gerou<br />
arritmicidade, indicando provável alojamento do oscilador nesta região do cérebro. Por outro<br />
lado, em 1976, Michael Menaker demonstrava arritmicidade resultante de extirpação da<br />
glândula pineal em pardais, com a retomada da ritmicidade na atividade após transplante de<br />
tecidos desta mesma glândula.<br />
A arritmicidade resultante de uma lesão não é um indicativo final de que a estrutura<br />
lesionada consista no oscilador circadiano! Lembremo-nos da estrutura do sistema<br />
circadiano: ele é constituído de aferências, oscilador e eferências. Notem que a<br />
arritmicidade pode ser provocada tanto na lesão do oscilador como de eferências. Como<br />
128
Cronobiologia<br />
distinguir estas duas possibilidades? Precisava-se, dessa forma, de critérios melhores para<br />
se acessar o oscilador através deste tipo de experimento.<br />
Para que uma estrutura possa ser definitivamente considerada como oscilador<br />
circadiano, ela deve obedecer a certos critérios (Moore-Ede et al.1982):<br />
- a oscilação deve persistir “in vitro”, ou seja, quando isolada de suas aferências e<br />
eferências;<br />
- quando transplantada, deve transferir os padrões de sua oscilação – período e fase<br />
– para o novo organismo.<br />
Em 1979, Zimmermann e Menaker demonstraram que a glândula pineal é o oscilador<br />
circadiano dos pardais, transplantando pineais entre indivíduos mantidos em condições de<br />
claro/escuro deslocados de 12h. Após o transplante, cada indivíduo passou a expressar<br />
atividade de acordo com a fase determinada pelo doador.<br />
Em 1972, os núcleos supraquiasmáticos (NSQ), localizados no hipotálamo, foram<br />
indicados como as prováveis estruturas que alojavam o oscilador circadiano, em ratos.<br />
Tendo dado prosseguimento aos experimentos de Richter, Stephan e Zucker identificaram<br />
essas estruturas no ponto final de lesões sucessivas do hipotálamo. Moore chegou à<br />
mesma estrutura por um outro caminho: através da marcação radioativa dos nervos que<br />
saíam da retina, em uma rota nervosa distinta daquela responsável pela visão, o trato retinohipotalâmico,<br />
o qual desemboca nos NSQs. Faltava, ainda, provar que os NSQs eram os<br />
osciladores circadianos utilizando aqueles critérios apresentados acima.<br />
Os NSQs são constituídos por dois conglomerados de células nervosas, designados<br />
NSQ direito e NSQ esquerdo. Nos ratos, foi estimado que cada NSQ contém,<br />
aproximadamente, 10.000 neurônios agregados em um volume de apenas 0.05 mm 3<br />
(Guldner, 1976).<br />
Em 1979, Inouye e Kawamura conseguiram isolar os NSQs “in vivo”, cortando todas<br />
as ligações neurais entre os NSQs e o restante do hipotálamo, construindo o que eles<br />
descreveram como “ilha hipotalâmica”. Nesse experimento, eles demonstraram a existência<br />
de ritmos circadianos na atividade elétrica detectada por eletrodos localizados na região<br />
hipotalâmica externa e interna aos NSQs antes do isolamento neural. Após este isolamento,<br />
a ritmicidade era evidenciada somente nos potenciais medidos pelos eletrodos internos,<br />
ficando a região externa arrítmica.<br />
A demonstração mais dramática dos NSQs como principais osciladores circadianos<br />
foi feita com o transplante de NSQs de hamsters “tau-mutantes” (que apresentam mutação<br />
no período circadiano, τ ≈ 20h) em hamsters selvagens (τ ≈ 24h). Os animais lesionados,<br />
que haviam ficado arrítmicos, passaram a apresentar ritmos de atividade-repouso com o<br />
período do doador mutante (Ralph et al, 1990)!!!<br />
A idéia de que os organismos possuem um único oscilador ou relógio circadiano<br />
anatomicamente definido permeou os primeiros passos da história da identificação dessas<br />
estruturas em espécies pertencentes aos diversos grupos vertebrados. Os NSQs, em<br />
129
V Curso de Inverno<br />
roedores, e a glândula pineal em aves e répteis, eram os grandes representantes desses<br />
osciladores únicos, em vertebrados. Posteriormente, a retina veio se juntar como uma<br />
terceira estrutura produtora de oscilações auto-sustentadas circadianas (Besharse & Iuvone,<br />
1983) (Tosini & Menaker, 1996). Estudos posteriores acabaram por indicar que o<br />
acoplamento entre essas três estruturas resulta no eixo central do sistema circadiano de<br />
vertebrados. Este acoplamento é variável entre espécies, podendo cada espécie incorporar<br />
uma, duas ou todas essas estruturas em seu eixo central circadiano (Menaker, 1982).<br />
A incorporação de cada uma dessas estruturas no eixo central varia enormemente<br />
quando se estudam espécies filogeneticamente próximas. Nas aves, por exemplo, o estudo<br />
comparativo do efeito da pinealectomia em diversas espécies levava a resultados pouco<br />
convergentes. A pinealectomia causava arritmicidade em certas espécies passeriformes,<br />
modificava o padrão da atividade locomotora em outros (estorninho) e, finalmente, não<br />
alterava este ritmo em outros (galos e codornas). O ritmo circadiano de produção de<br />
melatonina em culturas de pinealócitos correspondentes às pineais dos três grupos era<br />
igualmente robusto, indicando mesma capacidade oscilatória mas diferenças na<br />
incorporação desta glândula no eixo central do sistema circadiano (Takahashi et al., 1980).<br />
Em répteis, a variabilidade na incorporação de cada estrutura é ainda mais dramática, uma<br />
vez que ocorrem divergências mesmo entre espécies de mesmos gêneros (Underwood,<br />
1977).<br />
Neste quadro aparentemente caótico, é notório o fato de que todos os mamíferos<br />
apresentam os NSQs como osciladores centrais únicos, além de apresentarem uma<br />
glândula pineal incapaz de sustentar oscilação quando isolada de suas aferências. A<br />
glândula pineal assume o papel de eferência dos NSQs em mamíferos. A retina, por sua<br />
vez, assume papel de aferência aos NSQs, sendo que os mamíferos constituem o único<br />
grupo animal que apresenta fotorrecepção centralizada, exclusivamente retiniana. A única<br />
outra espécie conhecida que apresenta exatamente esta mesma estrutura do sistema<br />
circadiano (fotorrecepção exclusivamente retiniana, pineal não oscilatória e oscilador único<br />
provavelmente no hipotálamo) são as feiticeiras (ciclóstomas como as lampréias)<br />
localizadas no outro extremo da árvore filogenética dos vertebrados. Existem muitas<br />
especulações interessantes sobre o porquê dessa estruturação unificada entre mamíferos e<br />
diferenciada do restante dos vertebrados e uma das proposições deste fato curioso traz à<br />
luz a conexão entre a “história fótica” vivenciada por cada espécie ao longo da evolução e<br />
esta estruturação. Dentro dessa proposição, argumenta-se que os mamíferos evoluíram de<br />
um grupo ancestral comum noturno. Essa hipótese ficou conhecida como a do “gargalo<br />
noturno” (Menaker & Tosini, 1996; Menaker et al., 1997). Semelhanças na história fótica<br />
seriam mais determinantes do que a proximidade filogenética entre espécies na<br />
estruturação do sistema circadiano, como exemplificado pelas semelhanças observadas<br />
entre os mamíferos e a feiticeira.<br />
130
Cronobiologia<br />
***<br />
Os componentes do sistema circadiano de mamíferos estão associados às vias<br />
aferentes e eferentes dos NSQs. A informação temporal do ciclo de claro-escuro chega à<br />
retina e é enviada aos NSQs através do trato retino-hipotalâmico, que é distinto do trato<br />
visual primário (Moore & Lenn, 1972) e do trato geniculo-hipotalâmico, que é originado do<br />
folheto intergeniculado (Harrington & Rusak, 1986). Além deles, existem aferências da rafe<br />
dorsal e de outras áreas adjacentes do hipotálamo. As eferências dos NSQs são os outros<br />
núcleos do hipotálamo e outras áreas do sistema nervoso central, incluindo a glândula<br />
pineal e a pituitária (referências em Golombek et al, 1997 e Moore-Ede, 1982). Essas<br />
conexões indicam que os NSQs estão fornecendo informação temporal para a maioria dos<br />
sistemas de controle do organismo.<br />
Qual é, no entanto, a variável correspondente ao oscilador circadiano, nos NSQs?<br />
Uma vez que os NSQs são um conglomerado de neurônios, o primeiro candidato à variável<br />
de oscilador era a atividade elétrica, avaliada pela freqüência de disparos dos potenciais de<br />
ação dos neurônios. Esta idéia era motivada também pelo fato das outras estruturas<br />
oscilatórias (pineal e retina, bem como os olhos de insetos e moluscos (Block & Wallace,<br />
1982), identificados como osciladores nos invertebrados) também terem natureza neuronal.<br />
O experimento realizado pelo grupo de Bill Schwartz, em 1987, discutido em aula,<br />
demonstrou que os potenciais de ação globais dos neurônios dos NSQs constituem as<br />
aferências e eferências do oscilador, permanecendo a identificação final deste elusivo.<br />
Mais tarde, ficou demonstrado que neurônios individuais dos NSQs apresentam<br />
oscilações circadianas na atividade elétrica (Welsh et al., 1995), sendo que estas oscilações<br />
têm períodos correspondentes aos determinados pelas mutações nos períodos das<br />
atividades locomotoras, em roedores mutantes (Herzog et al., 1998). Chegara-se ao nível<br />
celular dos NSQs e o notório fato de que organismos unicelulares apresentavam “sistemas”<br />
circadianos, desde procariotos, indicava que a variável oscilatória, possivelmente comum<br />
desde procariotos a vertebrados com estruturas anatômicas definidas para o relógio, deveria<br />
estar no nível subcelular!<br />
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V Curso de Inverno<br />
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Revisado por Gisele Akemi Oda e Regina Pekelmann Markus<br />
132
Cronobiologia<br />
Bases Moleculares do Relógio e Osciladores Periféricos<br />
Erika Cecon<br />
Laboratório de Cronofarmacologia<br />
erika.cecon@usp.br<br />
Com a constatação de que uma extensa variedade de funções biológicas exibe uma<br />
periodicidade que persiste mesmo quando o organismo é transferido para um local com<br />
condições ambientais constantes, iniciou-se uma incessante busca pela identificação do<br />
relógio endógeno e pela compreensão de seu funcionamento.<br />
Conforme visto anteriormente, o sistema circadiano apresenta-se organizado na<br />
seguinte estrutura: vias aferentes, oscilador central e vias eferentes. Nos mamíferos, cinco<br />
órgãos são fundamentais para a regulação circadiana de fenômenos fisiológicos e<br />
comportamentais, sendo eles: 1) retina fotossensível, 2) trato retino-hipotalâmico, 3) núcleos<br />
supraquiasmáticos (NSQ), 4) glândula pineal e 5) osciladores periféricos.<br />
A informação luminosa percebida por estruturas fotossensíveis da retina é<br />
transmitida aos NSQs através do trato retino-hipotalâmico. Este trato é composto pelos<br />
axônios de neurônios provenientes do nervo óptico, no quiasma óptico, que projetam-se<br />
sobre os NSQs na porção anterior do hipotálamo, sendo o glutamato o principal<br />
neurotransmissor envolvido na sinalização fótica. Os NSQs, por sua vez, enviam sinais à<br />
glândula pineal e aos demais órgãos osciladores periféricos, ajustando-os. Sob o controle<br />
dos NSQs, a pineal produz ritmicamente o hormônio melatonina que, atuando como um<br />
efetor neuroendócrino, sinaliza a presença da fase de escuro a todo o organismo. É possível<br />
que esse hormônio exerça também um feedback (retro-alimentação) sobre o próprio SCN<br />
auxiliando no ajuste fino do relógio central (Pando & Sassone-Corsi, 2001).<br />
Além desta via, outro grupo de neurônios do trato retino-hipotalâmico projetam seus<br />
axônios sobre o folheto intermediogenicular (IGL) que, por sua vez, conecta-se aos NSQs<br />
pelo trato genicular-hipotalâmico, cujas principais inervações apresentam GABA (ácido γ-<br />
aminobutírico), neuropeptídeo Y e encefalina como neurotransmissores (Moore & Card,<br />
1994). O envolvimento desta via no sistema circadiano foi demonstrado por experimentos<br />
nos quais a estimulação de IGL ou infusão de neuropeptídeo Y foi capaz de alterar a fase<br />
dos ritmos circadianos, atrasando ou adiantando-os. O mesmo efeito também foi<br />
demonstrado para GABA e, in vitro, sua presença é capaz de sincronizar os disparos de<br />
neurônios em cultura (Liu & Reppert, 2000).<br />
Outra via de aferência aos NSQs é a mediada pelos núcleos serotonérgicos da rafe.<br />
Assim como o IGL, esta via está relacionada a mudanças de fase induzida por fatores nãofóticos<br />
como, por exemplo, uma resposta a alterações comportamentais (Damiola et al.,<br />
133
V Curso de Inverno<br />
2000 e Stokkan et al., 2001). Todas essas vias de aferência aos NSQs estão representadas<br />
na figura 1 abaixo.<br />
Figura 1: Ajustes diretos e indiretos do núcleo supraquiasmático (SCN ou NSQ) de mamíferos<br />
roedores. A luz estimula fotorreceptores retinianos, que transmitem o sinal fótico através do trato<br />
retino-hipotalâmico (RHT) diretamente ao SCN ou por vias alternativas como a do folheto<br />
intergenicular (IGL) e do núcleo da rafe (RN). A glândula pineal (PG), que é diretamente regulada<br />
pelos SCN, exerce um feedback influenciando a sincronização dos SCN (Pando & Sassone-Corsi,<br />
2001).<br />
Desde meados da década de 60, apesar do pouco conhecimento existente a<br />
respeito do controle dos ritmos biológicos, já era postulado que os metazoas deveriam<br />
apresentar um relógio central responsável pelo controle de diversos relógios subsidiários,<br />
uma vez em que são organismos altamente complexos (Ehret & Trucco, 1967).<br />
Nessa mesma época já era também hipotetizado que os mecanismos básicos da<br />
maquinaria do relógio seriam encontrados a nível celular, pois a presença de ritmos<br />
circadianos já havia sido descrita nos mais diversos táxons, de vertebrados a organismos<br />
unicelulares como Euglena e Paramecium e, inclusive, em neurônios isolados (Strumwasser,<br />
1965).<br />
A partir deste ponto, novas discussões foram iniciadas a respeito de qual<br />
compartimento celular (núcleo ou citoplasma) exerceria o papel de relógio central. Muitos<br />
experimentos com organismos anucleados apontavam para a hipótese de que o citoplasma<br />
seria a porção celular essencial para a manutenção dos ritmos circadianos. Somente após a<br />
realização de experimentos com actiomicina-D, um inibidor de transcrição gênica, que o<br />
núcleo voltou a receber sua devida atenção.<br />
Agora restava a dúvida: por onde começar a busca pelo relógio biológico dentro do<br />
núcleo celular? Uma das respostas teve a seguinte lógica: considerando que a expressão de<br />
um ritmo requer um sistema integrado, mutações em genes responsáveis pelo<br />
134
Cronobiologia<br />
desenvolvimento e funcionamento do sistema como um todo irão levar à manifestação de<br />
ritmos anormais. E assim iniciaram-se os numerosos experimentos com a mosca-da-fruta<br />
Drosophila melanogaster, com a qual era possível obter os mais variáveis mutantes.<br />
Um dos primeiros trabalhos selecionou três mutantes de Drosófila para estudar os<br />
ritmos de eclosão e de locomoção. Um dos mutantes era arrítmico, outro exibia um período<br />
de 19h e o terceiro tinha período de 28h em relação ao ritmo de eclosão das pupas,<br />
conforme demonstram os gráficos da figura 2.<br />
Figura 2: Ritmo de eclosão em livre-curso (escuro<br />
constante) de Drosófilas ritmicamente normais (A) ou mutantes (B-D), previamente mantidas em ciclo<br />
claro-escuro 12:12, T=20º (Konopka & Benzer, 1971).<br />
O ritmo de locomoção também se encontra alterado nesses mesmos mutantes (fig.<br />
3), confirmando a ausência da expressão do relógio circadiano. Este trabalho de 1971 foi<br />
importante por ter demonstrado a base genética de ritmos circadianos, comprovando<br />
inclusive que os genes mutados, responsáveis pelos fenótipos com alterações nos ritmos,<br />
estavam ligados ao cromossomo X (Konopka & Benzer, 1971).<br />
Em 1994, foi identificado um gene cuja mutação altera dramaticamente a expressão<br />
de ritmos circadianos em camundongos, afetando o período do ritmo quando em livre-curso<br />
e a persistência dos ritmos em condição de escuro constante. (Vitaterna et al., 1994). Esse<br />
gene foi nomeado de Clock (por Circadian Locomotor Output Cycles Kaput) e seu<br />
mapeamento completo foi realizado em 1997 (King et al.).<br />
Atualmente, o relógio central molecular de mamíferos é composto por oito proteínas:<br />
PERIOD1, PERIOD2, PERIOD3, CLOCK, BMAL1, CRYPTOCHROME1,<br />
CRYPTOCHROME2 E CASEÍNA KINASE Iε (Pando & Sassone-Corsi, 2001).<br />
135
V Curso de Inverno<br />
Figura 3: Ritmo de atividade locomotora (barras escuras) em Drosófilas ritmicamente normais (A) ou<br />
mutantes (B-D), T=25ºC (Konopka & Benzer, 1971).<br />
As proteínas CLOCK e BMAL1 são tidas como fatores de transcrição positivos, pois<br />
induzem a transcrição gênica de cry1, cry2, per1 e per2 cujas proteínas resultantes, por sua<br />
vez, atuam como repressores da transcrição gênica. PER e CRY formam heterodímeros e,<br />
quando atingem determinada concentração, interagem com o heterodímero formado por<br />
CLOCK e BMAL, evitando então que esses últimos ativem mais transcrição gênica. Como<br />
conseqüência, os níveis de RNAm e de proteína de PER e CRY vão decrescendo até o<br />
ponto e que tornam-se insuficientes para reprimir a atividade de CLOCK/BMAL, reiniciando<br />
um novo ciclo. CLOCK/BMAL também regulam a transcrição do receptor nuclear órfão REV-<br />
ERBα, que por sua vez inibe a transcrição de clock e bmal, levando a uma expressão<br />
rítmica e anti-fásica desses fatores. Modificações pós-traducionais, como a atividade de<br />
fosforilação da caseína kinase (CK Iε), parecem ser importantes também para a regulação<br />
rítmica desses diferentes fatores, já que sua ausência gera fenótipos com ritmos circadianos<br />
alterados (Gachon et al., 2004). Um modelo simplificado dessas alças de feedback<br />
encontra-se na figura 4 abaixo.<br />
Apesar dos grandes avanços obtidos na compreensão do funcionamento da<br />
maquinaria do relógio biológico, ainda restam muitas dúvidas a respeito da conexão entre o<br />
relógio central (NSQ) e os relógios periféricos localizados em muitos (senão em todos)<br />
órgãos e tecidos animais.<br />
Os genes de relógio descobertos nos neurônios do NSQ foram posteriormente<br />
identificados em praticamente todas as demais células dos organismos, mas por estarem<br />
tão distante da principal via de aferência sincronizadora (retiniana), sabia-se que o<br />
mecanismo oscilatório apresentado na periferia deveria divergir daquele encontrado nos<br />
NSQs. De fato, toda oscilação rítmica descrita em tecidos periféricos foi atribuída a um<br />
controle neural proveniente do relógio central, sem o qual as oscilações desapareceriam.<br />
136
Cronobiologia<br />
Figura 4: Modelo simplificado das alças de feedback responsáveis pela expressão rítmica dos genes<br />
do relógio no oscilador circadiano de mamíferos (Gachon et al., 2004).<br />
O mecanismo geral de integração do sistema circadiano em mamíferos seria então o<br />
seguinte (figura 5): o relógio central (NSQ) é ‘resetado’ a cada dia através da informação<br />
fótica proveniente da retina, sincronizando sua ritmicidade endógena ao ciclo claro-escuro<br />
ambiental. Uma vez sincronizados, os NSQs enviam a todo o organismo sinais neuronais e<br />
humorais que controlam, principalmente, a secreção rítmica de hormônios importantes na<br />
regulação de processos fisiológicos rítmicos. Como exemplo, podemos citar os<br />
glicocorticóides produzidos pela glândula adrenal, que estão intimamente relacionados com<br />
a marcação da fase de atividade do animal, ou então a melatonina, hormônio relacionado<br />
com a marcação da fase de escuro. Indo um pouco mais além, a fase de atividade limita<br />
outros ritmos, como a janela temporal em que ocorre a tomada de alimento ou a caça,<br />
mantendo-os também sincronizados. Por outro lado, a sensação de fome e a alimentação<br />
em si são fortes zeitgebers para a grande maioria dos relógios periféricos, propiciando pistas<br />
temporais provavelmente através dos níveis de glicose plasmática, dos hormônios<br />
relacionados aos processos digestivos ou mesmo pelas vias neurais provenientes do NSQ,<br />
mas que não envolvem o trato retino-hipotalâmico (figura 1, para revisão). Essas pistas<br />
137
V Curso de Inverno<br />
temporais são capazes de arrastar os ritmos nesses relógios, sem que o relógio central seja<br />
alterado (Damiola et al., 2000 e Stokkan et al., 2001). Os ritmos de alimentação e de<br />
atividade / repouso também são capazes de influenciar a temperatura corporal, apesar de<br />
esta ser majoritariamente controlada pelo NSQ. Por sua vez, a temperatura corporal<br />
constitui outro forte zeitgeber para os relógios periféricos.<br />
Até pouco tempo atrás, pensava-se que os relógios periféricos perdiam sua<br />
capacidade oscilatória após alguns ciclos quando isolados do organismo, já que não<br />
estariam mais sob o controle do oscilador central, enquanto que este apresentava uma<br />
ritmicidade auto-sustentada. Isto de fato foi comprovado por diversos estudos, em que<br />
cultura de células neuronais provenientes dos núcleos supraquiasmáticos ainda mantinham<br />
disparos rítmicos, enquanto que órgãos periféricos deixavam de exibir qualquer ritmicidade<br />
quando os NSQs eram lesionados. Justamente por este motivo que os osciladores<br />
periféricos são muitas vezes referenciados como osciladores servos (slave oscillators) em<br />
oposição ao oscilador central (master pacemaker).<br />
Figura 5: Mecanismos de ajuste de fase dos osciladores circadianos central e periféricos em<br />
roedores de hábito noturno (para maiores explicações, vide texto. Retirado de Schibler & Sassone-<br />
Corsi, 2002)<br />
138
Cronobiologia<br />
Neste contexto, foi uma surpresa a descoberta de que uma cultura de células<br />
imortalizadas de fibroblastos de ratos passava a expressar os genes do relógio ritmicamente<br />
após entrar em contato com altas concentrações de soro (Balsalobre et al., 1998).<br />
Posteriormente, essa suspeita de uma ritmicidade intrínseca foi definitivamente comprovada<br />
por experimentos utilizando um gene-repórter para acompanhamento da transcrição do<br />
gene per, que indicaram que sua ritmicidade era mantida por mais de 20 ciclos em diversos<br />
tecidos periféricos isolados (Yoo et al., 2004), como podemos observar na figura 6. Tais<br />
resultados apontam para um papel mais pontual dos NSQ. Assim, quando ausente, cada<br />
tecido ou mesmo cada célula estaria livre para expressar sua ritmicidade própria, com um<br />
período também próprio, que são capazes de persistir embora de forma totalmente<br />
independente, seja em relação a outros órgãos, seja em relação a outros indivíduos. A<br />
função do relógio central seria então de sincronizar todos esses relógios de modo que<br />
entrem em fase uns com os outros e possibilitem a perfeita sincronização do meio interno ao<br />
meio externo. Este conceito encontra-se esquematizado na figura 7 a seguir.<br />
Figura 6: Análise da expressão circadiana do gene per2 ligado ao gene-repórter luciferase (cuja<br />
bioluminescência foi medida e compõe o eixo y) em diferentes órgãos explantados imediatamente<br />
antes do apagar das luzes (SCN = núcleo supraquiasmático; kidney = rim; RCA = área<br />
retroquiasmática; liver = fígado; lung = pulmão; pituitary = glândula pituitária ou hipófise; tail = cauda),<br />
retirado de Yoo et al., 2004.<br />
139
V Curso de Inverno<br />
Apesar dos grandes avanços na área, os mecanismos exatos de funcionamento da<br />
maquinaria do relógio biológico, ou dos relógios biológicos, ainda estão longe de serem<br />
totalmente compreendidos. A perspectiva é de que, cada vez mais, novos genes e novos<br />
fatores de transcrição envolvidos neste processo sejam descobertos, compondo um cenário<br />
ainda mais complexo de alças de feedback e de interações nos mais diversos níveis, desde<br />
o núcleo celular até o nível sistêmico.<br />
A presença de um oscilador interno capaz de perceber as alterações cíclicas<br />
ambientais e transmiti-las ao resto do corpo de forma a organizar os diferentes osciladores,<br />
é funcionalmente importante para garantir o sucesso adaptativo dos organismos. É<br />
compreensível então que toda essa complexidade de mecanismos para que o organismo<br />
sincronize-se ao meio externo tenha sido altamente conservada e selecionada no processo<br />
evolutivo, garantindo-lhe a importante capacidade de antecipação aos fenômenos cíclicos<br />
ambientais.<br />
Figura 7: Sincronização do sistema temporizador de mamíferos. A) O relógio central, sincronizado<br />
pela informação fótica, atua como um maestro orquestrando todos os demais osciladores<br />
(periféricos). B) Na ausência do relógio central, os periféricos continuam oscilando mas as fases não<br />
são mais sincronizadas entre si, resultando em animais comportamentalmente arrítmicos. (Retirado<br />
de Gachon et al., 2004)<br />
140
Cronobiologia<br />
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Revisado por Gisele Akemi Oda e Regina Pekelmann Markus<br />
141
V Curso de Inverno<br />
Ajuste do Relógio Biológico: Aferências da<br />
Retina à Glândula Pineal<br />
Sanseray da Silveira Cruz-Machado<br />
Laboratório de Cronofarmacologia<br />
sanseray@usp.br<br />
O organismo vivo multicelular precisa atuar de forma integrada e sincronizada. A<br />
comunicação entre diferentes órgãos e sistemas pode ser feita de forma rápida e<br />
direcionada, como ocorre com as informações que transitam através da rede neural, ou de<br />
forma mais difusa e integradora, como ocorre com o sistema endócrino. Nos dois casos os<br />
sistemas transmitem a informação em tempo real e os órgãos-alvo vão reagir conforme o<br />
estado em que se encontram no momento em que recebem o estímulo (Markus et al, 2003,<br />
2007).<br />
Considerando os ciclos naturais aos quais somos submetidos, o organismo precisa<br />
estar preparado para o amanhecer e para todas as demais fases das 24 horas do dia<br />
(aproximadamente 12 horas de claro e 12 horas de escuro) para poder responder de forma<br />
apropriada aos desafios que surgem. Para reconhecer estas variações no fotoperíodo, os<br />
seres vivos necessitam de sensores que percebam a variação temporal de luz e também de<br />
mecanismos que, através de sinais humorais e neurais, vão informar o estado de iluminação<br />
ambiental ao organismo. Além disso, há necessidade de um relógio endógeno que marque o<br />
tempo de forma independente de qualquer variação ambiental e que este seja sincronizado<br />
por ciclos ambientais regulares, adequando os sinais eferentes a cada momento.<br />
A principal variação ambiental percebida pelo organismo é a alternância claro-escuro.<br />
Todos os vertebrados utilizam células fotorreceptoras especializadas para perceber as<br />
variações luminosas no ambiente e sincronizar-se (figura 1). Entretanto, mamíferos e<br />
vertebrados não-mamíferos fazem isso de forma diferente.<br />
Os vertebrados não-mamíferos utilizam fotorreceptores circadianos especializados,<br />
localizados na pineal e na retina. Tais células respondem à luz que penetra pela pele, crânio<br />
e pelo tecido cerebral, gerando sinais que agem diretamente no relógio biológico central.<br />
Nestes animais, os olhos não são necessários para a sincronização ao ciclo claro-escuro,<br />
embora quando presentes proporcionem aumento na sincronização dos ciclos (Menaker,<br />
2003).<br />
Já os mamíferos têm fotorrecepção exclusivamente retiniana e usam fotorreceptores<br />
especializados situados na retina para perceber as variações de luz no ambiente (figura 2A).<br />
Acreditou-se, por muito tempo, que os cones e bastonetes, que são fotorreceptores visuais<br />
clássicos da retina, constituíssem também os principais fotorreceptores para transmissão da<br />
informação do claro/escuro ambiental para o relógio biológico (figura 2B). Eles são capazes<br />
142
Cronobiologia<br />
de traduzir uma onda luminosa em um sinal químico e com isso gerar um potencial elétrico<br />
no nervo óptico (Tessier-Lavigne, 2000). Estes fotorreceptores, quando seletivamente<br />
eliminados em experimentos com ratos e camundongos sem que houvesse dano adicional à<br />
retina, não causam alteração na sincronização circadiana, demonstrando que um outro<br />
receptor poderia estar envolvido no envio de informações ambientais para ajustar o relógio<br />
biológico central (Menaker, 2003).<br />
Figura 1 – Células Fotorreceptoras especializadas da retina: Cones e bastonetes são divididos em:<br />
segmento externo (responsável pela fototransdução), segmento interno (onde se encontra a<br />
maquinaria biossintética da célula) e o terminal simpático (que faz sinapse com outros neurônios)<br />
(Adaptado de Baldo & Hamassaki-Britto, 1999).<br />
De fato, recentemente foi demonstrada a existência da melanopsina, um<br />
fotopigmento presente nas células ganglionares da retina, o qual faz parte de uma<br />
superfamília de receptores acoplados à proteína G, altamente sensíveis à luz. A<br />
melanopsina é expressa na retina em todas as classes de vertebrados examinadas até o<br />
momento, sendo vista desde peixes até mamíferos. O padrão de expressão de melanopsina<br />
difere entre as classes de vertebrados, mas sua presença em células ganglionares da retina<br />
é constante. Nos mamíferos, essas são as únicas células que expressam melanopsina<br />
(Panda et al, 2002). Tais células ganglionares projetam axônios diretamente para os núcleos<br />
supraquiasmáticos (NSQ) através do trato retino-hipotalâmico. Assim, nos mamíferos, a<br />
retina além de enviar informações visuais para o córtex para formar a visão via cones e<br />
bastonetes, envia informações sobre a iluminação ambiental para áreas não-visuais, como o<br />
143
V Curso de Inverno<br />
NSQ, via células ganglionares, cones e bastonetes para promover a sincronização do<br />
relógio biológico central às variações ambientais do fotoperíodo (Panda et al., 2002, rev.<br />
Simonneaux & Ribelayga, 2003).<br />
Figura 2 – Fotorrecepção na retina: (A) A luz atravessa várias estruturas antes de chegar à retina<br />
propriamente dita. À direita (quadro) na região da fóvea, estão localizados alguns tipos celulares da<br />
retina. (B) Esquema simplificado que mostra os principais tipos celulares da retina: fotorreceptores<br />
(cones e bastonetes), células bipolares, células amácrinas, células horizontais e células ganglionares.<br />
(Adaptado de Baldo & Hamassaki-Britto, 1999).<br />
Este conceito funcional dos olhos realizando o papel de detecção de luz para<br />
adequar o comportamento e as respostas fisiológicas é diferente da visão e emergiu<br />
144
Cronobiologia<br />
recentemente. Além disso, saber que a via retino-hipotalâmica opera de forma independente<br />
da visão ainda nos permite explicar porque muitos sujeitos que são cegos totais, sem<br />
nenhuma percepção luminosa de forma consciente, são capazes de ajustar o relógio<br />
biológico ao ciclo claro-escuro ambiental (Foster, 1998; Markus et al, 2003).<br />
A pineal (Epiphysis Cerebri) é uma singular e pequena glândula conhecida há mais<br />
de 2000 anos e descrita fundamentalmente como um órgão rudimentar até cerca de 50 anos<br />
atrás. Foi após o isolamento de uma substância ativa, realizada por Aaron Lerner em 1958,<br />
que esta situação mudou.<br />
Basicamente, a glândula pineal está localizada na linha média encefálica, projetandose<br />
no teto diencefálico, normalmente conectada por uma ou mais hastes. A glândula<br />
pertence ao grupo dos órgãos circunventriculares, que derivam de células ependimárias e<br />
que se encontram situados fora da barreira hematoencefálica e em comunicação com o<br />
sistema ventricular.<br />
A pineal apresenta uma grande variabilidade entre as espécies. Em peixes e anfíbios<br />
ela contém células fotorreceptoras semelhantes às células da retina, enquanto que em<br />
mamíferos é tipicamente endócrina e não possui fotorreceptores desenvolvidos (figura 3A).<br />
Didaticamente, os tipos celulares encontrados na glândula de animais adultos são<br />
geralmente classificados em células parenquimais e células intersticiais. A primeira classe<br />
de células é composta por pinealócitos (figura 3B) que apresentam características de um<br />
paraneurônio, ou seja, um neurônio com propriedade de produzir substâncias (no caso da<br />
pineal, produção de melatonina). Já as células intersticiais, também denominadas de células<br />
de suporte, são compostas por células da glia, principalmente astrócitos e microglia (Erlich &<br />
Apuzzo, 1985; Tricoire et al, 2002).<br />
Nos mamíferos, a pineal faz parte, exclusivamente, da via eferente do sistema<br />
circadiano. Como já abordado anteriormente, as informações da variação ambiental de<br />
luminosidade chegam ao NSQ para ajustá-lo. A informação temporal gerada pelo relógio<br />
biológico central (NSQ) chega a todo organismo principalmente através de uma via neural<br />
que atinge a glândula pineal, estimulando-a a produzir melatonina que, ao ser liberada na<br />
circulação, informa a presença do escuro às células do organismo. A lesão no NSQ não<br />
abole a produção de melatonina pela glândula pineal, entretanto, dessincroniza o ritmo<br />
diário da síntese deste hormônio (Simonneaux & Ribelayga, 2003).<br />
A via neural referida anteriormente é formada pelo núcleo paraventricular (PVN) e a<br />
coluna intermédio-lateral da medula espinhal, que levam estímulos do NSQ ao gânglio<br />
cervical superior (gânglio simpático) que, por sua vez, inerva diretamente a glândula pineal<br />
(figura 4) (Maronde & Stehle, 2007).<br />
Os pinealócitos captam o aminoácido triptofano (Trp) da circulação de forma<br />
constante ao longo das 24 horas. O triptofano é convertido em 5-hidroxitriptofano (5-HTP),<br />
que por fim é convertido em serotonina (5-HT) (Simonneaux & Ribelayga, 2003).<br />
145
V Curso de Inverno<br />
Figura 3 – Evolução filogenética dos pinealócitos e sua estrutura microscópica: (A) Em peixes,<br />
anfíbios, répteis e aves, as células da pineal atuam como células fotorreceptoras ou células<br />
fotorreceptoras rudimentares, enquanto em mamíferos, as células da pineal são caracterizadas como<br />
pinealócitos, as quais apresentam característica secretora. (B) Desenho ilustrativo da organização<br />
microscópica da glândula pineal, onde pinealócitos estão envoltos por células interticiais. (Adaptado<br />
de Nelson, 1995).<br />
A inervação da glândula pineal é feita por fibras simpáticas originárias do gânglio<br />
cervical superior. Na glândula, os axônios simpáticos interagem com pinealócitos e, através<br />
da liberação de noradrenalina, controlam a síntese de melatonina (Simonneaux & Ribelayga,<br />
2003). Além deste neurotransmissor, estes neurônios simpáticos também liberam ATP<br />
concomitantemente, que atua como um co-transmissor nesta sinalização simpática (Mortani-<br />
Barbosa et al., 2000).<br />
A formação do hormônio melatonina (figura 5) é limitada pela presença da enzima<br />
AA-NAT (aril-alquilamina N-acetiltransferase), restrita à fase de escuro. Com a noradrenalina<br />
sendo liberada na fase de escuro pelas fibras simpáticas, adrenoceptores β1 são ativados,<br />
acionando a via de transdução de sinal do segundo mensageiro AMP cíclico – PKA (proteína<br />
kinase dependente de AMPc), que culmina na indução da transcrição do gene desta enzima.<br />
A enzima AA-NAT é responsável por catalisar a conversão de serotonina em N-<br />
146
Cronobiologia<br />
acetilserotonina (NAS) que, por ação da enzima HIOMT (hidroxi-indol-O metiltransferase),<br />
converterá NAS em melatonina. O ATP, por sua vez, ativa receptores purinérgicos do subtipo<br />
P2Y1, iniciando uma cascata de sinalização que envolve um aumento de cálcio intracelular,<br />
resultando em uma potenciação sobre o efeito noradrenérgico na produção noturna de<br />
melatonina (Ferreira et al., 1994; Ferreira & Markus, 2001).<br />
Figura 4 – Via clássica de aferência da retina à glândula pineal: Aferências da retina chegam ao NSQ<br />
pela trato retino-hipotalâmico. Do NSQ, as informações fotoperiódicas seguem via PVN e descendem<br />
pela medula espinhal através da coluna intermédio-lateral cujo neurônio faz sinapse com neurônios<br />
do gânglio cervical superior, o qual emite projeções diretas à glândula pineal, liberando noradrenalina<br />
durante o escuro, estimulando a síntese do hormônio melatonina. (Adaptado de Bloom & Fawcett,<br />
1994).<br />
É importante ressaltar que, no caso de roedores, a presença de luz bloqueia a<br />
transcrição do gene da AA-NAT e, por isso, a síntese de melatonina ocorre apenas no<br />
escuro. Como NAS e melatonina têm alto coeficiente de partição óleo/água, elas são<br />
rapidamente transferidas para a corrente sanguínea e líquor, e exercem as mais variadas<br />
funções nos mais diversos tipos celulares (Minneman & Wurtman, 1976; Tricoire et al, 2002;<br />
Simonneaux & Ribelayga, 2003).<br />
147
V Curso de Inverno<br />
Figura 5 – Síntese de Melatonina: (A) Triptofano é captado da circulação e metabolizado em 5-<br />
hidroxitriptofano (5-HTP) na mitocôndria da pineal por ação da enzima TRIPTOFANO HIDROXILASE.<br />
Em seguida, 5-HTP é convertido em serotonina no citoplasma da pineal por um aminoácido aromático<br />
descarboxilase; esta via está ativada continuamente ao longo do dia. Somente na fase de escuro há<br />
liberação de noradrenalina pelas terminações simpáticas, iniciando a transcrição gênica da AA-NAT,<br />
enzima limitante para a síntese de melatonina, que converterá serotonina em NAS, que será<br />
convertida em melatonina por ação da enzima HIOMT. (B) Gráfico demonstrando o ritmo de produção<br />
de melatonina que ocorre durante o escuro (Adaptado de Bloom & Fawcett, 1994; Simonneaux &<br />
Ribelayga, 2003).<br />
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149
V Curso de Inverno<br />
Eferências do Sistema Circadiano - Melatonina,<br />
o hormônio do escuro<br />
Marco Antonio Pires Camilo Lapa<br />
marco_lapa_bio@yahoo.com.br<br />
Eduardo Koji Tamura<br />
ektamura@yahoo.com.br<br />
Laboratório de Cronofarmacologia<br />
Melatonina como eferência do sistema de temporização<br />
A melatonina é o hormônio produzido pela glândula pineal, conhecido como<br />
hormônio marcador do escuro. Esta indolamina derivada da serotonina foi primeiramente<br />
descrita por Lerner e colaboradores (1958) como a substância produzida pela glândula<br />
pineal durante o escuro que promovia a mudança da cor da pele de anfíbios.<br />
Como já visto, sua via biossintética é sincronizada ao ciclo claro-escuro ambiental.<br />
Nos mamíferos, a informação luminosa é percebida pelos fotorreceptores retinianos,<br />
transmitida aos núcleos supraquiasmáticos (NSQs) e ao núcleo paraventricular<br />
hipotalâmico, que se conecta então aos gânglios cervicais superiores. Na fase de escuro, as<br />
fibras simpáticas pós-ganglionares liberam noradrenalina, que ativa receptores β-<br />
adrenérgicos presentes na glândula pineal, estimulando então a produção de melatonina<br />
(figura 1).<br />
Figura 1: Via biossintética da melatonina, controlada pelo ciclo claro/escuro. Á esquerda, a presença<br />
de luz inibe esta via, enquanto que na fase de escuro (à direita), ela é estimulada. NSQ – núcleo<br />
supraquiasmático; GCS – gânglio cervical superior.<br />
A síntese de melatonina inicia-se com a captura do aminoácido triptofano a partir da<br />
circulação, que é convertido em 5-hidroxitriptofano e em serotonina. Esta, por sua vez, é<br />
acetilada a N-acetilserotonina (NAS) em uma reação dependente da enzima aril-alquilamina-<br />
150
Cronobiologia<br />
N-acetiltransferase (AA-NAT), cuja expressão gênica varia ao longo do dia. Por fim, a NAS é<br />
metilada pela enzima hidroxindol-O-metiltransferase (HIOMT), formando a melatonina (figura<br />
2).<br />
Figura 2: Representação da via metabólica pela qual o aminoácido triptofano é convertido em<br />
melatonina. As enzimas que convertem o triptofano em serotonina, a triptofano hidroxilase 1 e a 5-<br />
hidroxitriptofano descarboxilase, possuem uma ampla distribuição no organismo, sendo a produção<br />
de serotonina muito maior nos tecidos neurais. As duas enzimas que convertem serotonina em<br />
melatonina possuem uma distribuição mais limitada. Retirado e adaptado de Reiter et al. (2000).<br />
Na fase de escuro, a atividade da enzima AA-NAT está aumentada em até 100 vezes<br />
em relação à fase de claro (fig. 3). Este aumento, no caso de mamíferos roedores, é devido<br />
ao aumento da transcrição gênica dessa enzima decorrente da sinalização intracelular<br />
iniciada pela ativação de receptores β-adrenérgicos. Já em ungulados e humanos, o que<br />
garante a presença rítmica desta enzima é o controle de sua degradação por proteassomas,<br />
sendo então sintetizada continuamente, porém, com menor degradação durante a fase de<br />
escuro (Stehle et al., 2001).<br />
A melatonina com função eferente, ou seja, sinalizadora para o organismo da fase de<br />
escuro ambiental do dia e do fotoperíodo do ano, é produzida principalmente pela glândula<br />
pineal. Dentre os vertebrados, existem alguns munidos de estruturas capazes de perceber e<br />
sinalizar as condições de claro e escuro ambiental, como a retina e a própria glândula<br />
pineal. Em alguns casos, a melatonina produzida na retina pode fazer a sincronização por si<br />
só, sem a interferência da pineal ou do NSQ. E na ausência da retina, certas espécies<br />
151
V Curso de Inverno<br />
conseguem sincronizar seus ritmos circadianos apenas através do NSQ ou da pineal<br />
(Chabot & Menaker, 1992).<br />
Figura 3: Regulação da via biossintética de melatonina pela presença rítmica da enzima AA-NAT. Em<br />
roedores, a ausência de luz estimula a transcrição gênica desta enzima, resultando na síntese de N-<br />
acetilserotonina (NAS), precursor imediato da melatonina<br />
Para a determinação dessa atividade sincronizadora proveniente da pineal foram<br />
feitos experimentos por Gwinner e Benzinger (1978) em que estorninhos (Sturnus vulgaris)<br />
foram pinealectomizados e tratados com injeção constante de melatonina, causando um<br />
processo de atividade contínua. Em outro grupo de aves enucleados e também<br />
pinealectomizadas, foram aplicadas doses diárias de melatonina somente na fase de<br />
escuro, e estes animais sincronizaram normalmente. Estes experimentos realçam o papel<br />
eferente da melatonina, sendo ela capaz de sincronizar o organismo na ausência de<br />
aferência e de oscilador. Seguindo este mesmo raciocínio, doses diárias de melatonina são<br />
utilizadas na sincronização de cegos totais humanos (Lockley et al., 2000).<br />
No entanto, em algumas aves, como pombos e codornas, (aquelas em que a retina<br />
constitui um oscilador circadiano), a própria melatonina produzida pela retina circula por todo<br />
o organismo, sincronizando o ritmo de atividade locomotora nesses animais (Foà &<br />
Menaker, 1988).<br />
Em mamíferos, a melatonina atua de diferentes formas na regulação da reprodução,<br />
dependendo da espécie. O que eles têm em comum é o fato de utilizarem a informação<br />
sazonal endógena, através da duração da liberação de melatonina para que a reprodução e<br />
o nascimento da prole ocorram nos momentos mais favoráveis.<br />
Isso é mais perceptível em mamíferos que habitam locais com grandes variações<br />
climáticas, que tendem a reproduzir em épocas em que o clima, por exemplo, favoreça a<br />
obtenção de alimentos e que a temperatura não seja prejudicial para o crescimento da prole.<br />
152
Cronobiologia<br />
Considerando estas afirmações, era de se esperar que, dependendo da duração da<br />
gestação, os animais de diferentes espécies deveriam ser férteis em épocas sazonais<br />
diferentes.<br />
Experimentos realizados em Hamster Siberiano, que apresentam um período<br />
gestacional curto, demonstraram que, conforme a duração da fase de claro aumenta, estes<br />
animais se tornam férteis. Animais de longo período de gestação, como os carneiros, se<br />
tornam férteis em épocas do ano em que os dias são mais curtos. Tanto os carneiros quanto<br />
os hamsters, quando pinealectomizados, perdem estas características, voltando a<br />
apresentá-las após administração diária de melatonina por um tempo correspondente à<br />
duração do escuro no período fértil.<br />
Além dos mamíferos, a melatonina é um importante sinalizador para o estado<br />
reprodutivo também em peixes e aves, atuando sobre a atividade locomotora em peixes,<br />
aves e répteis, e sobre a regulação da temperatura corporal desses dois últimos grupos. No<br />
entanto, a maioria dos estudos com melatonina é realizada em mamíferos e, atualmente,<br />
sabe-se que este hormônio exerce inúmeras ações, tanto centrais como periféricas (figura<br />
4).<br />
Figura 4: Melatonina atua principalmente como um sincronizador endógeno, mas também pode atuar<br />
em outros sistemas como, por exemplo, na imunidade, pressão sanguínea, etc (Claustrat et al.,<br />
2005).<br />
As Múltiplas Funções da Melatonina<br />
Além da glândula pineal, a melatonina pode ser produzida também por outros<br />
órgãos, embora a sua expressão rítmica com função sinalizadora da fase de escuro se<br />
aplique somente à melatonina proveniente da pineal ou da retina, como já mencionado.<br />
Segundo Reiter e colaboradores (2007), a melatonina pode ser produzida pela retina,<br />
corpo ciliar, glândula Harderiana, cérebro, timo, epitélio respiratório, medula óssea, trato<br />
digestório, ovário, testículo, placenta, leucócitos e pele. Além disso, melatonina foi<br />
encontrada em altas concentrações na bile de vários mamíferos, incluindo o homem. Essas<br />
153
V Curso de Inverno<br />
concentrações chegam a ser de duas a três vezes maiores do que as concentrações da<br />
melatonina noturna no sangue, porém, sua origem ainda é desconhecida.<br />
Apesar de a melatonina extra-pineal não contribuir para a ritmicidade plasmática<br />
deste hormônio, pode contribuir para diversos efeitos parácrinos e/ou autócrinos, permitindo<br />
a efetuação de ações que exigem altas concentrações de melatonina. De fato, a<br />
concentração noturna máxima de melatonina no plasma em mamíferos está na faixa de pM<br />
– nM e ações dependentes da produção extra-pineal são observadas em concentrações<br />
maiores, na faixa de µM – mM. Dentre os efeitos parácrinos, podemos citar a melatonina<br />
produzida pela retina, que participa do processo de adaptação para a visão noturna, ou<br />
então a melatonina produzida por células imunocompetentes, que pode atuar sobre<br />
processos inflamatórios ou exercer atividade antibiótica (Tekbas et al, 2007).<br />
A melatonina pode atuar de diversas formas: ativando receptores específicos<br />
localizados na membrana de diversos tipos celulares ou então interagindo diretamente com<br />
alvos intracelulares, já que se trata de uma molécula lipofílica com alta capacidade de<br />
entrada nas células. Com relação ao primeiro caso, sabe-se que a melatonina se liga com<br />
alta afinidade (pM a nM) a receptores clássicos de membrana (MT1, MT2 e Mel1c) que<br />
pertencem à família de receptores de sete domínios transmembrânicos acoplados à proteína<br />
G.<br />
Os receptores MT1 e MT2 podem ser encontrados em mamíferos, anfíbios, peixes e<br />
aves, enquanto o receptor Mel1c pode ser encontrado em todas estas classes, com exceção<br />
dos mamíferos. Os mecanismos de ação destes receptores são dependentes do local em<br />
que se encontram, apresentando uma grande variedade de mecanismos descritos (figura 5).<br />
A ligação da melatonina a receptores intracelulares tem sido sugerida em alguns<br />
modelos como, por exemplo, células mononucleares do sangue periférico. De maneira geral,<br />
acredita-se que exista um “sítio receptor” (MT3) para a melatonina, muito provavelmente<br />
constituído pela enzima quinona redutase II, que atue como um receptor intracelular (figura<br />
6).<br />
154
Cronobiologia<br />
Figura 5: Cascatas de sinalização que podem ser promovidas pela ativação de receptores de<br />
melatonina (Masana e Dubocovich, 2001).<br />
Figura 6: Mecanismos de ação da melatonina. (Boutin et al., 2005).<br />
Um dos principais mecanismos de ação da melatonina observados em baixas<br />
concentrações é a capacidade de ligação à calmodulina, ligação esta de alta afinidade,<br />
sugerindo uma relevância fisiológica. Considerando que a calmodulina participa da maioria<br />
dos eventos intracelulares em vertebrados superiores, além de possuir capacidade de<br />
ligação e regulação de uma grande diversidade de proteínas-alvos, incluindo enzimas,<br />
canais iônicos, receptores e proteínas do citoesqueleto, a interação melatonina-calmodulina<br />
pode interferir em diversas modificações de funções celulares.<br />
Devido à existência de tantos mecanismos de ação, não é de se estranhar que uma<br />
grande diversidade de efeitos seja atribuída a este hormônio, conforme esquematizado na<br />
figura 7.<br />
Um dos efeitos mais conhecidos e bem estudados de altas concentrações de<br />
melatonina é a capacidade de atuar como antioxidante. Os radicais livres possuem alta<br />
reatividade, o que leva à oxidação de moléculas estruturais e essenciais para a atividade<br />
celular. Outro mecanismo de ação que pode resultar neste efeito é o aumento da atividade<br />
155
V Curso de Inverno<br />
de enzimas antioxidantes (Chang HM et al., <strong>2008</strong>; Kędziora-Kornatowska et al., <strong>2008</strong>).<br />
Várias ações da melatonina são atribuídas a esta capacidade antioxidativa. Como exemplo,<br />
indivíduos da espécie Drosophila melanogaster vivem por aproximadamente 60 dias e a<br />
administração de melatonina juntamente com o alimento promove um aumento no tempo de<br />
vida de aproximadamente 20 dias. Estes efeitos são atribuídos à prevenção da formação de<br />
radicais livres.<br />
Figura 7: Esquema descrevendo diversas ações da melatonina (Hardeland et al., 2006).<br />
A melatonina também atua sobre processos fisiopatológicos no organismo como, por<br />
exemplo, sobre o processo inflamatório, no qual modula o ritmo circadiano observado na<br />
espessura das patas de camundongos cronicamente inflamados por injeção de Bacillus<br />
Calmette-Guerin. Foi observado um ritmo onde o edema era maior na fase de claro do que<br />
na de escuro e deixava de existir em animais pinealectomizados, voltando após a<br />
suplementação de melatonina (dose fisiológica) na fase de escuro (Lopes et al., 1997). Em<br />
modelo de inflamação aguda, Cuzzocrea e colaboradores (1999) demonstraram que a<br />
inflamação aguda induzida por carragenina aumenta o exsudato pleural e a mobilização<br />
leucocitária em ratos mantidos por 24 horas em luz constante durante uma semana, sendo<br />
que a reposição exógena de melatonina inibe esse aumento. Essa hipótese de que a<br />
melatonina seria capaz de interferir em processo inflamatório foi corroborada por Lotufo e<br />
colaboradores (2001) em experimentos que demonstram uma inibição da interação<br />
156
Cronobiologia<br />
neutrófilo-endotélio pela melatonina, processo necessário para que ocorra a migração de<br />
neutrófilos para o tecido lesionado (figura 8).<br />
Figura 8: Após um estímulo lesivo, os leucócitos que trafegam na região central do vaso sofrem uma<br />
marginalização e interagem com as células endoteliais num processo denominado rolamento,<br />
desencadeado através de moléculas de adesão principalmente da classe das selectinas. Já as<br />
integrinas promovem uma maior interação com as células endoteliais resultando na mudança<br />
conformacional das células que transmigram para o local do estímulo.<br />
Um dos mecanismos pelos quais a melatonina exerce seus efeitos é a modulação do<br />
tônus vascular, onde atua de maneira dependente do modelo em estudo. Na ausência da<br />
camada interna (células endoteliais), a melatonina atua sobre as células musculares lisas da<br />
artéria caudal de ratos através de dois receptores distintos que desencadeiam efeitos<br />
antagônicos: o subtipo MT1 promove a potencialização da vasoconstrição, enquanto o<br />
subtipo MT2 promove a vasodilatação.<br />
Experimentos realizados por Pontes e colaboradores (2006) demonstraram a<br />
modulação recíproca entre a glândula pineal e o sistema imune. Foi observado que mães<br />
que estavam com mastite (um processo inflamatório não infeccioso) tinham os níveis de<br />
melatonina noturnos no colostro muito inferiores ao nível de mães saudáveis, indicando uma<br />
inibição da produção de melatonina da pineal concomitantemente ao processo inflamatório.<br />
Em um artigo de 2007, Markus e colaboradores caracterizaram o eixo imune-pineal ao<br />
observar que a melatonina noturna produzida pela glândula pineal, e que era encontrada no<br />
colostro e no leite, caía à zero com o aumento da citocina TNF-α na circulação de mães que<br />
realizaram partos por cesariana. Glândulas tratadas in vitro com esta mesma citocina<br />
também tiveram sua produção de melatonina inibida (Fernandes et al., 2006).<br />
Atualmente, a melatonina tem sido muito investigada em humanos, onde não possui<br />
funções diretas na modulação da reprodução mas é muito conhecida por contribuir em<br />
processos relacionados ao sono, a temperatura corporal e também em enfermidades como<br />
Jet lag, depressão sazonal e câncer.<br />
157
V Curso de Inverno<br />
Devido a esta grande diversidade de mecanismos de ações que ocorrem de acordo<br />
com a concentração e com o local de ação, a melatonina tem sido amplamente estudada<br />
por diversos grupos e nos mais diferentes sistemas. Apesar dos vários efeitos fisiológicos e<br />
fisiopatológicos já demonstrados e bem estabelecidos por toda a literatura, muitos destes<br />
efeitos não estão elucidados, abrindo um grande campo de estudo com esta importante<br />
molécula encontrada nos mais diversos organismos.<br />
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Revisado por Gisele Akemi Oda e Regina Pekelmann Markus<br />
159
V Curso de Inverno<br />
Aspectos Evolutivos da Melatonina<br />
Daiane Gil Franco<br />
Laboratório de Cronofarmacologia<br />
daianegfranco@yahoo.com.br<br />
A melatonina é uma indolamina bastante conservada entre os organismos, assim<br />
como sua biossíntese. Por ter sido descoberta na glândula pineal de um bovino, por muito<br />
tempo se acreditou que a melatonina era um hormônio exclusivo de mamíferos. Hoje<br />
sabemos que esta molécula não só está presente em outros organismos, como também sua<br />
definição como hormônio não atende a todas as funções por ela desempenhadas. Neste<br />
capítulo, vamos dar um enfoque evolutivo dos possíveis papéis da melatonina nos diferentes<br />
táxons.<br />
Além dos vertebrados, já foi identificada a presença de melatonina em bactérias,<br />
protozoários, macroalgas, plantas vasculares, fungos e invertebrados (Hardeland &<br />
Poeggler, 2003), incluindo gastrópodes, crustáceos e insetos (Vivien-Roels & Pévet, 1993).<br />
Por outro lado, existem poucas ou nenhuma evidência da presença da melatonina em<br />
briófitas, pteridófitas, esponjas, anelídeos, quelicerados e equinodermos (Hardeland &<br />
Poeggler, 2003). Em cada um dos grupos onde a melatonina já foi descrita, ela está<br />
envolvida em diferentes processos tornando difícil a tarefa de classificá-la funcionalmente.<br />
Como já vimos anteriormente, a via predominante da síntese de melatonina, que<br />
ocorre na glândula pineal de mamíferos e em muitos outros organismos, se inicia pela<br />
conversão do aminoácido triptofano em 5-hidroxitriptofano (5-HTP), o qual é então<br />
convertido em serotonina (5-HT). A 5-HT é então acetilada pela enzima arilalquilamina-Nacetiltransferase<br />
(AA-NAT) formando a N-acetilserotonina (NAS). Por fim, esta última é<br />
metilada pela enzima hidroxindol-O-metiltransferase (HIOMT) dando origem à melatonina.<br />
Além dessa, a pineal pode recorrer a outras vias que terão como produto final a 5-<br />
metoxitriptamina (5-MTP), ou ácido acético 5-metoxindol (5-MIAA) ou ainda 5-metoxitriptofol<br />
(5-ML) (Simonneuax & Ribelayga, 2003). Em outros organismos, como veremos adiante, a<br />
via de biossíntese da melatonina pode sofrer alterações.<br />
A melatonina é considerada um hormônio por desempenhar papéis típicos<br />
dessa classe de substâncias. Os hormônios são definidos classicamente como mensageiros<br />
químicos que são sintetizados por um órgão endócrino e liberados na circulação para atuar<br />
em tecidos localizados em outras áreas do organismo através de receptores. A melatonina<br />
cumpre com todos esses parâmetros, participando, portanto, dessa classificação.<br />
Entretanto, muitas características da melatonina a tornam diferente dos hormônios, como<br />
veremos ao longo do texto.<br />
160
Cronobiologia<br />
É necessário deixar claro que, para cada grupo citado a seguir, a melatonina<br />
desempenha dezenas de funções diferentes e, neste texto, abordaremos apenas algumas<br />
delas que são mais interessantes ou mais descritas na literatura.<br />
Organismos unicelulares<br />
Para entendermos a função primordial da melatonina é necessário olharmos para os<br />
organismos mais primitivos, ou seja, os unicelulares.<br />
A primeira descrição da presença de melatonina em um organismo fora do reino<br />
animal se deu em um dinoflagelado bioluminescente, Gonyaulax polyedrum (Poeggler et al.,<br />
1991). Esse organismo produz uma grande quantidade de melatonina, muitas vezes<br />
superior à encontrada na glândula pineal de mamíferos, e de forma rítmica semelhante à<br />
encontrada nos vertebrados, ou seja, com um pico de produção na fase escura.<br />
Nestes organismos a simulação de um dia de inverno (fotofase curta e temperatura<br />
baixa) é capaz de induzir o encistamento. A interrupção da escuridão por 2 horas de luz<br />
previne a formação do cisto, mesmo quando a duração da fase clara continua menor que a<br />
duração da fase escura (dia curto). Quando é dado um fotoperíodo que não induz o<br />
encistamento, a incubação com melatonina e seu metabólito 5-MTP é capaz de promover a<br />
formação do cisto. Isso mostra que essas indolaminas podem ser mediadoras do escuro<br />
nesses organismos (Balzer & Hardeland, 1991). Nas espécies de dinoflagelados a<br />
melatonina é desacetilada para formar 5-MTP, sendo esta, talvez, um agonista mais<br />
importante do que a melatonina no processo de estimulação da bioluminescência e do<br />
encistamento (Hardeland et al., 1996). O pico de melatonina e da 5-MTP se dão em<br />
momentos diferentes da fase escura. A primeira ocorre no início enquanto que a segunda<br />
ocorre na segunda metade da escotofase (fase de escuro do ciclo claro/escuro).<br />
O metabolismo da melatonina nesses organismos pode se dar pela via enzimática<br />
pela qual serão formados os compostos metilados ou por reações não-enzimáticas com<br />
radicais livres (ex: radicais catiônicos fotoxidantes) levando à formação de N1-acetil-N2-<br />
formil-5-metoxiquinuramina (AFMK) (Hardeland et al., 1996). De acordo com essa segunda<br />
via, a melatonina parece ter uma grande importância na proteção do organismo reduzindo<br />
os radicais livres diretamente, sem necessitar da ativação de enzimas antioxidantes (Antolín<br />
et al., 1997).<br />
É possível, portanto, determinar pelo menos duas funções da melatonina nesses<br />
organismos: uma ação fototransdutora e uma ação antioxidante. Essas duas funções<br />
podem, na verdade, estar essencialmente interligadas. Por ser altamente degradada pela<br />
luz na presença de catalisadores intracelulares, a melatonina só aparece em grandes<br />
concentrações na fase escura. Nessa fase, a melatonina vai reagir com substâncias<br />
resultantes da fotoxidação, atuando como antioxidante. Desta forma, muitos organismos<br />
devem ter desenvolvido mecanismos que utilizavam essa molécula como mediadora do<br />
escuro<br />
161
V Curso de Inverno<br />
Plantas<br />
A determinação de melatonina em plantas requer um cuidado maior. Diferentemente<br />
dos animais, as plantas possuem uma grande quantidade de indolaminas e outras<br />
substâncias que possuem estrutura e peso molecular semelhantes ao da melatonina,<br />
dificultando o trabalho de identificação das moléculas. Dentre essas substâncias estão, por<br />
exemplo, as auxinas (IAA, ácido acético-3-indol), que têm uma estrutura molecular muito<br />
próxima da melatonina, pois também possuem um grupo indol (figura 1). As técnicas<br />
utilizadas para identificação se baseiam no peso molecular e na reatividade com anticorpos<br />
(HPLC - high performance liquid chromatography e radioimunoensaio, respectivamente). Até<br />
o momento já foi identificada a presença da melatonina em algas e angiospermas (mono e<br />
dicotiledôneas) (Cassone & Nateson, 1997).<br />
Figura 1: Melatonina e outros importantes hormônios de plantas. (A) Melatonina (B) Auxina (C)<br />
Giberelina A1 (D) Citocinina cis-Zeatina (Cassone & Nateson, 1997).<br />
Pouco se sabe sobre a via biossintética de melatonina nos vegetais. Um trabalho de<br />
Murch e colaboradores (2000) mostrou que esta via pode ser parecida com a dos<br />
vertebrados, tendo formação de serotonina como precursora da melatonina. Além disso, a<br />
função da melatonina nas plantas também é motivo de discussão.<br />
Ainda não existe na literatura um resultado satisfatório que indique o papel da<br />
melatonina sobre um ritmo circadiano ou anual das plantas. A floração é bastante estudada<br />
mas, até o momento, apenas na planta de dia-curto (florescem no solstício de inverno),<br />
Chenopodium rubrum, a melatonina influenciou na resposta fotoperiódica de floração (Kolár<br />
et al., 2003). Em outras espécies, de dia longo ou curto, o tratamento com melatonina (100<br />
ou 500 µM) bloqueou a floração (Van Tassel, 1997; Wolf et al., 2001). Em comparação com<br />
o que se sabe sobre os efeitos da melatonina em animais, são feitas especulações sobre<br />
seus efeitos nas plantas como antioxidante (Hardeland & Poeggeler, 2003), antiapoptótica<br />
(Jou et al., 2004) e como antagonista da calmodulina e do citoesqueleto (Benítez-King &<br />
Antón-Tay, 1993). O efeito antioxidante é de grande interesse, pois são encontradas grandes<br />
quantidades de melatonina em sementes e frutas (Balzer & Hardeland, 1996).<br />
Alguns autores acreditam que, nas plantas, a melatonina possa ter uma ação<br />
exclusiva e semelhante à do hormônio auxina. Estas são estruturalmente parecidas, como<br />
dito anteriormente (figura 1), porém existem poucas evidências de que a melatonina possa<br />
atuar da mesma forma que a auxina. Em um estudo de cultura de secções de caule, a<br />
auxina foi capaz de induzir fortemente a formação de raízes, já a melatonina teve pouca<br />
influência (Murch et al., 2001). Acredita-se que a melatonina possa ser convertida em auxina<br />
ou em um agonista desse hormônio.<br />
Uma última hipótese de qual seria a finalidade da presença de melatonina em<br />
plantas é o seu papel ecológico. A ingestão de plantas pode elevar os níveis dessa<br />
indolamina no organismo (Reiter et al., 2001) agindo como um metabólito secundário, assim<br />
162
Cronobiologia<br />
como muitos alcalóides e, portanto, pode desempenhar o papel de sinalizadora para alguns<br />
herbívoros. Um exemplo é o de que doses farmacológicas de melatonina diminuem a<br />
fertilidade em Drosophila melanogaster (Finocchiaro et al., 1988). Desta forma, a planta se<br />
torna menos atraente para o inseto quando possui melatonina ou um precursor desta, como<br />
a triptamina. Curiosamente, uma grande concentração de melatonina tem sido encontrada<br />
em plantas medicinais usadas milenarmente (Tanacetum parthenium, Hypericum<br />
perforatum, Scutellaria baicalensis).<br />
Insetos<br />
Entre os insetos, a mosca da fruta é a mais estudada em relação a melatonina. A<br />
Drosophila melanogaster possui um padrão diferente em relação à maioria dos organismos<br />
estudados quanto à expressão rítmica de melatonina, ou seja, há uma maior liberação<br />
dessa indolamina na fase clara em relação à fase escura (Hintermann et al., 1996).<br />
A enzima chave no processo de biossíntese da melatonina em mamíferos é a AA-NAT,<br />
cuja expressão e atividade são maiores à noite. Já em D. melanogaster, foi clonada uma<br />
enzima que converte 5-HT em NAS, chamada de AA-NAT2. Esta possui uma atividade<br />
diurna predominante (Hintermann et al., 1996). Avaliando a seqüência dessas enzimas em<br />
um estudo de cladística se propôs que a biossíntese da melatonina em Drosophila, e<br />
possivelmente em outros artrópodes, tenha uma relação homoplástica (convergência) com a<br />
via encontrada em vertebrados (Cassone & Natesan, 1997). Isso quer dizer que a via de<br />
biossíntese da melatonina deve ter surgido mais de uma vez na escala evolutiva.<br />
Na Drosophila, a AANAT2 é expressa em todo o sistema nervoso e intestino sendo<br />
importante para a neurotransmissão, esclerotização da cutícula e talvez para o ritmo de<br />
expressão da melatonina, regulando fenômenos fotoperiódicos (Hintermann et al., 1996).<br />
Não se sabe ao certo qual o real papel da melatonina nessa mosca, mas o estudo de<br />
Bonilla e colaboradores (2002) indica que a ingestão de melatonina adicionada ao meio<br />
nutritivo de larvas prolongam a longevidade e aumentam a resistência a mudanças na<br />
temperatura ambiental e ao estresse oxidativo provocado por paraquato (substância tóxica,<br />
cáustica e irritante usada como herbicida).<br />
A grande maioria dos trabalhos com melatonina em invertebrados se restringe à<br />
Drosophila por ser esta o modelo biológico desse grupo de animais. Porém, melatonina já foi<br />
estudada em outros insetos como abelhas, baratas, moscas, gafanhotos, entre outros. Em<br />
grande parte desses insetos, foi demonstrado que a concentração de melatonina varia<br />
ritmicamente com um pico que coincide com a fase noturna e está envolvida com o controle<br />
circadiano do ritmo de eclosão (Meyer-Rochow & Vakkuri, 2002). Assim, a mosca da fruta<br />
parece ser uma exceção no mundo dos insetos.<br />
Peixes<br />
A glândula pineal de peixes é fotossensível e gera melatonina circulante de forma<br />
rítmica de acordo com um determinado fotoperíodo. A retina também produz melatonina sob<br />
163
V Curso de Inverno<br />
essas condições, a qual age de forma parácrina. Assim como em mamíferos, a<br />
concentração dessa indolamina é maior durante a fase escura (Iigo et al., 1994). A<br />
pinealectomia pode alterar o ritmo de atividade e alimentação gerando até mesmo padrões<br />
arrítmicos. Estes dados suportam a idéia de que, nos peixes, a pineal e sua eferência<br />
(melatonina) atuam como um relógio circadiano. Os peixes possuem um sistema<br />
multioscilatório que depende da glândula pineal, da retina e do núcleo supraquiasmático.<br />
Este é um padrão que veremos entre todos os vertebrados não-mamíferos (Falcón, 1999). O<br />
acoplamento diferente entre esses osciladores gera os padrões rítmicos diferentes entre as<br />
espécies, ou seja, dá origem às espécies diurnas, noturnas e outras que possuem um ritmo<br />
bimodal.<br />
Os estudos do papel da glândula pineal em peixes iniciaram há 40 anos. Através<br />
destes estudos fica claro que esta glândula está envolvida em inúmeras funções<br />
comportamentais e fisiológicas que<br />
possuem padrões rítmicos diários<br />
ou anuais. Entre essas funções,<br />
podemos citar: a atividade<br />
locomotora (incluindo a migração<br />
vertical), a procura por alimento, a<br />
preferência por temperaturas<br />
adequadas, osmorregulação,<br />
pigmentação da pele, reprodução e<br />
crescimento. O papel da melatonina<br />
na reprodução dos peixes teleósteos é o mais estudado, embora a grande variabilidade dos<br />
resultados obtidos entre indivíduos de espécies diferentes, ou até na mesma espécie,<br />
considerando sexo, condições de iluminação ou fase reprodutiva diferentes, gerem muitas<br />
controvérsias (Ekström & Meissl, 1997; Mayer, 1997).<br />
Um estudo interessante sobre memória indica que em um peixe (Zebrafish) a<br />
melatonina suprime a formação da memória noturna. Como este peixe é diurno, o<br />
aprendizado de uma tarefa operacional ocorre melhor de dia do que de noite. O tratamento<br />
durante o dia com melatonina resulta em uma má formação da memória semelhante ao que<br />
acontece à noite. Já a pinealectomia promove uma melhora no aprendizado em animais<br />
mantidos em escuro constante (Rawashdeh et al., 2007).<br />
Anfíbios<br />
A primeira evidência de que a glândula pineal produzia uma substância biologicamente<br />
ativa partiu de um trabalho de McCord e Allen, em 1917, no qual extrato da glândula de boi<br />
foi usado em pele de um anfíbio, evidenciando a capacidade de uma substância, que mais<br />
tarde foi denominada melatonina, em alterar a pigmentação através da movimentação de<br />
grânulos contendo melanina (melanossomas) no interior dos melanóforos dermais.<br />
164
Cronobiologia<br />
Assim como em peixes, a glândula pineal de anfíbios é frontal e fotossensível. No<br />
entanto, na fase adulta, esses animais possuem um conteúdo de melatonina maior na retina<br />
do que na glândula pineal, sugerindo que a retina seja a principal produtora dessa<br />
indolamina em anfíbios (Delgado & Vivien-Roels, 1989). Ainda são necessários novos<br />
estudos para determinar a origem de melatonina plasmática em anfíbios anuros.<br />
Um papel interessante que a melatonina pode desenvolver nesse grupo de animais<br />
está relacionado à metamorfose. A transformação do girino em adulto é um processo que<br />
pode ser afetado pela temperatura ambiental e pelo fotoperíodo e é induzido pelo aumento<br />
gradual dos hormônios da tireóide. Apesar de sabermos que a melatonina tem uma ação<br />
inibitória sobre a tireóide, os trabalhos que relacionam metamorfose e a indolamina são<br />
contraditórios. Alguns indicam que o tratamento com melatonina acelera o processo, outros<br />
que retarda, enquanto alguns citam que não há efeito algum (Wright, 2002). Estas<br />
inconsistências podem refletir diferentes metodologias e concentrações usadas pelos<br />
pesquisadores. A concentração de melatonina é crucial na determinação da resposta obtida.<br />
Répteis e Aves<br />
Existem evidências, tanto in vitro quanto in vivo, de que a glândula pineal de aves e<br />
répteis seja o próprio oscilador circadiano. Nesses animais, a glândula se localiza na porção<br />
frontal do encéfalo e é fotossensível. Quando a glândula é colocada em cultura<br />
isoladamente, ela mantém a produção de melatonina com um ritmo circadiano por vários<br />
ciclos (Tosini et al., 2001). Em cobras é possível que a luz influencie a glândula pineal<br />
indiretamente através da retina e do sistema nervoso simpático (Firth et al., 2006), dando<br />
subsídio à idéia de que nesses animais, a glândula pineal não seja um oscilador circadiano.<br />
Contudo, apesar disso, existem evidências de que a pineal faça parte de um sistema<br />
multioscilatório, assim como nos demais vertebrados não-mamíferos (Mendonça et al.,<br />
1996).<br />
Em lagartos, a retirada da glândula pineal leva à perda do ritmo circadiano de<br />
atividade locomotora e quando se faz injeção de melatonina em momentos certos, a<br />
atividade é ressincronizada. Esses dados indicam que, nesses organismos, o ritmo de<br />
melatonina pode estar diretamente relacionado à sincronização de outros ritmos circadianos<br />
(Underwood & Harless, 1985; Underwood, 1992).<br />
O ritmo de melatonina é perdido em lagartos da espécie Tiliqua rugosa expostos tanto<br />
ao escuro quanto ao claro constante e também a temperaturas constantes relativamente<br />
baixas (23-24 o C). Esses dados indicam que o ritmo de melatonina para essa espécie não é<br />
circadiano. Este resultado é tão surpreendente que o próprio autor justifica que talvez seu<br />
ensaio não tenha permitido detectar a expressão do ritmo de melatonina em livre-curso<br />
(Bruce et al., 2006).<br />
Em aves, a produção rítmica de melatonina está ligada à sincronização fisiológica e<br />
comportamental, como a reprodução, alimentação e migração. Muitos trabalhos sugerem<br />
165
V Curso de Inverno<br />
que a melatonina pode influenciar na reprodução das aves atuando através do eixo<br />
hipotálamo-hipófise-gônada. Codornas apresentam dimorfismo sexual em relação à<br />
distribuição de receptores de melatonina (alta densidade em machos e baixa em fêmeas),<br />
no núcleo telencefálico, na via visual, e na área preóptica. Esses dados sugerem um papel<br />
diferencial para esse hormônio na modulação da percepção visual, na produção<br />
gonadotrófica e no comportamento sexual sazonal dos machos e fêmeas de codornas (Aste<br />
et al., 2001; Bentley, 2001).<br />
Mamíferos<br />
Os mamíferos constituem a classe de animais mais estudada em todos os aspectos da<br />
melatonina, ou seja, síntese, locais de produção e funções. É interessante notar que nesse<br />
grupo a pineal sofre uma internalização no encéfalo e não é mais fotorreceptiva. O controle<br />
da produção de melatonina é dependente de luz, mas de uma forma indireta. A informação<br />
fótica chega através do trato retino-hipotalâmico, passando pelo núcleo supraquiasmático.<br />
Este desenvolve o papel de relógio biológico central nesses animais.<br />
Nesse capítulo não vamos nos ater em descrever a melatonina e suas funções nos<br />
mamíferos, pois isso já foi feito em outros capítulos.<br />
Conclusão<br />
Como vimos ao longo do texto, tanto a estrutura molecular quanto a biossíntese da<br />
melatonina são bastante conservadas entre os organismos. Apesar disso, não devemos<br />
esperar que ela desempenhe as mesmas funções em grupos tão distantes<br />
filogeneticamente, pelo menos em termos de sinalização.<br />
A relação com o escuro é seu aspecto mais notável. Na grande maioria dos<br />
organismos a síntese de melatonina ocorre preferencialmente à noite, com diferentes<br />
padrões de regulação. Entretanto, muitos organismos apresentam uma inversão de fase da<br />
produção dessa indolamina, como é o exemplo das Drosophilas. Em outros organismos não<br />
foi detectado um ritmo de síntese: o fungo Saccharomyces cerevisiae apresenta altas<br />
concentrações de melatonina independente da fase. Este organismo possui uma enzima<br />
NAS capaz de trocar o N- e C- terminal da molécula de melatonina tornando-a insensível à<br />
luz (Ganguly et al., 2001).<br />
Este exemplo da Saccharomyces mostra que a melatonina não está necessariamente<br />
relacionada com a transdução fotoperiódica. Muitas outras funções têm sido atribuídas a<br />
esta molécula como: regulação da atividade de algumas enzimas, influência na organização<br />
do citoesqueleto e ação antioxidante. A proteção contra os danos causados pelos radicais<br />
livres tem sido relacionada como a função mais primitiva da melatonina, principalmente<br />
porque esta função aparece em todos os grupos filogenéticos, desde bactéria até humanos.<br />
Desta forma, a função de transdução do escuro aparece secundariamente. Os tecidos e<br />
órgãos dos organismos que possuíam receptores de melatonina eram capazes de<br />
166
Cronobiologia<br />
interpretar a hora do dia através das concentrações de melatonina presente, dando-lhes<br />
uma vantagem adaptacional (Cassone & Natesan, 1997).<br />
Por fim, após tudo o que foi dito, podemos concluir que a melatonina não é apenas um<br />
hormônio. A relação da melatonina com os organismos vai muito além dessa classificação:<br />
ela não é só produzida por uma glândula, está presente em organismos unicelulares, atua<br />
diretamente em alvos intracelulares (sem mediação de receptores) e pode ser considerada<br />
uma vitamina antioxidante, pois também é adquirida através da dieta alimentar.<br />
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Revisado por Gisele Akemi Oda e Regina Pekelmann Markus<br />
168
Cronobiologia<br />
Sincronização na Infecção pela Malária<br />
Saulo Henrique Pires de Oliveira<br />
Laboratório de Fisiologia Celular do Plasmodium<br />
sauloho@ig.com.br<br />
A malária é uma doença parasitária predominante em países tropicais e<br />
representa um dos maiores problemas de saúde pública da atualidade. A cada ano, a<br />
malária causa cerca de 1 a 3 milhões de mortes, na maior parte crianças e idosos, e existe<br />
aproximadamente meio bilhão de casos clínicos registrados somente de malária falciparum<br />
(Snow et al.,2005). O combate à doença é mediado por uso de inseticidas, redes de dormir<br />
e através do uso de antimaláricos. Entretanto, devido a doença atingir majoritariamente<br />
regiões pobres e devido ao aumento do número de parasitas resistentes aos poucos<br />
fármacos disponíveis, estima-se que o número de mortes por malária apenas aumente<br />
(OMS).<br />
Os agentes causadores da malária são protozoários apicomplexos do gênero<br />
Plasmodium. Em humanos, a malária é causada por quatro espécies: P. vivax, P. malariae,<br />
P. ovale e P. falciparum, sendo que o último é responsável pela maioria dos casos fatais da<br />
doença. Esses parasitas apresentam um padrão em seu ciclo de vida, comum a todas as<br />
suas espécies. O ciclo se divide em uma fase assexuada, que ocorre no hospedeiro<br />
vertebrado (hospedeiro intermediário) e uma fase sexuada que ocorre no mosquito do<br />
gênero Anopheles sp (hospedeiro definitivo) (Mitchell e Bannister, 1988). Na figura 1<br />
apresentamos um esquema deste ciclo de vida do Plasmodium.<br />
Quando um indivíduo portador da doença é picado por uma fêmea do mosquito, ocorre<br />
a ingestão dos gametócitos presentes na circulação sangüinea do hospedeiro intermediário<br />
(Jacobs-Lorena, 2003). No estômago do inseto são liberados os gametas masculinos e<br />
femininos do parasita. Acontece então a reprodução sexuada e os gametas se fundem<br />
formando o oocineto. Esse zigoto se aloja na parede do estômago do inseto, sofrendo uma<br />
divisão meiótica e formando o oocisto. Em seguida, através de muitas divisões mitóticas,<br />
formam-se esporozoítos. Os esporozoítos migram para a glândula salivar do inseto, onde<br />
podem ser transmitidos ao hospedeiro vertebrado durante a hematofagia.<br />
A próxima etapa é assexuada e ocorrerá no hospedeiro vertebrado. No homem, essa<br />
etapa assexuada se divide em duas fases. A primeira ocorre no fígado e é chamada de fase<br />
exoeritrocítica (também chamada de fase hepática). A segunda ocorre no interior dos<br />
eritrócitos e na corrente sanguínea, chamada de fase intraeritrocítica.<br />
169
V Curso de Inverno<br />
Figura 1: Ciclo de vida do Plasmodium<br />
(http://www.ib.usp.br/~beraldo/Trabalho/mosquito.jpg)<br />
Durante a hematofagia, depositam-se na derme esporozoítos do parasita. Ocorre<br />
então uma movimentação aleatória desses protozoários até que algum vaso seja alcançado,<br />
permitindo assim a entrada no fluxo sanguíneo. Uma vez na corrente sanguínea, serão<br />
levados para o fígado (Amino et al., 2006) onde invadirão hepatócitos e se multiplicarão<br />
170
Cronobiologia<br />
assexuadamente e assintomaticamente durante um período que dura de 6 a 15 dias. Ao<br />
final da fase hepática ocorre uma diferenciação dos parasitas em merozoítas que, após a<br />
ruptura dos hepatócitos, irão invadir as células vermelhas dando início à fase eritrocítica.<br />
Para ganhar acesso aos eritrócitos, os merozoítas hepáticos precisam alcançar os<br />
vasos sanguíneos presentes no fígado (sinusóides) sem serem notados pelo sistema imune.<br />
Mostrou-se que os parasitas Plasmodium berghei induzem a morte do hepatócito, seguido<br />
pelo acoplamento de vesículas do protozoário (merosomos) ao lúmen dos sinusóides.<br />
Simultaneamente, o invasor inibe a produção de fosfatidilserina, diminuindo as chances de<br />
que sua presença seja notada pelo grande número de macrófagos presentes no lúmen dos<br />
sinusóides, chamados de células de Kupffer (Sturm et al.,2006). No entanto, os<br />
mecanismos utilizados pelos parasitas para penetrarem nos vasos sangüíneos do fígado e<br />
invadirem os eritrócitos sem serem notados pelo sistema imune ainda não foram totalmente<br />
esclarecidos.<br />
Dado o início da fase eritrocítica, os merozoítas iniciam um ciclo com formas bem<br />
definidas, conhecidas como anel, trofozoíto e esquizonte. A duração deste ciclo geralmente<br />
é um múltiplo de 24 horas. Ao final desse ciclo ocorre a formação de novos merozoítas.<br />
Acontece em seguida a ruptura das hemácias, liberando na corrente sangüínea os<br />
novos merozoítas que irão invadir outras hemácias, reiniciando o ciclo. A multiplicação e o<br />
ciclo nem sempre ocorrem, dado que alguns merozoítas, ao invadirem novas hemácias,<br />
desenvolvem-se em gametócitos que serão, eventualmente, ingeridos pelo mosquito<br />
transmissor (Bannister e Mitchell, 2003).<br />
Em todas as espécies do parasita (como em P. falciparum, por exemplo) a fase<br />
eritrocítica ocorre de maneira altamente sincronizada. É extremamente intrigante como<br />
todos os parasitas espalhados por um organismo mais complexo conseguem atuar de<br />
maneira concomitante, amadurecendo, reproduzindo-se, rompendo as hemácias e sendo<br />
todos lançados na corrente sangüínea com um grau de sincronia tão alto. Um ciclo de vida<br />
tão bem modulado que, nas cerca de 150 espécies de plasmódio, todas apresentam uma<br />
periodicidade multi-circadiana.<br />
O plasmódio faz uso de estratégias arrojadas para conquistar a sincronia dentro do<br />
hospedeiro. Para melhor compreender estes mecanismos, torna-se necessário mencionar<br />
que essa sincronia é extremamente importante para a sobrevivência do parasita aos<br />
ataques do sistema imune do organismo infectado. Desse modo, faz sentido hipotetizar que<br />
o protozoário utilizaria a própria maquinaria de manutenção e percepção do ciclo claroescuro<br />
do hospedeiro como uma defesa, garantindo assim sua sobrevivência.<br />
Vários experimentos envolvendo inversão do ciclo claro-escuro dos hospedeiros, bem<br />
como envolvendo a remoção da glândula pineal indicaram que esta sincronia realmente<br />
estaria ligada com o ritmo circadiano do organismo parasitado. Isso se deve ao fato de que<br />
nos hospedeiros cujo ciclo claro-escuro foi invertido, a esquizogônia ocorria por volta do<br />
meio-dia ao invés de ocorrer à meia-noite. Naqueles hospedeiros cujas pineais haviam sido<br />
171
V Curso de Inverno<br />
removidas surgia uma quebra na sincronia entre os estágios de anel, trofozoíta e esquizonte<br />
(Garcia et al.,2001).<br />
Nosso laboratório reportou, para a espécie P. chabaudi, que essa sincronia deve ser<br />
mediada pelos segundos mensageiros cálcio e AMPc, pois estes têm a concentração<br />
elevada no interior do parasita, na presença do hormônio melatonina (Hotta et al., 2000;<br />
Beraldo et al., 2005). Além da melatonina, foi reportado ainda para P. chabaudi que outros<br />
derivados do triptofano, i.e. N-acetil-serotonina, serotonina e triptamina, também são<br />
capazes de mobilizar cálcio dos estoques intracelulares modulando assim o ciclo celular do<br />
parasita (Beraldo e Garcia, 2005). Para melhor compreender essa via de sinalização, é<br />
necessária uma compreensão básica dos mecanismos de homeostase e sinalização por<br />
cálcio em eucariotos.<br />
O cálcio é um segundo mensageiro intrinsicamente ligado a uma gama de processos<br />
intracelulares de sinalização como, por exemplo, a modulação da atividade de proteases, a<br />
indução de necrose ou apoptose, a regulação do desenvolvimento embrionário, entre outros<br />
dos quais merece destaque a modulação do ciclo celular de eucariotos.<br />
Apesar de ser extremamente importante para células eucarióticas, esse segundo<br />
mensageiro em altas concentrações citosólicas é deveras tóxico, podendo causar danos<br />
celulares severos ou até mesmo necrose ou apoptose. Dessa maneira, faz-se necessário<br />
para qualquer célula eucariótica que os níveis de cálcio sejam devidamente controlados,<br />
permitindo assim que a sinalização ocorra sem causar danos (Berridge et al. , 2003). Esse<br />
processo de controle é chamado de homeostase.<br />
O próprio termo homeostase já indica que existe um equilíbrio dinâmico de cálcio<br />
dentro das células. Devido a sua toxicidade, o segundo mensageiro é estocado em<br />
compartimentos internos, ou seja, organelas capazes de estocar cálcio. Dentre essas<br />
organelas destacam-se o retículo endoplasmático, a mitocôndria e compartimentos ácidos.<br />
A sinalização ocorre através de influxos de cálcio no citosol, sendo que um rápido aumento<br />
da concentração citosólica do íon é capaz de ativar os diversos processos de sinalização<br />
mediados por ele.<br />
Após esse aumento, o cálcio é rapidamente reestocado nas organelas ou liberado<br />
para o meio extracelular, recuperando a homeostase. Um mero aumento de cálcio por<br />
tempo prolongado já é suficiente para causar danos severos à célula.<br />
O conceito de equilíbrio dinâmico implica que o cálcio está em constante movimento<br />
dentro da célula, ou seja, existe um fluxo contínuo do íon para dentro e fora de organelas e<br />
para o meio extracelular, sempre preservando a homeostase. Para isso, a célula emprega<br />
diversos mecanismos como canais de cálcio presentes na membrana plasmática (PMCA,<br />
SOCs, VOCs, etc...), trocadores no compartimento ácido, ATPases presentes no retículo<br />
(SERCA), entre outros, para perpetuar esse fluxo e controlar sua homeostase.<br />
A célula também faz uso de diversas cascatas enzimáticas para modular a liberação<br />
de cálcio das organelas. Essas cascatas enzimáticas funcionam como acionadores (triggers)<br />
172
Cronobiologia<br />
para um sinal que será amplificado, perpetuado, e regulado (feedback) pelo próprio<br />
segundo mensageiro, em processos extremamente dinâmicos.<br />
O plasmódio, por ser uma célula eucariótica, é altamente dependente da sinalização<br />
mediada por cálcio. Especialmente durante sua fase eritrocítica, o parasita regula sua<br />
concentração intracelular de Ca 2+ (Garcia et al., 1996, Varotti et al., 2003; Gazarini, 2004).<br />
Um breve aumento na concentração citosólica de Ca 2+ , particularmente durante essa fase,<br />
pode ativar eventos de sinalização celular (Gazarini et al., 2003). Apesar da descoberta e<br />
identificação de diversos transportadores de cálcio no parasita, incluindo Ca 2+ -ATPases, sua<br />
distribuição de Ca 2+ livre intracelular bem como os mecanismos de homeostase do cálcio<br />
ainda não são completamente entendidos.<br />
O citoplasma do parasita mantêm uma concentração baixa de Ca 2+ livre (por volta de<br />
100 nM), semelhante às outras células eucarióticas. No entanto, a presença de baixas<br />
concentrações de Ca 2+ no meio extracelular é fatal para o protozoário, ou seja, o plasmódio,<br />
como qualquer outra célula eucariótica, necessita de altas concentrações de Ca 2+ no meio<br />
externo. Mas em sua fase intraeritrócitica, o plasmódio invade e se desenvolve dentro do<br />
eritrócito, uma célula eucariótica, que por sua vez apresenta concentrações muito baixas de<br />
cálcio em seu citosol. Como seria possível a sobrevivência do plasmódio em um meio tão<br />
inóspito?<br />
O parasita desenvolveu uma estratégia muito interessante para garantir sua<br />
sobrevivência no interior do eritrócito. No começo da fase eritrocítica, através de uma<br />
invaginação da membrana, o parasita penetra na célula do hospedeiro e cria um novo<br />
domínio dentro do eritrócito (chamado de vacúolo parasitóforo ou VP) através do uso da<br />
própria membrana que foi invaginada durante a invasão. Durante a invaginação, essa<br />
membrana é invertida, permitindo que o parasita seqüestre algumas das bombas de cálcio<br />
que estavam presentes nesse fragmento de membrana. Essas bombas fazem com que o<br />
cálcio seja bombeado do citosol do eritrócito para dentro do VP (tendo em vista que a<br />
membrana foi invertida), mantendo a alta concentração de Ca 2+ extracelular necessária para<br />
a sobrevivência do protozoário. (Gazarini et al., 2003). Assim, o parasita sobrevive em meio<br />
extracelular rico em cálcio embora se desenvolva dentro do eritrócito.<br />
As organelas intracelulares que servem como estoques de cálcio no Plasmodium são<br />
o retículo endoplasmático, a mitocôndria (Gazarini e Garcia, 2004) e compartimentos ácidos<br />
(Garcia et al, 1998). Existem evidências de que esses compartimentos ácidos são os<br />
vacúolos digestivos, onde ocorre a digestão da hemoglobina e o acúmulo de uma gama de<br />
drogas antimaláricas tais como a cloroquina.<br />
Os mecanismos de ação da maioria dos antimaláricos ainda são desconhecidos. As<br />
poucas evidências existentes indicam que o sítio de ação desses antimaláricos é o<br />
ácidocalcissoma (o compartimento ácido), dado que foi observado que essas drogas se<br />
acumulam nessa organela. Existe um modelo que hipoteticamente explica porque haveria<br />
esse acúmulo. Esse modelo é chamado de “Efeito Base Fraca”.<br />
173
V Curso de Inverno<br />
O modelo “Efeito Base Fraca” consiste basicamente no fato de que a maioria dos<br />
antimaláricos são bases fracas dipróticas. Ao entrarem no compartimento ácido, essas<br />
bases fracas protonam devido a mudança drástica de pH. Uma vez protonadas, essas<br />
bases fracas ficam presas (“trapped”) dentro da organela, dado que o próton recém<br />
adquirido confere carga a essas moléculas, impedindo assim sua livre passagem pela<br />
membrana fosfolipídica.<br />
No entanto, não se sabe ao certo qual a ação desses antimaláricos dentro do<br />
compartimento ácido. A hipótese mais aceita é a de que esses antimaláricos seriam<br />
responsáveis pela inibição da formação de um polímero chamado hemozoína, proveniente<br />
da digestão completa da hemoglobina. Esse polímero é formado por componentes tóxicos<br />
para o parasita (derivados do grupo heme). Ao inibir a síntese do polímero, os antimaláricos<br />
supostamente causariam o acúmulo desses intermediários tóxicos levando assim à morte do<br />
parasita (Hänscheid et al, 2007).<br />
Apesar dessa hipótese ser largamente aceita, existem diversos dados que corroboram<br />
contra esse modelo, indicando que não há relação clara entre a inibição da hemozoína e a<br />
eficiência de um antimalárico. Além disso, a toxicidade desses intermediários é altamente<br />
questionável. Será que essas moléculas seriam realmente capazes de matar o parasita?<br />
Recentemente, foi reportado (Gazarini et al, 2007) que a droga cloroquina é capaz de<br />
quebrar a homeostasia de cálcio em P. chabaudi. Interessantemente, mostrou-se que, em<br />
parasitas permeabilizados, a cloroquina é capaz de promover a liberação de cálcio de<br />
estoques internos (Passos e Garcia, 1998). A quebra de homeostasia de cálcio poderia<br />
causar danos aos parasitas bem como uma quebra na sua sincronia, apresentando-se como<br />
uma forte hipótese para explicar os mecanismos envolvidos na ação dos antimaláricos.<br />
Qual seria então a relação desse segundo mensageiro com o alto grau de sincronia<br />
obtido pelo plasmódio dentro do hospedeiro? Inicialmente, a resposta fisiológica promovida<br />
pela melatonina, hormônio-chave para a modulação do ciclo claro-escuro, bem como de<br />
outros derivados de triptofano, é um aumento na concentração de cálcio citosólica.<br />
A liberação de cálcio a partir da adição de melatonina ocasiona um aumento de AMPc<br />
no parasita, ativando a enzima PKA. Esta via pode representar um papel relevante na<br />
diferenciação dos parasitas. Além disso, este processo também seria capaz de induzir uma<br />
nova liberação de cálcio do retículo endoplasmático, mantendo desta forma um looping de<br />
sinalização (Beraldo et al, 2005).<br />
Através do uso de diversos inibidores de cascatas enzimáticas, foi possível identificar<br />
que o aumento inicial de cálcio estava relacionado à via de sinalização mediada por IP-3,<br />
uma vez que, na presença de inibidores específicos dessa cascata enzimática, a melatonina<br />
e os derivados de triptofano induziam um aumento citosólico significativamente menor. Isso<br />
não foi observado para outras vias de sinalização como, por exemplo, na via mediada por<br />
receptores de rianodina.<br />
174
Cronobiologia<br />
A via clássica modulada por IP-3 ativa a liberação de cálcio pelo retículo<br />
endoplasmático (nosso laboratório reportou que o IP-3 também ativa a liberação de cálcio<br />
do compartimento ácido para Plasmodium chabaudi). Geralmente, essa via se faz através<br />
de um sinal na membrana captado por um receptor transmembrânico. Esse receptor<br />
induziria a ativação da fosfolipase C (PLC) através da ação da proteína G. A PLC, por sua<br />
vez, clivaria o fosfatidilinositol-bifosfato presente no citosol em inositol-trifosfato (IP3). O IP3<br />
atua nos receptores-IP3 presentes na membrana do retículo, promovendo assim a liberação<br />
de cálcio.<br />
Entretanto, esse processo não ocorre conforme o modelo clássico no plasmódio. Os<br />
mecanismos por trás da captação do sinal na membrana, bem como por trás da ativação da<br />
PLC, ainda não estão bem elucidados. Isso ocorre devido a ausência da proteína G no<br />
parasita. Dessa forma, torna-se necessário encontrar e caracterizar o receptor sensível à<br />
melatonina (e a outros derivados de triptofano) presente na membrana do plasmódio, de<br />
modo a elucidar a via de sinalização.<br />
Através de técnicas de bioinformática, fazendo uso de análise e comparação de<br />
seqüências, foram obtidos dados sobre proteínas putativas semelhantes a receptores<br />
serpentina (serpentine receptor-like putative proteins) em P. falciparum. Essas proteínas<br />
putativas podem representar os receptores de membrana envolvidos no processo de<br />
sinalização por melatonina e derivados de triptofano (Madeira et al, <strong>2008</strong>).<br />
Abordagens de biologia molecular tais como microarray e tempo real forneceram<br />
novas evidências que corroboram para a existência desses supostos receptores, tornando<br />
essas proteínas putativas fortes candidatos a sítio de ação dos derivados de triptofano como<br />
acionadores das eventuais cascatas enzimáticas obtidas como resposta fisiológica.<br />
Além de intrigante, a maneira pela qual o plasmódio obtém sua sincronização é<br />
extremamente complexa, envolvendo o emprego da maquinaria de percepção do ciclo claroescuro<br />
do hospedeiro para uma modulação de seu ciclo de vida. Fazendo uso de cascatas<br />
enzimáticas e da sinalização pelos segundos mensageiros cálcio e AMPc, o parasita obtém<br />
um alto nível de sincronização, sendo mais um magnífico exemplo do poder da pressão<br />
evolutiva. A caracterização completa dessas vias, bem como a compreensão do real papel<br />
dos antimaláricos como desestabilizadores da homeostase de cálcio, são mais do que<br />
necessários para prover novas ferramentas para combater a malária e contribuir para<br />
reverter o número crescente de mortes pela doença.<br />
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Revisado por Gisele Akemi Oda e Célia Regina da Silva Garcia<br />
176
Neurofisiopatologia<br />
Capítulo 5<br />
Neurofisiopatologia<br />
Autores:<br />
Andreas Betz<br />
Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa<br />
João Paulo de Pontes Matsumoto<br />
Karen Lisneiva Farizatto<br />
Leandro Cortoni Calia<br />
Merari de Fátima Ramires Ferrari<br />
Regiane Xavier de Moraes<br />
Sérgio Marinho da Silva<br />
195
V Curso de Inverno<br />
Neurofisiopatologia<br />
Merari de Fátima Ramires Ferrari<br />
Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />
mfrf@yahoo.com<br />
Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa<br />
Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />
O funcionamento do sistema nervoso central (SNC) é fascinante e misterioso tanto<br />
para os mais leigos quanto para os estudiosos do assunto. O SNC é composto por células<br />
neuronais e gliais que interagem entre si para seu correto funcionamento, estas células são<br />
morfológica e fisiologicamente diferentes, mas complementares. Com os avanços na<br />
tecnologia está sendo possível desvendar os mistérios do SNC através dos estudos destes<br />
tipos celulares e de sua relação com comportamentos e funções vegetativas.<br />
Os comportamentos e as funções vegetativas são regulados por grupamentos<br />
celulares distribuídos por todo o encéfalo. Dependendo da região onde estes núcleos se<br />
encontram, a função será predominantemente vegetativa, comportamental ou mista. A<br />
posição anatômica ou mesmo a presença ou ausência de determinado grupamento celular<br />
varia de acordo com a classe animal, por isso a neuroanatomia comparada nos dá dicas<br />
sobre os possíveis papéis dos diversos núcleos encefálicos para a manutenção do equilíbrio<br />
fisiológico do organismo (Lent, 2001).<br />
Uma das principais funções do SNC é fazer com que o organismo responda<br />
coerentemente aos estímulos do meio ambiente, seja através de ajustes vegetativos ou<br />
através de comportamentos. Um ajuste bastante importante é o da pressão arterial, que ao<br />
ser danificado pode desencadear a hipertensão.<br />
O SNC pode sofrer outros transtornos como a neurodegeneração, por exemplo, e<br />
enquanto não há cura para este tipo de doença, diversos profissionais desenvolvem<br />
abordagens terapêuticas para a reabilitação dos indivíduos acometidos pela<br />
neurodegeneração.<br />
Drogas psicoativas como os opióides, o álcool, a nicotina, dentre diversas outras que<br />
interagem sobre núcleos específicos do SNC geram sensações prazerosas, alucinações,<br />
depressão, etc. Algumas destas drogas agem no circuito de reforço o que desencadeia<br />
comportamento de busca freqüente pelo entorpecente podendo caracterizar o vício.<br />
Este capítulo irá abordar brevemente a neurofisiologia e o estado patológico do<br />
sistema nervoso central.<br />
1. Introdução ao Sistema Nervoso<br />
O Sistema Nervoso é dividido funcionalmente em Somático e Visceral. O Sistema<br />
Nervoso Somático pode ser aferente ou eferente, enquanto o Visceral pode ser aferente,<br />
196
Neurofisiopatologia<br />
eferente simpático e eferente parassimpático. O Sistema Nervoso também é dividido em<br />
Periférico e Central, como mostra a figura 1:<br />
Figura 1: Divisão funcional do Sistema Nervoso<br />
O sistema Nervoso Somático relaciona o organismo com o ambiente. A parte<br />
aferente leva impulsos dos receptores periféricos aos centros nervosos. O componente<br />
eferente leva a informação dos centros nervosos aos músculos estriados esqueléticos,<br />
gerando movimentos. Por sua vez, o componente Visceral, através da parte aferente, leva<br />
informações das vísceras para áreas específicas do Sistema Nervoso, e a eferente<br />
transmite impulsos gerados em centros nervosos até as vísceras (Figura 2) (Bear et al,<br />
2002; Machado, 2000).<br />
Os nervos unem o Sistema Nervoso Central aos órgãos. Quando a união é feita com o<br />
encéfalo, chamamos nervos cranianos; se a ligação é feita com a medula, chamamos<br />
nervos espinais. Gânglios são células nervosas agrupadas, localizadas nas proximidades do<br />
Sistema Nervoso Central, ou próximo/dentro das paredes das vísceras. Muitas fibras têm<br />
origem em neurônios ganglionares. Os nervos espinais são originados em neurônios<br />
medulares ou ganglionares. Podem ser sensitivos (gânglios das raízes dorsais) ou motores<br />
(raízes ventrais). Já os nervos cranianos são originados em núcleos encefálicos ou em<br />
gânglios próximos do crânio (Machado, 2000). O Sistema Nervoso Central possui<br />
envoltórios chamados meninges que o nutrem, e protegem do meio externo além de garantir<br />
meio ótimo para o funcionamento neural.<br />
Na análise macroscópica do Sistema Nervoso pode-se reconhecer dois tipos de áreas:<br />
a chamada substância branca, com maior concentração de fibras nervosas envoltas por<br />
gordura e proteína (mielina) e a substância cinzenta que possui maior concentração de<br />
fibras nervosas sem envoltório gorduroso.<br />
No córtex cerebral e cerebelar a substância cinzenta é exterior à branca. Em outras<br />
regiões é o oposto.<br />
197
V Curso de Inverno<br />
Figura 2: Representação do Sistema Nervoso Somático.<br />
Figura 6: Segmento da medula espinal. Fontes: http://pt.wikipedia.org/wiki/<br />
Nervos_raquidianos e http://thalamus.wustl.edu/course/spinal.html<br />
2. Unidades estruturais e funcionais do Sistema Nervoso.<br />
2.1. Neurônios<br />
O neurônio produz e veicula sinais capazes de codificar tudo o que sentimos dentro e<br />
fora do organismo e tudo o que pensamos. Operam em grandes conjuntos (circuitos) nos<br />
quais cada neurônio faz uma coisa e todos realizam juntos uma função.<br />
As informações aferentes saem por axônios e vão para outras células do circuito<br />
neural. Por isso, o axônio tem modificações que se ligam aos dendritos de outros neurônios.<br />
Os axônios de neurônios semelhantes por vezes se juntam em tratos ou feixes no Sistema<br />
198
Neurofisiopatologia<br />
Nervoso Central ou nervos no Sistema Nervoso Periférico.<br />
Cada neurônio possui vários prolongamentos que recebem informações, mas apenas<br />
um que as manda. Sua membrana plasmática é especializada em produzir e propagar<br />
impulsos elétricos. Possui diferentes tipos de canais iônicos (macromoléculas embutidas na<br />
membrana, capazes de filtrar seletivamente a passagem de íons para dentro e para fora da<br />
célula) (Figura 7).<br />
Figura 7:Representação de um neurônio. Fonte:www.geocities.com/malaghini/neuron2.gif<br />
Durante um potencial de repouso, o interior da célula tem carga elétrica negativa em<br />
relação ao meio extracelular e esta diferença é mantida pelo fluxo constante de íons (Figura<br />
8). Quando ocorre inversão da polaridade da membrana, através da abertura de canais de<br />
sódio, seguida pela abertura dos canais de potássio, que se propaga ao longo do axônio,<br />
temos um potencial de ação – sinal elétrico utilizado como unidade de informação (Kandel et<br />
al, 2003).<br />
Os neurônios são formados pelo soma, axônios e dendritos. O soma é formado por<br />
citoplasma e membrana citoplasmática. O citoplasma possui meio denso (citosol) e<br />
proteínas que formam o citoesqueleto. O Citoesqueleto mantém a forma, permite a<br />
mobilidade de neurônios jovens durante o desenvolvimento; emite e retrai prolongamentos<br />
neuronais e transporta moléculas sinalizadoras, nutrientes, fatores tróficos e vesículas<br />
membranosas. É formado por três estruturas principais: microtúbulos (tubulina e MAP),<br />
neurofilamentos (diferentes proteínas enroladas em trança) e microfilamentos (actina)<br />
responsáveis pelos movimentos celulares.<br />
Como possuem intensa atividade protéica, o retículo endoplasmático rugoso é bem<br />
pronunciado nos neurônios. O DNA nuclear de neurônios adultos fica disperso no núcleo e<br />
não se agrupa. No núcleo ocorre a síntese do RNAm, que forma réplicas do DNA para a<br />
199
V Curso de Inverno<br />
síntese de proteínas. O RNAm sai do núcleo para o citoplasma e se junta aos ribossomos.<br />
Alguns desses ribossomos se ligam à superfície externa do retículo endoplasmático rugoso<br />
enquanto outros se associam ao RNAm. Essa união entre RNAm e ribossomo é chamada<br />
polissomo, e é onde ocorre a síntese de proteínas.<br />
Algumas proteínas sintetizadas voltam ao núcleo, algumas ficam no citosol e outras<br />
são armazenadas no retículo endoplasmático rugoso para posterior transporte. Do retículo<br />
endoplasmático rugoso saem pequenas vesículas que depois se fundem com o aparelho de<br />
Golgi que emite, por sua vez, vesículas transportadas pelos microtúbulos dos axônios e dos<br />
dendritos. Tanto o retículo endoplasmático rugoso quanto o aparelho de Golgi contêm<br />
enzimas que regulam a síntese de neurotransmissão pelos próprios neurotransmissores e<br />
também por componentes da membrana plasmática. Do Golgi também saem pequenas<br />
organelas citoplasmáticas (os lisossomos) com enzimas capazes de decompor moléculas já<br />
utilizadas pela célula em unidades menores para serem usadas na síntese de novas<br />
moléculas.<br />
No soma também estão a mitocôndria, que realiza a fixação do oxigênio e a síntese<br />
de ATP, e o peroxissomo – organela que contém proteção contra o peróxido, subproduto<br />
altamente oxidante que resulta da degradação molecular.<br />
Os dendritos que saem do soma formam, por vezes, algo semelhante a uma árvore<br />
em torno do soma; aumentam a superfície da célula, possibilitando maior contato entre<br />
neurônios. Alguns tipos de neurônios ainda emitem espinhas dos ramos dendríticos. Essas<br />
espinhas são pequenas projeções com esférula na extremidade, onde se formam contatos<br />
sinápticos. Além de aumentarem a superfície celular, têm importância funcional, pois<br />
constituem microcompartimentos privilegiados, nos quais se concentram íons e pequenas<br />
moléculas que influenciam na transmissão de informações entre neurônios. O padrão de<br />
espinhas de um neurônio se modifica dinamicamente com a aprendizagem e com certas<br />
doenças mentais, o que nos permite supor que elas desempenham papel importante nas<br />
funções neurais (Santibañez, 2000).<br />
Nos dendritos estão presentes praticamente todas as substâncias do soma em<br />
ramos mais finos desaparecem ou diminuem o retículo endoplasmático rugoso, aparelho de<br />
Golgi e os microtúbulos do citoesqueleto.<br />
O axônio sai do soma através do cone de implantação, região muito excitável na qual<br />
aparece o impulso nervoso, conduzido pelo axônio. As diferentes partes da célula estão em<br />
constante comunicação: existe um fluxo contínuo de moléculas e organelas através do<br />
citoplasma, que pode ser do soma em direção às extremidades do axônio (anterógrado) ou<br />
das extremidades para o soma (retrógrado).<br />
Muitos axônios são revestidos por uma cobertura isolante feita de lipídios e<br />
proteínas, chamada bainha de mielina. No Sistema Nervoso Central, a bainha de mielina é<br />
produzida pelos oligodendrócitos e no Sistema Nervoso Periférico pelas células de<br />
Schwann. Nos axônios de neurônios do Sistema Nervoso Central existem proteínas que<br />
200
Neurofisiopatologia<br />
bloqueiam o crescimento regenerativo após lesões; o que explica a regeneração de axônios<br />
periféricos, mas não de axônios centrais (Figura 9).<br />
Figura 9: Estrutura do nervo. Fonte: http://www.esec-lousa.rcts.pt/sist_nervoso.htm<br />
Cada axônio pode se ramificar em sua extremidade distal, e cada ramificação pode<br />
ter múltiplos botões sinápticos que se ligam ao soma, ao dendrito ou ao axônio de outros<br />
neurônios, formando as sinapses.<br />
2.2. Células gliais<br />
As glias são células não neuronais com diferentes funções, que garantem a infraestrutura<br />
necessária para o funcionamento dos neurônios. Suas funções incluem alimentar o<br />
neurônio, lidar com sinais químicos que orientam o crescimento e a migração dos neurônios<br />
durante o desenvolvimento, fazer a comunicação entre neurônios na vida adulta; absorver<br />
substâncias dos meios vizinhos e transformá-las em substâncias úteis; isolar a membrana<br />
dos axônios; têm função de defesa, reconhecimento de condições patológicas, além de<br />
outras. Estão divididas em dois grandes grupos, macroglias e microglias. As macroglias são<br />
formadas por astrócitos e oligodendrócitos, que têm mesma origem embrionária que os<br />
neurônios (ectoderme). As microglias são formadas por microgliócitos ramificados e<br />
amebóides, e têm origem embrionária mesodérmica. (Figura 11).<br />
Os astrócitos têm prolongamentos ramificados, ocupam espaços interneuronais,<br />
envolvem sinapses e nós de Ranvier, formam envoltório em capilares sangüíneos do<br />
sistema nervoso e revestem internamente as cavidades intracerebrais e meninges.<br />
Morfologicamente, os astrócitos são diferentes na substância branca e na cinzenta, mas até<br />
então suas funções não foram diferenciadas de forma significativa. São marcados pela<br />
presença de GFAP (proteína ácida fibrilar glial), uma proteína que forma o citoesqueleto,<br />
expressa exclusivamente por astrócitos, identificada por anticorpos monoclonais<br />
fluorescentes ou coloridos.<br />
Seus prolongamentos envolvem as sinapses do Sistema Nervoso Central, e<br />
possuem receptores de membrana para certos neurotransmissores, como GABA (ácido<br />
gama-aminobutírico) e glutamato, transformando-os em glutamina, a qual é transportada<br />
para os neurônios e permite a ressíntese das duas substâncias e controla o excesso de<br />
201
V Curso de Inverno<br />
neurotransmissores nas sinapses.<br />
Figura 11: Células gliais. Fonte: http://www.uff.br/fisiovet/imagens/sistema_nervoso_6.JPG<br />
Nos nós de Ranvier, onde ocorrem potenciais de ação, os pedículos dos astrócitos<br />
participam do restabelecimento do gradiente eletroquímico normal, pois possuem grande<br />
quantidade de canais de K + e proteínas transportadoras de íons (Kandel et al, 2003).<br />
As paredes dos capilares cerebrais também são revestidas por ramificações<br />
astrocísticas, que originam a barreira hematoencefálica, importante mecanismo protetor do<br />
Sistema Nervoso Central (Barbosa et al, 2003).<br />
Quando ocorrem lesões no tecido nervoso, os astrócitos se proliferam e se deslocam<br />
para as proximidades da lesão, formando uma cicatriz glial, que seria equivalente ao<br />
processo inflamatório de outros tecidos. Como produzem fatores tróficos e apresentam<br />
antígenos, os astrócitos desempenham dois papéis importantes para o local lesado: os<br />
fatores tróficos contribuem para a sobrevida dos neurônios atingidos enquanto que os<br />
antígenos provocam ação defensiva dos linfócitos T (Douglas, 2000).<br />
Os oligodendrócitos possuem menos prolongamentos que os astrócitos e são<br />
divididos em satélites e fasciculares. Os primeiros ficam próximos dos corpos celulares e os<br />
fasciculares entre os axônios do Sistema Nervoso Central, cujos prolongamentos se<br />
enrolam nos axônios para formar a bainha de mielina, elemento isolante que permite maior<br />
velocidade de condução do impulso nervoso. Esta mielina do Sistema Nervoso Central<br />
contém moléculas protéicas que bloqueiam a regeneração axônica, diferentemente da<br />
202
Neurofisiopatologia<br />
mielina de axônios periféricos, produzida por células de Schwann, que permite recuperação<br />
após lesões pela ausência deste componente bloqueador.<br />
Os microgliócitos ramificados possuem corpo pequeno, alongado e com poucos<br />
prolongamentos; em sua forma original, não se proliferam nem atuam em processos<br />
patológicos. Já os microgliócitos amebóides, que também possuem corpo pequeno e<br />
poucos prolongamentos, têm atividade fagocítica e se proliferam bastante na presença de<br />
agressões e traumas do Sistema Nervoso Central. Se houver necessidade, monócitos<br />
sangüíneos podem entrar no tecido nervoso e se transformar em microgliócitos amebóides,<br />
assim como microgliócitos ramificados podem ser ativados, se proliferar e assumir forma<br />
amebóide.<br />
2.3. Transmissão de informações<br />
A transmissão de informações entre neurônios acontece através de sinapses, que<br />
podem ser elétricas ou químicas. As sinapses elétricas existem principalmente em neurônios<br />
imaturos e gliócitos adultos, e sua estrutura é denominada junção comunicante, uma região<br />
na qual duas células se aproximam e suas membranas ficam separadas por um espaço<br />
muito pequeno (cerca de 3 nm). Nesta região, as membranas possuem canais iônicos<br />
especiais, formados por subunidades protéicas idênticas e capazes de se acoplarem<br />
quimicamente para formar poros que permitem a passagem de íons e pequenas moléculas,<br />
de uma célula para outra. É uma transmissão muito rápida, pois não utiliza intermediários<br />
químicos. As informações transmitidas por sinapses elétricas não são modificadas entre<br />
uma célula e outra, e geralmente passam nos dois sentidos (entram e saem), embora<br />
existam as junções retificadoras – que permitem a passagem da corrente elétrica em<br />
apenas uma direção.<br />
As sinapses químicas existem entre neurônios adjacentes de uma região<br />
especializada, permitindo o contato por contigüidade. A estrutura é conhecida como fenda<br />
sináptica e é bem maior que as junções comunicantes (cerca de 20nm). O espaço entre<br />
uma membrana e outra é preenchido por matriz protéica adesiva que favorece a fixação e a<br />
difusão de moléculas entre elas. A região sináptica da primeira célula é chamada elemento<br />
pré-sináptico e é igualmente um terminal axônico. O elemento pós-sináptico, região<br />
sináptica da segunda célula, é geralmente um dendrito (Figura 13).<br />
O terminal pré-sináptico tem como característica mais marcante a presença de<br />
vesículas que se aglomeram nas proximidades da membrana, e de grânulos secretores,<br />
esferas maiores com material elétron-denso, além de zonas de ativação. O potencial de<br />
ação chega ao axônio pré-sináptico e causa liberação de substâncias na fenda sináptica.<br />
Esta substância, armazenada nas vesículas, é o neurotransmissor, que se difunde até a<br />
membrana pós-sináptica e gera novamente um potencial de ação. Estas conversões de<br />
informação permitem que exista modificação durante o trajeto. Quem realiza estas<br />
modificações são os neuromoduladores, presentes em quase todas as sinapses.<br />
203
V Curso de Inverno<br />
Figura 13: Sinapse. Fonte: www.ucs.br/ccet/defq/naeq/material_didatico/<br />
textos_interativos_37/sinapse.jpg<br />
Portanto, os neurotransmissores são produzidos pelo neurônio, armazenados em<br />
vesículas e liberados no espaço extracelular. Transmitem informações entre neurônios e<br />
células próximas. Os neuromoduladores são produzidos pelo neurônio, atuam na sinapse,<br />
modificando a ação de neurotransmissores.<br />
As sinapses podem ser excitatórias ou inibitórias. As excitatórias despolarizam,<br />
enquanto as inibitórias hiperpolarizam o terminal pós-sináptico. Os elementos pré e póssinápticos<br />
das sinapses inibitórias têm membrana de mesma espessura, e as vesículas<br />
liberadas são achatadas, enquanto as sinapses excitatórias possuem elementos com<br />
diferentes espessuras de membrana (membrana pós-sináptica mais espessa) e liberam<br />
vesículas esféricas (Bear et al, 2002; Kandel et al, 2003; Lent, 2001).<br />
Devemos lembrar que cada célula pode fazer milhares de sinapses. Assim, o<br />
resultado final de uma informação depende da interação dos potenciais de ação locais de<br />
todas essas sinapses, conhecida como integração sináptica.<br />
As informações são passadas entre os neurônios através de poros ou canais na<br />
membrana, que permitem a passagem seletiva de íons, gerando sinais elétricos. Canais<br />
iônicos são glicoproteínas, proteínas de membrana incrustadas na bicamada lipídica, com<br />
capacidade de deixar passar íons de modo seletivo, de forma continuada ou em resposta a<br />
estímulos elétricos, mecânicos ou químicos.<br />
-canais abertos: deixam passar íons continuamente;<br />
-canais controlados por comportas: só abrem em resposta a estímulos específicos.<br />
Podem ser:<br />
a) dependentes de voltagem: abertos por alteração da voltagem da membrana;<br />
b) dependentes de ligantes: abertos por substâncias específicas, como<br />
neurotransmissores, neuropeptídeos e hormônios;<br />
204
Neurofisiopatologia<br />
c) dependentes de energia mecânica que incida diretamente sobre a membrana.<br />
Alguns canais iônicos têm três estados funcionais: repouso (está fechado mas pode<br />
ser aberto), ativo (está aberto e permite fluxo iônico) e refratário (está fechado e não pode<br />
ser ativado). Existem interações específicas entre os íons e radicais da parede dos canais,<br />
que funcionam como filtro molecular, permitindo a passagem de uma espécie iônica em<br />
cada tipo de canal. As diferenças de concentração iônica (elétrica e química) existentes<br />
entre os meios intra e extracelular fornecem energia potencial para o movimento dos íons do<br />
local de maior concentração para o de menor.<br />
Os canais de passagem livre são muito mais simples que os controlados. As<br />
proteínas possuem a propriedade de assumir conformações espaciais diferentes, chamada<br />
alosteria. Dependendo da conformação, não permitem a passagem de íons pela membrana.<br />
Porém, na presença de estímulos específicos, suas subunidades protéicas se modificam,<br />
permitindo a passagem iônica. Nos canais dependentes de voltagem, alterações no<br />
potencial elétrico da membrana podem causar mudança da estrutura. Em canais<br />
dependentes de ligantes, ocorre reação química não permanente entre um ligante<br />
(neurotransmissor, por exemplo) e a parte extracelular da proteína de membrana. Por fim,<br />
nos canais mecânicos, um estiramento da membrana causa abertura das comportas<br />
(Kandel et al, 2003).<br />
Os neurotransmissores podem ser aminas, aminoácidos e purinas, sendo que alguns<br />
aminoácidos podem atuar como neuromoduladores. Já os neuromoduladores podem ser<br />
gases e peptídeos, sendo que alguns peptídeos podem atuar como neurotransmissores.<br />
Cada neurotransmissor é formado por uma substância específica em um local<br />
específico, e o conhecimento de sua síntese é de grande importância para os psiquiatras e<br />
neurologistas, pois algumas doenças atingem diretamente este processo, como o<br />
parkinsonismo e alguns tipos de depressão.<br />
O potencial de ação, quando chega ao terminal sináptico, alcança zonas ativas,<br />
regiões ricas em canais de Ca 2+ voltagem-dependentes. O potencial de ação provoca<br />
abertura dos canais de Ca 2+ , e este passa em grande quantidade para o interior do terminal,<br />
aumentando a concentração intracelular deste íon. A quantidade aumentada de Ca 2+ no<br />
interior do terminal sináptico faz com que as vesículas sinápticas ancorem nas zonas ativas,<br />
liberando seu conteúdo na fenda sináptica através de exocitose. O neurotransmissor age no<br />
receptor específico, situado na membrana pós-sináptica e gera potencial de ação.<br />
Existem dois tipos de receptores sinápticos: metabotrópicos e ionotrópicos (Figura<br />
13.). Os ionotrópicos são os canais iônicos dependentes de ligantes, e são mais rápidos. Os<br />
receptores metabotrópicos estão ligados à proteína G ou à ação enzimática intracelular do<br />
próprio receptor. Como não são canais iônicos, a transmissão é mais lenta e indireta, feita<br />
por reações químicas intracelulares, iniciadas pela proteína G, que ativa proteínas efetoras<br />
que geralmente são canais iônicos. Estes canais, ao se abrirem, permitem que ocorra um<br />
205
V Curso de Inverno<br />
potencial de ação. Além disso, a proteína G pode atuar em proteínas de membrana que<br />
produzem mensageiros químicos (segundos mensageiros). Esses mensageiros podem agir<br />
em locais distantes da membrana ou no interior da célula pós-sináptica, desencadeando<br />
cascatas enzimáticas, aumentando o tempo que um potencial de ação leva para ser gerado,<br />
ou apenas modificando o metabolismo e função neuronais, sem desencadear um potencial<br />
de ação. Quando ocorrem modificações, mas não necessariamente é desencadeado um<br />
potencial de ação, dizemos que houve neuromodulação. Chamamos co-transmissão quando<br />
dois neurotransmissores são utilizados na mesma sinapse e co-ativação quando dois<br />
receptores diferentes são ativados.<br />
O fim da transmissão sináptica ocorre fundamentalmente através de dois<br />
mecanismos: a recaptação e a degradação enzimática do neurotransmissor. A recaptação é<br />
feita pelas proteínas transportadoras específicas da membrana do terminal pré-sináptico ou<br />
por astrócitos. É um mecanismo influenciado por drogas de vários tipos como cocaína,<br />
alguns antidepressivos e anticonvulsivantes. A degradação enzimática ocorre em sinapses<br />
colinérgicas e peptidérgicas. O neurotransmissor é quebrado e suas partes se difundem no<br />
meio extracelular ou são recaptadas para o interior do terminal e utilizadas na síntese de<br />
novas moléculas.<br />
3. Neurotransmissores<br />
3.1. Glutamato<br />
O glutamato, um aminoácido, é sintetizado pelo cérebro a partir de glicose e outros<br />
nutrientes e é o principal neurotransmissor excitatório do cérebro. Quantidades muito<br />
pequenas de glutamato podem desencadear potenciais de ação. Existem três tipos de<br />
receptores de glutamato: AMPA, NMDA e Kainato (Figura 13).<br />
3.2. GABA<br />
É sintetizado a partir da descarboxilação do glutamato, catalizada pela glutamato<br />
descarboxilase, presente em muitas terminações do cérebro, assim como as células B, do<br />
pâncreas. Os neurônios que secretam GABA são chamados de GABAérgicos. É o principal<br />
neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central.<br />
3.3. Acetilcolina<br />
É o neurotransmissor utilizado pelos neurônios que inervam os músculos, resultando<br />
em contração. Junto com a noradrenalina, a acetilcolina é o principal neurotransmissor do<br />
sistema nervoso simpático. É provável, apesar de não estar ainda muito claro, que sua<br />
função no cérebro tenha ligação com a aprendizagem e a vigília.<br />
Sua síntese depende da enzima colina acetiltransferase, que é sintetizada no soma e<br />
transportada até o terminal axonal. Para certas doenças, caracterizadas por deficiência na<br />
transmissão sináptica de acetilcolina, suplementos de colina são administrados na dieta,<br />
206
Neurofisiopatologia<br />
objetivando aumentar os níveis encefálicos do neurotransmissor.<br />
3.4. Catecolaminas<br />
São formadas a partir do aminoácido tirosina e possuem estrutura química<br />
denominada catecol. Neurônios catecolaminérgicos são encontrados em regiões do sistema<br />
nervoso envolvidas na regulação do movimento, humor, atenção e funções viscerais. São<br />
neurônios que contêm a enzima tirosina hidroxilase, que cataliza o primeiro passo da<br />
síntese das catecolaminas: converte a tirosina em dopa, que será convertida em dopamina<br />
pela enzima dopa descarboxilase. A dopa descarboxilase existe em grande quantidade nos<br />
neurônios catecolaminérgicos, e a quantidade de dopamina sintetizada depende da<br />
quantidade de dopa disponível (Figura 18).<br />
Uma vez dentro dos terminais axonais, as catecolaminas podem ser novamente<br />
transportadas para as vesículas e serem reutilizadas ou ser degradadas pela enzima<br />
monoaminoxidase (MAO) da membrana externa da mitocôndria.<br />
Figura 18: Síntese de catecolaminas. Fonte: www.sistemanervoso.com<br />
3.4.1. Dopamina<br />
Os corpos celulares dos neurônios que utilizam a dopamina estão principalmente na<br />
substância negra e na área tegmental ventral.<br />
3.4.2. Noradrenalina<br />
Presente no sistema nervoso simpático e no cérebro. A maioria dos neurônios<br />
noradrenérgicos tem seu corpo celular no locus coeruleus (tronco cerebral).<br />
Neurônios que utilizam noradrenalina como neurotransmissor contêm, além<br />
de tirosina hidroxilase e dopa descarboxilase, a enzima dopamina β-hidroxilase, conversora<br />
de dopamina em noradrenalina.<br />
207
V Curso de Inverno<br />
3.4.3. Adrenalina<br />
Neurônios adrenérgicos contêm a enzima feniletanolamina N-metil-transferase, que<br />
converte noradrenalina em adrenalina. Além de servir como neurotransmissor no encéfalo, a<br />
adrenalina é liberada pela glândula adrenal para a circulação sangüínea, e atua em<br />
receptores no corpo todo, produzindo resposta visceral coordenada.<br />
3.5. Serotonina<br />
Em humanos, a serotonina tem sido associada à depressão, ansiedade,<br />
comportamento agressivo, obesidade e outros distúrbios de alimentação, enxaqueca,<br />
disfunção sexual e dor crônica. É derivada do aminoácido triptofano. Neurônios<br />
serotonérgicos existem em menor quantidade.<br />
3.6. Fatores de crescimento<br />
São peptídeos que transmitem sinais para os neurônios via receptor de tirosina<br />
quinase. Podem ser produzidos por células gliais ou pelos próprios neurônios. Participam do<br />
desenvolvimento, divisão e crescimento neuronal e ajudam a prevenir a morte da célula. As<br />
neurotrofinas são fatores de crescimento que apóiam a diferenciação e sobrevivência de<br />
conjuntos específicos de neurônios. Entre elas estão: o fator de crescimento nervoso (NGF),<br />
o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) e as neurotrofinas 3 e 4/5. Todas podem ser<br />
liberadas de qualquer lugar no cérebro.<br />
4. Gênese e diferenciação<br />
Toda célula ectodérmica tem potencial para se transformar em neurônio, a chamada<br />
neuralização. O ectoderma tem proteínas que bloqueiam o desenvolvimento neural<br />
(proteínas morfogenéticas – BMPs – subgrupo dos fatores tróficos transformantes – TGFs).<br />
Quando um neurônio pára de se dividir, torna - se um “neurônio juvenil” e migra se<br />
arrastando através de prolongamentos lançados pela membrana (Figura 20).<br />
A notocorda produz proteína que se difunde no sentido dorsal pelo tubo neural,<br />
reconhecida pelas células juvenis que emitem sinais intracelulares capazes de modificar a<br />
expressão gênica. O sinal varia com a concentração desta proteína – perto da “fonte” (mais<br />
ventral) as células do tubo neural se transformam em motoneurônios. Mais distante, as<br />
células se transformam em interneurônios e reconhecem diferentes BPMs, e podem se<br />
transformar em diferentes tipos de neurônios, de acordo com o tipo de BMP.<br />
Fatores indutores e morfogenéticos mesodérmicos atuam no SNC embrionário<br />
ativando genes homeóticos distintos em diferentes lugares, que sintetizarão proteínas<br />
responsáveis pela diferenciação celular, permitindo o aparecimento de diferentes núcleos.<br />
Durante a migração, o neurônio juvenil pode emitir um axônio que cresce numa certa<br />
direção (célula alvo) e estabelece contatos especializados. O axônio surge como um<br />
prolongamento do corpo celular, forma um cone de crescimento na extremidade, com actina<br />
208
Neurofisiopatologia<br />
(proteína contrátil), e lança projeções capazes de reconhecer pistas químicas e também de<br />
se locomover. Uma função das pistas é polimerizar o citoesqueleto do cone, alongando o<br />
axônio ou formando ramos colaterais (Bear et al, 2002).<br />
Figura 20: Diferenciação celular. Fonte: www.educacaopublica.rj.gov.br<br />
Uma mesma molécula pode atuar de diferentes formas em axônios, dependendo do<br />
receptor da membrana do cone. Várias substâncias atuam na diferenciação neural:<br />
lamininas, fibronectina e proteoglicanos são inibidores de crescimento axônico; moléculas<br />
de adesão celular direcionam o crescimento do cone, como por exemplo as caderinas<br />
(glicoproteínas que dependem da concentração intracelular de cálcio, reconhecidas por<br />
outras caderinas do cone de crescimento) e imunoglobulinas, reconhecidas hemofílica ou<br />
heterofilicamente pelos cones de crescimento.<br />
Vários neurônios são formados no embrião, mas o número de células que<br />
permanecem vivas após o nascimento é determinado pela quantidade de tecido alvo.<br />
Existem fatores neurotróficos que garantem a sobrevivência dos neurônios juvenis. Fatores<br />
tróficos são produzidos pelo alvo e captados pelas células com as quais fazem contato<br />
sináptico, e atuam sobre o DNA bloqueando o processo de apoptose (várias células têm a<br />
mesma direção alvo; as que conseguem estabilizar sinapses recebem quantidade suficiente<br />
de fator neurotrófico e sobrevivem. As outras morrem) (Bear et al, 2002; Lent, 2001; Kandel<br />
et al, 2003).<br />
Referências Bibliográficas<br />
Bear M, Connors B, Paradiso M. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre:<br />
Artmed, 2002.<br />
Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe, 2000.<br />
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Greve JMD, Amatuzzi MM. Medicina de reabilitação aplicada à ortopedia e traumatologia. São Paulo:<br />
Roca, 1999.<br />
Guyton AC. Fisiologia humana e o mecanismo das doenças. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,<br />
1989.<br />
Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da neurociência. São Paulo: Manole, 2003.<br />
Lent R. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências. São Paulo: Atheneu,<br />
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Leonard BE. Fundamentos em psicofarmacologia. Rio de Janeiro: Revinter, 2006.<br />
Lundy-Eckman L. Neurociência: fundamentos para a reabilitação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.<br />
Machado A. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu, 2000.<br />
Pliszka S. Neurociência para o clínico de saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2004.<br />
Santibañez G. Fisiologia dos estados emóticos in Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe,<br />
2000.<br />
Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />
210
Neurofisiopatologia<br />
Biologia molecular e celular aplicadas à neurofisiologia<br />
Merari de Fátima Ramires Ferrari<br />
Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />
mfrf@yahoo.com<br />
No início do século XVII o pesquisador inglês Robert Hook descreveu o que chamou<br />
de “célula”. Muito embora o que Hook tivesse observado não fosse uma célula como a<br />
conhecemos hoje, seu achado deu base para a evolução da pesquisa celular. Schleiden e<br />
Schwann, em 1839, propuseram a teoria celular que tinha como princípio o fato de a célula<br />
ser a unidade básica de constituição dos organismos. A descoberta dos experimentos<br />
genéticos de Mendel, em 1900, e a elucidação da molécula de DNA por Watson e Crick<br />
(1953) tornaram possível desvendar do código genético e evidenciar sua importância nas<br />
respostas e reações do organismo em relação ao meio.<br />
A partir destas descobertas e anseios pela busca de respostas mais específicas<br />
quanto ao funcionamento da célula, que de modo geral geram a resposta final do<br />
organismo, houve o desenvolvimento da série de experimentos que culminou com o que<br />
conhecemos hoje como biologia celular e molecular.<br />
O Sistema Nervoso Central (SNC) apresenta grande fascínio devido aos mistérios<br />
que a ele, ainda hoje, são atribuídos. É realidade que o SNC ainda não é completamente<br />
entendido, mas a biologia celular e a molecular podem nos auxiliar a entender a<br />
neurofisiologia. O SNC é composto por células gliais e neuronais que interagem entre si e<br />
comandam o funcionamento encefálico, e possuem características distintas, o que será<br />
discutido rapidamente.<br />
Os neurônios antigamente eram reconhecidos como principais células do Sistema<br />
Nervoso. No entanto, esta visão vem se modificando à medida que se conhecem melhor as<br />
demais células que compõem o SNC. Atualmente tem-se que todas as células do SNC são<br />
igualmente importantes para seu correto funcionamento. Os neurônios são, de longe, as<br />
células mais estudadas, pois o interesse por seu estudo vem anteriormente ao das células<br />
gliais (desde Santiago Ramón y Cajal em 1888). Os neurônios são células eletricamente<br />
excitáveis responsáveis pela transmissão da informação em cadeia, integração do estímulo<br />
e elaboração da resposta. As células gliais compreendem a maioria das células presentes<br />
no sistema nervoso e dividem-se em 5 categorias: astrócitos, oligodendrócitos, microglia,<br />
células de Schwann e células ependimárias.<br />
Complementando o explicitado na seção inicial deste capítulo, os astrócitos, antes<br />
designados como meras células de sustentação do sistema nervoso central, hoje são<br />
reconhecidos como sendo os grandes colaboradores dos neurônios no que diz respeito à<br />
neurotransmissão. Estas células participam da síntese e metabolismo de diversos<br />
neurotransmissores como é o caso, por exemplo, do glutamato. Além disso, os astrócitos<br />
211
V Curso de Inverno<br />
são os grandes responsáveis pela barreira hemato-encefálica, pois envolvem vasos<br />
sanguíneos com seus prolongamentos e permitem a entrada seletiva de moléculas do<br />
sangue para o Sistema Nervoso Central.<br />
Os oligodendrócitos e as células de Schwann são responsáveis pela formação da<br />
bainha de mielina, que envolve os axônios neuronais do encéfalo e coluna espinal, e dos<br />
nervos periféricos, respectivamente, a fim de aumentar a velocidade da transmissão elétrica<br />
dos neurônios.<br />
A microglia possui papel importante na manutenção da estabilidade imunológica do<br />
Sistema Nervoso Central. Estas células migram do sangue para o SNC durante os primeiros<br />
estágios do desenvolvimento encefálico e estão envolvidas em uma série de doenças<br />
neurodegenerativas como, por exemplo, a Esclerose Lateral Amiotrófica.<br />
As células ependimárias localizam-se principalmente na borda dos ventrículos<br />
encefálicos e do canal central, na medula espinal. São células ciliadas que parecem ter<br />
função de células-tronco podendo originar outras células gliais e neurônios, especificamente<br />
em casos de danos celulares.<br />
A Figura 1.1 exemplifica os diversos tipos celulares encontrados no SNC, assim como<br />
a relação entre elas.<br />
Figura 1.1: Demonstração da morfologia, localização e interação entre os neurônios e os<br />
diferentes tipos de células gliais no sistema nervoso central (retirado de http://<br />
academic.kellogg.cc.mi.us/herbrandsonc/bio20 1_McKinley/Nervous%20System.htm).<br />
212
Neurofisiopatologia<br />
Figura 1.2: Esquema da síntese e degradação do glutamato ilustrando a<br />
compartimentalização do sistema. Glu: glutamato; Gln: glutamina; NH3: grupo amina.<br />
Modificado de Daikhin e Yudkoff (2000).<br />
FIGURA 1.3: Esquema do sistema renina-angiotensina no sistema nervoso central. A<br />
explicação detalhada encontra-se no texto. As interrogações indicam incerteza sobre a<br />
etapa. Abreviaturas: AOGEN: angiotensinogênio; ANG: angiotensina; AT1R: receptor tipo 1<br />
de angiotensina II; ECA: enzima conversora de angiotensina, Mas: receptor de angiotensina<br />
1-7. Baseado em Lavoie e Sigmund (2003), McKinley e colaboradores (2003), Santos e<br />
colaboradores (2003) e Warner e colaboradores (2004).<br />
213
V Curso de Inverno<br />
Com o advento da biologia molecular, tornou-se mais fácil o entendimento da<br />
contribuição dos diferentes tipos celulares nas situações de normalidade e patologia. É<br />
através deste conjunto de ferramentas da biologia molecular que os passos de determinada<br />
cadeia de eventos podem ser desvendados, para então interferir especificamente no ponto<br />
de interesse e, com isso, alterar a resposta final. Entre as técnicas mais conhecidas e<br />
avançadas em biologia molecular, encontram-se a hibridização in situ, o western blotting, o<br />
PCR (reação em cadeia de polimerase), a terapia gênica, microarrays, e RNA de<br />
interferência aplicados à neurofisiologia.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Daikhin Y, Yudkoff M. (2000) Compartmentation of brain glutamate metabolism in neurons<br />
and glia. J Nutr, 130:1026S-31S.<br />
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Campagnole-Santos MJ, Schultheiss HP, Speth R, Walther T. (2003)<br />
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(1996) Multipotent CNS Stem Cells Are Present in the Adult Mammalian Spinal Cord<br />
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Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />
214
Neurofisiopatologia<br />
Neuroanatomia básica comparada<br />
Karen Lisneiva Farizatto<br />
karenfarizatto@yahoo.com.br<br />
Sérgio Marinho da Silva<br />
sr.gari@gmail.com<br />
Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />
Desenvolvimento do Sistema Nervoso<br />
O tubo neural consiste em um longo tubo com um canal central, composto<br />
basicamente por neurônios e células gliais. Durante o desenvolvimento embrionário, este<br />
canal (canal do epêndima) é cercado por três tipos de tecidos, denominados camadas<br />
ependimária (canal do epêndima), do manto e marginal (que envolve externamente o tubo<br />
neural).<br />
No final do estágio embrionário, no momento em que surge o tecido que originará o<br />
sistema nervoso, a região ventral do canal espinal começa a se diferenciar, sendo possível<br />
notar o espessamento de três regiões: o prosencéfalo, o mesencéfalo e o rombencéfalo<br />
(Figura 2.2).<br />
A primeira região espessada da coluna espinal, o prosencéfalo, dará origem ao<br />
telencéfalo – o cérebro propriamente dito – e ao diencéfalo – região que engloba o tálamo,<br />
hipotálamo, glândula pineal, e outras estruturas.<br />
A segunda região espessada, o mesencéfalo – encéfalo médio –, continuará<br />
indiferenciada e igualmente denominada.<br />
A terceira região espessada, rombencéfalo, se diferenciará em metencéfalo - parte<br />
que se transformará em cerebelo - e mielencéfalo, que se tornará o bulbo encefálico (Bear<br />
et al, 2002).<br />
Como o encéfalo está organizado?<br />
Podemos classificar as estruturas que revestem o encéfalo de fora para dentro da<br />
seguinte forma; crânio (proteção mecânica), meninges: dura-máter (camada mais externa),<br />
aracnóide (camada média), e a pia-máter (mais interna). Entre a aracnóide e a pia-máter há<br />
o líquido cerebroespinal, que nutre o encéfalo, além de fornecer proteção mecânica.<br />
O encéfalo corresponde ao telencéfalo (cérebro), diencéfalo, cerebelo, e tronco<br />
encefálico, que se divide em: bulbo (situado caudalmente), mesencéfalo (situado<br />
cranialmente) e ponte (situada entre ambos) (Figura 2.3).<br />
O telencéfalo ou cérebro é dividido em dois hemisférios, bastante desenvolvidos nos<br />
mamíferos, nos quais situam-se as sedes da memória e dos nervos (sensitivos e motores).<br />
O líquido cerebroespinal circula no Sistema Nervoso Central através de canais e<br />
reservatórios (os ventrículos). Ao todo, são dois ventrículos laterais, o terceiro e o quarto<br />
ventrículos, localizados no encéfalo e tronco encefálico.<br />
215
V Curso de Inverno<br />
A camada externa do cérebro é conhecida como córtex, formada pela substância<br />
cinzenta. O nome córtex, que significa casca em latim, lhe foi dado por sua aparência<br />
rugosa e também pelo fato de recobrir a maior parte do restante do cérebro.<br />
Figura 2.2: Estruturas do encéfalo durante a embriogênese. 1- Prosencéfalo, 2-<br />
mesencéfalo, 3- robencéfalo, 4 – futura medula espinal, 5- Diencéfalo, 6- Telencéfalo, 7-<br />
Mielencéfalo (futuro bulbo), 8- Medula Espinal, 9- Hemisfério cerebral, 10- Lóbulo Olfatório,<br />
11- Nervo Óptico, 12- Cerebelo, 13- Metencéfalo. Fonte:www.afh.bio.br.<br />
O córtex de cada hemisfério é dividido em quatro lobos, denominados a partir dos<br />
ossos cranianos localizados acima deles. O lobo temporal está localizado nas partes<br />
laterais do crânio, é relacionado primariamente com o sentido de audição, possibilitando o<br />
reconhecimento de tons específicos e intensidade do som. O lobo frontal, que se localiza<br />
na frente do encéfalo, abaixo do osso frontal do crânio, é responsável pela elaboração do<br />
pensamento, planejamento, programação de necessidades individuais e emoção e controle<br />
motor. O lobo parietal, localizado dorsalmente, atrás do lobo frontal, é responsável pela<br />
sensação de dor, tato, gustação, temperatura, pressão. Também está relacionado com a<br />
lógica matemática. O lobo occipital, localizado na região da nuca, é responsável pelo<br />
processamento da informação visual (Figura 2.4).<br />
Em meio a substância branca, sob o telencéfalo, há grupos de corpos celulares<br />
neuronais que formam os núcleos da base, relacionados com o controle do movimento.<br />
216
Neurofisiopatologia<br />
Figura 2.3: Divisões do encéfalo humano em corte sagital. Fonte:www.afh.bio.br.<br />
Figura 2.4: Divisão anatômica do encéfalo. Fonte: www.afh.bio.br<br />
O córtex aumenta de tamanho ao longo da filogenia, alcançando seu tamanho máximo<br />
nos mamíferos. Nos mamíferos, este é o principal centro de integração de aferências ao<br />
sistema nervoso. Nos demais vertebrados, os núcleos da base são os principais centros<br />
integradores. Além disso, nos demais vertebrados o controle da visão não se dá<br />
principalmente pelo córtex, como nos mamíferos. Este ocorre no mesencéfalo, na região do<br />
teto.<br />
O diencéfalo localiza-se sob o telencéfalo. Nele encontramos importantes estruturas,<br />
como o hipotálamo - constituído por substância cinzenta - o principal centro integrador das<br />
atividades dos órgãos viscerais, sendo um dos principais responsáveis pela homeostase<br />
217
V Curso de Inverno<br />
corporal. Ele faz ligação entre o sistema nervoso e o sistema endócrino, atuando na<br />
ativação de diversas glândulas. É o hipotálamo que controla a temperatura corporal, regula<br />
o apetite, o balanço de água no corpo e o sono, além de estar envolvido na emoção e no<br />
comportamento sexual. Tem amplas conexões com as demais áreas do prosencéfalo e com<br />
o mesencéfalo. Aceita-se que o hipotálamo desempenhe, ainda, papel nas emoções:<br />
especificamente as partes laterais parecem envolvidas com o prazer e a raiva, enquanto a<br />
porção mediana parece mais ligada à aversão, ao desprazer e à tendência ao riso<br />
(gargalhada) incontrolável. De modo geral, contudo, a participação do hipotálamo é menor<br />
na gênese (“criação”) do que na expressão (manifestações sintomáticas) dos estados<br />
emocionais.<br />
Todas as mensagens sensoriais, com exceção das provenientes dos receptores do<br />
olfato, passam pelo tálamo antes de atingir o córtex cerebral. Esta é uma região de<br />
substância cinzenta localizada entre o tronco encefálico e o cérebro. O tálamo atua como<br />
estação retransmissora de impulsos nervosos para o córtex cerebral. Ele é responsável pela<br />
condução dos impulsos às regiões apropriadas do cérebro onde devem ser processados. O<br />
tálamo também está relacionado com alterações no comportamento emocional que<br />
decorrem, não só da própria atividade, mas também de conexões com outras estruturas do<br />
sistema límbico (que regula as emoções).<br />
Situado atrás do cérebro está o cerebelo (Figura 2.5), que é primariamente um centro<br />
para o controle dos movimentos iniciados pelo córtex motor (possui extensivas conexões<br />
com o cérebro e a medula espinal). Como o cérebro, também está dividido em dois<br />
hemisférios. Porém, ao contrário dos hemisférios cerebrais – que controlam o lado inverso<br />
do corpo (contralateral) – os hemisférios cerebelares estão relacionados aos movimentos do<br />
mesmo lado do corpo (ipsilateral).<br />
O cerebelo recebe informações do córtex motor e dos núcleos da base sobre todos os<br />
estímulos enviados aos músculos. A partir das informações do córtex motor sobre os<br />
movimentos musculares pretendidos e de informações proprioceptivas - que recebe<br />
diretamente do corpo (articulações, músculos, áreas de pressão do corpo, aparelho<br />
vestibular e olhos) – o cerebelo avalia o movimento realmente executado. Após a<br />
comparação entre desempenho e aquilo que se teve em vista realizar, estímulos corretivos<br />
são enviados de volta ao córtex para que o desempenho real seja igual ao pretendido.<br />
Dessa forma, o cerebelo relaciona-se com os ajustes dos movimentos, equilíbrio, postura e<br />
tônus muscular a cada instante.<br />
O cerebelo tem seu tamanho e forma relacionados não só com a classe, mas também<br />
com o hábito de vida do animal. Este é relativamente mais desenvolvido nas espécies com<br />
maior movimentação espacial, como peixes. O cerebelo em aves e mamíferos encontra seu<br />
tamanho máximo e o maior número de sulcos e giros (Guyton et al, 1996).<br />
O tronco encefálico (Figura 2.6) interpõe-se entre a medula e o diencéfalo, situando-se<br />
ventralmente ao cerebelo. Possui três funções gerais; (1) receber informações sensitivas de<br />
218
Neurofisiopatologia<br />
estruturas cranianas e controla os músculos da cabeça; (2) contém circuitos nervosos que<br />
transmitem informações da medula espinal até outras regiões encefálicas e, em direção<br />
contrária, do encéfalo para a medula espinhal; (3) regular a atenção, função esta que é<br />
mediada pela formação reticular. Além destas 3 funções gerais, as várias divisões do tronco<br />
encefálico desempenham funções motoras e sensitivas específicas.<br />
Na constituição do tronco encefálico entram corpos de neurônios que se agrupam em<br />
núcleos e fibras nervosas. Muitos dos núcleos do tronco encefálico recebem ou emitem<br />
fibras nervosas que participam da constituição dos nervos cranianos, que emergem<br />
diretamente do encéfalo.<br />
Figura 2.5: Estruturas do cerebelo. Fonte: www.afh.bio.br<br />
Medula espinal<br />
A medula espinal é uma estrutura de formato cilíndrico, ocupando a maior parte do<br />
canal vertebral. Em corte transversal, observa-se uma região interna mais escura, em<br />
formato de H. Esta é a região denominada substância cinzenta. A região em sua volta, mais<br />
clara, é denominada substância branca. A substância cinzenta é originária do canal do<br />
manto e de células da camada ependimária, enquanto as células da substância branca são<br />
originárias da camada marginal.<br />
A substância cinzenta é formada por neurônios amielínicos encontrando-se nela<br />
principalmente corpos celulares de neurônios, seus dendritos e células gliais. Já a<br />
substância branca é formada por células mielinizadas e é onde encontramos os axônios em<br />
conjunto formando tratos.<br />
219
V Curso de Inverno<br />
Figura 2.6: Estruturas do tronco encefálico. Fonte: www.afh.bio.br<br />
Na região dorsal da substância cinzenta, nos chamados cornos dorsais, encontramos<br />
neurônios principalmente sensoriais – aferentes, encaminham o estímulo ao encéfalo -<br />
enquanto nos cornos ventrais encontramos neurônios principalmente motores – eferentes,<br />
encaminham o estímulo ao órgão efetor.<br />
Na região dorsal da substância branca, os tratos que existem correm em direção ao<br />
encéfalo, enquanto na região ventral os tratos correm em direção ao corpo. Já a região<br />
lateral possui tratos em direção aos dois sentidos.<br />
Na medula espinal, os corpos celulares das células nervosas agrupam-se nas colunas<br />
cinzentas dorsais e ventrais, que são contínuas por toda sua extensão. No encéfalo, ao<br />
contrário, os corpos celulares funcionalmente relacionados aglomeram-se na superfície do<br />
cérebro e cerebelo onde formam o córtex desses órgãos ou juntam-se em massas<br />
descontínuas no interior do encéfalo. Um conjunto desse tipo é denominado núcleo, mas<br />
também pode receber o nome de centro ou corpo (Carlson, 2000)..<br />
Sistema nervoso autônomo<br />
O Sistema Nervoso Central está conectado ao resto do corpo por meio de fibras<br />
nervosas. Estas fibras se conectam aos receptores sensoriais, a órgãos internos e<br />
músculos. Todas essas fibras nervosas que irradiam do encéfalo e da medula espinal são<br />
denominadas Sistema Nervoso Periférico.<br />
Dentro do Sistema Nervoso (Figura 2.7), temos o Sistema Nervoso Autônomo. Este<br />
é a parte relacionada ao controle da vida vegetativa, ou seja, controla funções como a<br />
respiração, circulação do sangue, controle de temperatura e digestão. No entanto, ele não<br />
se restringe a isto. Ele é o principal responsável pelo controle automático do corpo frente às<br />
220
Neurofisiopatologia<br />
diversidades do ambiente. Dessa maneira, pode-se perceber que o organismo possui um<br />
mecanismo que permite ajustes corporais mantendo assim o equilíbrio do corpo, também<br />
chamado homeostase. Apesar de se chamar Sistema Nervoso Autônomo ele não é<br />
independente do restante do Sistema Nervoso.<br />
Sabe-se que o Sistema Nervoso Autônomo é constituído por um conjunto de neurônios<br />
que se encontram na medula e no tronco encefálico. Estes, através de gânglios periféricos,<br />
coordenam a atividade da musculatura lisa, da musculatura cardíaca e de inúmeras<br />
glândulas exócrinas. O Sistema Nervoso Autônomo divide-se em Simpático e<br />
Parassimpático. Os neurônios pré-ganglionares do sistema Simpático emergem dos<br />
segmentos toracolombares (da região do tórax e logo abaixo), ao passo que os do sistema<br />
parassimpático emergem dos segmentos encefálicos e sacrais (da região da cabeça e logo<br />
acima dos glúteos) (Kandel et al, 2000).<br />
Características do sistema nervoso por classes:<br />
O encéfalo dos peixes varia muito, devido ao grande número de gêneros de peixes<br />
existentes.<br />
O encéfalo dos anfíbios é notavelmente não especializado. O corpo estriado é<br />
pequeno e os lobos ópticos apresentam dimensões pequenas a moderadas. O cerebelo<br />
ainda é rudimentar.<br />
O encéfalo dos répteis é estreito, alongado e quase reto. Os bulbos olfativos tendem a<br />
ser menores que os dos peixes. Os tratos olfativos são longos e o cerebelo é grande em<br />
função da expansão.<br />
O encéfalo das aves são relativamente grandes, uniformes e peculiares. Os bulbos e<br />
tratos olfativos são, de modo geral, menores do que nos outros vertebrados. O hemisfério<br />
cerebral das aves é superado em tamanho apenas pelo de alguns mamíferos, devido ao<br />
enorme desenvolvimento do corpo estriado com seu neocórtex. Os nervos, tratos e<br />
quiasmas ópticos são grandes. Nas aves e mamíferos, o cerebelo é muito volumoso,<br />
lobulado e convoluto, formando giros e sulcos. As porções superficiais do córtex são<br />
delgadas e a substância cinzenta tornou-se externa. Nas aves, o cerebelo é maior do que<br />
nos outros vertebrados, salvo alguns mamíferos.<br />
Nos mamíferos, os bulbos e tractos olfativos variam de imensos a muito pequenos.<br />
Embora menor que nos répteis e aves, o corpo estriado é bem desenvolvido. O amplo<br />
neocórtex representa a característica dos mamíferos, dominando o encéfalo estruturalmente<br />
e funcionalmente. Estes são lisos em mamíferos pequenos e convolutos na maioria dos de<br />
grande porte. Uma nova comissura, corpo caloso, liga os hemisférios (Hildebrand, 1995).<br />
A cobertura dorsal do mesencéfalo, denominada teto, é o local onde encontramos em<br />
todos os vertebrados, exceto nos mamíferos, o centro primário de percepção da visão. Nos<br />
mamíferos, a percepção visual é migrada, em grande parte, para o cérebro, apesar do teto<br />
do mesencéfalo ainda ser funcional na visão.<br />
221
V Curso de Inverno<br />
Referências Bibliográficas<br />
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Alegre: ArtMed, 2002.<br />
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www.afh.bio.br<br />
Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />
222
Neurofisiopatologia<br />
Controle neural da pressão arterial e hipertensão<br />
João Paulo de Pontes Matsumoto<br />
jpaulo.fisio@yahoo.com.br<br />
Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />
A manutenção dos níveis pressóricos dentro de uma faixa de normalidade depende de<br />
variações do débito cardíaco ou da resistência periférica ou de ambos. Diferentes<br />
mecanismos de controle estão envolvidos não só na manutenção como na variação da<br />
pressão arterial (PA), regulando o calibre e a reatividade vascular, a distribuição de fluido<br />
dentro e fora dos vasos e o débito cardíaco. O estudo dos mecanismos de controle da PA<br />
tem indicado grande número de substâncias e sistemas fisiológicos que interagem de<br />
maneira complexa para garantir a PA em níveis adequados nas mais diversas situações.<br />
Desta forma, a dinâmica da PA é efetuada por mecanismos neuro-humorais que<br />
corrigem prontamente os desvios dos níveis basais da PA, para mais ou para menos<br />
(Michelini, 2007). Sendo assim, estes mecanismos reguladores da PA agem como em um<br />
arco-reflexo: envolve receptores, aferências, centro de integração, eferências e efetores<br />
cardiovasculares, além das alças hormonais (id).<br />
Entre os componentes que controlam a PA, os mecanorreceptores ou barorreceptores<br />
são os principais responsáveis pela regulação momentânea da PA. Localizados na crossa<br />
da aorta e no seio carotídeo (Figura 3.1), são constituídos por terminações nervosas livres<br />
situadas na adventícea, próximas à borda média – adventicial, que são extensamente<br />
ramificadas e apresentam varicosidades e convoluções a espaços irregulares (Krauhs,<br />
1979; Chapleau et al., 2001), (Figura 3.2). Mecanorreceptores são sensíveis a distensão ou<br />
deformação da parede vascular, deformações estas que são geradas pela passagem do<br />
pulso de pressão. Os barorreceptores transduzem esse sinal mecânico em sinal elétrico<br />
através de canais iônicos sensíveis a deformações, pertencentes à família das degerinas/<br />
canais epiteliais de Na+ (DEG/EnaC) e presentes nos terminais nervosos. Estes, durante a<br />
sístole, permitem o influxo de Na + e Ca ++ que despolarizam os terminais na proporção direta<br />
da deformação, ou seja, quanto maior a deformação, maior o influxo de íons, maior a<br />
despolarização e vice-versa (Figura 3.2c). Esses sinais são transmitidos ao longo das fibras<br />
aferentes mielinizadas e não-mielinizadas.<br />
As fibras barorreceptoras aórticas (Nervo Depressor Aórtico ou de Cyon) caminham<br />
pelo nervo vago, enquanto as carotídeas (Nervo Sinusal ou de Hering) incorporam-se ao<br />
nervo glossofaríngeo. Há diferenças interespécies quanto à distribuição anatômica do nervo<br />
depressor aórtico, como exemplos no cão onde a região cervical é praticamente inseparável<br />
do tronco vagal (que contém, igualmente, o simpático cervical) ou no coelho em que este<br />
nervo corre isoladamente.<br />
223
V Curso de Inverno<br />
Figura 3.1: A- barorreceptores no seio carotídeo / B- barorreceptores no arco aórtico<br />
Modificado de Boron & Boulpaep, 2007.<br />
Na pressão basal, o nível de descarga dos mecanorreceptores é intermediário entre as<br />
situações extremas (limiar e saturação); a atividade aferente é intermitente e sincrônica com<br />
a expansão da aorta verificada durante o período sistólico (Irigoyen et al., 2005) e a<br />
deformação diastólica não é suficiente para gerar uma descarga de potenciais de ação. O<br />
nível de atividade das fibras aferentes carotídeas e aórticas é, portanto, função direta das<br />
variações instantâneas da deformação e tensão vasculares induzidas pela PA. As<br />
informações sobre os níveis de PA, fornecidas pela frequência de descarga dos receptores,<br />
são conduzidas ao bulbo, ou mais especificamente ao núcleo do trato solitário (NTS)<br />
(Dampney, 1994).<br />
O NTS desempenha papel fundamental na regulação cardiovascular, não só por ser o<br />
local de convergência das aferências periféricas (barorreceptores, quimioreceptores,<br />
receptores cardiopulmonares), como de aferências suprabulbares (hipotalâmicas) em sua<br />
primeira estação sináptica, mas também por distribuir as informações aferentes em tais<br />
núcleos bulbares de integração primária (Michelini, 2007). Desta forma, estes núcleos<br />
recebem informação do NTS (o núcleo dorsal motor do vago (DMV), o núcleo ambíguo (NA)<br />
e o bulbo ventro lateral caudal (BVLc)). Entretanto, o BVLc, constituído por neurônios<br />
224
Neurofisiopatologia<br />
inibitórios gabaérgicos (Figura 3.3), projeta-se para a mais importante fonte de estimulação<br />
simpática, o bulbo ventro lateral rostral (BVLr).<br />
Figura 3.2: Reconstrução tridimensional dos barorreceptores. Modificado de Michelini,<br />
(2007).<br />
A resposta neural comandada pelos barorreceptores é sumarizada da seguinte<br />
maneira: quando há elevação da PA os barorreceptores são estimulados e promovem<br />
aumento da geração de potenciais de ação, conduzidos pelas aferências (carotídeas e<br />
aórticas) até o NTS, excitando-o, através da liberação do neurotransmissor glutamato (Sved<br />
& Gordon, 1994). Por sua vez, o NTS através da liberação do neurotransmissor glutamato,<br />
ativa os neurônios do NA e DMV que, via nervo vago, promove bradicardia reflexa e redução<br />
do débito cardíaco. Concomitantemente à ativação do NA e DMV, os neurônios inibitórios do<br />
BVLc são ativados, inibindo, via liberação do neurotransmissor ácido γ-aminobutírico<br />
(GABA) no BVLr, a atividade simpática.<br />
Em situação de hipotensão os efeitos são inversos à situação de alta pressão, ou seja,<br />
diminuição da atividade vagal e aumento da atividade simpática. Porém, no NTS há uma<br />
grande quantidade de neurotransmissores, neuromoduladores e receptores, cada um com<br />
sua especificidade, como a angiotensina II, adenosina, vasopressina, ocitocina, óxido nítrico<br />
entre outros; montando uma rede complexa de aferências, que aumenta sua complexidade,<br />
plasticidade e acurácia na regulação momento a momento da pressão arterial.<br />
225
V Curso de Inverno<br />
Figura 3.3: Visão esquemática sagital do bulbo de rato: neurônios excitatórios, Δ<br />
neurônios inibitórios. Retirado de Colombari, (2001).<br />
Estima-se que a parcela de hipertensos no Brasil seja da ordem de 15% a 20% da<br />
população adulta, chegando a ser de aproximadamente 50% nos idosos (Sociedade<br />
Brasileira de Hipertensão, 2001). Na hipertensão há aumento no padrão de disparos dos<br />
barorreceptores causado pela elevação da PA. Este aumento causa saturação dos<br />
barorreceptores, diminuindo a resposta reflexa em situações de mudanças abruptas da PA.<br />
Porém, muitos anos atrás, Krieger e colaboradores (1982) demonstraram que os<br />
barorreceptores, após dois dias de hipertensão, conseguem se adaptar ajustando seu<br />
padrão de disparo, mesmo com a PA elevada, ou seja, nessa situação o novo regime de<br />
pressão é reconhecido como “normal”, de forma que as mudanças abruptas da PA serão<br />
corrigidas. Isso é possível porque os elementos elásticos na parede do vaso à qual os<br />
barorreceptores estão ligados sofrem uma deformação devida suas propriedades elásticas,<br />
diminuindo a tensão exercida nos barorreceptores, estes então, voltando à conformação de<br />
níveis normais de PA (Figura 3.4).<br />
Reis e colaboradores (1984) propuseram que a hipertensão arterial sistêmica deve ser<br />
resultado de um desbalanço entre a rede neural central que ativa os neurônios simpáticos<br />
vasomotores e aqueles que os inibem, favorecendo uma alta descarga simpática, que<br />
acarreta em elevação dos níveis pressóricos. Ainda hoje os mecanismos envolvidos na<br />
gênese da hipertensão arterial sistêmica não estão completamente desvendados. Porém,<br />
226
Neurofisiopatologia<br />
houve muita evolução nos conceitos e no seu tratamento, mas há ainda muito que pesquisar<br />
nesta área tão promissora.<br />
Figura 3.4: Registro da ativação dos barorreceptores. Retirado de Michelini (2007).<br />
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228
Neurofisiopatologia<br />
Treinamento físico aeróbio: adaptações e benefícios<br />
cardiovasculares e parâmetros comportamentais em animais e<br />
indivíduos hipertensos<br />
Regiane Xavier de Moraes<br />
regiane@ib.usp.br<br />
Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />
Durante a maior parte da história escrita pelos homens, sempre houve demonstrações<br />
de interesse em entender como o corpo funciona. Antigos escritos egípcios, indianos e<br />
chineses descrevem tentativas realizadas por médicos para tratar várias doenças e<br />
restaurar a saúde. Esterco de camelo e pó de chifre de carneiro podem parecer terapias<br />
bizarras atualmente, mas devemos vê-las sob a perspectiva do que se sabia sobre o corpo<br />
humano desde os primórdios.<br />
A fisiologia (do grego physis, natureza e logos, palavra ou estudo) é o ramo da biologia<br />
que estuda as múltiplas funções mecânicas, físicas e bioquímicas nos seres vivos. De uma<br />
forma mais sintética, a fisiologia estuda o funcionamento do organismo. Aristóteles (384 –<br />
322 a.C.) usou a palavra, com o sentido amplo, para descrever o funcionamento de todos os<br />
organismos vivos e não apenas do corpo humano. Entretanto, Hipócrates (460 – 377 a.C.),<br />
considerado o pai da Medicina, usou a palavra para descrever “o poder curativo da<br />
natureza” e, assim, este campo de estudo tornou-se intimamente associado à medicina. No<br />
século XVI, na Europa, a fisiologia foi considerada como o estudo das funções vitais do<br />
corpo humano, embora, hoje em dia, o termo seja aplicado também ao estudo das funções<br />
dos animais e das plantas.<br />
Dentre as subdivisões independentes da fisiologia (ecofisiologia, fisiologia vegetal,<br />
fisiologia animal, eletrofisiologia) está a neurofisiologia, que estuda a fisiologia do sistema<br />
nervoso e a fisiologia do exercício, que se aplica aos estudos voltados aos efeitos do<br />
exercício físico sobre o organismo.<br />
Para tratarmos ferimentos e doenças de forma apropriada, devemos conhecer o<br />
funcionamento do corpo humano no seu estado saudável. Desta forma, quanto maior a<br />
compreensão dos mecanismos que guiam as funções fisiológicas dos organismos vivos,<br />
com as suas peculiaridades e a ampla gama de detalhes e variáveis, com mais precisão<br />
serão descobertos e efetuados os tratamentos e, concomitantemente, novas terapias<br />
surgirão.<br />
Neste tópico será abordada a relação do exercício físico com a hipertensão arterial,<br />
além de atualidades e tendências em pesquisa na área da fisiologia do exercício e doenças<br />
cardiovasculares. Além disso, será também elucidada a importância do treinamento físico na<br />
alteração de características e hábitos comportamentais.<br />
O sedentarismo é o principal fator de risco de mortes em função de doenças<br />
cardiovasculares e pode contribuir para o aparecimento e/ou agravamento de doenças<br />
229
V Curso de Inverno<br />
cardiovasculares como a hipertensão arterial. A hipertensão arterial é uma das doenças de<br />
maior prevalência na população brasileira e mundial. No Brasil, a Sociedade Brasileira de<br />
Hipertensão (SBH) estima que haja 30 milhões de hipertensos, cerca de 30% da população<br />
adulta. Entre as pessoas com mais de 60 anos, mais de 60% são acometidos. No mundo<br />
são 600 milhões de hipertensos, segundo a Organização Mundial de Saúde. Não se deve<br />
desprezar também a prevalência desta patologia em crianças e adolescentes. A SBH estima<br />
que 5% da população com até 18 anos seja hipertensa, o que corresponde a 3,5 milhões de<br />
crianças e adolescentes brasileiros. Diversos estudos levantaram a prevalência da<br />
hipertensão juvenil. No Rio de Janeiro, por exemplo, ela está em torno de 7%. Em Belo<br />
Horizonte e Florianópolis, 12% e em Salvador, 4% das crianças e adolescentes são<br />
acometidas. Assim, é interessante analisarmos o fato de que como ainda não há cura para a<br />
hipertensão arterial, a detecção precoce e o controle adequado para a vida inteira são<br />
desafios para a saúde pública.<br />
Durante os últimos tempos, o exercício físico, bem como as suas implicações e<br />
conseqüências, tem sido extensamente estudado por cientistas de todo o mundo.<br />
Usualmente, os exercícios aeróbicos e/ou de resistência mais recomendados e utilizados<br />
são a caminhada, a corrida, a natação, a musculação e o ciclismo. Em animais, as<br />
metodologias normalmente utilizadas são a roda de corrida espontânea, além da corrida<br />
induzida em esteiras rolantes adaptadas e a natação forçada. No entanto, rodas de corrida<br />
espontânea é o método de treinamento animal mais indicado para o estudo de parâmetros<br />
fisiológicos por não causar estresse e injúria aos animais. As pesquisas buscam<br />
compreender as ações do exercício no organismo, quais os mecanismos centrais e<br />
periféricos que as norteiam e, principalmente, quais os benefícios que poucas horas de<br />
mudança na rotina diária podem causar tanto para uma pessoa ou animal saudável como<br />
para os acometidos por patologias.<br />
A realização do exercício físico provoca uma série de respostas fisiológicas nos<br />
diversos sistemas corporais, em particular no cardiovascular e nervoso. Objetivando manter<br />
a homeostasia celular, diante do aumento das necessidades metabólicas, há incremento do<br />
débito cardíaco, redistribuição do fluxo e aumento da perfusão sanguínea para a<br />
musculatura em atividade.<br />
Sabe-se que exercícios físicos regulares, quando são adequadamente prescritos, e de<br />
baixa intensidade podem provocar alterações autonômicas importantes que influenciam o<br />
sistema cardiovascular. Entre estas, deve-se ressaltar a atenuação da hipertensão arterial<br />
tanto em humanos quanto em ratos espontaneamente hipertensos. A atividade física<br />
contribui para a melhora do controle barorreflexo e para a redução de aproximadamente 8 e<br />
11 mmHg das pressões arteriais sistólica e diastólica, respectivamente, em indivíduos<br />
hipertensos (Hagberg et al., 2000). Estudos mostram que a diminuição da pressão arterial<br />
deve-se à diminuição do débito cardíaco que está associado à diminuição da freqüência<br />
cardíaca pós-exercício (bradicardia de repouso) (Véras-Silva et al., 1997). Entretanto, alguns<br />
230
Neurofisiopatologia<br />
autores propõem que exercícios crônicos provocam queda na resistência vascular sistêmica<br />
e, consequentemente, redução da pressão arterial (Nelson et al.,1986). O treinamento físico<br />
normaliza o tônus simpático, que controla a freqüência cardíaca em ratos espontaneamente<br />
hipertensos (Gava et al.,1995) e diminui a atividade nervosa simpática em humanos, ou<br />
seja, estes resultados sugerem que a atividade física pode modular a atividade nervosa<br />
simpática para o coração e vasos periféricos explicando, em partes, a queda pressórica.<br />
Durante o exercício ocorrem modificações específicas da freqüência cardíaca, que<br />
constituem um mecanismo muito preciso de manutenção do suprimento do fluxo sanguíneo<br />
para o cérebro, coração, pele e músculos em atividade.<br />
Alguns neurotransmissores possuem importantes funções que garantem condições<br />
necessárias para a realização da atividade física. Entre estes estão a vasopressina e a<br />
ocitocina. A vasopressina e a ocitocina são produzidas em neurônios magnocelulares do<br />
núcleo paraventricular do hipotálamo, que envia e recebe projeções do núcleo do trato<br />
solitário. Ambos os núcleos são importantes centros de controle cardiovascular (Michelini e<br />
Morris, 1999).<br />
A vasopressina facilita a resposta taquicárdica durante a atividade física.<br />
Contraditoriamente, a ocitocina diminui a taquicardia e contribui para a bradicardia. Desta<br />
forma, estes neurotransmissores possuem efeitos específicos e opostos no controle da<br />
freqüência cardíaca. Este balanço entre o estímulo excitatório (vasopressinérgico) e<br />
inibitório (ocitocinérgico) provê a eficiência do ajuste fisiológico requerido<br />
momentaneamente, já que a taquicardia é necessária para suprir a maior demanda de fluxo<br />
sanguíneo e a maior taxa metabólica da musculatura em atividade durante o exercício físico.<br />
Assim, no núcleo do trato solitário de animais treinados, a vasopressina e a ocitocina atuam<br />
como moduladores da freqüência cardíaca durante a atividade física por potencializar ou<br />
moderar, respectivamente, a taquicardia (Michelini, 2001).<br />
É importante enfatizar que as vias vasopressinérgicas e ocitocinérgicas do tronco<br />
encefálico não são os únicos mecanismos centrais envolvidos na gênese da taquicardia.<br />
Assim, projeções descendentes vasopressinérgicas e ocitocinérgicas do núcleo<br />
paraventricular do hipotálamo para o núcleo do trato solitário são parte do mecanismo<br />
central de modulação do reflexo barorreceptor no controle da freqüência cardíaca durante o<br />
exercício e outras condições ambientais (Michelini, 2001).<br />
Podem ser observadas ainda outras alterações cardiovasculares decorrentes do<br />
treinamento físico, tais como a hipertrofia cardíaca. Exercícios aeróbicos, por meio do<br />
aumento de volume sanguíneo, podem estimular adaptações na morfologia cardíaca,<br />
metabolismo energético e funções. Estes podem produzir hipertrofia cardíaca excêntrica, na<br />
qual o aumento da massa ventricular é proporcional ao aumento da câmara cardíaca<br />
(Frohlic et al., 1992). Trata-se de uma resposta fisiológica e compensatória fundamental<br />
para suportar o aumento da carga de trabalho. Estas alterações estruturais, morfo-<br />
231
V Curso de Inverno<br />
funcionais e metabólicas do coração, induzidas pelo exercício, resultam em maior volume de<br />
ejeção sistólica (que se torna mais vigorosa) e em maior esvaziamento ventricular.<br />
Entretanto, a hipertrofia cardíaca pode se instalar em resposta a certos estados<br />
patológicos crônicos como e hipertensão arterial. Na hipertrofia concêntrica o aumento da<br />
massa ventricular não é proporcional ao aumento da câmara cardíaca. Desta forma, o<br />
trabalho cardíaco é feito contra uma excessiva resistência ao fluxo sanguíneo. O coração<br />
hipertrofiado pode falhar e tornar-se incapaz, em casos mais graves, de prover o fluxo<br />
sanguíneo normal para o indivíduo hipertenso.<br />
Vários são os fatores desencadeantes da hipertensão arterial. Entre eles, o excesso de<br />
peso, a alimentação rica em gordura e sal e pobre em frutas, verduras e legumes, o<br />
tabagismo, o alcoolismo e os fatores genéticos. Outros fatores importantes são os<br />
relacionados aos comportamentos e à capacidade de reação em diversas situações<br />
cotidianas. Assim, os comportamentos que atualmente acometem quase a totalidade das<br />
pessoas entre crianças e adultos, como o estresse e a ansiedade, podem desencadear ou<br />
acentuar o estado hipertensivo. A ansiedade, o estresse e a hiperatividade são acentuadas<br />
características comportamentais de ratos espontaneamente hipertensos. Desta forma,<br />
surgiu a necessidade de verificar as ações do exercício físico espontâneo (em rodas de<br />
corrida) sobre parâmetros fisiológicos cardiovasculares e sobre parâmetros<br />
comportamentais, na ânsia de analisar como o treinamento físico pode ajudar e colaborar<br />
para a melhora da qualidade de vida de animais e indivíduos acometidos pela hipertensão<br />
arterial. Interessantemente, foi observado em 2005 (Moraes, R.X. in dissertação de<br />
mestrado) que ratos espontaneamente hipertensos efetivamente treinados em rodas de<br />
corrida espontânea apresentam diminuição do medo/ansiedade, estresse e hiperatividade.<br />
Para este fim, neste mesmo estudo foi padronizado um protocolo de treinamento físico em<br />
rodas de corrida espontânea, um dado até então ausente na literatura, para que fosse<br />
possível verificar as ações do treinamento físico espontâneo sobre tais parâmetros.<br />
Como podemos observar, transtornos de ansiedade e depressão têm sido intimamente<br />
associados a alterações comportamentais e desde os primórdios, o estudo da<br />
psicopatologia experimental tem se ocupado deles através de modelos animais de tais<br />
patologias.<br />
Considera-se que a ansiedade e a depressão são exacerbações não adaptativas da<br />
reação de defesa (Graeff, 1994). A reação de defesa é o conjunto de diversas estratégias<br />
comportamentais selecionadas ao longo da evolução que amplia as possibilidades de<br />
sobrevivência em situação de perigo. Entre mamíferos, os padrões de resposta a estas<br />
situações são parecidos em sua topografia e aparentados em seus mecanismos fisiológicos<br />
de deflagração (Blanchard et al., 1993).<br />
A reação de defesa apresenta-se como uma seqüência de passos na qual a<br />
proximidade do estímulo aversivo ambiental determina variações topográficas e fisiológicas<br />
observáveis e que podem ser classificadas em três níveis, relacionados com substratos<br />
232
Neurofisiopatologia<br />
neurais diferenciados, que podem caracterizar as seguintes emoções: apreensão ou<br />
ansiedade generalizada no nível um, medo no nível dois e pânico no nível três (Blanchard e<br />
Blanchard, 1988). Estes níveis relacionam-se com quatro estratégias: imobilização<br />
(freezing), fuga, agressão defensiva ou submissão (Zangrossi Jr, 1996; Blanchard e<br />
Blanchard, 1988).<br />
O primeiro nível de defesa ocorre quando o perigo é incerto, como em situações de<br />
novidade do ambiente ou quando estímulos potencialmente perigosos ocorreram<br />
anteriormente no ambiente. Neste nível, o comportamento comum do animal é uma<br />
aproximação lenta, receosa e tímida do estímulo aversivo. No segundo nível de defesa, um<br />
estímulo aversivo e potencialmente danoso é identificado e está a uma distância crítica do<br />
animal. Entre os comportamentos observados inclui-se o congelamento, que é a inibição de<br />
comportamentos coerentes e a fuga ou esquiva do ambiente. O terceiro nível implica em<br />
contato estrito do animal com o estímulo aversivo. O principal comportamento observado<br />
neste nível é o de fuga desabalada ou agressão defensiva (Blanchard et al., 1986).<br />
A manutenção destes mecanismos básicos em praticamente todas as espécies de<br />
mamíferos indica o seu alto valor adaptativo. A expressão destes mecanismos, no entanto,<br />
pode ser moldada por situações ambientais diversas, tais como, fatores ligados ao<br />
desenvolvimento, familiaridade com o estímulo ou ainda por ações de variáveis fisiológicas,<br />
como níveis de hormônios ou drogas, lesões, fatores genéticos, etc. (Blanchard e Blanchard,<br />
1988). Isto dá a estes comportamentos a capacidade de serem extremamente plásticos,<br />
podendo ser modulados de acordo com situações vivenciadas pelos animais ou com<br />
estímulos como o treinamento físico, por exemplo.<br />
Para abordar experimentalmente aspectos que representem mecanismos ou sintomas<br />
ansiosos em animais de laboratório, que correspondam ao que é encontrado na ansiedade<br />
humana, foram desenvolvidos inúmeros modelos animais comportamentais. Estes modelos,<br />
geralmente, têm como objetivo enfocar aspectos comuns de ansiedade/medo e defesa<br />
encontrados em seres humanos e animais, tais como alteração na defecação e micção,<br />
reações de sobressalto, alterações na resposta de latência, piloereção, tremores, aumento<br />
da PA, entre outros (Wise e Taylor, 1990).<br />
Em animais de laboratório, o estado de ansiedade eliciado pelos modelos<br />
experimentais é avaliado com base nos mesmos parâmetros utilizados na avaliação da<br />
ansiedade humana, ou seja, na intensidade, duração, freqüência e/ou padrão das respostas<br />
defensivas.<br />
Entre os modelos animais de ansiedade mais utilizados estão o labirinto em cruz<br />
elevado e o labirinto em T elevado.<br />
O labirinto em T elevado, validado farmacologicamente por Graeff e colaboradores<br />
(1998), representa um derivado do labirinto em cruz elevado, que foi modificado a fim de<br />
testar simultaneamente o medo condicionado e incondicionado no mesmo aparelho (Graeff<br />
et al., 1993). Os resultados são obtidos separadamente em cada um dos braços do aparato.<br />
233
V Curso de Inverno<br />
Trata-se de um modelo etologicamente fundamentado, no qual o pressuposto teórico é<br />
a manipulação do medo incondicionado, ou seja, de medos inatos. Esses medos estão<br />
relacionados com a sobrevivência do indivíduo como, por exemplo, no confronto com o<br />
predador (Blanchard et al., 1986). É bem demonstrado que o fator motivacional crítico, no<br />
qual este modelo etológico se baseia é a natureza aversiva aos braços abertos (Zangrossi e<br />
Graeff, 1997).<br />
Este modelo experimental foi desenvolvido para investigar os efeitos de drogas<br />
ansiolíticas e analisar diferentes tipos de ansiedade e, ao mesmo tempo, verificar a memória<br />
(Viana et al.,1994). Também permite mensurar respostas relacionadas com medos<br />
condicionados ou inatos no mesmo animal, além de permitir simultânea verificação da<br />
memória para estes comportamentos (Conde et al.,1999).<br />
Com este teste é possível analisar a esquiva inibitória no braço fechado, que<br />
representa o medo condicionado, e a fuga, nos braços abertos, que representa o medo inato<br />
ou incondicionado. Colocar o animal várias vezes no braço fechado proporciona a<br />
exploração do labirinto e o aprendizado da esquiva inibitória dos braços abertos. Por outro<br />
lado, colocar o animal no final do braço aberto proporciona uma resposta de fuga para o<br />
braço fechado. A re-exposição dos animais a estas situações após um intervalo de tempo<br />
permite verificar a memória para estes comportamentos emocionais (Conde et al. 1999).<br />
Estudos em humanos e animais têm revelado alterações comportamentais e<br />
neuropsicológicas associadas aos exercícios físicos regulares. O treinamento físico melhora<br />
o humor e tem efeitos ansiolíticos e antidepressivos sobre as fobias e a depressão de<br />
pacientes (Simons e Birkimer, 1988; Dimeo et al., 2001). Estes resultados são de grande<br />
valia, sobretudo pelo fato de que a depressão e a ansiedade são desordens<br />
comportamentais que atingem a sociedade como um todo. Nos últimos anos, o avanço<br />
tecnológico, assim como as pressões sociais, políticas e econômicas, têm contribuído para o<br />
aumento de problemas mentais de ordem emocional. Em situações emocionais, o ser<br />
humano pode experimentar basicamente três emoções principais, em resposta a uma<br />
situação ameaçadora; raiva dirigida para fora (equivalente à cólera), raiva dirigida contra si<br />
mesmo (depressão) e ansiedade ou medo (McGauch et al., 1977). Encontrando-se em um<br />
estado de alerta, o organismo exibe uma resposta de luta ou fuga ao agente estressante.<br />
Ocorre que a prática de exercícios físicos aeróbios pode produzir efeitos antidepressivos,<br />
ansiolíticos e proteger o organismo dos efeitos deletérios do estresse na saúde física e<br />
mental (Salmon, 2001).<br />
Exercícios voluntários em rodas de corrida por quatro semanas alteraram o perfil<br />
comportamental de camundongos levando a uma diminuição da ansiedade e impulsividade<br />
de forma a proteger o organismo dos efeitos deletérios do estresse (Binder et al., 2004).<br />
Ainda sobre os aspectos psicobiológicos, a literatura relata forte correlação entre a<br />
melhora da capacidade aeróbia e a melhora das funções cognitivas, como melhor tempo de<br />
234
Neurofisiopatologia<br />
reação, maior força muscular, agilidade motora, melhora do humor e memória,<br />
especialmente em idosos (Williams e Lord, 1997).<br />
Por fim, o exercício físico crônico de intensidade baixa a moderada possui implicações<br />
clínicas importantes já que pode reduzir ou mesmo abolir a necessidade de uso de<br />
medicamentos anti-hipertensivos, diminuindo, desta forma, o custo do tratamento,<br />
extinguindo efeitos colaterais e, principalmente, promovendo melhora do quadro clínico de<br />
indivíduos hipertensos. Assim, pode ser tido como uma importante conduta não<br />
farmacológica no tratamento e controle da hipertensão arterial. Somam-se a estas<br />
descobertas o fato de que o treinamento físico colabora não só para a manutenção e<br />
conquista da saúde cardiovascular mas também para a saúde mental, já que atua<br />
beneficamente na redução de comportamentos maléficos e deletérios, que prejudicam os<br />
sistemas corporais e podem levar à graves patologias psicossomáticas. Finalmente, uma<br />
mudança na rotina diária para o desenvolvimento da prática de esportes, além de ser<br />
prazeroso e desestressante, colabora para a melhora na qualidade de vida bem como para<br />
a manutenção e ganho da saúde física e mental de indivíduos hipertensos e saudáveis.<br />
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236
Neurofisiopatologia<br />
Neurofisiologia do abuso de drogas<br />
Andreas Betz<br />
abetz79@yahoo.com.br<br />
Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />
O que são drogas? Parece uma resposta fácil. Porém, para definir que substância é<br />
considerada droga, ela precisa ter pelo menos algumas características. Você pode dizer que<br />
é considerada droga a substância que altera a fisiologia de um organismo. Porém, só isso<br />
não basta, já que vitaminas, por exemplo, possuem esta propriedade. Pode-se dizer<br />
também que drogas são substâncias tóxicas, mas também esta definição não basta. A<br />
melhor maneira de definir uma substância como droga seria, portanto, a soma de algumas<br />
propriedades e também usar a intuição para taxar uma substância como tal.<br />
Todas drogas têm nomes químico, genérico e comercial. Como exemplo, irei usar uma<br />
droga tranqüilizante bem conhecida: o diazepam. Diazepam é o nome genérico do 7-cloro-1-<br />
metil-5-fenil-1,3-dihidro-2H-1,4-benzodiazepin-2-ona (nome químico) ou Valium® (nome<br />
comercial). A mesma droga pode ter alguns nomes comerciais, por causa da presença de<br />
várias empresas vendendo o mesmo produto.<br />
As drogas possuem várias vias de administração. Através da via oral, a droga é<br />
ingerida e absorvida pelo sistema digestório. Na via subcutânea, a droga é administrada sob<br />
a pele ou embaixo do tecido cutâneo. Na via intramuscular, a droga é administrada através<br />
da inserção de uma agulha no músculo esquelético, geralmente escolhidos como alvo o<br />
deltóide ou o glúteo máximo. Na via intraperitoneal, a droga é administrada através de uma<br />
agulha inserida na região abdominal onde se localizam os órgãos viscerais. Na via<br />
intravenosa, a droga é administrada através da veia do indivíduo, diretamente na corrente<br />
sanguínea. Ainda podemos citar a administração de drogas via inalação, onde a droga é<br />
absorvida diretamente pelos pulmões; injeções intracerebroventriculares, nas quais a droga<br />
é injetada diretamente nos ventrículos cerebrais e também injeções intracerebrais, na qual a<br />
droga é administrada diretamente em alguma área do cérebro.<br />
A maioria das drogas é metabolizada no fígado, podendo se transformar em<br />
subprodutos que podem ou não serem ativos. A maioria delas também é excretada pelo<br />
corpo através dos rins, fezes, suor e saliva.<br />
Quando uma droga é desenvolvida, ela passa por vários testes até ser aprovada para<br />
o consumo humano, se for considerada funcional e segura. Um método muito usado para<br />
verificar as propriedades terapêuticas das drogas é a utilização de animais experimentais e<br />
vários protocolos diferenciados. Através destes protocolos pode-se verificar, por exemplo,<br />
alterações no comportamento e em estruturas cerebrais que podem levar a um<br />
entendimento maior sobre a substância a ser analisada.<br />
As drogas podem gerar estados de tolerância, sensibilização e abstinência. A<br />
tolerância é um fenômeno que ocorre através da administração, que faz com que o indivíduo<br />
necessite de maior quantidade de substância para conseguir o efeito esperado da droga.<br />
237
V Curso de Inverno<br />
Ainda não se sabe qual o mecanismo responsável por este fenômeno, porém, sabe-se que<br />
após a descontinuidade do uso, a tolerância desaparece.<br />
A sensibilização é uma situação na qual a repetida administração da droga leva a um<br />
aumento nos efeitos dela, ou seja, uma ação inversa à descrita na tolerância. Sua<br />
ocorrência não é muito comum. Como na tolerância, a sensibilização desaparece após a<br />
descontinuidade do uso.<br />
A abstinência se dá através da descontinuidade ou diminuição do uso de drogas que<br />
levam à mudanças na fisiologia do indivíduo. Ela pode ocorrer alguns minutos depois da<br />
última administração da droga ou após algum tempo sem a utilização da mesma. Um dos<br />
mais conhecidos sintomas da abstinência é a “ressaca”.<br />
Como as drogas psicotrópicas agem? Estas drogas atuam principalmente na<br />
neurotransmissão encefálica. Elas alteram e modulam a comunicação entre os neurônios,<br />
através de interações com os neurotransmissores e seus receptores. Neurotransmissores<br />
são substâncias como monoaminas e peptídeos, entre outros, que são os responsáveis pela<br />
comunicação entre as células do sistema nervoso. A maioria dos neurotransmissores se<br />
encontra em vesículas sinápticas, presentes em terminais axônicos, próximos da fenda<br />
sináptica (Tabela 5.1).<br />
Tabela 5.1 – Alguns neurotransmissores do Sistema Nervoso Central<br />
Acetilcolina<br />
Monoaminas<br />
Adrenalina<br />
Noradrenalina<br />
Dopamina<br />
Serotonina<br />
Histamina<br />
Aminoácidos<br />
Glicina<br />
Glutamato<br />
Prolina<br />
Ácido gama-aminobutírico (GABA)<br />
As drogas podem atuar de várias maneiras agindo, por exemplo, como agonistas de<br />
neurotransmissores, mimetizando a ação de neurotransmissores endógenos (nicotina);<br />
238
Neurofisiopatologia<br />
inibindo a recaptação de neurotransmissores, ou seja, fazendo com quem eles permaneçam<br />
por mais tempo nas fendas sinápticas (cocaína); bloqueando receptores e, inibindo a<br />
recaptação da serotonina, que permanece maior tempo na fenda (Prozac) entre outras<br />
formas.<br />
A maioria das drogas causa o vício. O vício é uma síndrome comportamental na qual a<br />
procura pela droga e o seu uso dominam o comportamento do indivíduo. A droga de abuso<br />
(droga usada sem fim terapêutico) possui um grande poder motivacional, pelo prazer e<br />
euforia que pode proporcionar, porém suas conseqüências podem ser danosas aos seus<br />
usuários e familiares.<br />
A principal via relacionada com o vício de drogas é a mesolímbica de reforço. Ela é<br />
composta por dois núcleos principais: a área tegmental ventral e o nucleus accumbens. A<br />
área tegmental ventral possui neurônios dopaminérgicos que se projetam para o nucleus<br />
accumbens, liberando dopamina neste núcleo, o que inicia o processo de adição (Figura<br />
5.1).<br />
Figura 5.1: Via mesocorticolímbica de reforço. Fonte: www.humanillnesses.com/.../<br />
Addiction.html<br />
Após a ativação deste sistema, há a interação de vários outros núcleos encefálicos<br />
que vão interpretar e modular uma resposta ao estímulo apresentado. Entre os principais<br />
núcleos, destacam-se a amígdala (relacionada com aprendizado associativo) e o córtex préfrontal<br />
(relacionado com o comportamento motivacional). A interação destes núcleos leva ao<br />
comportamento de busca e abuso de drogas.<br />
Há uma gama enorme de drogas que são utilizadas tanto para abuso quanto para fins<br />
terapêuticos e, muitas vezes, a diferença entre um e outro se deve apenas à quantidade da<br />
droga ingerida.<br />
239
V Curso de Inverno<br />
Estimulantes Psicomotores<br />
Os estimulantes psicomotores são drogas que agem principalmente sobre sinapses<br />
adrenérgicas, noradrenérgicas, dopaminérgicas e serotoninérgicas. Entre eles, os mais<br />
conhecidos são: metilfenidato (Ritalina®), cocaína, anfetamina, metanfetamina e efedrina<br />
(Franol®). Cocaína e efedrina são encontradas na natureza, enquanto o metilfenidato é<br />
sintetizado em laboratório.<br />
Estas drogas são administradas via injeção intravenosa e intramuscular, inalação ou<br />
via oral. Elas atravessam rapidamente a barreira hemato-encefálica alterando a<br />
neurotransmissão do indivíduo. A anfetamina, a metanfetamina e a efedrina atuam inibindo a<br />
recaptação de dopamina pelos neurônios e também aumentando a liberação de<br />
neurotransmissores. A cocaína atua somente inibindo a recaptação de dopamina pelos<br />
neurônios. Elas são muitas vezes consumidas com outras drogas, o que leva a um aumento<br />
do seu efeito prazeroso.<br />
As drogas estimulantes causam sensação de bem-estar e excitação, e levam à<br />
mudanças fisiológicas como vaso e broncodilatação, taquicardia, insônia, irritabilidade,<br />
perda de apetite, agressividade, psicose, entre outros sintomas. Elas podem desencadear<br />
diversos mecanismos fisiológicos como o surgimento de arritmias e convulsões, além de<br />
poder levar à morte por depressão de núcleos respiratórios centrais e parada cardiorespiratória.<br />
Álcool<br />
O álcool é uma das drogas mais usadas no mundo. Foram encontradas evidências de<br />
sua fabricação na China há mais ou menos 9.000 anos (McGovern et. al., 2004). O álcool é<br />
produzido por fermentação ou destilação, sendo que as bebidas destiladas possuem maior<br />
teor alcoólico (em torno de 40%). Ele é administrado oralmente e sua absorção é feita<br />
através do sistema digestório. A maioria das moléculas de álcool é metabolizada no fígado e<br />
o restante é eliminado pelo organismo junto com o suor, urina e fezes, entre outros.<br />
O álcool altera vários sistemas de neurotransmissão como o serotoninérgico (receptor<br />
5-HT3), GABAérgico, glutamatérgico e opióide (Froehlich & Li, 1993).<br />
Alguns efeitos do álcool são: vasodilatação periférica, euforia, desinibição, diurese e<br />
letargia; atua como sedativo, levando indivíduos a terem mais sono (porém diminui o tempo<br />
de sono REM), altera a visão e o tempo de reação, além de também causar perda de<br />
memória.<br />
Opióides<br />
São drogas derivadas da papoula. Possui dois ingredientes ativos: a morfina e a<br />
codeína. A heroína é uma droga derivada da morfina e tem capacidade de chegar ao<br />
cérebro mais rápido e em maior concentração do que a morfina. Hoje em dia existe uma<br />
240
Neurofisiopatologia<br />
enorme quantidade de opióides sintéticos, geralmente utilizados por hospitais, como<br />
potentes anestésicos.<br />
A heroína foi produzida pela primeira vez em 1898. Após a sua administração, que<br />
pode ser nasal, intravenosa e por vapor de fumaça (broncoaspiração), atua no cérebro,<br />
principalmente em áreas relacionadas com a dor e necessidades básicas do indivíduo,<br />
agindo em receptores opióides, que se ligam normalmente à endorfinas e encefalinas.<br />
Os opióides causam sensação de bem estar, acompanhada de vários efeitos colaterais<br />
como náusea, vômito, constipação, alterações na visão e audição, alucinações, além de<br />
deprimir núcleos bulbares responsáveis pelo controle respiratório e cardíaco, podendo levar<br />
o individuo a morte.<br />
Nicotina<br />
A nicotina é um alcalóide encontrado nas folhas de tabaco e é um dos maiores<br />
responsáveis por mortes de causas não naturais em todo o mundo.<br />
Ela causa aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca, da atividade motora,<br />
vasoconstrição, náusea, diminuição do apetite, entre outros sintomas (McBride et. al., 1998).<br />
A nicotina atua como agonista de receptores nicotínicos de acetilcolina, alterando a<br />
maquinaria cerebral. Ela atravessa a barreira hemato-encefálica e chega ao cérebro em<br />
torno de dez segundos após sua administração. Uma única exposição à nicotina aumenta a<br />
liberação de dopamina no nucleus accumbens por mais de uma hora (DiChiara & Imperato,<br />
1998) através da estimulação, via receptores nicotínicos de acetilcolina, de neurônios<br />
dopaminérgicos da área tegmental ventral (circuito de recompensa).<br />
Esta droga também causa alterações na concentração, memória e humor.<br />
A nicotina pode causar aterosclerose, câncer de pulmão, boca e garganta, entre outros<br />
sintomas que, normalmente, só aparecem após longo período de uso.<br />
Maconha<br />
A maconha é utilizada há muito tempo (em torno de 6.000 anos). O ingrediente ativo<br />
da maconha é o delta-9-tetrahidrocanabinol. Ela é encontrada em três espécies de plantas:<br />
Cannabis sativa, Cannabis indiana e Cannabis ruderalis (Grinspoon & Bakalar, 1997).<br />
A maconha pode ser administrada oralmente (o que resulta em um efeito mais lento)<br />
ou fumada (que causa um efeito rápido). Ela age no sistema canabinóide cerebral, que<br />
responde pelos canabinóides endógenos anandamida e 2-araquidonilglicerol. Porém é muito<br />
mais potente que os canabinóides endógenos.<br />
A maconha causa euforia, alteração na sensibilidade auditiva, visual e tátil (R. T.<br />
Jones, 1978), perda da percepção de tempo e alteração na criatividade. Seus efeitos<br />
adversos podem ser: olhos vermelhos, boca seca, fome, aumento da freqüência cardíaca e<br />
temperatura corporal, náusea, insônia e dores de cabeça, déficit de atenção e até reações<br />
psicóticas.<br />
241
V Curso de Inverno<br />
Contudo, pode ter efeitos terapêuticos em casos clínicos como glaucoma (Grinspoon &<br />
Bakalar, 1997) bem como em problemas motores e espasticidade (Braude & Szara, 1979,<br />
vol 2).<br />
Alucinógenos<br />
Os mais conhecidos membros deste grupo de drogas são o LSD (dietilamida do ácido<br />
lisérgico), a mescalina (derivada de cactos) e o ecstasy. Estas drogas agem no sistema<br />
nervoso central, na neurotransmissão serotoninérgica e dopaminérgica. Elas podem ser<br />
administradas por via oral, sublingual, injetadas ou inaladas, e praticamente não produzem<br />
efeitos físicos.<br />
O LSD geralmente é consumido na dose de 100 a 300µg. Cerca de 1% da dose chega<br />
ao cérebro. É degradado pelo fígado e eliminado pelas fezes. Os efeitos variam bastante,<br />
podendo provocar ilusões, alucinações, grande sensibilidade sensorial (cores mais<br />
brilhantes, percepção de sons imperceptíveis), “flashbacks”, paranóia, alteração da noção<br />
temporal e espacial, confusão, sentimento de bem-estar, experiências de êxtase, psicose<br />
por “má viagem” entre outros.<br />
Estas drogas possuem uma grande tolerância quando administradas repetidamente.<br />
Porém, não apresentam abstinência, já que raramente são administradas por muito tempo.<br />
Drogas psicoterápicas<br />
Entre as drogas psicoterápicas, há três grupos principais: os tranqüilizantes-sedativos,<br />
os antidepressivos e os antipsicóticos.<br />
Tranqüilizantes-sedativos: existem dois grupos principais – os barbitúricos e os<br />
benzodiazepínicos. Os barbitúricos foram as primeiras drogas tranqüilizantes desenvolvidas,<br />
porém, apresentavam alguns efeitos não desejáveis e tinham uma potente ação depressora<br />
em núcleos bulbares que, com uma dose mais elevada, poderia levar o individuo à morte.<br />
Com o desenvolvimento dos benzodiazepínicos, os barbitúricos foram praticamente<br />
deixados de lado. Os benzodiazepínicos mais conhecidos são o diazepam (Valium®),<br />
clonazepam (Rivotril®) e um de grande interesse é o flunitrazepam (Rohypnol® ou “boa<br />
noite Cinderela”) por seu uso não medicinal.<br />
Estas drogas agem no sistema nervoso central potencializando as sinapses<br />
GABAérgicas, ou seja, inibindo a comunicação do sistema nervoso podendo também, em<br />
alguns casos, alterar a recaptação de adenosina, outro receptor inibitório. Seus efeitos<br />
incluem diminuição da atenção, perda de memória e de habilidades motoras em geral.<br />
Antidepressivos: existem vários tipos de antidepressivos. Entre eles destacam-se os<br />
inibidores de monoamina-oxidase (MAOis), os tricíclicos (ATCs), os inibidores de recaptação<br />
de serotonina (SSRIs) e os inibidores de recaptação de noradrenalina (SNRIs). Todos eles<br />
agem de acordo com a teoria de depressão das monoaminas, na qual a depressão seria o<br />
resultado de uma menor ativação dos sistemas monoaminérgicos no cérebro. Entre esses<br />
242
Neurofisiopatologia<br />
vários tipos, os mais conhecidos e difundidos no mercado são a sertralina (Zoloft®) e a<br />
fluoxetina (Prozac®). Além destes, o lítio é usado no tratamento de transtornos bipolares. A<br />
fluoxetina pode também ser usada em tratamento de personalidade obsessivo-compulsiva<br />
(Gitlin, 1993).<br />
A taxa de absorção destas drogas varia bastante e a maior parte delas é degradada<br />
pelo fígado.<br />
Os efeitos reportados mais comuns do uso de antidepressivos são: boca seca,<br />
constipação, tontura, arritmia cardíaca, náusea, dor de cabeça, redução do sono REM e<br />
suor excessivo. Alguns pacientes reportaram sintomas extrapiramidais.<br />
Alguns SSRIs parecem ser eficientes no tratamento do vício em outras drogas,<br />
inclusive o alcoolismo.<br />
Antipsicóticos: existem várias hipóteses sobre a psicose, porém, a mais aceita é a<br />
dopaminérgica, a qual preconiza que a esquizofrenia é o resultado do excesso da atividade<br />
da dopamina no cérebro.<br />
Os antipsicóticos são drogas chamadas, às vezes, de grandes tranqüilizantes. Existem<br />
dois grupos de antipsicóticos – os típicos (ex: chlorpromazina; haloperidol), que atuam<br />
bloqueando os receptores D2 de dopamina e os atípicos (ex: clozapina; risperidona;<br />
quetiapina), que atuam bloqueando os receptores D3 e D4 de dopamina além do receptor 5-<br />
HT2A de serotonina.<br />
A esquizofrenia (transtorno psicótico) é caracterizada pela falta de contato com a<br />
realidade. A pessoa parece ficar em um mundo à parte, não consegue interpretar eventos, e<br />
é acometida por alucinações.<br />
Os efeitos dos antipsicóticos variam muito. Entre eles podemos citar os sintomas da<br />
doença de Parkinson (efeitos extrapiramidais) causados em 40% dos pacientes que usam<br />
medicamentos típicos, os movimentos constantes compulsivos (acatisia) e os distúrbios de<br />
movimento (discinesia); além de alterações na frequência cardíaca, pressão arterial e<br />
possíveis ataques epiléticos, entre outros. A clozapina está relacionada com uma doença<br />
fatal chamada agranulocitose. Porém, os antipsicóticos não são drogas letais, sendo<br />
praticamente impossível obter uma overdose.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Braude MC, Szara, S. Pharmacology of marijuana (2 vols.). Orlando: Academic press, 1976.<br />
Di Chiara G, Imperato A. Drugs abused by humans preferentially increase synaptic dopamine<br />
concentrations in the mesolimbic system of freely moving rats. Proc Natl Acad Sci U S A. 1988<br />
Jul;85(14):5274-8.<br />
Gitlin MJ. Pharmacotherapy of personality disorders: conceptual framework and clinical strategies.<br />
J Clin Psychopharmacol. 1993 Oct;13(5):343-53. Review.<br />
Graeff FG, Guimarães FS. Fundamentos de psicofarmacologia, Atheneu, 2000.<br />
243
V Curso de Inverno<br />
Grinspoon L, Bakalar JB. Marijuana, the forbidden medicine. (Rev. and Exp. Ed.) New Haven , C T :<br />
Yale University Press, 1997.<br />
Hardman JG, Limbind LE. The pharmacological basis of therapeutics, 11 th Edition, New York: McGraw<br />
Hill, 2005.<br />
Jones RT. Marijuana: human effects. In L. L. Iverson, S. D. Iverson & S. H. Snyder (Eds), Handbook of<br />
psychopharmacology (Vol. 12), pp. 373-412. New York: Plenum Press, 1978.<br />
McBride JS, Altman DG, Klein M, White W. Green tobacco sickness. Tob Control. 1998 Autumn; 7(3):<br />
294-8. Review.<br />
McGovern PE, Zhang J, Tang J, Zhang Z, Hall GR, Moreau RA, Nunez A, Butrym ED, Richards M P,<br />
Wang CS, Cheng G, Zhao Z, Wang C. Fermented beverages of pre- and proto-historic China.<br />
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Froehlich JC, Li TK. Recent developments in alcoholism: opioid peptides. Recent Dev Alcohol. 1993;<br />
11:187-205. Review.<br />
McKim W. Drugs and Behavior: An Introduction to Behavioral Pharmacology (6th Edition), New<br />
Jersey: Prentice Hall, 2006.<br />
Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />
244
Neurofisiopatologia<br />
Fisiologia aplicada a reabilitação de doenças<br />
neurodegenerativas<br />
Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa<br />
beemonteiropaes@hotmail.com<br />
Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial;<br />
Leandro Cortoni Calia<br />
Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro.<br />
6.1. Envelhecimento e morte do Sistema Nervoso<br />
O processo evolutivo (desenvolvimento, amadurecimento e envelhecimento) é<br />
caracterizado por modificações permanentes, desde a fecundação do óvulo até a morte.<br />
Estas modificações podem ser morfológicas, fisiológicas ou de conduta e são diferentes em<br />
cada um dos estágios da vida.<br />
O processo de envelhecimento, apesar de ter características comuns nos seres<br />
humanos, pode variar de acordo com interferências ambientais, como condições de vida,<br />
higiene, alimentação e índice de mortalidade de uma determinada população.<br />
Em muitos países, legalmente, a idade considerada como início da velhice é de 65<br />
anos.<br />
Além das mudanças físicas (pele, cabelos, dimensões corpóreas), ocorrem<br />
modificações mentais. Estas mudanças são mais subjetivas e, portanto, mais difíceis de<br />
avaliar. Ocorre redução da função sexual (climatério), diminuição da tolerância glicídica, das<br />
funções renal e respiratória, diminuição do índice cardíaco, força muscular e da velocidade<br />
de condução neuronal, além de diminuição da acuidade sensorial (visual, auditiva, gustativa,<br />
olfativa), redução na capacidade isoimunitária e aumento da reação auto-imunitária. Cresce<br />
a vulnerabilidade ao estresse, injúrias e doenças em geral. Nos últimos anos, as melhoras<br />
no sistema sanitário, higiene, alimentação, qualidade da medicina e ambientação social<br />
contribuíram para o declínio desta vulnerabilidade. Contudo, ainda existem diferenças<br />
acentuadas entre populações, o que denota tanto a desigualdade de acesso aos recursos<br />
modernos quanto a provável existência de fatores genéticos no envelhecimento, que<br />
diferenciam populações (Andrade et al, 2004; Cambier e Dehen, 1988; Greve e Amatuzzi,<br />
1999; Leonard, 2006).<br />
Os processos de desenvolvimento são identificados pela capacidade adaptativa do<br />
organismo. O envelhecimento é caracterizado por respostas adaptativas insuficientes ou<br />
inadequadas. Ocorrem diminuições da massa protéica, do tecido orgânico de ossos e<br />
vísceras, ocorre rigidez de certos tecidos, como o das artérias, do cristalino e da pele;<br />
surgem pontos de hiperpigmentação na pele, vísceras e Sistema Nervoso, devido ao<br />
acúmulo de lipofuscina. Gorduras são acumuladas e há redução de massa mineral. Os<br />
processos mitóticos ficam reduzidos e há declínio do metabolismo basal, no conteúdo de<br />
245
V Curso de Inverno<br />
água celular, débito cardíaco e capacidade vital pulmonar (Nitrini e Bacheschi, 2003;<br />
Oliveira, 2003).<br />
O envelhecimento é um fenômeno multifatorial. Somam-se ao fator genético, o<br />
aparecimento de mutações aleatórias do DNA de células somáticas - que são acumulativas<br />
– alterações imunológicas, o entrecruzamento molecular e a formação de radicais livres.<br />
Durante o envelhecimento, ocorrem modificações fisicoquímicas entre moléculas, que<br />
ficam maiores, mais complexas e com digestibilidade reduzida, entre outras, o que torna o<br />
tecido rígido. A permeabilidade e o fluxo de substâncias ficam alterados, assim como fica<br />
reduzida a integridade celular. A formação de radicais livres de oxigênio e de peróxidos<br />
lipídicos origina aldeídos, causadores de ligações entrecruzadas entre macromoléculas,<br />
gerando estas modificações. No indivíduo idoso, há maior formação de radicais livres, que<br />
induzem a formação de mais ligações entrecruzadas (Douglas, 2000; Cistemas, 2003).<br />
O processo de envelhecimento ocorre por insuficiência genética, metabólica, hormonal<br />
e imunológica, como manifestação progressiva das alterações de função e estrutura, que<br />
culminam na diminuição da capacidade de reagir às agressões.<br />
Estas modificações podem ser determinadas por alterações genéticas na codificação<br />
de proteínas que corrigem mutações sutis ou mesmo alterações na expressão do material<br />
genético. Agentes como raios ultravioleta, substâncias químicas e alguns tóxicos podem<br />
desencadear mutações. Os mecanismos exatos de envelhecimento celular são pouco<br />
conhecidos.<br />
O Sistema Nervoso envelhece lentamente após a maturidade, e termina na morte da<br />
pessoa e de seu cérebro. As causas do envelhecimento ainda não foram completamente<br />
esclarecidas.<br />
O cérebro de um idoso é menor e mais leve, com alguns giros mais finos, separados<br />
por sulcos mais profundos. As cavidades são mais abertas e o córtex, portanto, menos<br />
espesso. São sinais de atrofia que podem ser observados com técnicas de imagem, como a<br />
tomografia computadorizada e a ressonância magnética. Ao ser observado no microscópio,<br />
o espaço extracelular possui depósitos de fragmentos de neurônios – as chamadas placas<br />
senis. Muitos neurônios possuem novelos de neurofibrilas no citoplasma. O número de<br />
neurônios diminui, assim como o número de sinapses e de substâncias químicas produzidas<br />
(principalmente enzimas que sintetizam e degradam neurotransmissores). Surgem proteínas<br />
anômalas nas placas senis; a principal é a ß-amilóide. Ocorrem modificações como lapsos<br />
de memória, diminuição da velocidade de raciocínio, confusões passageiras, dificuldade de<br />
locomoção, falta de equilíbrio, tremor distal, insônia noturna e sonolência diurna (Cambier e<br />
Dehen, 1988; Douglas, 2000; Oliveira, 2003).<br />
A velhice leva à deficiência no controle genético de produção de proteínas estruturais,<br />
enzimas e fatores tróficos, que repercute na função das células nervosas, dificultando a<br />
gênese, condução e a transmissão de impulsos nervosos. As células se degeneram,<br />
rompem e liberam detritos que se acumulam em placas senis; com o aumento das células<br />
246
Neurofisiopatologia<br />
anormais e a diminuição das normais; as neuroglias (sistema imunológico) são incapazes de<br />
remover os detritos, aumentando a quantidade destas placas. A principal degeneração é dos<br />
mecanismos de memória, neurônios e circuitos colinérgicos; porém, ocorrem também<br />
alterações circulatórias, respiratórias, digestivas, etc. que contribuem para a perda de<br />
função generalizada do organismo e acabam por levá-lo à morte.<br />
Em alguns indivíduos, observa-se a ocorrência de um comprometimento cognitivo<br />
progressivo, acompanhado do ponto de vista histopatológico por alterações degenerativas<br />
das proteínas fibrilares, que se acumulam de maneira desorganizada no citoplasma,<br />
caracterizando o quadro de Doença de Alzheimer.<br />
6.2. Degeneração<br />
A mielina é de fundamental importância para a condução do impulso no Sistema<br />
Nervoso. A resistência ao potencial de ação aumenta em áreas desmielinizadas, e o sinal<br />
pode lentificar ou nem mesmo chegar ao local destinado.<br />
A desmielinização do Sistema Nervoso Central envolve danos à bainha de mielina no<br />
cérebro e medula espinal.<br />
Diferentemente de muitos outros tecidos, o Sistema Nervoso tem capacidade limitada<br />
de reparação após ter sido lesado. Neurônios adultos não conseguem se reproduzir e, cada<br />
neurônio que morre representa um neurônio a menos que teremos para “se conectar”.<br />
Porém, as células-tronco neurais existem tanto no Sistema Nervoso adulto quanto em<br />
encéfalos ainda em desenvolvimento. São células indiferenciadas, precursoras de neurônios<br />
e glias. Por maturação e diferenciação, podem dar origem a vários tipos diferentes de<br />
células do Sistema Nervoso Central. Suas características incluem a capacidade de autorenovação,<br />
de diferenciação em muitos tipos de neurônios e células gliais, além da<br />
capacidade de povoar regiões do Sistema Nervoso central em desenvolvimento e em<br />
degeneração.<br />
Em encéfalos de mamíferos adultos, existem locais de divisão celular de alta<br />
densidade, possivelmente locais de células-tronco. Estas células são sensíveis ao ambiente,<br />
o que lhes confere capacidade de se diferenciarem de acordo com a célula do local em que<br />
se encontram. Além disso, sua proliferação responde ao estímulo de fatores de crescimento.<br />
Ainda não se conhece exatamente a função das células-tronco em encéfalos adultos.<br />
Contudo, seu papel em implantes cerebrais tem sido motivo para entusiasmo de<br />
pesquisadores: as células-tronco, quando implantadas, sobrevivem e até mesmo se<br />
proliferam, mesmo no Sistema Nervoso, e fazem conexão com neurônios pré-existentes.<br />
Em todos os indivíduos ocorre uma lenta lesão cumulativa desencadeada por<br />
subprodutos tóxicos do metabolismo celular, que provavelmente contribui para a morte<br />
neuronal ao longo da vida. Essa perda de neurônios pode não ser impedida.<br />
247
V Curso de Inverno<br />
6.3. Genética molecular<br />
Os humanos têm de 30 a 70 mil genes, distribuídos em 23 pares de cromossomos (22<br />
autossômicos e um par de cromossomos sexuais). Para cada gene, temos um alelo em<br />
cada cromossomo. A molécula de DNA é usada como padrão para a replicação de cópias<br />
adicionais durante a divisão celular, pela ligação de nucleotídeos livres com as bases<br />
complementares da cadeia aberta de DNA, unidos pela enzima DNA-polimerase numa nova<br />
dupla-hélice de DNA. Pequenas secções da molécula de DNA são usadas como padrão<br />
para a síntese de RNA mensageiro, responsável pelo transporte de mensagens para síntese<br />
de proteínas específicas. O RNAm é bem mais curto que a molécula de DNA e possui uma<br />
cadeia simples (enquanto o DNA é duplo).<br />
A conversão da informação codificada do DNA depende do código genético.<br />
Seqüências de três nucleotídeos formam códons que, por sua vez, representam<br />
aminoácidos que compõem a molécula de proteína. Vários aminoácidos podem ser<br />
codificados por mais de um códon. Além disso, existem três stop códons, que encerram<br />
transferências de informação (Bear et al, 2002; Lent, 2001; Kandel et al, 2003).<br />
Embora todas as células possuam o mesmo conjunto de genes, algumas células têm<br />
genes especializados que codificam proteínas específicas para a síntese de transmissores<br />
específicos, sob coordenação de proteínas reguladoras chamadas fatores de transcrição.<br />
O controle da manifestação de enzimas responsáveis pelos sistemas<br />
neurotransmissores é feito pelos fatores que operam durante o desenvolvimento<br />
embrionário e pelo grau de atividade neuronal. Quanto mais ativo é o sistema nervoso,<br />
maior a síntese de neurotransmissores importantes para o comportamento do organismo.<br />
Algumas doenças são causadas por um único gene. Assim, se uma pessoa herda dois<br />
alelos doentes, desenvolve a doença. Outras doenças são poligênicas: genes múltiplos<br />
trabalham juntos para transmitir o risco de um transtorno, sendo este maior quanto maior for<br />
a quantidade de alelos doentes num indivíduo. Além do mais, a genética pode interagir com<br />
fatores ambientais e complicar o quadro.<br />
A hereditariedade é uma medida de quanto a variância de um traço pode ser atribuído<br />
à genética. Quando a hereditariedade para um traço é alta, a quantidade de variância no<br />
traço é determinada pela genética. Contudo, a hereditariedade não diz nada a respeito do<br />
ponto no qual cairá a média da população, como também não impede os efeitos do<br />
ambiente. Em humanos, é calculada a partir do estudo de gêmeos e pode ir de 0 a 1,0.<br />
Quando não há efeito da genética na variância, dizemos que ela é 0; quando a genética<br />
comanda toda a variância, dizemos que é 1,0.<br />
Graças aos avanços na genética molecular, hoje é possível identificar prováveis genes<br />
ou regiões de cromossomos responsáveis por determinadas doenças.<br />
Cromossomos são longos filamentos de DNA, feitos de quatro bases: timina, guanina,<br />
adenina e citosina. Cada timina tem uma adenina complementar e cada guanina, uma<br />
citosina. Entre os genes, existem trechos de DNA sem sentido, que nunca são transcritos<br />
248
Neurofisiopatologia<br />
em RNAm nem traduzidos em proteínas. Mutações nesses trechos parecem não ter efeito<br />
nas funções humanas. Assim, ao longo das gerações, desenvolvemos inúmeras mutações<br />
nesses trechos, ao ponto de termos um DNA único. Essa é a base da impressão digital de<br />
DNA: uma área única é chamada de “marcador”, e podem ter seqüências muito diferentes<br />
entre os indivíduos.<br />
Os principais estudos de genética molecular são os de associação e os de ligação. Os<br />
estudos de associação são feitos entre pessoas que têm e que não têm uma determinada<br />
doença, e que não possuem vínculo familiar (consangüineidade). É usado para saber se o<br />
DNA na região do gene transportador é diferente entre essas pessoas, se há polimorfismos<br />
nos acometidos que não ocorrem nos indivíduos sadios. Enzimas específicas “cortam” o<br />
DNA em determinadas seqüências de bases, e este é posteriormente colocado em gel e<br />
exposto a um campo elétrico. Os fragmentos mais curtos se deslocarão mais no gel que os<br />
mais compridos. Assim, examinam-se os padrões do gel dos dois tipos de indivíduos, para<br />
ver se existem polimorfismos diferentes.<br />
Na maioria das vezes, não se sabe exatamente onde está o gene de interesse, apenas<br />
que os polimorfismos em um marcador particular são diferentes nos dois grupos; ou não se<br />
sabe quais genes estão ao redor do marcador ou, ainda, podem-se saber quais genes estão<br />
em volta do marcador, mas não é possível identificar qual deles é o responsável pela<br />
modificação. A possibilidade de erro aleatório em estudos de associação é alta, e os estudos<br />
requerem muitas replicações antes que possam ser aceitos.<br />
Os estudos de ligação envolvem descendência e duas ou mais características<br />
associadas, para localizar os genes de interesse. Geralmente são usados marcadores cuja<br />
localização já é conhecida, pois poucos traços humanos podem ser usados em estudos de<br />
ligação. Além desta dificuldade, o estudo de ligação requer acesso não só ao indivíduo<br />
acometido, mas aos membros de sua família, preferivelmente por várias gerações, o que<br />
também não é fácil.<br />
Uma das mais importantes áreas da genética molecular envolve as chamadas<br />
seqüências regulatórias, seqüências específicas de bases que circundam genes e que são<br />
ativadas ou desativadas por fatores específicos de transcrição.<br />
Com a clonagem molecular, inúmeros novos receptores foram descobertos. É possível<br />
determinar e distribuir regionalmente a localização celular do RNAm de receptores, com<br />
grande especificidade, o que possibilita relacionar o local de transcrição dos receptores e<br />
seus sítios de ligação funcionais.<br />
O estudo da interação entre alterações gênicas e efeitos de fármacos também tem<br />
despertado interesse. Já se reconhece que a resposta do Sistema Nervoso a determinadas<br />
drogas pode decorrer da modificação da expressão gênica.<br />
Técnicas de biologia molecular são freqüentemente empregadas na investigação de<br />
sistemas neurais modificados por drogas. Os processos histoquímicos são usados para<br />
identificar componentes químicos de células e tecidos, utilizando corantes, tinturas e outras<br />
249
V Curso de Inverno<br />
substâncias químicas, que se ligam ou reagem com cortes de tecido, possibilitando<br />
visualizar a reação. São corados citoplasma e outras estruturas celulares, geralmente em<br />
função do pH. Pode-se estudar também a estrutura e a organização cerebral por reações<br />
químicas realizadas por neurônios. A fluorescência utiliza a propriedade de formar produtos<br />
de condensação fluorescentes em presença de formaldeído, característica das aminas<br />
primárias (como dopamina, noradrenalina, serotonina e histamina).<br />
A citoquímica estuda a localização, as relações estruturais e as interações dos<br />
conteúdos celulares através de microscopia eletrônica, fracionamento celular e técnicas<br />
imunoquímicas. Atualmente é possível extrair partes homogêneas de proteínas e de RNAm<br />
de receptores para neuropeptídeos, assim como enzimas de síntese e degradação de<br />
neurotransmissores de tecidos, o que permite clonar, seqüenciar e expressar genes para<br />
diferentes neurotransmissores e receptores.<br />
6.4. Doença de Parkinson<br />
A doença de Parkinson é a forma mais comum de parkinsonismo, que possui diversas<br />
etiologias, inclusive o uso de fármacos (Bear et al, 2002; Douglas, 2000; Oliveira, 2003;<br />
Pliszka, 2004).<br />
A doença de Parkinson é o distúrbio mais comum dos núcleos da base e tem como<br />
características a rigidez muscular, marcha de pés arrastados, postura encurvada, tremores<br />
musculares rítmicos em repouso (em torno de 3 a 5 Hz) que desaparecem com a<br />
movimentação voluntária e uma expressão facial em máscara (ausência de expressão ou<br />
amimia), mas pode apresentar também bradicinesia, acatisia, festinação, congelamento,<br />
cinesia paradoxal, micrografia, disartria e sialorréia, entre outros (Barbosa et al, 2003; Bear<br />
et al, 2002. Cambier e Dehen, 1988; Delong, 2003; Pliszka, 2004).<br />
É causada pela degeneração das aferências da substância negra ao estriado, que<br />
utilizam a dopamina como neurotransmissor. A dopamina facilita a alça motora direta ao<br />
ativar células do putâmen. A falta de dopamina faz parar o sistema que alimenta a atividade<br />
na área motora suplementar via núcleos da base.<br />
A doença interfere nos movimentos voluntários e nos automáticos e é causada pela<br />
morte das células produtoras de dopamina da substância negra e de células produtoras de<br />
acetilcolina do núcleo pedúnculopontino, por motivos ainda desconhecidos. O começo das<br />
mortes celulares ocorre muito antes de aparecerem os sinais clínicos da doença.<br />
A etiologia do parkinsonismo pode ser identificada pelo quadro clínico (exame<br />
neurológico e anamnese), mas precisa de exames complementares (ressonância magnética<br />
encefálica, tomografia craniana, exame do líquido cerebroespinal) para sua exata<br />
determinação. A tomografia por emissão de pósitrons (PET) identifica a insuficiência<br />
dopaminérgica, mesmo em indivíduos assintomáticos, mas ainda é um método caro e nem<br />
sempre acessível.<br />
Na doença de Parkinson existe desequilíbrio entre a atividade dopaminérgica e a<br />
250
Neurofisiopatologia<br />
colinérgica. A maior parte dos tratamentos aumenta a atividade dopaminérgica. A morte de<br />
aproximadamente 80% das células produtoras de dopamina da via direta dos núcleos da<br />
base reduz a atividade nas áreas motoras do córtex cerebral, o que causa diminuição nos<br />
movimentos voluntários. Já a perda das células pedúnculopontinas gera a desinibição dos<br />
tratos reticuloespinal e vestibuloespinal, causando contração excessiva dos músculos<br />
posturais.<br />
O uso acidental de um narcótico sintético de procedência duvidosa, nas décadas de 70<br />
e 80, fez médicos investigarem e concluírem que o parkinsonismo poderia ser desenvolvido<br />
por indivíduos jovens, e que esta forma da doença estaria ligada ao MPTP (1-metil-4-<br />
fenil-1,2,3,6-tetra-hidropiridona), componente químico que mata os neurônios<br />
dopaminérgicos. A MPTP é transformada em MPP + (1-metil-4-fenilpiridinium), e as células<br />
dopaminérgicas confundem MPP + com dopamina, acumulando seletivamente esta<br />
substância. O problema é que, dentro da célula, a MPP+ bloqueia a produção de energia<br />
pelas mitocôndrias e a célula acaba morrendo. Com isso, desenvolveu-se o raciocínio de<br />
que a exposição crônica a algum produto químico tóxico pode levar ao desenvolvimento de<br />
formas comuns da doença de Parkinson. A MPTP pode induzir uma forma de morte<br />
neuronal programada na substância negra.<br />
Existem duas categorias de tratamento da doença de Parkinson, uma voltada para o<br />
controle das manifestações clínicas (terapia sintossomática) e outra, que tem como objetivo<br />
proteger ou restaurar a função de neurônios (terapia neuroprotetora). A terapia sintomática<br />
utiliza principalmente intervenções farmacológicas, mas inclui também cirurgias<br />
estereotáxicas. Já a terapia neuroprotetora utiliza meios farmacológicos e também implantes<br />
neurais e fatores de crescimento.<br />
Uma das principais drogas administradas no tratamento da doença de Parkinson é a<br />
levodopa (L-di-hidroxifenil-alanina), precursora de dopamina, que atravessa a barreira<br />
hematoencefálica, e estimula a síntese de dopamina nas células ainda vivas da substância<br />
negra. Contudo, o tratamento com a levodopa não altera o curso da doença nem o ritmo de<br />
degeneração dos neurônios. Ainda temos como fármacos utilizados a selegina, tolcapone e<br />
entacapone (bloqueadores da degradação de dopamina), agonistas dopaminérgicos<br />
(bromocriptina, lisurida, pergolida, apomorfina, sabergolina, ropinirol, pramipexol),<br />
anticolinérgicos e amantadina (bloqueador da recaptação de dopamina). Usam-se também<br />
inibidores periféricos da dopa-descaboxilase (carbidopa e benzerazida) para evitar que a<br />
dopamina seja dissipada antes de chegar ao Sistema Nervoso Central; em contrapartida,<br />
estes inibidores causam efeitos colaterais que devem ser levados em conta, como náusea,<br />
vômito, hipotensão postural, arritmia cardíaca. Já os inibidores da MAO (monoaminaoxidase)<br />
tipo B, iclusive a seleginina, ativam mecanismos antioxidantes e antiapoptóticos.<br />
Por fim, também são utilizados antagonistas do glutamato. Contudo, alguns destes<br />
medicamentos ainda não têm efeito comprovado e nenhum é capaz de estancar ou regredir<br />
a doença.<br />
251
V Curso de Inverno<br />
Usando informações relativas às vias neuronais e neuroplasticidade, novas técnicas<br />
estão sendo desenvolvidas para o tratamento de distúrbios neurológicos. A estimulação<br />
encefálica profunda, transplantes (implantes) neuronais e cirurgias estereotáxicas vêm<br />
sendo empregados no tratamento de tremores e acinesia, presentes em distúrbios dos<br />
núcleos da base que envolvam deficiência de dopamina.<br />
A estimulação cerebral profunda usa estímulo de alta freqüência nos neurônios<br />
talâmicos para tratar o tremor da doença de Parkinson. Através de uma estimulação elétrica<br />
prolongada, inibe-se a descarga de um conjunto hiperativo de neurônios. A estimulação é<br />
modulada e direcionada por gerador - implantado na tela subcutânea na região torácica -<br />
que responde a estímulos externos. Apesar de suas vantagens, como a reversibilidade do<br />
procedimento, a estimulação tem alto custo, requer ajustes periódicos e tem risco de<br />
infectar.<br />
O transplante neuronal consiste em colocação de células produtoras de dopamina de<br />
um doador fetal, nos núcleos da base. Já o implante envolve a relocação de células suprarenais<br />
da própria pessoa, nos núcleos da base, para que sintetizem dopamina.<br />
Para alguns casos graves de tremor e acinesia, centros especializados em cirurgia<br />
estereotáxica destroem uma pequena região de células talâmicas ou do globo pálido,<br />
acarretando em melhoras funcionais ao eliminar populações celulares hiperativas. Entre as<br />
cirurgias irreversíveis mais utilizadas estão a talamotomia, a palidotomia e a estimulação do<br />
núcleo subtalâmico. A talamotomia interfere no núcleo intermédio ventral do tálamo e é a<br />
mais eficiente para o controle do tremor. Contudo, seus efeitos sobre os mecanismos<br />
geradores do tremor ainda não foram esclarecidos (sugere-se que esteja ligado à redução<br />
da atividade autônoma no tálamo e à interrupção das vias palidofugal e contralateral do<br />
cerebelo). Este procedimento não é recomendado bilateralmente pois, além da disartria que<br />
provoca em aproximadamente 25% dos casos, coloca em risco de alterações mentais<br />
persistentes. Se for preciso intervir bilateralmente, utiliza-se a estimulação cerebral profunda<br />
em pelo menos um lado.<br />
A palidotomia é eficaz para o tremor e também para alívio de outros componentes,<br />
como a oligocinesia, rigidez e discinesias. O alvo da cirurgia é a porção sensório-motora do<br />
globo pálido interno. A indicação geralmente é feita para pacientes com quadros avançados<br />
da doença e com complicações motoras causadas por fármacos agonistas dopaminérgicos.<br />
Seus riscos são os mesmos da talamotomia e podem ocorrer aumento de peso e leve<br />
distúrbio comportamental.<br />
A intervenção sobre o núcleo subtalâmico tem maior abrangência e possibilita<br />
melhoras de manifestações axiais da doença, relacionadas com suas eferências<br />
glutamatérgicas direcionadas ao pálido interno e à substância negra reticulata, que se<br />
conectam ao núcleo pedúnculopontino.<br />
Os procedimentos cirúrgicos são feitos preferencialmente em pacientes sem<br />
alterações cognitivas ou naqueles com mais de cinco anos de evolução da doença. Não há<br />
252
Neurofisiopatologia<br />
limite de idade para indicação cirúrgica.<br />
6.5. Esclerose múltipla<br />
A esclerose múltipla decorre do processo de desmielinização central e parece ser<br />
causada por doença auto-imune, na qual a mielina é atacada por anticorpos do próprio<br />
indivíduo. A destruição de oligodendrócitos gera áreas de desmielinização (placas) na<br />
substância branca do sistema nervoso central, causando lentificação ou bloqueio da<br />
transmissão de sinais. É uma doença sem cura, sem meios de prevenção e etiologia<br />
desconhecida. Ocorrem alterações reflexas, como transtornos da bexiga, impotência sexual<br />
em homens e anestesia genital em mulheres, fraqueza muscular, distúrbios de coordenação,<br />
alterações da visão e da movimentação ocular além de distúrbios da sensação, como<br />
formigamentos, dormências e sensações de agulhadas e fala arrastada. Pode haver<br />
alterações de memória e emoções (Bear et al, 2002; Levy e Oliveira, 2003; Lundy-Eckman,<br />
2004; Nitrini e Bacheschi, 2003).<br />
A Esclerose Múltipla pode ser compreendida como uma patologia imunológica<br />
associada a fatores genéticos que predisporiam ou não ao desenvolvimento do quadro,<br />
diante de outros aspectos facilitadores, como alimentação, fatores ambientais, agentes<br />
infecciosos e outros. Em regiões de clima frio e temperado, o risco de contrair a doença é<br />
maior do que nos trópicos; locais de latitude maior que 30º têm maior prevalência que locais<br />
com mais baixa latitude.<br />
A desmielinização provoca transtornos relativamente permanentes. Geralmente ocorre<br />
entre os 20 e os 40 anos, mais em mulheres que em homens (3:1) e evolui por anos,<br />
embora possa ter períodos de remissão. Cerca de 74% das lesões estão na substância<br />
branca, 17% na junção entre o córtex e a substância branca , 5% no córtex e 4% na<br />
substância cinzenta. Quando as degenerações estão presentes no corpo caloso podem<br />
produzir uma série de alterações cognitivas, entre elas o prejuízo em tarefas que exijam<br />
atenção sustentada e vigilância (sinais de desconexão interhemisférica). Porém, buscar um<br />
padrão único para a natureza do déficit de memória na Esclerose Múltipla parece difícil, pois<br />
a doença lesa áreas inespecíficas, altera diversos sistemas e funções, além de<br />
comprometer diferentes vias, moduladas por diferentes neurotransmissores.<br />
É recomendado aos pacientes que evitem altas temperaturas e esforços físicos<br />
excessivos, pois aumentos na temperatura corporal são considerados nocivos aos axônios,<br />
dificultando ainda mais a condução do potencial de ação.<br />
A Esclerose Múltipla pode ser aguda, subaguda ou crônica, com períodos de<br />
exacerbação e remissão. A consciência permanece normal e, raras vezes, o pensamento e<br />
a memória são afetados.<br />
Embora a causa exata desta doença ainda não seja bem conhecida, a causa dos<br />
distúrbios sensoriais e motores está bastante clara. As bainhas de mielina dos feixes de<br />
axônios do encéfalo, medula espinal e nervos ópticos são lesados, em muitos lugares do<br />
253
V Curso de Inverno<br />
sistema nervoso ao mesmo tempo.<br />
As lesões encefálicas causadas pela Esclerose Múltipla podem ser visualizadas<br />
através da Ressonância Magnética. Além disso, o líquor mostra aumento de imunoglobilinas<br />
e bandas oligoclonais. Contudo, o diagnóstico é elaborado principalmente com base na<br />
história clínica.<br />
Esclerose múltipla - Estudos recentes<br />
O fumo é um dos fatores considerados como risco para a Esclerose Múltipla. Os<br />
fumantes têm de 40 a 80% a mais de chance de desenvolver a doença que os não<br />
fumantes. Além disso, quando já existe diagnóstico de Esclerose Múltipla, pacientes<br />
fumantes têm cerca de três vezes mais risco de progredir para as formas mais graves da<br />
doença. A justificativa parece ser os radicais livres produzidos pelo fumo, que causam danos<br />
neuronais. Em indivíduos que já possuem mecanismo de lesão, este quadro pode ser<br />
potencializado.<br />
Existe, atualmente, estudo com Imagem do Tensor de Difusão e fascigrafia por<br />
Ressonância Magnéticaβ, que permitem analisar a integridade dos feixes de substância<br />
branca, o que fornece informações adicionais sobre a caracterização destes, em pacientes<br />
com Esclerose Múltipla, o que não é possível com as técnicas convencionais de<br />
Ressonância Magnética. A caracterização supracitada ainda está em fase de investigação e<br />
estudo, mas é uma técnica promissora no que diz respeito ao diagnóstico da doença.<br />
6.6. Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA)<br />
A Esclerose Lateral Amiotrófica é uma doença progressiva limitada ao sistema motor<br />
voluntário, que destrói apenas os tratos ativadores laterais e as células do corno anterior da<br />
medula espinal (neurônio motor superior no cérebro, tronco encefálico e medula, neurônio<br />
motor inferior nas regiões medulares espinal e periférica), núcleos motores do tronco<br />
encefálico e córtex motor, causando sinais dos neurônios motores superior e inferior.<br />
A etiologia da doença ainda não foi esclarecida, e não existe, portanto, método<br />
laboratorial para o diagnóstico. Os exames feitos são apenas para exclusão de outras<br />
patologias, e o diagnóstico é feito baseando-se em achados clínicos, o que não permite<br />
prevenir a ocorrência da doença. Contudo, alguns exames podem auxiliar o diagnóstico,<br />
identificando algumas características histopatológicas (presença intraneuronal de ubiquitina,<br />
gliose reacional, alterações morfológicas de motoneurônios, neurônios atróficos com núcleo<br />
picnótico e presença de esferóides axonais).<br />
Os músculos são inervados por neurônios motores do corno ventral da medula espinal,<br />
ou neurônios motores inferiores, que comandam a contração e podem ser alfa ou gama. O<br />
motoneurônio alfa libera acetilcolina, que age em receptores nicotínicos da junção<br />
neuromuscular e produz potencial excitatório pós-sináptico e que gera abertura de canais de<br />
Na + voltagem-dependentes promovendo a despolarização dos túbulos T e a liberação de<br />
254
Neurofisiopatologia<br />
Ca 2+ do retículo sarcoplasmático, que culmina em contração muscular. O cálcio liga-se à<br />
troponina e esta expõe, na actina, os sítios de ligação para a miosina. A cabeça da miosina<br />
se conecta à actina e sofre rotação. Com ATP, as miosinas se desligam das actinas e o<br />
cálcio é recaptado para o retículo sarcoplasmático por ATPases. A actina é novamente<br />
coberta por troponina. Na Esclerose Lateral Amiotrófica, este mecanismo é afetado<br />
progressivamente e resulta em ausência de contração muscular.<br />
Os primeiros sinais são fraqueza e atrofia muscular. Geralmente, entre três e cinco<br />
anos todo o movimento voluntário é perdido – a capacidade de andar, falar, deglutir e<br />
respirar são lentamente perdidas. O quadro é caracterizado por paresia, hiper-rigidez<br />
mioplástica, hiper-reflexia, sinal de Babinski, atrofia muscular, fasciculações por atrofia e<br />
fibrilações. No indivíduo acometido, a consciência permanece normal, assim como a<br />
comunicação e a memória, o sistema sensorial e autônomo. A morte do indivíduo decorre de<br />
complicações respiratórias (Bear et al, 2002; Calia e Annes, 2003; Lundy-Eckman, 2004;<br />
Nitrini e Bacheschi, 2003).<br />
Esta é uma doença relativamente rara, apesar de ser a mais comum das doenças do<br />
neurônio motor em adultos, e sua causa é desconhecida.<br />
Por volta de 90% dos casos são idiopáticos, embora uma das formas da ELA, a forma<br />
familiar, já tenha o gene responsável identificado (mutação da enzima superóxido<br />
dismutase). Neste subtipo da doença, um produto tóxico do metabolismo celular é a<br />
molécula negativamente carregada de oxigênio (radical superóxido), a qual é extremamente<br />
reativa e pode provocar danos celulares irreversíveis. A superóxido dismutase é uma enzima<br />
essencial para que os radicais superóxido percam seus elétrons extras, convertendo a<br />
molécula novamente em oxigênio. A ausência desta enzima leva ao acúmulo de radicais<br />
superóxido, lesando as células.<br />
Existe a hipótese de que a ELA seja causada por excitotoxicidade do glutamato e<br />
aminoácidos relacionados, o que causa morte neuronal. Além disso, sugere-se que um<br />
transportador de glutamato pode estar defeituoso, provocando exposição prolongada dos<br />
neurônios em atividade ao glutamato extracelular.<br />
A primeira droga aprovada para o tratamento da ELA foi o riluzole, um bloqueador da<br />
liberação de glutamato. Porém, apesar de seu uso retardar em alguns meses a progressão<br />
da doença, a longo prazo o desenvolvimento do quadro continua igual.<br />
Esclerose Lateral Amiotrófica – estudos recentes<br />
Estudos com antibióticos ß-lactâmicos em modelos animais da doença sugerem que<br />
esses fármacos atuariam auxiliando a neuroproteção, uma vez que foi observada, após<br />
administração da droga, maior produção de fatores neuroprotetores no Sistema Nervoso<br />
Central. O mecanismo parece estar associado principalmente à excitotoxicidade do<br />
glutamato, pois os antibióticos utilizados induzem aumento na produção das moléculas<br />
transportadoras que recolhem o excesso deste neurotransmissor no Sistema Nervoso<br />
Central. Esta alternativa reduz o risco de danos aos neurônios, causados pelo excesso de<br />
255
V Curso de Inverno<br />
glutamato.<br />
Também foi sugerido que os radicais livres seriam responsáveis por lesões na<br />
Esclerose Lateral Amiotrófica. Contudo, estudos recentes em modelos animais propõem que<br />
a presença de radicais livres é, na verdade, conseqüência e não causa da lesão. Foi feita<br />
terapia com antioxidantes e não houve resultado satisfatório, permitindo supor que, então,<br />
os radicais livres não eram a causa da doença.<br />
Outra alternativa pesquisada para a Esclerose Lateral Amiotrófica são as substâncias<br />
antinflamatórias, pois foram evidenciados processos inflamatórios no desenvolvimento da<br />
doença. A excitotoxicidade do glutamato e a ação de radicais livres, no Sistema Nervoso<br />
Central, são importantes mecanismos neurodegenerativos. A inflamação pode contribuir no<br />
processo de degeneração, junto com estes dois outros fatores. Foi observada a presença de<br />
níveis aumentados de prostaglandinas em cérebros de indivíduos acometidos pela<br />
patologia. Sabe-se que as prostaglandinas são pró-inflamatórias. Estudos experimentais em<br />
modelos animais com camundongos geneticamente modificados para desenvolver a doença<br />
observaram que o uso de antinflamatórios estava envolvido no retardo do quadro – maior<br />
sobrevida, melhor resposta motora e menor perda de massa muscular. A identificação de<br />
maiores quantidades de fosfolipase A2 em camundongos com Esclerose Lateral Amiotrófica<br />
sugere que esta enzima tenha importância significativa no desenvolvimento da doença. O<br />
aumento da fosfolipase A2 antecede a lesão neuronal e a conseqüente perda motora, em<br />
camundongos. Se realmente esta enzima for fundamental para o surgimento da doença,<br />
então o tratamento à base de sulindaco, substância antinflamatória utilizada nos<br />
camundongos, pode ser efetivo para retardar o desenvolvimento do quadro clínico.<br />
Atualmente, amostras de sangue de indivíduos acometidos pela Esclerose Lateral<br />
Amiotrófica estão sendo estudadas por eletroforese bidimensional e Western Blotting. Estes<br />
estudos fornecerão informações sobre a composição das proteínas das amostras<br />
analisadas, e poderão contribuir para o desenvolvimento de marcadores que auxiliem o<br />
diagnóstico da doença.<br />
6.7. Doença de Huntington<br />
A doença de Huntington é uma doença hereditária autossômica dominante,<br />
progressiva, cujo início se dá entre os 40 e os 50 anos, e que leva à morte em<br />
aproximadamente 15 anos após o aparecimento dos sintomas. Provoca degeneração em<br />
muitas áreas cerebrais, principalmente no estriado e córtex cerebral, o que gera diminuição<br />
de sinais por inibição direta e excessiva do globo pálido interno e da substância negra<br />
reticular (núcleos estimuladores) pelo putâmen, e leva à desinibição do tálamo motor e do<br />
núcleo pedúnculopontino. Esta desinibição é inadequada, produzindo estimulação excessiva<br />
tanto do tálamo motor quanto do núcleo pedúnculopontino, causando hipercinesias (Barbosa<br />
et al, 2003; Bear et al, 2002; Lundy-Eckman, 2004; Nitrini e Bacheschi, 2003).<br />
É causada pela mutação dominante de um gene que codifica proteína de alto peso<br />
256
Neurofisiopatologia<br />
molecular chamada huntintina, no cromossomo 4, prolongando-a mais que o normal. Estas<br />
proteínas mutantes se agregam e desencadeiam a degeneração neuronal. Não se conhece<br />
ainda a função da huntintina normal, mas é possível que sirva para contrabalançar os<br />
gatilhos de morte celular programada. Observou-se acúmulo de huntintina no encéfalo de<br />
indivíduos com a doença de Huntington e concluiu-se que a proteína induz degeneração<br />
neuronal, provavelmente por mecanismo de apoptose.<br />
Observou-se também que a injeção de agonistas NMDA no estriado de ratos<br />
desencadeava perda celular semelhante à da doença de Huntington, levando à hipótese de<br />
que o gene alterado do cromossomo 4 produz alteração que desencadeia a ativação<br />
excessiva dos receptores NMDA ou a liberação excessiva de glutamato.<br />
Além de hipercinesia (movimentos involuntários anormais, rápidos e espasmódicos,<br />
mas relativamente coordenados dos membros, tronco, cabeça e face) - no caso a coréia - a<br />
doença de Huntington é caracterizada por demência e transtorno de personalidade.<br />
É uma síndrome inevitavelmente letal, cujos sintomas aparecem apenas na idade<br />
adulta, quando o indivíduo provavelmente já teve filhos e transmitiu os genes da doença.<br />
Pacientes com a doença de Huntington apresentam dificuldade no aprendizado de<br />
tarefas nas quais a resposta motora vem associada a um estímulo. Porém apesar de os<br />
indivíduos acometidos geralmente apresentarem disfunções motoras, estas não condizem<br />
com a severidade dos déficits cerebrais, sugerindo que essa deficiência seja uma<br />
conseqüência da doença. Esta constatação sugere que as doenças que atingem os núcleos<br />
da base afetam a memória de procedimentos, vinculada ao estriado – um dos focos de<br />
ataque da doença de Huntington.<br />
6.8. Doença de Alzheimer<br />
A doença de Alzheimer causa degeneração mental progressiva, o que gera perda de<br />
memória, confusão e desorientação do indivíduo acometido. Os sintomas começam a se<br />
tornar aparentes geralmente após os sessenta anos, e a expectativa de vida costuma ser de<br />
5 a 10 anos após o diagnóstico.<br />
O começo do quadro é caracterizado por sinais de esquecimento, que progridem para<br />
incapacidade de lembrar palavras, de produzir e mesmo compreender a linguagem. No<br />
estágio mais avançado da doença, o paciente negligencia o uso de roupas, a aparência e a<br />
alimentação. Além disso, o indivíduo apresenta cegueira de movimento, ou a incapacidade<br />
de interpretar o fluxo de informação visual – incapacidade de interpretar a direção do<br />
movimento de objetos em seu campo visual. Esta incapacidade interfere no uso da<br />
informação visual para o auto-movimento, e poderia explicar a tendência para divagação e<br />
perda, comuns nos doentes de Alzheimer.<br />
As alterações celulares incluem aglomerados neurofibrilares (massas aglomeradas de<br />
neurofibrilas; acúmulo de proteína tau que sofre processo de hiperfosforilação e lesa<br />
células), placas senis (lesões extracelulares formadas por cúmulo central de proteína<br />
257
V Curso de Inverno<br />
amilóide envolta por axônios e dendritos degenerados, e restos de células gliais) e atrofia<br />
grave do córtex cerebral, da amígdala e do hipocampo.<br />
A função das células do complexo prosencefálico basal ainda é desconhecida, mas<br />
sabe-se que é um dos primeiros grupos celulares a morrer durante a evolução da doença de<br />
Alzheimer. Esta área tem sido associada às funções cognitivas, e podem ter papel essencial<br />
no aprendizado e na formação da memória.<br />
Estima-se que 1,3% das pessoas entre 65 e 74 anos e 4% das pessoas entre 75 e 84<br />
anos sejam acometidas pela doença de Alzheimer. Além disso, as pessoas com trissomia do<br />
21 apresentam quadro de alterações celulares semelhantes às do Alzheimer por volta dos<br />
40 anos, e os indivíduos acometidos pela doença de Alzheimer têm algumas células<br />
geneticamente normais e outras com trissomia do 21.<br />
Grande progresso na biologia molecular permite hoje identificar o gene para a proteína<br />
precursora amilóide (PPA), presente no cromossomo 21. Assim, pessoas com síndrome de<br />
Down são mais vulneráveis à doença de Alzheimer, pois têm um cromossomo 21 a mais.<br />
Apesar disso, não é claro como a mutação do gene causa a doença nem mesmo qual a<br />
função da PPA normal no cérebro.<br />
Sugere-se que a PPA normal estimule a proliferação de neurônios e reforce os efeitos<br />
dos fatores de crescimento nervoso, enquanto que a PPA mutante cause morte do neurônio.<br />
Os casos precoces de doença de Alzheimer (entre 28 e 60 anos) foram ligados à<br />
presença dos genes presenilina 1 (PS1), encontrado no cromossomo 14, e presenilina 2<br />
(PS2) nos cromossomos 14 e 1. Quarenta mutações diferentes do PS1 foram ligadas ao<br />
começo precoce da doença, enquanto apenas duas do PS2 foram identificadas como causa<br />
desta precocidade. Todas estas mutações aumentam a produção e o depósito amilóide e<br />
podem levar um gene PPA normal a produzir proteína amilóide mutagênica.<br />
Outra proteína que parece estar ligada à maioria dos casos de Alzheimer é a<br />
apolipoproteína ε (Apoε), reguladora do metabolismo de gordura, cujo gene encontra-se no<br />
cromossomo 19 e possui diversos alelos. O alelo ε4, mesmo homozigoto, traz um risco<br />
muito maior para a doença de Alzheimer, além de estar associado com a má recuperação de<br />
danos encefálicos e de influenciar os depósitos amilóides.<br />
A Apoε formada liga-se à proteína tau, que faz parte dos emaranhados neurofibrilares,<br />
permitindo que se hipotetize que a proteína tau produza os emaranhados e,<br />
conseqüentemente, a morte dos neurônios.<br />
As pesquisas sobre doença de Alzheimer também enfocam os sistemas de<br />
neurotransmissores, apontando a redução da enzima colina acetiltransferase, responsável<br />
pela síntese de acetilcolina, nos portadores da doença. Os receptores 5-HT2A, NMDA e<br />
AMPA também estão diminuídos. Além disso, os receptores muscarínicos estão<br />
aumentados, possivelmente representando regulação para cima, conseqüente da<br />
diminuição da atividade da acetilcolina. Alguns medicamentos que reforçam a função da<br />
258
Neurofisiopatologia<br />
acetilcolina são efetivos na melhora da cognição, ainda que em pequena escala, mas não<br />
são capazes de alterar o curso de longo prazo da doença (Bear et al, 2002).<br />
É de fundamental importância que se descubra os mecanismos genéticos da doença<br />
de Alzheimer, para que se possa desenvolver drogas capazes de evitar a formação dos<br />
emaranhados neurofibrilares e dos depósitos amilóides.<br />
A excitotoxicidade também tem sido implicada como causa da doença de Alzheimer.<br />
Ainda não há exames específicos para detectar a doença, mas existem exames como<br />
a ressonância magnética para medir o hipocampo e a determinação da concentração de<br />
proteína tau, além das proteínas amilóides no líquido cerebroespinal, que são técnicas<br />
promissoras. Também não existe tratamento efetivo específico nem preventivo para a<br />
doença de Alzheimer. O que se faz atualmente é inibir a enzima acetilcolinesterase, para<br />
que não destrua a acetilcolina na fenda sináptica, pois se observou que nesta patologia<br />
ocorre redução na concentração de acetilcolina em núcleos subcorticais específicos,<br />
considerada responsável por parte da alteração encontrada no quadro clínico.<br />
São utilizados hoje a rivastigmina, a galantamina e o donepezil, principalmente em<br />
casos leves e moderados (apesar de ter sido observada alguma melhora nos quadros mais<br />
avançados). Além destas, a vitamina E em doses altas também parece retardar o quadro<br />
demencial. Os transtornos de humor podem precisar de tratamento específico e são usados<br />
preferencialmente os antidepressivos com menor ação anticolinérgica e neurolépticos<br />
atípicos.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Andrade VM, Santos FH, Bueno OFA. Neuropsicologia hoje. São Paulo: Artes Médicas, 2004.<br />
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259
V Curso de Inverno<br />
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Santibañez G. Fisiologia dos estados emóticos in Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe,<br />
2000.<br />
Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />
260
Fisiologia do Comportamento<br />
Capítulo 6<br />
Fisiologia do Comportamento<br />
Autores:<br />
André Maia Chagas<br />
Claudia Franco de Olim Marote<br />
Pedro Leite Ribeiro<br />
Renata Pereira Lima<br />
Rodrigo Pavão<br />
Wataru Sumi<br />
263
264<br />
V Curso de Inverno
Fisiologia do Comportamento<br />
Fisiologia do comportamento<br />
Wataru Sumi<br />
Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />
wataru_sumi@yahoo.com.br<br />
Alguns organismos unicelulares como a Escherichia coli apresentam um<br />
comportamento relativamente complexo. Eles são capazes de detectar estímulos do<br />
ambiente por meio de dezenas de receptores, armazenar essas informações por um curto<br />
período de tempo, integrar a informação recebida de diferentes “canais sensoriais” e<br />
controlar o comportamento em função das informações recebidas (Allman, 1998).<br />
Organismos pluricelulares sem sistemas nervosos, também integram a resposta aos<br />
estímulos ambientais; porém, a informação recebida em uma célula sensível à estimulação<br />
ambiental, o receptor, é transmitida para outra, que tem a função de controlar a resposta, o<br />
efetor. A integração dessa resposta é possível, graças a um sistema de condução nãonervoso,<br />
envolvendo células epiteliais conectadas por pontes citoplasmáticas, capazes de<br />
conduzir alterações eletrofisiológicas. Esse tipo de condução, embora relativamente lento,<br />
afeta grande número de células, tornando o sistema energeticamente dispendioso. O<br />
surgimento de células especializadas em conduzir impulsos elétricos facilitou imensamente<br />
a condução e integração de informações, facilitando o controle das influências da atividade<br />
dos receptores sobre os efetores (Romero, 2000). As características básicas dessas células<br />
especializadas, os neurônios, são praticamente as mesmas em todos os grupos de animais.<br />
As diferenças comportamentais entre diferentes grupos de animais se devem basicamente<br />
ao número de neurônios e às interconexões, formadas pelas sinapses, existentes entre elas<br />
(Kandel, 1991).<br />
Os sistemas nervosos mais simples são capazes de produzir comportamentos em<br />
geral estereotipados e relativamente pouco flexíveis, relacionados com alimentação,<br />
locomoção e proteção. A capacidade de modular a resposta nesses animais se deve<br />
basicamente às propriedades de funcionamento das sinapses. Nesses pontos de<br />
comunicação entre dois neurônios, a informação nem sempre é transmitida por ação única<br />
de um neurônio pré-sináptico. Assim, para excitar o neurônio pós-sináptico, é necessário<br />
que a intensidade do estímulo seja suficientemente forte. Isso pode ocorrer quando diversos<br />
impulsos nervosos atingem a mesma sinapse, e a somação torna o estímulo forte o<br />
suficiente para despolarizar a célula pós-sináptica (Schmidt-Nielsen, 1996). Esse tipo de<br />
controle do sinal pela somação sináptica pode ser observado no comportamento de<br />
proteção do disco oral e tentáculos em anêmonas-do-mar; quando esses animais recebem<br />
mais de um estímulo em um curto intervalo de tempo, contraem os músculos do disco oral,<br />
protegendo assim os tentáculos (Dethier & Stellar, 1973).<br />
Desde muito cedo na história evolutiva do sistema nervoso, houve uma tendência à<br />
divisão do trabalho realizado pelos neurônios. Essa divisão parece ter ocorrido na<br />
265
V Curso de Inverno<br />
separação das funções receptora, condutora e efetora, decorrentes da especialização das<br />
células nervosas (Romero, 2000). Os neurônios especializados em conduzir informações<br />
recebidas de neurônios receptores, foram denominados interneurônios. O surgimento de<br />
interneurônios possibilitou a ocorrência de divergência e convergência no processamento de<br />
informações, aumentando a capacidade do sistema em modular o fluxo de informações. Em<br />
outras palavras, interneurônios permitem ao sistema funcionar como interruptores, excitando<br />
ou inibindo a atividade de outros neurônios, além de serem capazes de atuar como marca<br />
passo, gerando os próprios impulsos nervosos que estimulam outras células (Zigmond et al.,<br />
1999).<br />
Sistemas nervosos com muitos interneurônios podem modular a sensibilidade do<br />
neurônio pós-sináptico de acordo com uma diversidade de fatores, incluindo suas<br />
necessidades, facultanto maior processamento da informação recebida, o que torna a<br />
resposta muito mais flexível e complexa. Assim, o comportamento tornou-se mais elaborado.<br />
Talvez, um dos exemplos mais simples da importância dessa integração envolva a inibição<br />
de neurônios relacionada ao mecanismo de controle de músculos antagônicos. Quando os<br />
músculos são arranjados dessa forma, a contração simultânea de ambos os músculos se<br />
cancelam, gerando um efeito; alternativamente, pode-se evitar a contração concomitante<br />
dos músculos antagônicos, por meio de um sistema de interneurônios que inibe a atividade<br />
de um neurônio efetor quando o seu par antagônico é acionado, o que aumenta a<br />
diversidade de respostas possíveis (Manning & Dawkins, 1998).<br />
Outra característica de sistemas nervosos com muito interneurônios, presente mesmo<br />
em organismos considerados primitivos, é a segregação ou agrupamento de unidades<br />
semelhantes, observada claramente no processo de centralização do sistema nervoso que,<br />
conduziu mais tarde, ao desenvolvimento de um centro integrador do comportamento<br />
(Romero, 2000). A centralização do sistema nervoso, ou seja, a agregação das células<br />
nervosas que antes ficavam dispersas pelo corpo do animal, ocorreu na grande maioria dos<br />
animais; enquanto nos animais de simetria radial essa centralização envolveu a formação de<br />
anéis nervosos, nos animais de simetria bilateral ela envolveu uma cefalização, i.e., a<br />
concentração de tecido nervoso na porção anterior do organismo.<br />
Durante esse processo houve uma tendência à segregação entre os elementos<br />
condutores (i.e. axônios) e os elementos integradores, incluindo os corpos celulares,<br />
concentrados em massas localizadas nos assim chamados gânglios. Os gânglios<br />
correspondem a regiões do sistema nervoso onde há agrupamentos de corpos celulares<br />
(Dethier & Stellar, 1973). O surgimento desses pontos estratégicos de integração de<br />
informação permitiu melhorar substancialmente o processamento de informações,<br />
aumentando o poder de controle do comportamento; a ação dos neurônios moduladores da<br />
resposta tornou-se facilitada e possibilitou maior integração da informação ambiental<br />
recebida de diferentes modalidades sensoriais. Em sistemas nervosos bem mais complexos,<br />
houve o desenvolvimento de mecanismos responsáveis pela modulação do processamento<br />
266
Fisiologia do Comportamento<br />
das informações recebidas do ambiente em função de experiências anteriores, ou seja, um<br />
processamento atencional (ver Helene e Xavier, 2003). Sabe-se que a atenção é importante<br />
não apenas no processamento de informação sensorial, mas também na programação de<br />
ações motoras, estando ainda envolvida na função de planejamento (Gawryszewski et al.<br />
2007).<br />
Depreende-se dos exemplares existentes presentemente que inicialmente os animais<br />
possuíam diversos gânglios espalhados pelo corpo, cada qual funcionando de forma<br />
relativamente independente dos demais. Com o surgimento de um centro de controle<br />
superior, a integração da atividade desses gânglios passou a ser melhor integrada (Dethier<br />
& Stellar, 1973).<br />
Ao longo desse processo, surgiram instintos, definidos como um padrão de<br />
comportamentos estereotipados que aparecem em sua forma plenamente funcional desde a<br />
primeira vez que são executados, mesmo que o animal não tenha experiência prévia ao<br />
estimulo eliciador do comportamento. A rede neural responsável pela detecção do estímulo<br />
e ativação do programa motor é denominada mecanismo de liberação inato (Alcock, 2005).<br />
Esse tipo de comportamento aparece de forma bastante complexa nos gastrópodes. Por<br />
exemplo, o caracol Helix apresenta um comportamento de corte complicado, no qual os<br />
indivíduos se aproximam, evertem suas áreas genitais e lançam dardos calcários,<br />
penetrando nos órgãos internos do parceiro e promovendo a fecundação (Dethier & Stellar,<br />
1973). Note-se, porém, que muitos instintos podem ser aprimorados pela interação do<br />
organismo com o ambiente.<br />
A concentração de sistemas sensoriais na porção anterior de animais de simetria<br />
bilateral, associados ao formato do corpo e do sentido de locomoção, contribuiu para que os<br />
gânglios da extremidade anterior, por isso denominados cerebrais, se desenvolvessem de<br />
forma mais proeminente que os demais; ao mesmo tempo, esses gânglios assumiram o<br />
papel de centros-mestres de controle. O aumento gradativo de tamanho decorrente da<br />
concentração de neurônios nessa região e a importância hierárquica dos gânglios cerebrais<br />
é denominado cefalização. Nesse processo, os outros centros tornaram-se subordinas a ele,<br />
ou desapareceram (Dethier & Stellar, 1973). Isso possibilitou a diversificação do repertorio<br />
comportamental, além de tornar os padrões motores fixos muito mais complexos, pois foi<br />
possível exibir uma quantidade de movimentos coordenados em resposta a estímulos<br />
relativamente simples. O movimento de cópula, que envolve a coordenação de vários<br />
músculos, pode ser desencadeado por estímulos simples como a cor da fêmea. Isso fica<br />
evidente quando um animal, nesse caso em besouro australiano, tenta copular com<br />
qualquer objeto que tenha a mesma cor da fêmea da espécie (Alcock, 2005).<br />
A história evolutiva do sistema nervoso em vertebrados segue linha similar; i.e.,<br />
surgiram novas estruturas relacionadas ao processamento de informações oriundas dos<br />
sistemas sensoriais e de controle. Se por um lado, o comportamento tornou-se ainda mais<br />
complexo, por outro, muitos mecanismos se mantiveram. Um comportamento parecido com<br />
267
V Curso de Inverno<br />
o exibido pelo besouro australiano é observado em filhotes gaivota. Quando os filhotes<br />
estão com fome, eles bicam a ponta do bico dos pais, para que eles regurgitem alimento<br />
meio digerido. O sinal que desencadeia a resposta de bicar no filhote não é<br />
necessariamente a presença dos pais, ou de nenhuma outra gaivota, mas sim um bico<br />
amarelo com uma bolinha vermelha. Se colocarmos um palito amarelo com listras<br />
vermelhas na ponta, a resposta de bicar do filhote será tão intensa quanto à resposta dada<br />
na presença de um dos pais (Alcock, 2005).<br />
Ao longo da evolução, à medida que o sistema nervoso se tornava mais e mais<br />
complexo, os padrões de resposta automáticos foram dando espaço para o comportamento<br />
plástico, ou seja, a capacidade de modificar o comportamento em vista das experiências<br />
passadas foi se aprimorando. Acredita-se que as atividades eletrofisiológicos gerada pelos<br />
estímulos ambientais, ou mesmo pelo próprio organismo, alterem a conectividade entre as<br />
células nervosas, alterando a transmissão de impulsos elétricos pela rede neural, formando<br />
assim, as memórias (Helene & Xavier, 2007). Essa habilidade é uma propriedade básica de<br />
todos os organismos que possuem um sistema nervoso e está presente inclusive em<br />
organismos unicelulares; neste último caso, ela se manifesta sob a forma de<br />
condicionamento clássico (ou Pavloviano). Sabe-se, por exemplo, que as minhocas são<br />
capazes de aprender a se dirigir para um braço de um labirinto em T, onde encontram uma<br />
câmara escura e úmida, evitando outro braço, onde eles receberiam um choque elétrico e<br />
são expostos a uma solução irritante (Dethier & Stellar, 1973); foi necessária uma média de<br />
200 tentativas para se atingir 90% de acertos. Portanto, embora lenta, a aquisição ocorre<br />
sendo, portanto, adaptativa.<br />
Resumidamente, o surgimento do sistema nervoso possibilitou melhor detecção e<br />
reação a estímulos ambientais. Além disso, o aumento de sua complexidade contribuiu para<br />
um aumento do repertório comportamental dos animais, decorrentes da aquisição e<br />
desenvolvimento de novas habilidades. Nos capítulos seguintes, veremos de forma mais<br />
detalhada como ocorre o processamento sensorial, como se deu a integração neural, o<br />
mecanismo neural da atenção e memória, além de entender como se dá a seleção natural<br />
das características comportamentais.<br />
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268
Fisiologia do Comportamento<br />
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Swanson LW (1999) Organization of Nervous Systems. In Fundamental Neuroscience (Zigmond MJ et<br />
al., eds)<br />
Revisado por Gilberto Xavier<br />
269
V Curso de Inverno<br />
Sensação e percepção<br />
André Maia Chagas e Renata Pereira Lima<br />
Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />
andremaia.chagas@gmail.com renata.plim@gmail.com<br />
Se analisarmos os seres vivos, perceberemos que apresentam pelo menos algum tipo<br />
de sistema que os permite trocar informações com o ambiente que os circundam. Seja uma<br />
planta, que é capaz de sentir situações de estresse hídrico e fechar seus estômatos, seja<br />
uma bactéria que é capaz de sentir substâncias nocivas em seu meio e se afastar delas por<br />
movimentação ativa, ou ainda nos exemplos aos quais estamos mais acostumados, um<br />
beija flor que detecta flores em uma árvore e se aproxima da mesma em busca de alimento.<br />
Mas o que possibilita essas ações? Utilizando o olhar científico, veremos que elas são<br />
possibilitadas pela existência de estímulos físicos e químicos que chegam a todo tempo nos<br />
seres vivos, que são captados por células especializadas capazes de transformar esses<br />
estímulos em unidades de informação que possam ser utilizadas pelo organismo em<br />
questão.<br />
Como o objetivo desse módulo é de mostrar aspectos gerais do funcionamento do<br />
sistema nervoso, limitaremos a discussão a animais que são dotados desse sistema.<br />
Nesses animais, as células receptoras recebem os estímulos ambientais e os transformam<br />
em estímulos elétricos, processo chamado transdução, que por sua vez são utilizados pelas<br />
próximas células para a transmissão da informação ao longo do sistema nervoso. Essa<br />
transformação dos estímulos ambientais é classificada pela neurociência como sensação e<br />
é diferente entre as espécies, já que diferentes espécies possuem células receptoras<br />
diferentes e sistemas nervosos com diferentes capacidades de processamento; o que faz<br />
com que diferentes espécies experimentem o mundo de maneiras diferentes. Um som de<br />
30.000 Hz que é inaudível para nós (somos capazes de perceber sons na faixa entre 20 e<br />
20.000 Hz) é perfeitamente detectável por um morcego, um gato, um cachorro ou um rato,<br />
por exemplo. Além das diferenças interespecíficas, também existem diferenças de sensação<br />
intraespecíficas. Uma substância que é detectada como amarga por alguns indivíduos, é<br />
considerada insípida por outros, e aqui podemos até supor um método de seleção e<br />
evolução para os sistemas sensoriais, já que indivíduos que pudessem perceber a presença<br />
de uma substância nociva em algum alimento poderiam ter mais chances de sobreviver num<br />
ambiente onde tal característica apresenta-se necessária. As sensações podem ser<br />
percebidas de formas diferentes ao longo da vida de um mesmo indivíduo, uma vez que a<br />
percepção implica numa interpretação da sensação. Em outras palavras, a história de<br />
experiências prévias de um indivíduo pode gerar diferenças fisiológicas nos mecanismos<br />
que levam à interpretação de uma sensação, levando a percepções distintas. Ademais,<br />
níveis de consciência, estados emocionais e estados psicológicos são capazes de interferir<br />
na percepção de determinada sensação.<br />
270
Fisiologia do Comportamento<br />
As sensações são divididas em modalidades sensoriais (sentidos), dependendo do<br />
tipo de estímulo ambiental, interno ou externo, do tipo de célula receptora envolvida com o<br />
processo de transdução e do subsistema encefálico envolvido com o processamento dos<br />
estímulos.<br />
Tabela 1 – Algumas modalidades sensoriais (sentidos) e suas características principais.<br />
Modalidade<br />
Estímulo<br />
Tipo de receptor<br />
sensorial<br />
VISÃO Luz Fotorreceptor<br />
AUDIÇÃO Ondas mecânicas lineares Mecanorreceptor<br />
PROPRIOCEPÇÃO Movimentos da cabeça e articulações,<br />
Mecanorreceptor<br />
estiramento e contração de músculos<br />
TATO Estímulo mecânico Mecanorreceptor<br />
TEMPERATURA Quantidade de calor Termorreceptor<br />
DOR<br />
Estímulos físicos ou químicos potencialmente Nociceptor<br />
causadores de dano tecidual<br />
PALADAR Substâncias químicas Quimiorreceptor<br />
OLFATO Substâncias químicas voláteis Quimiorreceptor<br />
INTEROCEPÇÃO<br />
Pressão arterial, concentração plasmática<br />
de substâncias (O2, CO2, glicose, H+, etc),<br />
osmolaridade plasmática, temperatura central<br />
Quimiorreceptor,<br />
mecanorreceptor,<br />
t e r m o r r e c e p t o r ,<br />
osmorreceptor<br />
As modalidades sensoriais por sua vez, são divididas em sub-modalidades, referentes<br />
a características inerentes de cada sensação. Por exemplo, na visão existem cores, brilho,<br />
forma e movimento, na audição existem timbres e tons além da possibilidade de localizar<br />
espacialmente a fonte sonora.<br />
Animais se utilizam continuamente de informações dos meios interno e externo, seja<br />
durante a execução de um movimento, seja na regulação da temperatura corpórea, seja na<br />
regulação da pressão arterial; ou seja, os sensores informam ao sistema nervoso, através<br />
de receptores situados nas paredes das veias e artérias, qual a situação de estiramento das<br />
mesmas e qual a pressão sob as quais trabalham, e também o grau de contração da<br />
musculatura e a posição relativa dos membros, além do estado geral de equilíbrio do corpo,<br />
entre outras coisas, de modo que o organismo possa reagir prontamente a qualquer nova<br />
estimulação. Então, o sistema nervoso atua regulando, entre outras coisas a pressão do<br />
sistema circulatório, o tônus muscular de modo a se manter o equilíbrio etc,<br />
automaticamente, de modo que você sequer se dá conta de que toda essa regulação está<br />
ocorrendo em seu organismo.<br />
Depois de codificados, os estímulos ambientais passam a ser associados, no sistema<br />
nervoso. Essa associação, nos seres humanos, é denominada percepção, e é utilizada por<br />
nós o tempo todo, embora não nos demos conta disso. É a percepção que nos permite<br />
saber se uma música é conhecida, se ela pertence a algum filme de nossa infância, e em<br />
271
V Curso de Inverno<br />
que situação havíamos assistido a tal filme. I.e., é papel do sistema visual codificar e<br />
“montar” tanto os objetos quanto seus limites com o ambiente, e cabe a percepção a ligação<br />
entre ver um rosto e reconhecê-lo como o rosto de um familiar, por exemplo. A visão<br />
processa tudo que está em frente aos olhos, porém é a percepção que seleciona quais<br />
estímulos serão tornados conscientes e colocados em primeiro plano para a integração com<br />
outras informações. Se você está assistindo a um televisor colocado ao lado de uma janela,<br />
o sistema visual processa o televisor, a imagem que ele transmite, a janela e tudo o que se<br />
passa fora dela, porém é pela percepção que as coisas que ocorrem na janela são<br />
ignoradas e passam desapercebidas.<br />
Agora que temos uma idéia geral sobre o sistema sensorial e a percepção, vejamos o<br />
substrato neurobiológico por trás dessas funções, tomando a visão como exemplo: A retina,<br />
localizada na parte posterior do globo ocular, possui dois tipos principais de fotorreceptores<br />
responsáveis pela transdução e processamento inicial da informação visual; os cones e os<br />
bastonetes. Eles possuem diferenças na sensibilidade a diferentes comprimentos de onda e<br />
na velocidade da resposta, sendo os bastonetes mais sensíveis a baixa intensidade<br />
luminosa e, assim, a movimento, e os cones (3 subtipos) sensíveis de maneira seletiva para<br />
determinada região do espectro de freqüências eletromagnéticas. Devido a esta<br />
sensibilidade seletiva, muitas vezes os cones são denominados cones para “vermelho”,<br />
“verde” e “azul”. Entretanto, parece mais apropriado o uso dos termos cone sensível a<br />
comprimentos de onda longos (vermelho), médios (verde) e curtos (azul), respectivamente,<br />
L, M e S (da sigla em inglês). É justamente essa sensibilidade a diferentes comprimentos de<br />
onda, exibida pelos cones, que permite a elaboração de um processamento neural que<br />
culminará com a percepção de cores, como será discutido mais adiante.<br />
A presença de receptores diferentes e especializados faz com que haja uma<br />
separação da informação assim que ela é captada na retina, a qual contém diferentes<br />
classes de células ganglionares, onde começa o processamento paralelo de informação<br />
apresentado pelo sistema nervoso. Os axônios das células ganglionares correm ao longo da<br />
superfície interna da retina e juntam-se para formar o nervo óptico. Sinais representando<br />
cores, movimento, forma e localização, por exemplo, são processadas simultaneamente em<br />
diferentes regiões do encéfalo. Em mamíferos, o nervo óptico projeta-se primariamente ao<br />
tálamo (particularmente o núcleo geniculado lateral), e daí para o córtex visual primário, no<br />
lobo occipital (Figura 1).<br />
Um dos tipos de células ganglionares denominado parvocelular (ou tipo P, por projetarse<br />
para a porção parvocelular do núcleo geniculado lateral, NGL), de menor tamanho,<br />
respondem por mais de 90% da população total de células ganglionares. Outro tipo,<br />
composto por células ganglionares maiores, é denominado magnocelular (ou tipo M, por<br />
projetar-se para a porção magnocelular do NGL), correspondendo, aproximadamente, a 8%<br />
da população. O restante é composto por células que não se enquadram nesta definição e<br />
por isso denominadas por alguns autores de células “não-M–não-P”. Esses diferentes<br />
272
Fisiologia do Comportamento<br />
conjuntos de células ganglionares transmitem diferentes tipos de informação visual para<br />
diferentes regiões do NGL. As células ganglionares do tipo M projetam-se às camadas<br />
magnocelulares do NGL (camadas 1 e 2, mais ventrais). Conduzem potenciais de ação com<br />
maior velocidade e são mais sensíveis a estímulos de baixo contraste. Já as células P<br />
alcançam as camadas parvocelulares do NGL (camadas 3, 4, 5 e 6, mais dorsais) sendo<br />
mais lentas que as células M. Os neurônios pertencentes ao terceiro grupo de células<br />
ganglionares da retina (células não-M–não-P) projetam-se para neurônios do NGL que se<br />
intercalam entre as camadas magno e parvocelulares desse núcleo talâmico (essas<br />
camadas intercaladas são também denominadas “koniocelulares”). Esses conjuntos de<br />
camadas do NGL dão origem a três principais vias visuais, as vias magno, parvo e<br />
koniocelulares, que por sua vez projetam-se para o córtex visual primário (V1) por meio de<br />
projeções denominadas genículo-corticais.<br />
Figura 1 – Esquema mostrando a via tálamo-cortical. A projeção do nervo óptico no tálamo e as<br />
vias magno e parvocelular com inserção no córtex visual primário (modificado de Gazzaniga, 2006).<br />
As células da via magnocelulares se projetam para a quarta camada de V1, para V2 e<br />
V5, envolvida no processamento de informações sobre movimento, relações espaciais e<br />
percepção de profundidade, além de projetarem para outras áreas do córtex parietal<br />
associadas a funções vísuo-espaciais (via dorsal). Por essa razão é que se diz ser esse<br />
sistema primariamente responsável por identificar “onde” um objeto é visto. A via<br />
parvocelular, projeta-se às camadas profundas de V1, parte de V2, e V4, para o córtex<br />
temporal inferior. Ela responde à orientação do estímulo, elemento essencial na percepção<br />
de forma, contribuindo também com elementos fundamentais da percepção de cores.<br />
Resume-se o papel dessa via dizendo-se que ela se relaciona com “o que” é visto, ou seja,<br />
a identidade de um dado objeto. As células koniocelulares do NGL projetam-se para V1, V2<br />
e V4, nesta ordem, e, finalmente para o córtex temporal inferior (via ventral), um circuito<br />
273
V Curso de Inverno<br />
envolvido na percepção de cor e forma.<br />
2006).<br />
Figura 2 – Via retino-genículo-cortical de processamento visual (modificado de Gazzaniga<br />
A separação das projeções das vias magno, parvo e koniocelular não é absoluta,<br />
sendo observadas interações e superposições funcionais entre elas em muitas instâncias ao<br />
longo do processamento visual. Essa segregação, mesmo que parcial, exemplifica o intenso<br />
processamento distribuído e paralelo executado pelo sistema nervoso. Também ilustra como<br />
informações visuais contidas em um único estímulo são detectadas e analisadas<br />
paralelamente por diferentes circuitos neurais, permitindo, por meio de sua atividade<br />
sincrônica, gerar uma sensação unificada da estimulação, no processo perceptivo. Sendo<br />
assim, ao olharmos para uma tartaruga, não vemos primeiro a cor verde, depois a forma<br />
convexa, depois o movimento da direita para a esquerda, de modo fragmentado. Ao<br />
enxergarmos uma tartaruga verde passando na nossa frente da direita para a esquerda, de<br />
fato enxergamos uma tartaruga verde passando na nossa frente da direita para a esquerda,<br />
como um conjunto integrado. Desta forma, podemos dizer que sua identificação vai<br />
depender fundamentalmente da análise de sua forma, processada pela via parvocelular, que<br />
é relacionada com o que vemos. O processamento de suas características cromáticas<br />
(cores), que também auxilia na sua distinção, é realizado por uma via paralela, que se<br />
origina em células ganglionares da retina, que respondem a diferentes comprimentos de<br />
onda e se projeta ao córtex visual por intermédio das vias koniocelular e parvocelular. Um<br />
terceiro subsistema, projetando-se por meio da via magnocelular, estará envolvido no<br />
processamento de seu movimento e de suas relações espaciais, associado, portanto, a<br />
“onde” vemos a tartaruga. Ao final desse processamento, distribuído por diferentes áreas e<br />
processado por diferentes módulos neurais, essas informações fornecem não uma<br />
percepção de características fragmentadas e separadas, mas sim uma percepção integrada<br />
e coerente da cena visualizada. Não está completamente claro como essa associação de<br />
274
Fisiologia do Comportamento<br />
informações distintas processadas paralelamente, porém oriundas de uma mesma cena<br />
visual são associadas, caracterizando o “binding problem”; é possível que essa associação<br />
esteja relacionada com a atividade sincrônica dos diferentes módulos envolvidos no<br />
processamento, sem a necessidade de sua confluência de sua atividade para uma região<br />
específica do sistema nervoso que “integraria” a atividade dos diferentes módulos.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Fuster JM (2006). The cognit: a network model of cortical representation. International Journal of<br />
Psychophysiology 60: 125-132.<br />
Gazzaniga MS, Ivry RV, Mangun GR (2006). Neurociência Cognitiva. Editora Artmed, 2ª edição.<br />
Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM (1995). Essentials of Neural Science and Behavior. Appleton &<br />
Lange.<br />
Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM (2000). Principles of neural science. McGraw-Hill Medical, 4ª<br />
edição.<br />
Lent R (2004) Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos Fundamentais de Neurociência. Editora<br />
Atheneu.<br />
Revisado por Gilberto Xavier e Marcus Vinícius C. Baldo<br />
275
V Curso de Inverno<br />
Integração Neural<br />
Renata Pereira Lima<br />
Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />
renata.plim@gmail.com<br />
Num sistema nervoso, neurônios nunca funcionam isolados; eles estão organizados<br />
em circuitos que processam tipos específicos de informações. O sistema nervoso parece<br />
organizado em grupos de circuitos, i.e., módulos, cujas funções servem a um propósito<br />
comportamental específico. Desta maneira, sistemas sensoriais como a visão ou audição<br />
adquirem e processam informações a partir de ambiente, o sistema motor permite que o<br />
organismo responda a tais informações através da geração de ações. Há, entretanto, um<br />
grande número de células e circuitos que estão entre estas mais ou menos bem definidas<br />
aferências e eferências. Eles são coletivamente referidos como sistemas de associação e<br />
são responsáveis pelas mais complexas funções. Além destas amplas distinções, os<br />
neurocientistas tem convencionalmente dividido o sistema nervoso dos vertebrados, sob o<br />
ponto de vista anatômico, em componentes centrais e periféricos. O sistema nervoso central<br />
(SNC) compreende o encéfalo e a medula espinal. O sistema nervoso periférico (SNP) inclui<br />
fibras de neurônios que conectam os receptores sensoriais na superfície do corpo ao SNC e<br />
a porção motora, que consiste em axônios de nervos motores que conectam o encéfalo e a<br />
medula espinal aos músculos esquelético, viscerais, cardíaco e glândulas.<br />
Embora o arranjo dos circuitos que compõem estes sistemas varie grandemente de<br />
acordo com suas funções, algumas características são comuns entre eles. As conexões<br />
sinápticas que definem um circuito são tipicamente realizadas numa densa malha de<br />
dendritos, e terminais axonais. A direção do fluxo de informação em um circuito particular é<br />
essencial para se entender sua função. Células nervosas que transmitem informações em<br />
direção ao sistema nervoso central são chamadas de neurônios aferentes; já as que<br />
transmitem informações para fora do encéfalo e da medula espinal (ou para fora do circuito<br />
em questão), são chamadas de neurônios eferentes.<br />
Células nervosas que participam<br />
somente no aspecto local do circuito são chamadas de interneurônios. Estas três classes –<br />
neurônios aferentes, neurônios eferentes e os interneurônios – são os constituintes básicos<br />
de todos os circuitos neurais.<br />
De modo geral, podemos classificar os circuitos como:<br />
Convergentes: aquele onde um grupo de neurônios recebe uma aferência (entrada) de<br />
um neurônio pré-sináptico e o circuito tende a se tornar concentrado. Para demonstrar este<br />
tipo de circuito, imagine que tenhamos os neurônios A, B, C e D. Os neurônios A, B e C<br />
possuem cada um deles uma entrada diferente. Estas entradas se projetam para o neurônio<br />
D e este se projeta para outro neurônio, realizando uma eferência (saída). Circuitos<br />
convergentes são responsáveis, por exemplo, pela interpretação dos estímulos sensoriais.<br />
276
Fisiologia do Comportamento<br />
Divergentes: são os circuitos que trabalham de maneira oposta aos circuitos<br />
convergentes. Em vez de concentrar as aferências, estas se projetam separadamente para<br />
diferentes neurônios. No caso do circuito divergente, o neurônio A possui uma aferência e se<br />
projeta para os neurônios B, C e D. A característica básica de um circuito divergente é o fato<br />
de que um neurônio iniciará respostas de maneira crescente em outros neurônios. Tais<br />
circuitos são encontrados nos sistema motores e sensoriais.<br />
Reverberantes: o sinal de aferência é transmitido ao longo de uma série de neurônios<br />
e cada um destes fará sinapses com neurônios de uma porção da via previamente<br />
percorrida. O impulso reverbera sendo enviado ao longo do circuito continuamente até que<br />
um neurônio seja inibido. Então, uma aferência no neurônio A se projeta para o neurônio B,<br />
que se projeta para o neurônio C e então para o D e este se projeta de volta para o neurônio<br />
A (ou para o B) e o ciclo se repete até que um neurônio (que pode ser tanto A, quanto B, C<br />
ou D) seja inibido. Circuitos reverberantes estão envolvidos no ciclo de sono-vigília,<br />
atividades motoras e memórias de longa duração.<br />
Circuitos podem funcionar paralelamente ou serialmente. No funcionamento paralelo,<br />
sinais aferêntes são separados em vias distintas e as informações são analisadas de<br />
maneira analítica concomitantemente no tempo. Por exemplo, o sistema visual funciona em<br />
vias paralelas que processam a informação neural de forma simultânea e integrada. Sinais<br />
representando cores, movimento, forma e localização, por exemplo, são processados<br />
simultaneamente em diferentes regiões do encéfalo. Atividades concomitantes (e<br />
sincronizadas) nas vias visuais dorsal e ventral (que são anatomicamente distintas) são<br />
responsáveis pela percepção unitária da imagem. No funcionamento serial, os resultados do<br />
processamento de um circuito são necessários para que o próximo circuito possa contribuir<br />
para o processamento. Isto é, um neurônio estimula outro neurônio, que por sua vez<br />
estimula outro neurônio e assim por diante. Um exemplo clássico de processamento serial é<br />
o arco reflexo. Um arco reflexo produz uma reação involuntária rápida, na maioria das vezes<br />
inconsciente, que protege o organismo, sendo originado a partir de um estímulo externo que<br />
gera uma resposta antes mesmo do indivíduo tomar conhecimento da existência do estímulo<br />
periférico, e conseqüentemente, antes deste poder comandá-la voluntariamente. Muitos<br />
reflexos motores são controlados por neurônios localizados na substância cinzenta da<br />
medula espinhal e do tronco encefálico (incluindo bulbo, ponte e mesencéfalo),<br />
independentemente da vontade, como por exemplo:<br />
• a retirada imediata da mão de uma panela muito quente;<br />
• extensão da perna após a percussão e estiramento do tendão patelar;<br />
• fechamento da pupila com o aumento da intensidade luminosa;<br />
• aumento da secreção gástrica com a chegada do alimento no estômago.<br />
Desta maneira, o reflexo gera uma reposta involuntária do organismo a um<br />
determinado estímulo (dor, estiramento, aumento da intensidade luminosa, variações da<br />
277
V Curso de Inverno<br />
pressão arterial etc). Ocorrendo um estímulo, a fibra sensitiva de um nervo aferente (ou<br />
sensitivo) transmite-o até a medula espinhal passando pela raiz posterior, ou ao tronco<br />
encefálico, por meio de um nervo craniano. Na medula ou no tronco encefálico o neurônio<br />
aferente comunica-se com o eferente diretamente ou por meio de interneurônios<br />
associativos, gerando, no neurônio motor a atividade que leva à ação. Os axônios eferentes<br />
que levam essa ordem da medula (pela raiz anterior) ou do tronco encefálico (por um nervo<br />
craniano) constituem as fibras eferentes motoras ou vegetativas, que levam a informação ao<br />
órgão efetor (músculo estriado esquelético, glândula, músculo liso ou músculo cardíaco) que<br />
executará a resposta ao estímulo inicial.<br />
É importante ressaltar que o processamento serial é a maneira mais simples que um<br />
circuito pode funcionar. Este tipo de processamento está envolvido nas respostas mais<br />
simples e estereotipadas. Durante o processamento de funções mais complexas, de modo<br />
geral, os circuitos envolvidos além de serem processados em série, funcionam<br />
concomitantemente em paralelo com outros circuitos de maneira sincronizada.<br />
Construção de circuitos e sua modificação pela experiência<br />
A construção da circuitaria do sistema nervoso envolve processos ontogenéticos<br />
associados à interação do sistema com o ambiente. Assim, fatores químicos liberados por<br />
determinados neurônios em diferentes estágios do desenvolvimento ontogenético atraem<br />
projeções de outros neurônios intrinsecamente; paralelamente, essas projeções e conexões<br />
entre neurônios podem originar-se também em associação com a estimulação<br />
proporcionada pelo ambiente e/ou pela atividade de certos conjuntos de neurônios. Assim,<br />
os padrões macroscópicos básicos das conexões no sistema nervoso estabelecidas<br />
filogeneticamente, podem ser microscopicamente alterados por padrões de atividade<br />
neuronal (isto é, experiência), modificando a circuitaria sináptica do encéfalo. A atividade<br />
neuronal gerada em decorrência de interações com o ambiente pré e pós-natal influencia a<br />
estrutura e função do sistema nervoso, além da construção de sua circuitaria.<br />
A história de interação de um individuo com o ambiente, i.e., sua experiência<br />
acumulada, molda os circuitos neurais determinando seu comportamento. Em alguns casos,<br />
as experiências funcionam primariamente como gatilhos que ativam alguns comportamentos<br />
inatos. Mais frequentemente, entretanto, experiências desenvolvidas em períodos<br />
específicos no início da vida (referidos como períodos criticos) determinam um repertório<br />
comportamental no indivíduo adulto. Estes períodos críticos influenciam comportamentos<br />
diversos incluindo laços maternais, preferências sexuais e aquisição de linguagem, entre<br />
outros.<br />
Embora seja possível identificar conseqüências comportamentais de determinados<br />
estímulos, apresentados em períodos críticos, para essas funções complexas, suas bases<br />
biológicas ainda não estão completamente esclarecidas. Talvez o exemplo mais bem<br />
investigado relacione-se ao período critico no estabelecimento da visão. Estes estudos<br />
278
Fisiologia do Comportamento<br />
mostraram que a experiência é traduzida em padrões distintos de atividade neuronal que<br />
influenciam a função e a conectividade dos neurônios relevantes. No sistema visual (e em<br />
outros sistema também) a competição entre aferências com diferentes padrões de atividade<br />
é um determinante importante na consolidação dos padrões de conectividade. Em um<br />
axônio aferente, padrões de atividade correlatos tendem a estabilizar as conexões. Quando<br />
padrões normais de atividade são rompidos (experimentalmente, em animais, ou<br />
patologicamente, em humanos) durante um período critico na infância, a conectividade no<br />
córtex visual é alterada, assim como a função visual. Se não é feita a manutenção destes<br />
padrões até o final do período critico, estas alterações estruturais da circuitaria nervosa<br />
dificilmente se restabelecem posteriormente.<br />
A conectividade nervosa estabelecida ao longo do desenvolvimento normal possibilita<br />
ao encéfalo armazenar vasta quantidade de informações que reflete a experiência especifica<br />
daquele individuo. Como esperado, a construção dessa conectividade que tanto influencia o<br />
desenvolvimento do sistema nervoso gera alterações maiores nos estágios iniciais de<br />
desenvolvimento. Assim, em um animal adulto, o sistema nervoso se torna gradativamente<br />
mais refratário a lições da experiência e o mecanismo celular que media as alterações da<br />
conectividade neuronal se tornam menos plásticos.<br />
Integração entre circuitos: o modelo de redes<br />
O conceito de que no córtex cerebral há domínios discretos dedicados mais ou menos<br />
exclusivamente a algumas funções cognitivas, tais como discriminação visual, linguagem,<br />
atenção espacial, reconhecimento de face, retenção de memória, memória operacional etc,<br />
tem sido questionado devido à falta de evidências conclusivas que o apoiem. Em seu lugar,<br />
modelos de redes neurais têm sido apresentados como uma alternativa mais coerente com<br />
as evidências disponíveis sobre seu funcionamento.<br />
Em 1949, Donald Hebb propôs que durante a aprendizagem neurônios estimulam<br />
outros neurônios, de tal forma que a atividade concomitante de ambos os conjuntos leva a<br />
um fortalecimento das sinapses entre eles, levando a alterações estruturais. De acordo com<br />
essa noção, essa alteração estrutural leva ao armazenamento da informação podendo<br />
explicar o fenômeno da memória. Este modelo postula que todas as representações<br />
cognitivas consistem em redes de neurônios cuja atividade foi associada pela experiência.<br />
Nesse contexto, pode-se assumir que memórias filogenéticas correspondem a redes que se<br />
consolidaram ao longo das gerações e não necessitam de experiência individual para serem<br />
funcionais, embora possam ser aprimoradas pela experiência individual. Tipicamente, um<br />
neurônio recebe informações de cerca de 10 4 neurônios e, por sua vez, projeta-se para<br />
outros 10 4 neurônios. Como o encéfalo humano contém pelo menos 10 11 neurônios, isto<br />
significa dizer que pelo menos 10 19 conexões sinápticas são formadas no cérebro; porém, a<br />
complexidade de seu funcionamento é evidentemente maior, em particular quando se<br />
considera os arranjos seqüenciais pelos quais uma informação pode viajar ao longo de<br />
279
V Curso de Inverno<br />
seqüências de neurônios. Quanto mais freqüentes as exposições a estímulos relevantes,<br />
mais fortes tornam-se essas conexões. Como conseqüência, a informação tende a ser<br />
arquivada de maneira relacional. Isso permite entender porque a recordação envolve,<br />
usualmente, categorias. Por exemplo, ao pedirmos para uma pessoa listar todos os animais<br />
de que se recorda, não raro a lista conterá animais agrupados por categorias de<br />
similaridade, ou seja, quadrúpedes, aves, animais aquáticos, invertebrados etc. O mesmo<br />
ocorre em relação a alimentos; a recordação também será categórica (frutas, verduras,<br />
legumes, carnes etc.). Isso ocorre porque o aumento de atividade eletrofisiológica em<br />
determinados circuitos neurais (que levam à recordação de uma dada informação) tende a<br />
estimular a atividade em circuitos relacionados. Assim, quando aprendemos que<br />
determinado estímulo se refere a um determinado conceito, estamos na verdade fazendo<br />
associações com conceitos que já conhecemos (associando nós de uma rede com outros).<br />
Então, quando visualizamos o desenho de uma tartaruga, integramos todas as informações<br />
disponíveis (cor, forma, contexto, movimento) com os circuitos já consolidados previamente<br />
e que em algum momento foi associado ao conceito “tartaruga”. O mesmo vale para uma<br />
outra modalidade de estímulo, ou seja, um som específico que atribuímos como<br />
característico de um determinado animal, o cheiro de uma comida que está intimamente<br />
ligado com o seu sabor etc.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Fuster JM (2006). The cognit: a network model of cortical representation. International Journal of<br />
Psychophysiology 60: 125-132.<br />
Gazzaniga MS, Ivry RV, Mangun GR (2006). Neurociência Cognitiva. Editora Artmed, 2ª edição.<br />
Helene AF, Xavier GF (2007). Memória (e a elaboração da) percepção, imaginação, inconsciente e<br />
consciência. Em Landeira-Fernandes J, Silva MTA (Eds.), Intersecções entre psicologia e<br />
neurociências, MedBook Editora Científica Ltda.<br />
Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM (2000). Principles of neural science. McGraw-Hill Medical, 4ª<br />
edição.<br />
Seung HS (2000). Half a century of Hebb. Nature Neuroscience 3: 1166.<br />
Revisado por Gilberto Xavier e Marcus Vinícius C. Baldo<br />
280
Fisiologia do Comportamento<br />
Memória e Aprendizagem<br />
Rodrigo Pavão<br />
Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />
rpavao@gmail.com<br />
A memória pode ser definida como a capacidade de um organismo alterar seu<br />
comportamento em decorrência de experiências prévias. Do ponto de vista fisiológico, essa<br />
capacidade é resultado de modificações na circuitaria neural em função da interação do<br />
indivíduo com o ambiente. Como já foi apresentado nos capítulos anteriores, o encéfalo<br />
humano é composto por bilhões de neurônios, cada neurônio se projeta para centenas de<br />
outros neurônios, e as regiões em que essas células se comunicam são denominadas<br />
sinapses. A Figura 1 (esquerda) mostra um botão terminal do neurônio pré-sináptico “A”<br />
sobrepondo-se ao corpo celular de um neurônio pós-sináptico; o primeiro é capaz de<br />
modular a atividade do segundo. A formação de novas memórias envolve mudanças nas<br />
sinapses existentes (como a do terminal “A“ com o neurônio pós-sináptico) ou a formação de<br />
novas sinapses (como a do terminal axonal “B” sobre o terminal “A” – ver Figura 1, direita);<br />
essas alterações levam à alteração e estabelecimento de circuitos neurais que representam<br />
as memórias arquivadas.<br />
Figura 1 – Sinapses axo-somática (esquerda) e axo-axônica (direita). A atividade do botão<br />
axonal “B” pode modular a liberação de neurotransmissores do botão terminal “A” (modificado de<br />
Carlson, 1998).<br />
Esse conhecimento atual resultou do trabalho de inúmeros personagens;<br />
destacaremos os principais em um breve histórico do estudo da memória. As primeiras<br />
indagações de que se têm notícia na história da humanidade sobre a natureza da memória<br />
foram formuladas pelos filósofos gregos e, posteriormente, reformuladas pelos pensadores<br />
iluministas. No entanto, o estudo experimental da memória teve início no século XIX, com o<br />
desenvolvimento do que hoje denominamos Psicologia Experimental. Hermann Ebbinghaus<br />
(1880) realizou uma série de estudos (avaliando sua própria memória) envolvendo a<br />
memorização de listas de sílabas sem sentido e a recordação das mesmas em diferentes<br />
períodos de tempo depois de sua apresentação. Suas principais observações são<br />
resumidas na Figura 2.<br />
Müller e Pilzecker (1900), inspirados pelos trabalhos de Ebbinghaus, realizaram testes<br />
que envolviam a apresentação de pares de sílabas que cuja lembrança deveria ocorrer após<br />
281
V Curso de Inverno<br />
um intervalo de tempo, oferecendo-se apenas um dos elementos de cada par; uma lista<br />
distratora era oferecida para um segundo grupo de voluntários durante o intervalo de tempo<br />
entre a lista apresentada e a lembrança da primeira lista. Os autores notaram que os<br />
voluntários cuja atenção foi desviada do material estudado exibiram lembrança menor do<br />
que o grupo de voluntários sem desvio da atenção; assim, enfatizaram a fragilidade das<br />
memórias quando a atenção é desviada (Lechner e col.,1999). Esses autores descreveram<br />
também o efeito de perseveração, em que testes posteriores eram afetados por testes<br />
prévios. Os voluntários lembravam-se de pares de sílabas apresentadas em outro teste,<br />
realizado semanas antes, resultando em erros, pois novas combinações deveriam ser<br />
recordadas. A lembrança de combinações estudadas semanas antes evidencia que<br />
atividade cerebral persevera após novo aprendizado (Lechner e col.,1999). Essa atividade é<br />
resultante do processo de consolidação das memórias. No trabalho de Ebbinghauss (1885)<br />
a estabilização da lembrança das sílabas várias horas após sua apresentação é também<br />
resultado desse processo de consolidação.<br />
Figura 2 – Resultados dos estudos de Ebbinghauss envolvendo memorização de listas<br />
de sílabas. Foram descritas (1) a curva de recordação ao longo do tempo após a exposição às<br />
sílabas (painel da esquerda) em que ocorre uma queda rápida da porcentagem de itens<br />
recordados até cerca de duas horas; a partir de então, a porcentagem de itens recordados<br />
permanece praticamente constante, (2) recordação em função da posição na série, em que a<br />
recordação logo após a apresentação da seqüência de itens resulta numa maior lembrança dos<br />
itens posicionados no início e no final da lista de itens, e (3) a curva de aprendizagem, em que<br />
há necessidade de vários dias de treinamento para que a lembrança completa da lista ocorra<br />
com menos treino (Ebbinghauss, 1885).<br />
Esses resultados sugeriram a existência de diferentes tipos de memória, incluindo (1)<br />
uma memória que dura poucos segundos ou minutos, suscetível a interferências e não<br />
consolidada, e (2) memória que dura dias ou semanas, robusta e resistente a interferências,<br />
e consolidada.<br />
Em seu livro Principles of Psychology, William James (1890) denominou esses tipos de<br />
memória como (1) memória consciente primária e (2) memória consciente secundária,<br />
respectivamente. Além disso, esse autor mencionou também, em capítulos distintos,<br />
282
Fisiologia do Comportamento<br />
“habilidades / hábitos”, envolvendo experiência não consciente. Curiosamente, essas idéias<br />
foram ignoradas até a década de 1960.<br />
No início do século XX, o fisiologista russo Ivan Pavlov e o psicólogo americano<br />
Edward Thorndike, descreveram, respectivamente, o Condicionamento Clássico, em que um<br />
animal aprende a associar dois estímulos (e.g., som de campainha a apresentação de<br />
comida) pela sua apresentação contígua, e o Condicionamento Operante em que o animal<br />
aprende a associar uma resposta motora a uma recompensa e uma segunda resposta a<br />
uma punição.<br />
Esses paradigmas estabelecidos por Pavlov e Thorndike influenciaram de modo<br />
decisivo uma escola de pensamento denominada Behaviorismo, que almejava tornar a<br />
psicologia uma “ciência objetiva”, baseada na observação de comportamentos, desprezando<br />
conceitos como pensamento, imaginação, consciência ou mente, que eram consideradas<br />
entidades subjetivas, não passíveis de abordagem experimental. A história do Behaviorismo<br />
pode ser contada por seus conflitos com outras escolas de pensamento, como sua disputa<br />
com a Psicologia Clínica, em que os behavioristas criticavam os psicanalistas por uma<br />
suposta falta de controle experimental e de embasamento lógico e científico. Os<br />
behavioristas defendiam que deve-se estudar as relações entre os estímulos apresentados<br />
e as respostas geradas.<br />
Uma escola alternativa de pensamento também baseada nos estudos iniciais de<br />
Pavlov e Thorndike, denominada Cognitivismo, investigava não apenas como estímulos<br />
geravam reações, mas também os processos não observáveis diretamente, mas que<br />
intervêm entre o estímulo e a resposta. Essa escola de pensamento admite a flexibilidade do<br />
comportamento animal, incluindo conceitos como representação, criação, inteligência,<br />
memória e atenção, conceitos não admitidos pelo behaviorismo por não serem restritos à<br />
relação entre estímulos e respostas.<br />
O cognitivista Edward Tolman (1948) defendeu a idéia de que ratos arquivam em sua<br />
memória uma representação espacial do ambiente, um mapa cognitivo, que permite a<br />
orientação flexível no ambiente, inclusive encontrar atalhos nunca percorridos, mas<br />
dedutíveis a partir do mapa cognitivo. Na esteira dos etologistas, Cooper e Zubek (1958)<br />
realizaram estudos sobre as relações entre os comportamentos inatos e aprendidos (ver<br />
Figura 3).<br />
E os mecanismos fisiológicos subjacentes a esses processos?<br />
Gold e colaboradores (1970) expuseram ratos a uma câmara clara de uma caixa<br />
conectada, por uma porta tipo guilhotina, a uma câmara escura cujo assoalho é constituído<br />
de barras metálicas eletrificáveis. Os ratos rapidamente entram na câmara escura; no<br />
entanto, ao entrarem nessa câmara, levam um choque nas patas. Em tentativa posterior<br />
(teste), realizada 24 horas depois, os animais inseridos na câmara clara não entram na<br />
câmara escura (ver a barra vermelha da Figura 4). Animais de um grupo controle, que não<br />
receberam choque nas patas no dia anterior, entram rapidamente na câmara escura (ver<br />
283
V Curso de Inverno<br />
barra verde da Figura 4). Em experimentos adicionais, a intervalos de tempo variáveis<br />
depois do treinamento com choque nas patas, aplica-se uma corrente elétrica no sistema<br />
nervoso dos animais, um choque eletro-convulsivo (ver Figura 4 - esquerda). Observa-se<br />
que quanto menor o intervalo de tempo entre o choque nas patas e o choque eletroconvulsivo,<br />
maior é o prejuízo de memória aversiva sobre o ambiente escuro. Porém, a<br />
medida que esse intervalo de tempo aumenta, menor é o efeito, como se o choque eletroconvulsivo<br />
perdesse sua efetividade para “apagar” a memória (ver Figura 4 – direita, barras<br />
de cor laranja).<br />
Figura 3 – Ratos de uma mesma população inicial, que apresentavam diferentes níveis<br />
de desempenho em uma tarefa envolvendo a aprendizagem de um labirinto foram cruzados por<br />
gerações sucessivas, gerando uma linhagem “burra” e uma linhagem “brilhante” no<br />
desempenho dessa tarefa. Em seguida, esses animais foram expostos a três condições<br />
ambientais distintas, envolvendo (1) crescimento em ambiente empobrecido (gaiola com<br />
animais isolados), (2) crescimento em ambiente padrão (caixa com um pequeno grupo de<br />
animais), e (3) crescimento em ambiente enriquecido (caixa grande, com muitos animais,<br />
brinquedos etc). Os animais das linhagens “burra” e “brilhante” crescidos em ambientes<br />
empobrecido ou enriquecido exibiram desempenho equivalente. Diferentemente, animais<br />
dessas duas linhagens crescidos em ambiente padrão exibiram marcada diferença de<br />
desempenho; o desempenho dos animais da linhagem “brilhante” foi marcadamente melhor.<br />
Em outras palavras, a diferença existe apenas condição padrão de criação. Os autores<br />
concluíram que tanto fatores inatos como ambientais influenciam o comportamento (modificado<br />
de Cooper e Zubek, 1958).<br />
Shashoua (síntese publicada em 1985) prendeu um flutuador nas nadadeiras peitorais<br />
de peixinhos dourados de modo que os animais ficam em posição invertida. Após longo<br />
esforço de cerca de 3 horas, alguns peixes conseguem volta à posição normal, apesar do<br />
flutuador (Figura 5, treino inicial representado pela curva verde). Se o flutuador for removido<br />
e recolocado três dias depois, os animais que aprenderam a tarefa mais rapidamente; i.e.,<br />
os peixes conseguem voltar à posição normal em apenas 15 minutos, o que indica que eles<br />
284
Fisiologia do Comportamento<br />
aprenderam e retiveram a solução desse desafio (curva azul) (para detalhes sobre esses<br />
experimentos, ver Helene e Xavier, 2007a).<br />
Figura 4 – Experimento ratos e choques. A organização temporal dos eventos e os resultados<br />
estão apresentados à esquerda; os resultados obtidos estão à direita. Modificado de Xavier (2004) e<br />
Gold (1970).<br />
Figura 5 – Experimentos de Shashoua (1985) envolvendo aprendizagem em peixes dourados<br />
(para detalhes ver o texto) (modificado de Shashoua, 1985, e Xavier, 2004).<br />
Em outro teste, Shashoua (1985) injetou valina marcada com hidrogênio radioativo<br />
(valina-H*) no ventrículo encefálico de animais que ficaram por 4h com o flutuador, ou valina<br />
marcada com carbono radioativo (valina-C*) no ventrículo de animais que não foram<br />
treinados. Os encéfalos dos animais dos dois grupos foram homogeneizados conjuntamente<br />
e as proteínas foram separadas por peso molecular. A maioria das proteínas presentes<br />
estava marcada tanto com valina-H* quando com valina-C*; porém, algumas delas estavam<br />
mais marcadas com valina-H*, indicando que elas se originaram no cérebro dos animais que<br />
aprenderam a tarefa; essas proteínas foram denominadas ependiminas. Num terceiro teste,<br />
as ependiminas foram isoladas e injetadas em coelhos para producão de anticorpos<br />
específicos contra as ependiminas. Então, os anticorpos foram injetados no ventrículo<br />
encefálico de peixes que tinham acabado de aprender a tarefa de nadar com o flutuador; no<br />
285
V Curso de Inverno<br />
teste de memória realizado 3 dias depois, esses peixes demoraram cerca de 3h para voltar<br />
à posição normal (Figura 5, curva vermelha). Ou seja, esses animais comportam-se como<br />
se nunca tivessem sido submetidos ao treinamento. Presentemente, as ependiminas são<br />
denominadas “moléculas de adesão celular” e estão diretamente relacionadas com o<br />
fortalecimento e formação de sinapses.<br />
Em conjunto, os resultados dos experimentos envolvendo choques eletro-convulsivos<br />
e síntese de proteínas sugerem que há dois processos envolvidos na manutenção da<br />
memória. Um deles, mais instável, é prejudicado pelo choque eletro-convulsivo, estando<br />
relacionado ao padrão de atividade eletrofisiológica dos neurônios (freqüência de disparos,<br />
por exemplo). O outro, associado com produção de proteínas, parece envolver alterações<br />
estruturais nas sinapses gerando circuitos alterados no sistema nervoso. Num certo sentido,<br />
esses dois tipos de processos parecem sobrepor-se aos descritos por James (1890).<br />
Resumindo, parece haver (1) uma Memória de Curta Duração, baseada na atividade<br />
elétrica dos neurônios e, assim, um tanto suscetível a interferências e (2) uma Memória de<br />
Longa Duração, representada por alterações estruturais dos neurônios, particularmente nas<br />
sinapses com outros neurônios, robusta e resistente a interferências.<br />
Onde esses traços de memória estão no sistema nervoso? Eles estariam localizados<br />
em áreas discretas ou estariam espalhadas pelo sistema nervoso? Este tipo de investigação<br />
ficou conhecida como “a busca pelo engrama (= traços de memória)”.<br />
Franz Gall, fundador da Frenologia, no século XIX, defendia que quando uma pessoa<br />
usa muito uma determinada região do cérebro, esta se hipertrofiaria (de modo similar a um<br />
músculo) e, assim, deformava a caixa craniana, gerando um “calombo”; por outro lado, se a<br />
região não fosse usada, ela atrofiaria, gerando uma “depressão”. Seguindo esta concepção,<br />
Gall investigava o formato da caixa craniana de pessoas inteligentes, engraçadas, egoístas,<br />
loucas etc. e propôs mapas sobre a localização das funções mentais (publicados em<br />
revistas especializadas como a American Phrenology Journal, http://www.phrenology.com/<br />
americanphrenology.html). Esta proposta gozou de grande reputação durante o século XIX,<br />
mas foi totalmente abandonada posteriormente.<br />
Figura 6 – Franz Gall e um mapa frenológico.<br />
Na década de 1920, Karl Lashley tentou localizar, em ratos, o engrama, ou seja, os<br />
traços da memória, responsáveis pelo aprendizado do percurso para se orientar num<br />
286
Fisiologia do Comportamento<br />
labirinto. Para testar essa idéia ele fez incisões no córtex antes ou depois do animal<br />
aprender a tarefa; então, avaliava o desempenho do animal, tentando correlacionar a<br />
extensão das lesões, com seu desempenho. O autor descreveu que os prejuízos de<br />
aprendizagem e memória se correlacionam com a extensão da lesão, mas não com sua<br />
localização (ver Bear, 2002; Helene e Xavier, 2007b). Esse resultado favoreceu a hipótese<br />
de que os engramas estão espalhados pelo sistema nervoso e não dispostos em áreas<br />
específicas como propunham, por exemplo, os frenologistas.<br />
No entanto, as memórias parecem não estar totalmente espalhadas pelo encéfalo<br />
como sugerem os resultados de Lashley. Pensa-se, atualmente, que os ratos solucionam a<br />
tarefa valendo-se de diferentes modalidades sensoriais (visão, propriocepção, tato, olfato<br />
etc.) e estratégias (orientação alocêntrica, egocêntrica etc.); quando as lesões são<br />
pequenas, os ratos podem aprender e lembrar a solução usando as modalidades<br />
preservadas; quando as lesões são extensas, o rato é incapaz de aprender ou lembrar do<br />
labirinto.<br />
Essa interpretação vai ao encontro de uma idéia interessante, denominada modelo de<br />
“cell assembly” (de agrupamento de células) de Donald Hebb (1949). De acordo com essa<br />
proposta, o engrama estaria representado em uma rede neural distribuída como<br />
apresentada na Figura 7.<br />
Figura 7 – Esquema representativo de redes neurais de Hebb. Os pontos pretos são os<br />
neurônios e as linhas são as conexões. A rede tem uma organização inicial como representado em<br />
(A); ao receber um estímulo, é ativada (B); esse estímulo pode ser apresentado repetidas vezes, ou<br />
pode ter reverberado nessa rede, de modo que as conexões entre os neurônios são fortalecidas (C e<br />
D); então, um estímulo mais fraco ou mesmo incompleto, mas que mantenha algumas das<br />
características do inicial (D) é capaz de ativar a rede fortalecida (E) (modificado de Bear, 2002, e de<br />
Helene e Xavier, 2007b).<br />
A perspectiva de que o engrama da memória esteja representado em circuitos neurais<br />
que funcionam de maneira cooperativa e que diferentes regiões nervosas podem contribuir<br />
para esse processo, estimulou os neurocientistas a se debruçassem sobre a tentativa de<br />
localizar os sítios da memória em nosso encéfalo.<br />
O estudo do caso do paciente H.M. muito contribuiu para o desenvolvimento dessa<br />
área. Esse paciente sofria de epilepsia intratável (na ocasião); o foco epiléptico situava-se<br />
no lobo temporal medial, bilateralmente. Então, na tentativa de ajudar o paciente, removeu-<br />
287
V Curso de Inverno<br />
se essa estrutura cirurgicamente; isso resultou na remoção dos 2/3 anteriores do hipocampo<br />
e da amígdala, além de outras porções corticais (Scoville e Milner, 1957) (ver Figura 8,<br />
esquerda). Como esperado, H.M. foi curado da epilepsia; porém, exibiu uma perda de<br />
memória. A amnésia de H.M. era anterógrada (o paciente era incapaz de formar novas<br />
memórias) e também retrógrada; porém, neste último caso a amnésia era temporalmente<br />
graduada (ver Figura 8 direita). O prejuízo cognitivo de H.M. estava restrito à aquisição de<br />
memórias de longa duração; suas capacidades perceptuais se mantiveram, assim como seu<br />
QI, sua personalidade e a memória de curta duração; ou seja, estes últimos, estavam todos<br />
preservados (Scoville e Milner, 1957).<br />
Vale ressaltar aqui que mais uma vez foi mostrada a distinção entre memória de curta<br />
duração (associada à atividade elétrica) e memória de longa duração (associada à estrutura<br />
neural) proposta por James um século antes.<br />
Figura 8 – O paciente H.M. teve parte do lobo temporal medial removido bilateralmente (porção<br />
cortical, amígdala e hipocampo). A amnésia exibida por H.M. era anterógrada (ele era incpaz de<br />
formar novas memórias) e retrógrada, neste último caso, temporalmente graduada (lembranças da<br />
juventude e de eventos ocorridos até 2 anos antes da cirurgia foram preservados, mas as lembranças<br />
são gradualmente prejudicadas até o momento da cirurgia (modificado de Bear, 2002 e Xavier, 2004).<br />
No entanto, H.M. conseguia adquirir e reter diversas informações. Por exemplo,<br />
aprendeu a ler palavras invertidas, como se apresentadas por meio de um espelho, após a<br />
cirurgia e também novas habilidades motoras e cognitivas (ver Helene e Xavier, 2007a, para<br />
detalhes). Mesmo assim, se consultado sobre seu treinamento prévio nessas tarefas,<br />
alegava nunca ter feito isso; mesmo assim, seu desempenho nessas tarefas treinadas era<br />
proficiente.<br />
Aparentemente, o hipocampo (e outras estruturas do lobo temporal medial) é<br />
fundamental para a reverberação da atividade neural, que leva ao arquivamento de<br />
informações sobre eventos experienciados. Essa reverberação seria essencial para o<br />
arquivamento das informações sobre “o que” ocorreu, mas não sobre “como” desempenhar<br />
uma tarefa percepto-motora. Na aquisição de uma habilidade, por exemplo, “como” andar de<br />
288
Fisiologia do Comportamento<br />
bicicleta, a aquisição envolveria o treinamento repetitivo e envolveria regiões nervosas<br />
intactas no paciente H.M. Assim, embora o paciente adquira essa habilidade não é capaz de<br />
se recordar “que” já a praticou. Em outras palavras, a natureza da informação “saber que” é<br />
diferente da natureza da informação sobre “saber como” (ver Helene e Xavier, 2007a, para<br />
detalhes). As memórias “saber como” são atualmente denominadas memórias implícitas (o<br />
que faz bastante sentido, pois é muito difícil declarar como se anda de bicicleta) e “saber<br />
que” são denominadas memórias explícitas.<br />
Pacientes com Doença de Parkinson (que exibem disfunções em estruturas nervosas<br />
denominadas gânglios da base) exibem um quadro oposto ao dos amnésicos (que, como<br />
vimos, tem lesão no lobo temporal medial). Os pacientes com disfunções nos gânglios da<br />
base exibem memória explícita preservada e prejuízo da memória implícita; esse prejuízo<br />
pode envolver tanto aprendizagem e desempenho de respostas motoras, como perceptuais<br />
(pacientes com Parkinson, por exemplo, exibem prejuízo na aprendizagem da habilidade de<br />
leitura de palavras invertidas) (Knowlton e col., 1996; Perretta e col., 2005).<br />
A memória de curta duração, preservada em amnésicos e parkinsonianos, usada<br />
corriqueiramente para guardar, por exemplo, um número de telefone obtido numa lista (e<br />
quando terminamos de teclá-lo já não somos mais capazes de declará-lo), está associada<br />
ao funcionamento dos córtices frontal e parietal (Baddeley e Warrington, 1970). A memória<br />
de curta duração é frequentemente denominada memória operacional.<br />
Assim, memória vem sendo classificada em (1) memória de curta duração ou memória<br />
operacional e (2) memória de longa duração. Por sua vez, a memória de longa duração<br />
pode ser subdividida em (2a) memória explícita e (2b) memória implícita.<br />
Memória de Curta Duração (Memória Operacional)<br />
ex. lembrar número da lista telefônica<br />
Memória Explícita<br />
ex. lembranças<br />
Memória Implícita<br />
ex. habilidades e hábitos<br />
mantida em amnésicos<br />
prejudicada em amnésicos, mantida em amnésicos<br />
mantida em parkinsonianos<br />
especialmente para eventos prejudicada em parkinsonianos<br />
prejudicada em pacientes com danos frontais<br />
recentes.<br />
mantida em pacientes frontais<br />
mantida em parkinsonianos<br />
mantida em pacientes frontais<br />
dura poucos segundos ou minutos<br />
suscetível a interferências<br />
dura semanas ou anos<br />
é resistente a interferências<br />
não consolidada (representada no padrão de atividade<br />
eletrofisiológica das redes neurais; e.g., freqüência de<br />
disparos)<br />
consolidada (representada na estrutura das redes neurais; e.g.,<br />
ependiminas) – memória implícita pelo treino repetitivo,<br />
memória explícita pela reverberação (hipocampo)<br />
É possível fazer uma comparação, que poderia ser interpretada como provocação,<br />
entre a Frenologia do século XIX e o modelo de memória atual. Apesar de um pouco<br />
agressiva, essa comparação é útil, pois estimula a interpretação de que os modelos são<br />
aproximações incompletas que nos ajudam entender a realidade (ver http://fisio.ib.usp.br/<br />
fisioteorica). De fato, algumas limitações do modelo de memória podem ser apontadas,<br />
como não levar em conta a dramática plasticidade do sistema nervoso e a clara inspiração<br />
289
V Curso de Inverno<br />
nos equipamentos eletrônicos.<br />
O primeiro aspecto pode ser evidenciado pelo estudo realizado por Leah Krubitzer<br />
(1998) sobre a estrutura cortical de gambás. O córtex de um gambá adulto normal exibe<br />
uma estrutura como a representada na Figura 9 (esquerda); se nos estágios fetais o animal<br />
é submetido à remoção parcial do córtex, seu córtex adulto exibirá estrutura bastante<br />
diferente da do gambá normal (Figura 9, direita). Isso mostra que estruturas relacionadas<br />
com determinados tipos de processamento podem assumir funções distintas (o animal<br />
lesado apresenta uma reorganização generalizada do sistema, não limitado a prejuízo no<br />
processamento visual). Assim, uma interpretação alternativa a dos correlatos anátomofuncionais<br />
obtidos dos estudos envolvendo lesões é de que o sistema lesado funcione de<br />
modo distinto, não limitado ao prejuízo naquela função.<br />
Figura 9 – Organização cortical de gambás adultos. À esquerda o córtex normal e à direita o<br />
córtex re-organizado após uma lesão fetal (modificado de Krubitzer, 1998).<br />
O outro aspecto é o uso de analogia entre funcionamento de equipamentos eletrônicos<br />
e o funcionamento dos sistemas de memória. Isso, em princípio, não é um problema; é<br />
simplesmente uma estratégia de estudo. A evolução dos modelos de memória parecem<br />
corresponder a evolução dos equipamentos eletrônicos, e.g., (1) modelo de conexões<br />
estímulo-resposta inspirada nas centrais telefônicas do início do século XX, (2) os modelos<br />
sobre tipos de memória, estocagem e recuperação da informação inspirados nos<br />
computadores dos anos 50-80 que também sofreram grande avanço e (3) computadores<br />
atuais estão muito mais flexíveis, com grande interação entre hardware e software. Um<br />
exemplo dessa questão, que pode ser apresentada como uma restrição ao entendimento do<br />
sistema nervoso ao avanço tecnológico dos computadores, é evidente nas palavras de<br />
Baddeley (1998): “por que não desenvolver computadores que são baseados em<br />
processamento paralelo, e estudar as capacidades desse sistema para aprender, lembrar e<br />
pensar?”. Talvez a analogia tenha assumido um outro papel que não inspirar / facilitar a<br />
comunicação, tornando-se uma “camisa-de-força” ao restringir o entendimento do fenômeno<br />
às características do sistema descrito na analogia.<br />
Apesar dessas limitações, é inegável que esse modelo é útil e pode gerar<br />
conseqüências práticas. Sabe-se que pacientes com a doença de Parkinson exibem sérias<br />
dificuldades em suas atividades rotineiras, em decorrência do prejuízo da memória implícita.<br />
290
Fisiologia do Comportamento<br />
Piemonte (2000), partindo do conhecimento de que pacientes com a doença de Parkinson<br />
exibem prejuízo da memória implícita, mas memória explícita preservada, treinou esses<br />
pacientes a realizarem suas atividades cotidianas como andar, levantar-se da cama ou vestir<br />
uma camisa, com base em seqüências de instruções memorizadas explicitamente sobre<br />
como executar cada uma dessas tarefas; isto é, cada uma dessas ações foi subdividida em<br />
sub-componentes de movimentos, por exemplo, levantar a perna, virar o tronco, empurrar a<br />
cama, que foram memorizados explicitamente pelos pacientes. Então, essas memórias<br />
declarativas eram utilizadas no momento do desempenho da atividade. O resultado foi um<br />
aumento na velocidade e precisão dos movimentos por parte dos pacientes, com melhora<br />
substancial de sua qualidade de vida. Isso ressalta que modelos, apesar de muitas vezes<br />
incompletos, podem gerar conseqüências práticas e também contribuir para o avanço do<br />
conhecimento numa área.<br />
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Neurofisiologia da Atenção<br />
Claudia F. de O. Marote<br />
Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />
claufmar@ib.up.br<br />
Os sistemas sensoriais de um indivíduo recebem uma diversidade de estimulações a<br />
todo momento. Algumas destas entradas sensoriais são relevantes para o comportamento<br />
corrente, outras não. Imagine a situação de dirigir um carro: o acendimento da luz vermelha<br />
no farol deve ser identificado e a resposta apropriada de frear deve ser emitida; o<br />
acendimento da luz vermelha do farol do carro parado à esquerda precisa ser identificado,<br />
mas não necessita de resposta; a luz vermelha do rádio pode ser ignorada. As entradas<br />
sensoriais dos estímulos identificados foram selecionadas e receberam processamento<br />
adicional pelo sistema nervoso enquanto que as demais foram ignoradas. Esta seleção é<br />
efetivada pela atenção, sendo seu estudo, portanto, fundamental para o estudo do<br />
comportamento.<br />
A atenção é mais comumente observada pela alteração do comportamento do<br />
indivíduo. Assim, quando queremos examinar com mais eficiência um evento,<br />
movimentamos o respectivo órgão sensorial em sua direção. O movimento dos olhos, por<br />
exemplo, permite que uma imagem recaia em nossa fóvea, aumentando a eficiência de seu<br />
processamento. Entretanto, quando nos encontramos em um ambiente repleto de pessoas,<br />
com diversas conversas paralelas, conseguimos alternar nossa atenção entre uma conversa<br />
e outra; também conseguimos acompanhar o movimento de uma pessoa interessante “pelo<br />
canto dos olhos”. Ou seja, é possível orientar a atenção sem que haja movimentação da<br />
superfície sensorial, o que é conhecido por “orientação encoberta” da atenção.<br />
No dia-a-dia nos deparamos com inúmeras situações nas quais procuramos um objeto<br />
no meio de muitos outros, por exemplo, quando buscamos um livro específico em uma<br />
estante repleta de livros. Para a investigação desses fenômenos e produção do<br />
conhecimento científico nessa área tenta-se criar testes em que se tem controle sobre as<br />
variáveis em estudos, e que sejam aplicáveis em laboratório.<br />
Descreveremos duas tarefas que envolvem a atenção nas situações descritas acima,<br />
a de orientação encoberta e a de busca visual. Uma forma de mensurar o efeito da atenção<br />
no processamento do estímulo é examinar como os indivíduos respondem a um estímulo<br />
alvo. A medida utilizada é o tempo de reação, i.e., o tempo desde a apresentação do<br />
estímulo até a emissão da resposta, que indica quanto tempo o indivíduo levou para<br />
sinalizar que percebeu o estímulo alvo. Estímulo alvo é o estímulo procurado, ou esperado,<br />
ou seja, o estímulo ao qual o indivíduo deve responder.<br />
TAREFAS EXPERIMENTAIS<br />
Orientação da atenção - Posner (1980) desenvolveu uma tarefa que permite avaliar o<br />
efeito da atenção encoberta. A Figura 1 exemplifica a tarefa.<br />
293
V Curso de Inverno<br />
Figura 1 – Ilustração da tarefa de orientação encoberta (vide texto). A variação na luminância<br />
de um dos quadrados laterais serve como pista para a orientação da atenção. O voluntário deve<br />
pressionar uma tecla ao detectar o alvo. Quando o alvo aparece no mesmo lado da pista (tentativa<br />
válida) o tempo de reação é menor do que quando o alvo aparece no lado oposto (tentativa inválida)<br />
(adaptado de Posner e Raichle, 1994).<br />
Em um monitor são apresentados dois quadrados laterais e uma cruz central. Com o<br />
olhar fixo na cruz, durante todo o experimento, o voluntário deve responder pressionando<br />
um botão ao aparecimento de um estímulo alvo, um círculo dentro de um dos quadrados<br />
periféricos. Em cada tentativa, antes do aparecimento do alvo, um dos quadrados periféricos<br />
sofre uma variação de sua luminosidade, o que serve como pista. O alvo pode ser<br />
apresentado no mesmo lado da pista, constituindo uma tentativa válida, ou no lado oposto,<br />
constituindo uma tentativa inválida. A variável considerada é o tempo decorrido desde o<br />
aparecimento do alvo até a resposta do voluntário, chamado de tempo de reação. O<br />
resultado usualmente observado é que o tempo de reação nas tentativas inválidas é maior<br />
do que o tempo de reação nas tentativas válidas. Uma vez que a resposta emitida é a<br />
mesma nos dois tipos de tentativas e o olhar permanece fixo no centro do monitor, esta<br />
diferença, conhecida como efeito de validade, é atribuída a um processamento interno<br />
diferencial do estímulo nas condições válida e inválida. Este processamento diferencial é<br />
imputado à atenção: considera-se que a pista atrai a atenção e quando o alvo é apresentado<br />
na mesma posição (tentativa válida) a resposta é mais rápida e mais acurada do que na<br />
situação em que a atenção tem que ser movida da posição da pista para o local do alvo<br />
(tentativa inválida) (Posner, 1980; Posner e Raichle, 1994). Estes autores propuseram a<br />
294
Fisiologia do Comportamento<br />
metáfora de que a atenção funciona como o foco de uma lanterna, que ilumina a região<br />
atendida, dando prioridade para os estímulos nela presentes.<br />
A pista pode ser também uma seta próxima da cruz central. Nesta condição considerase<br />
que o voluntário deva intencionalmente orientar a atenção para o lado indicado pela seta.<br />
Este tipo de orientação da atenção é considerado voluntário ou endógeno, em oposição à<br />
orientação automática ou exógena, que ocorreria quando um estímulo atrai a atenção para o<br />
local onde o alvo é apresentado. A condição de orientação endógena também é rotulada “de<br />
cima para baixo”, referindo-se ao controle da atenção por áreas situadas em níveis mais<br />
elevados de processamento do sistema nervoso, e que atuam sobre as áreas em níveis<br />
mais sensoriais. Já a condição de orientação exógena pode ser denominada “de baixo para<br />
cima”, na qual sistemas sensoriais estariam no controle da orientação da atenção.<br />
Tarefa de busca visual - Nesta tarefa, geralmente solicita-se ao indivíduo que<br />
identifique um estímulo específico, o alvo, apresentado em conjunto com outros estímulos,<br />
chamados de distrativos. Por exemplo, procurar uma barra vertical entre diversas barras<br />
horizontais. Nesta tarefa registra-se o tempo que o voluntário leva para identificar o alvo. O<br />
resultado obtido é um tempo de reação bastante curto, e que independe do número de<br />
estímulos distrativos, se o estímulo alvo difere dos mesmos por apenas uma característica,<br />
como se o alvo “saltasse aos olhos”. Já na condição em que o alvo compartilha mais que<br />
uma característica com os estímulos distrativos, por exemplo, buscar uma barra vermelha<br />
vertical entre barras vermelhas horizontais e barras verdes verticais, então o tempo de<br />
reação é tanto maior quanto maior o número de estímulos distrativos presentes no arranjo.<br />
Na busca que “salta aos olhos”, processos pré-atentivos segmentariam o campo visual em<br />
unidades perceptuais, analisando as propriedades básicas (por exemplo, cor, orientação,<br />
movimento) dos elementos do conjunto; tal análise aconteceria em paralelo, daí a resposta<br />
ser rápida. Na condição de busca por mais de uma característica, considera-se que deve<br />
haver uma conjunção de características, o que requereria atenção, pois a busca aconteceria<br />
serialmente, de item a item.<br />
Essas evidências são tomadas como indícios de que a capacidade da atenção é<br />
limitada. Isto é, se a capacidade desse sistema fosse ilimitada, o alvo que envolve<br />
integração de diferentes características poderia ser identificado imediatamente pela<br />
avaliação de cada uma delas simultaneamente, o que não ocorre (Theeuwes, 1994;<br />
Verghese, 2001; Wolfe e Horowitz, 2004). Este tipo de resultado apóia interpretações de que<br />
há um filtro, um gargalo atencional (ver adiante), e tal gargalo localizar-se-ia em estágios<br />
iniciais do processamento da informação, antes da conjunção de características. Entretanto,<br />
estudos posteriores sugeriram que algumas das características dos objetos são integradas<br />
antes do envolvimento da atenção. Desta forma, há evidências de que tanto estágios iniciais<br />
quanto tardios do processamento de informações podem estar sujeitos a gargalos<br />
atencionais de capacidade limitada (Luck e Vecera, 2002).<br />
295
V Curso de Inverno<br />
COMO A ATENÇÃO ATUA NO SISTEMA NERVOSO?<br />
No sistema nervoso toda informação sensorial é transformada em impulso nervoso.<br />
O que significa atender a um objeto?<br />
O estudo da atenção se beneficiou do registro da atividade de células do sistema<br />
nervoso de macacos, durante variantes da tarefa de atenção encoberta. Antes das tentativas<br />
testes, tentativas de instrução informavam ao animal sobre o estímulo alvo e o local a ser<br />
atendido. Para a investigação da atenção nas vias visuais de macacos, um microeletrodo é<br />
introduzido na estrutura candidata, e a atividade extracelular de um neurônio é medida em<br />
diferentes condições de atenção. Inicialmente, o campo receptivo do neurônio é identificado<br />
assim como um estímulo ótimo e um estímulo não-ótimo. A apresentação do estímulo ótimo,<br />
sozinho no campo receptivo, produz uma alta taxa de respostas, enquanto a apresentação<br />
do estímulo não-ótimo produz uma taxa baixa de disparo. A apresentação simultânea dos<br />
dois estímulos produz uma atividade média. Nesta condição a célula não pode representar<br />
os dois estímulos ao mesmo tempo; assim, há uma competição pela representação dos<br />
estímulos. A atenção seria responsável pela resolução desta competição. Isto é, orientar a<br />
atenção para um dos estímulos faz com que a célula responda a este estímulo como se ele<br />
estivesse sozinho no campo receptivo; como se atender a um dos estímulos filtrasse a<br />
influência do outro estímulo (Figura 2) (Gazzaniga et al., 1998; Aston-Jones et al., 1999).<br />
Este tipo de influência atencional já foi demonstrado em diversas estruturas do sistema<br />
visual (Reynolds e Chelazzi, 2004).<br />
Outros estudos envolvendo registro da atividade de células em diversas estruturas<br />
nervosas do sistema visual em macacos despertos fornecem evidências de que as células<br />
nervosas aumentam a taxa de disparo a um único estímulo quando a atenção é orientada<br />
para seu campo receptivo, comparado à taxa de respostas ao mesmo estímulo quando a<br />
atenção está fora do campo receptivo. Este tipo de influência atencional não se aplica a<br />
todos os estímulos e depende da relação entre o estímulo e o ruído que o cerca (ver a<br />
seguir). Também, num subcomponente do sistema visual, conhecido por via ventral, a<br />
modulação atencional é restrita a uma faixa de contraste dos estímulos - para detalhes ver<br />
revisões de Reynolds et al. (2000) e Treue (2001).<br />
Até aqui foram discutidas as alterações da resposta da célula durante a apresentação<br />
do estímulo nas diferentes condições de orientação da atenção espacial. Mas pode-se<br />
realizar também registros que envolvem populações de neurônios.<br />
Muitos estudos sugerem que a seleção atencional pode direcionar-se a características<br />
específicas dos estímulos. Evidências de seleção por características foram obtidas num<br />
experimento clássico utilizando-se a tomografia por emissão de pósitrons. A tomografia<br />
produz imagens do fluxo sanguíneo regional nas diferentes porções do sistema nervoso. Os<br />
efeitos atencionais são avaliados pela diferença entre a imagem produzida durante o<br />
desempenho da tarefa com engajamento atencional e a imagem produzida durante o<br />
desempenho da mesma tarefa, porém sem engajamento atencional; admite-se que essa<br />
296
Fisiologia do Comportamento<br />
subtração permita identificar as estruturas necessárias para o engajamento da atenção. No<br />
estudo mencionado, os indivíduos tinham que prestar atenção a diferentes características<br />
(cor, forma ou velocidade do movimento) de um mesmo conjunto visual. Diferentes regiões<br />
do córtex extraestriado eram ativadas quando os sujeitos atendiam a diferentes<br />
características do mesmo conjunto, resultados que não podem ser explicados invocando-se<br />
a atenção espacial, pois o direcionamento da atenção era alternados entre diferentes<br />
atributos do mesmo objeto no mesmo local (Kanwisher e Wojciulik, 2000).<br />
Figura 2 – Efeito da atenção na resposta eletrofisiológica de um neurônio na área V4 de um<br />
macaco. As áreas delineadas pela circunferência tracejada indicam a região atendida, o estímulo<br />
ótimo é a barra em azul e a barra branca é o estímulo não ótimo. Quando o animal atende ao<br />
estímulo ótimo, o neurônio exibe uma resposta máxima, enquanto a resposta gerada por atender ao<br />
estímulo não-ótimo é menor. Quando a atenção é orientada para fora do campo receptivo, a atividade<br />
registrada é intermediária.<br />
A modulação atencional baseada em características ultrapassa os limites do campo<br />
receptivo de células sensoriais na via dorsal de macacos. A resposta de neurônios do córtex<br />
temporal, MT, a um estímulo que se desloca num sentido preferido é maior quando o animal<br />
está atendendo ao estímulo do que em relação ao deslocamento num sentido não preferido,<br />
mesmo quando o estímulo atendido está longe do campo receptivo da célula registrada. Isto<br />
é, atender a uma característica, tal como a direção de um movimento, parece aumentar a<br />
responsividade de todos os neurônios que respondem preferencialmente a esta<br />
característica, e não somente daqueles cujos campos receptivos incluem o estímulo<br />
atendido (Treue, 2001). Talvez este mecanismo seja mobilizado durante a tarefa de busca<br />
visual.<br />
297
V Curso de Inverno<br />
Figura 3 – Durante o desempenho da tarefa de atenção visual encoberta a amplitude do<br />
registro eletroencefalográfico relacionado ao estímulo atendido é maior do que aquele observado<br />
para o estímulo não atendido (Hillyard et al., 1998).<br />
CONTEXTOS TEÓRICOS/EXPERIMENTAIS<br />
Luck e Vecera (2002) discutiram algumas questões específicas relacionadas à<br />
atenção, que merecem comentário:<br />
Recursos Limitados - É comum a noção de que a atenção não é capaz de processar<br />
todos os estímulos presentes no ambiente. Direcionar a atenção envolve a alocação de<br />
recursos, que seriam limitados, para o processamento de alguns estímulos; assim, quando a<br />
atenção está engajada no processamento de alguns estímulos, haveria limitações ao<br />
processamento de outros estímulos. Porém, existem propostas alternativas.<br />
Ruído na decisão - Considere a situação de busca visual, na qual cada elemento<br />
distrativo que possui uma característica do estímulo alvo é uma fonte de “ruído”, que é<br />
considerada para a decisão sobre se o estímulo é um alvo ou um distraidor. Quanto maior o<br />
número de decisões envolvidas maior a possibilidade de se cometer erros, ainda que<br />
houvesse um observador ideal, sem limitações na capacidade de processamento. De<br />
acordo com esta concepção, a atenção aumentaria o valor da representação do estímulo em<br />
estágios pós-perceptuais, diminuindo a influência do ruído.<br />
Gargalo no processamento da informação - Apesar do sistema sensorial ter uma<br />
capacidade enorme de processamento, assim como o sistema de memória de longa<br />
298
Fisiologia do Comportamento<br />
duração, haveria um processo intermediário, um gargalo atencional, que só lidaria com uma<br />
informação por vez. A discussão sobre se a seleção ocorreria nos estágios iniciais (nos<br />
processos sensoriais) ou em níveis mais elevados de processamento da informação persiste<br />
por décadas. Há evidências fisiológicas de seleção nos estágios iniciais; entretanto, há<br />
também evidências de que ela ocorre em processos pós-perceptuais. Assim, parece que o<br />
gargalo pode acontecer em diferentes estágios.<br />
O problema da integração de características - Um mesmo lugar do espaço<br />
corresponde ao campo receptivo de várias células que processam características diversas,<br />
por exemplo, estímulos horizontais, verticais, vermelho e verde. Quando dois estímulos são<br />
apresentados neste espaço, a atenção seletiva seria a responsável pela integração da<br />
informação das diferentes células de verde e horizontal para um objeto e vermelho e vertical<br />
para o outro.<br />
Ruído interno - Em algumas situações a atenção parece simplesmente aumentar o<br />
valor da representação dos estímulos, mas em outras situações este mecanismo não seria<br />
eficaz. Assim, este tipo de influência seria funcional quando o estímulo está cercado por<br />
pouco ruído e o ruído interno predomina. O ruído interno (ineficiências de processamento)<br />
envolveria aleatoriedades neurais e limitações na codificação das propriedades dos<br />
estímulos, além da perda de informações durante sua transmissão.<br />
A atenção desempenha um papel fundamental no comportamento animal. A questão<br />
central relaciona-se a como e porquê um estímulo particular, numa miríade de estímulos,<br />
recebe processamento preferencial. As tarefas comportamentais que vêm sendo<br />
desenvolvidas para estudos da atenção em laboratório vêm permitindo investigar a atenção<br />
assim como os substratos neurais nela envolvidos. Isso vem permitindo o desenvolvimento<br />
de elaborações teóricas sobre a natureza desta função e como a mesma se relaciona ao<br />
funcionamento do sistema nervoso. Embora não haja consenso sobre sua definição e o<br />
termo “atenção” seja utilizado para referência a múltiplos processos cognitivos distintos, tem<br />
havido progressos significativos na sua compreensão, o que deverá acelerar-se nas<br />
próximas décadas. Esse processo deverá contribuir para um entendimento mais unificado<br />
do funcionamento do sistema nervoso e suas propriedades.<br />
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Verghese P (2001). Visual Search and Attention - A Signal Detection Theory Approach. Neuron, v.31,<br />
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Wolfe JE, Horowitz T (2004) What attributes guide the deployment of visual attention and how do they<br />
do it? Nature Reviews Neuroscience, v.5, n.6, p.495-501.<br />
Revisado por Gilberto Xavier<br />
300
Fisiologia do Comportamento<br />
Causa e Função<br />
Pedro Leite Ribeiro<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
pedrolribeiro@gmail.com<br />
Apoiado numa trama de galhinhos de uma trepadeira, a uns 15 cm do solo, um ninho<br />
de tico-tico abriga um só filhote, na primeira semana de vida. Está sossegado, talvez<br />
dormindo, protegido do sol de verão pela folhagem acima. De repente, bem rápida, chega a<br />
tico-tico e habilmente pousa na beirada do ninho. Ato contínuo, o filhote se ergue, pescoço<br />
esticado para cima, o bico escancarado. A fêmea, agitada ou apressada, mete o bico goela<br />
adentro do pidão, retira-o, e girando o corpo, voa para trás, na direção de onde chegou. Não<br />
ficou nem um instante para descansar do sol dardejante de verão. Alguns minutos depois,<br />
ela chega de novo: mais uma refeição. Mais alguns minutos e a cena se repete. No entanto,<br />
ela não vai à exaustão total, e acaba descansando um pouco. O macho não apareceu por ali<br />
(Robert et al, 1961).<br />
A um metro dali, uns 15 cm abaixo da superfície do solo, enclausurada na câmara que<br />
construiu, uma saúva fêmea, conhecida popularmente pelos nomes de içá e tanajura, põe<br />
mais um ovo de alimentação. Não é um ovo normal, do qual eclode uma larva. É bem maior<br />
e é mole, em contraste com a casca dura dos ovos de procriação. Dobrando-se<br />
ventralmente, leva as mandíbulas até a abertura de seu ovipositor, de onde o ovo vem<br />
saindo, pinça-o com precisão, desdobra-se e o coloca delicadamente na boca de uma das<br />
várias larvas que estão todas juntas. O segura ali enquanto a larva vai sorvendo sua<br />
refeição (Autuori, 1940).<br />
Bem mais longe, uma outra fêmea, uma mulher, engata a primeira marcha em seu<br />
carro e parte para o shopping center. Na lista que leva na bolsa estão anotados vários itens,<br />
incluindo fraldas, mamadeira, chupetas, leite em pó e um carrinho de bebê. Enquanto dirige,<br />
ela pensa na lista, e faz cálculos de dinheiro. Fica preocupada e percebe que vai ter de<br />
pagar com o cartão de crédito. Ao pensar em cada item, aparece em sua mente a imagem<br />
de um bebê: ela sorri.<br />
Os esforços desmedidos que tantas fêmeas, e também alguns machos, de aves e<br />
outras classes de animais - fazem em favor de suas crias, em evidente desfavor de sua<br />
própria sobrevivência, recebem uma explicação simples da teoria da evolução. Elas estão<br />
cuidando da sobrevivência de seus genes. Foram selecionadas. Se as fêmeas de tico-tico<br />
ficassem descansando na sombra, evitando as fadigas da busca de comida para seus<br />
filhotes, seu dispêndio de energia seria muito menor e correriam menos riscos; porém,<br />
perderiam a prole. Seu cálculo da relação entre custos e benefícios não se completa no<br />
balanço energético de seus próprios organismos; ele inclui a descendência como parte<br />
decisiva da equação. Abandonando o ninho, as tico-ticos estariam melhor, precisariam de<br />
menos alimentos para si mesmas, mas não transmitiriam esse comportamento (egoísta?) a<br />
301
V Curso de Inverno<br />
qualquer descendente. O cálculo da formiga é um pouco diferente, mas essencialmente o<br />
mesmo. Fazendo o enorme esforço da fundação de um formigueiro, jejuando durante<br />
meses, vivendo de reservas, inclusive absorvendo seus músculos alares, ela não está<br />
trocando uma vida mais fácil pela procriação. Ela é incapaz de sair da câmara subterrânea<br />
onde se encerrou e buscar comida na superfície. E se não construísse a câmara, ficaria<br />
perambulando pelo solo até ser morta ou morrer de inanição (Autuori, 1942, 1941). Sua<br />
única chance de viver depende de conseguir que suas filhas dêem início a um novo<br />
formigueiro. A tico-tico teria uma ou duas novas oportunidades na mesma estação e outras<br />
mais no ano seguinte. Assim como fêmeas férteis dão origem a fêmeas férteis enquanto<br />
fêmeas estéreis não dão origem a nada, mães extremadas dão origem a mães extremadas,<br />
enquanto mães omissas não dão origem a ninguém; são pontos terminais de linhagens. A<br />
função do ovário e de todo o conjunto de órgãos e processos que resultam na produção dos<br />
ovos completa-se com o comportamento reprodutivo. A função de um órgão só se completa<br />
com o comportamento que o usa.<br />
O estudo funcional do comportamento é a busca de suas conseqüências para a<br />
sobrevivência e para a reprodução. É no exame do contexto adaptativo e dos efeitos do<br />
comportamento que podemos descobrir suas funções. Entendido o organismo como um<br />
sistema que está configurado para manter-se e reproduzir-se, com a manutenção<br />
subordinada à reprodução, é no entendimento do papel de cada comportamento que se dá o<br />
estudo funcional. É comum que os estudantes de Psicologia e Biologia sintam certo malestar<br />
com o conceito de função por causa de sua proximidade com as idéias de meta, fim,<br />
finalidade, propósito e objetivo. Trata-se de um desconforto filosófico, em face do justo<br />
receio de adotar uma visão teleológica da evolução, como se o futuro pudesse determinar o<br />
passado. Tal inquietude, no entanto, decorre de um exame superficial do conceito de função.<br />
É claro que é uma tolice rematada conceber a evolução como um desígnio divino, algo<br />
como a realização de um projeto ou o desdobramento de um plano de alguma forma<br />
presente desde sempre. Uma das muitas notáveis propriedades da mente humana é a sua<br />
habilidade de decifrar as intenções por trás do comportamento alheio. Essa faculdade, tão<br />
adaptativa nas relações sociais, facilmente transborda de seu uso funcional levando-nos à<br />
ilusão de perceber intencionalidade e consciência onde elas não existem. Programando<br />
engenhosamente a movimentação de alguns pequenos círculos numa tela de computador, o<br />
leitor poderá demonstrar a um observador sua tendência a interpretar a movimentação como<br />
se houvesse um enredo de fugas e perseguições. Ora, ao aprender que o estudo científico<br />
não pode deixar-se contaminar ingenuamente pela subjetividade, o estudante pode hesitar<br />
quando se depara com o conceito de função. Contudo, é preciso entender que a Ciência<br />
pode adotar termos de uso corrente sem trazer suas conotações e implicações. A<br />
descoberta de que o canto do tico-tico tem a função de proteger seu território e seduzir as<br />
fêmeas não significa que ele tenha de seu comportamento a mesma consciência que tem<br />
um ser humano em situações análogas. Assim como não há erro conceitual em descrever<br />
302
Fisiologia do Comportamento<br />
as peças de um automóvel dizendo qual é o objetivo de cada uma delas, ou dizer que um<br />
robô procura e usa a tomada para recarregar, ou com o objetivo de recarregar sua bateria,<br />
assim também não há teleologia em reconhecer que a evolução criou organismos dotados<br />
de recursos que dão conta de sua manutenção e reprodução agindo como se estivessem<br />
sendo controlados pelas conseqüências de suas ações.<br />
O controle de suas ações, no entanto, aquilo que os leva a fazer o que fazem a cada<br />
momento, constitui um outro tipo de fenômeno, que devemos chamar de causas do<br />
comportamento. O que leva a içá a fazer cada um de seus movimentos são os estímulos do<br />
ambiente e de seu próprio corpo, seus hormônios e as programações de seu sistema<br />
nervoso. Portanto, a pergunta "por que a içá alimenta as larvas?" tem duas respostas, uma<br />
funcional e outra causal. A observação de que as larvas de formigas são inertes, incapazes<br />
de se alimentarem sozinhas, terá valor no plano funcional. Já a indagação "será que as<br />
larvas dão algum sinal de suas necessidades, ou a produção de ovos de alimentação<br />
obedece a um programa que independe do estado das larvas?" cabe no plano causal.<br />
Investigar se a quantidade de testosterona afeta a freqüência ou a intensidade do canto do<br />
tico-tico é um estudo causal. Já o efeito do canto sobre a preservação do território é uma<br />
questão funcional. Note-se que esse mesmo canto deve também ser entendido como<br />
estímulo que atinge os ouvidos dos machos rivais. Examinado dessa forma, em busca de<br />
como ele controla as ações dos rivais, por exemplo, fazendo-os mais ou menos agressivos,<br />
o canto está dentro de um estudo causal.<br />
Niko Tinbergen, prêmio Nobel de 1973, organizou o estudo do comportamento em<br />
quatro tipos de resposta à pergunta por quê. A resposta causal, a funcional e mais duas que<br />
não serão aqui examinadas. Filogênese: por que está espécie tem esse comportamento?<br />
Como evoluiu? Como se comportavam seus ancestrais? Quais foram as pressões seletivas<br />
que o moldaram? Ontogênese: o repertório comportamental de uma espécie não surge todo<br />
no recém-nascido. Como se dá seu desenvolvimento? Por que tal comportamento aparece<br />
em tal idade? Qual é o papel do aprendizado?<br />
O entendimento da diferença entre causa e função serve bem para evitar confusões<br />
conceituais. O esclarecimento da função de um comportamento não resolve o problema<br />
funcional, mas é útil para gerar hipóteses sobre os fatores que atuam sobre ele. Existem<br />
mariposas que subitamente, em pleno vôo, deixam-se cair como se tivessem sido<br />
mortalmente feridas. Alguns segundos depois, antes de atingirem o solo, elas recobram seu<br />
vôo normal. A descoberta de que a função desse comportamento é protegê-la do ataque de<br />
morcegos leva-nos a buscar algum órgão receptor do ultra-som usado pelos morcegos em<br />
seu sistema de ecolocação.<br />
Em condições normais, no ambiente natural, os fatores causais e as funções têm um<br />
entrosamento admirável. A receptividade sexual acontece quando o organismo está pronto<br />
para a reprodução, apetites específicos quando ocorrem carências específicas, a sede<br />
quando falta água, e assim por diante. Sim, esse entrosamento torna-se admirável quando<br />
303
V Curso de Inverno<br />
se apreende bem a noção de que uma função não produz por si só o comportamento<br />
correspondente. Não é óbvio que a falta de água leve o animal a beber. Entre a falta de<br />
água nos tecidos e as atividades de procurá-la e ingeri-la, é necessária a ação de fatores<br />
causais adequados, a começar pelo reconhecimento correto do objeto, ou seja, o animal<br />
deve engolir água e não areia ou flores. E deve tomá-la e não atacá-la com mordidas. A<br />
compreensão da diferença entre causa e função tem a virtude de problematizar o<br />
comportamento.<br />
Em condições anormais, seja no ambiente natural seja no laboratório, causas e<br />
funções podem desencontrar-se, revelando de forma dramática como é notável o<br />
entrosamento normal. Lesões do hipotálamo lateral tornam os ratos inapetentes a ponto de<br />
morrerem de inanição com comida abundante ao seu alcance. As vítimas humanas de<br />
anorexia entendem bem a diferença entre precisar de comida e ter fome. Drosófilas<br />
mutantes sem asas movem as patas traseiras como se as estivessem limpando. Alguns<br />
cães domésticos dão uma volta em torno do lugar onde estão prestes a deitar-se para<br />
dormir. Há pelo menos um caso bem documentado de cópula entre um chimpanzé e uma<br />
fêmea babuína. E temos também que estar preparados para encontrar comportamentos cuja<br />
função principal não é sua única função, como a sexualidade dos bonobos que, em<br />
condições normais no ambiente natural, inclui rotineiramente relações entre machos, entre<br />
fêmeas e entre adultos e jovens impúberes. Há alguns casos documentados de adoção<br />
interespecífica (Otoni et al in press). No comportamento lúdico, tão comum em mamíferos,<br />
mas presente também em aves, os jovens fazem coisas de adultos, fora tanto do contexto<br />
funcional como do causal.<br />
Assim como nossa capacidade empática pode induzir-nos ao erro de antropomorfizar<br />
o comportamento animal, os animais também têm seus transbordamentos motivacionais.<br />
Tais exceções não devem ofuscar o extraordinário ajuste entre causas e funções sem o qual<br />
não haveria manutenção nem reprodução.<br />
Dias antes daquela ensolarada manhã em que a tico-tico cuidava de buscar comida,<br />
ela vinha sendo furtivamente observada por uma fêmea de chupim. Se a percebesse, a ticotico<br />
talvez tivesse ido embora, abandonando o ninho, para fazer outro em lugar mais seguro.<br />
Não a viu, e a chupim conseguiu botar um ovo junto aos seus. Por predação ou furados pela<br />
chupim, os ovos perderam-se todos, menos um, o da chupim. Foi vã toda a dedicação da<br />
tico-tico. Explorando o sistema causal da hospedeira, a chupim logrou desvirtuar a função<br />
do comportamento da tico-tico, em seu benefício. O parasitismo comportamental é uma lição<br />
fascinante acerca dos modos como o comportamento é controlado. A tico-tico vai continuar a<br />
cuidar do chupim como se fosse seu filho até sua independência, mas terá novas chances<br />
nos anos seguintes (Buzzetti, 2004).<br />
A içá que alimentava as larvas com ordem e precisão perdera a pequena porção de<br />
fungo que pegou do ninho onde nasceu e trouxe na bolsa infrabucal. Essa pelotinha de<br />
fungo era essencial. Ela ia depositá-la com todo o cuidado no chão da câmara, e depois<br />
304
Fisiologia do Comportamento<br />
meticulosamente alimentá-la com suas fezes e fazê-la prosperar. Sem esse jardim de fungo,<br />
seu esforço é vão. Ela continuará a alimentar as larvas, que se tornarão pupas e depois<br />
obreiras que vão cavar um túnel para cima e procurar alimento na superfície. Porém, sem<br />
fungo, o alimento será inútil e mãe e filhas não vão durar muito. Mesmo tendo perdido o<br />
fungo, a içá continuou a responder aos estímulos presentes. Não existe nenhuma<br />
possibilidade de a seleção natural operar e cancelar essa inércia comportamental.<br />
O bebê cuja lembrança fez sorrir a mulher que ia ao shopping center preocupada com<br />
a despesa não é seu filho. É filho de uma amiga, mãe solteira, que está sem dinheiro. O filho<br />
foi planejado. Ela tinha um bom emprego. Não queria casar-se e procurou um homem com o<br />
único fim de ter o filho. Perdeu o emprego e sua vida ficou complicada. A amiga, solidária,<br />
está feliz de poder ajudar. A complexidade do comportamento humano é um desafio para a<br />
análise de causas e funções. O comportamento da mulher que presenteia não parece ser<br />
um excesso de cuidados maternais. Lembra mais os comportamentos altruístas de<br />
fortalecimento de vínculos interpessoais, comuns em animais sociais. Já o comportamento<br />
da mãe, ao planejar o filho, parece inverter ou fundir a relação entre causa e função.<br />
Diferentemente de qualquer outro animal, ela conhece a relação entre a cópula e a gravidez<br />
e entre esta e o nascimento de uma criança. Mesmo que tivesse aversão ao ato sexual, ela<br />
poderia lançar mão da inseminação artificial. O filho, neste caso imaginário específico, não é<br />
a conseqüência desconhecida ou desconsiderada da atividade sexual. Isso foi assim, na<br />
pré-história, antes de nossos ancestrais descobrirem a relação entre sexo e procriação. No<br />
caso que estamos examinando, a reprodução é uma causa dos comportamentos da mãe.<br />
Pode-se fazer uma analogia com o comportamento de busca de algo perdido, que muitos<br />
animais são capazes de fazer. Uma fêmea que se perca de seu filhote e saia a procurá-lo<br />
também constitui um caso em que a distinção entre causa e função fica reduzida ou<br />
anulada. A memória e a capacidade cognitiva permitem que um animal se comporte em<br />
relação a um objeto do qual não recebe qualquer estimulação. O comportamento nesse<br />
caso tem a função de encontrar o objeto que é também parte de suas causas.<br />
Em nós, humanos, a cultura trouxe alterações importantes tanto ao plano<br />
causal quanto ao funcional. Ela não destruiu os sistemas que operavam antes de sua<br />
origem. Ela os transformou em algo que ainda não conseguimos entender. Curiosamente, a<br />
cultura criou os recursos que nos permitem organizar o pensamento científico e com ele<br />
progredir no entendimento do que fazem os outros animais, mas não se revela facilmente a<br />
si mesma. As próprias causas e funções de seu desenvolvimento constituem um desafio<br />
difícil que ainda é objeto de debate entre os que se dedicam a elucidá-las. Com métodos de<br />
observação e experimentação cada vez mais refinados, biólogos e psicólogos vêm<br />
progredindo de modo acelerado no estudo do comportamento animal e humano. A pergunta<br />
"Por que esse animal está se comportando desse modo?" recebe respostas cada vez mais<br />
amplas e convincentes. Quando trocamos animal por ser humano nessa indagação, as<br />
respostas são mais hesitantes, porém o progresso é indiscutível, e as próximas décadas<br />
305
V Curso de Inverno<br />
deverão proporcionar descobertas fascinantes.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Autuori M (1940). Algumas observações sobre formigas cultivadoras de fungo (Hym. Formicidae).<br />
Revista de Entomologia V 11.<br />
______ (1941). Contribuição para o conhecimento da saúva (Atta spp.). I. Evolução do sauveiro (Atta<br />
sexdens rubropilosa Forel, 1908). Arquivos do Instituto Biológico São Paulo, v.12, p.197-228.<br />
______ (1942). Contribuição para o conhecimento da saúva (Atta spp.-Hymenoptera-Formicidae). III.<br />
Escavação de um sauveiro (Atta sexdens rubropilosa Forel, 1908). Arquivos do Instituto<br />
Biológico São Paulo, v.13, p.137-148.<br />
Tinbergen N (1963). On Aims and Methods in Ethology. Zeitschrift für Tierpsychologie, 20: 410-433;<br />
Robert K (1961). Interspecific Preening Invitation Display of Parasitic Cowbirds. A Quarterly Journal of<br />
Ornithology.<br />
Buzzetti D (2004). Nurturing new life. Ed. Terceiro nome.<br />
Revisado por Gilberto Xavier<br />
306
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Capítulo 7<br />
Evolução de Sistemas<br />
Fisiológicos<br />
Autores:<br />
Antonio Carlos da Silva<br />
Fábio de Andrade Machado<br />
Flávio da Silva Nunes<br />
Ivan Prates<br />
Meirielen Caroline da Silva<br />
Monique N. Simon<br />
Pedro Leite Ribeiro<br />
Renata Brandt Nunes<br />
Tatiana Hideko Kawamoto<br />
Vânia Regina de Assis<br />
307
308<br />
V Curso de Inverno
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Fisiologia Evolutiva: contexto histórico e fundamentos<br />
Monique N. Simon<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
msimon@ib.usp.br<br />
“Todos os fisiólogos, com efeito, admitem que a especialização dos órgãos é uma<br />
vantagem para o indivíduo, no sentido que, neste estado, os órgãos desempenham melhor<br />
suas funções; em conseqüência, acúmulo das variações tendentes à especialização é da<br />
alçada da seleção natural. Por outro lado, se for cogitado que todos os seres organizados<br />
tendem a se multiplicar rapidamente e a se apoderar de todos os lugares desocupados, ou<br />
pouco ocupados na economia da natureza, fácil nos é compreender ser muito possível que<br />
a seleção natural prepare gradualmente um indivíduo para uma situação na qual muitos<br />
órgãos lhe serão supérfluos e inúteis; neste caso haveria uma real retrogradação na escala<br />
da organização.”<br />
Charles Darwin<br />
Reflexões sobre a evolução da função de órgãos e sistemas fisiológicos não são<br />
recentes para a comunidade científica. Um exemplo categórico está nas palavras de Charles<br />
Darwin em seu famoso livro “A Origem das Espécies e a Seleção Natural” publicado em sua<br />
primeira edição em 1859. Apesar de Darwin ter dado bastante ênfase aos caracteres<br />
morfológicos e comportamentais dos organismos ao propor a seleção natural como o<br />
mecanismo da evolução, algumas passagens do livro (como por exemplo a exposta acima)<br />
referem-se à fisiologia, inserindo-a em um contexto ecológico. O parágrafo acima demonstra<br />
a clareza com que Darwin percebia a evolução de caracteres fisiológicos, pois compreendia<br />
que os organismos não evoluem em uma única direção (para o aumento da especialização),<br />
mas sim para múltiplas direções dependendo das condições ambientais.<br />
Apesar do antigo interesse de diversos pesquisadores no tema, os evolucionistas<br />
americanos Garland e Carter (1994) consideraram que houve uma grande expansão na<br />
área denominada ‘fisiologia evolutiva’ a partir de 1970. Os estudos anteriores à essa<br />
década, realizados por pesquisadores das áreas de fisiologia comparativa e ecofisiologia,<br />
descreviam caracteres fisiológicos como funções de variáveis ambientais (isto é, a<br />
capacidade de se alterar a fisiologia diante de mudanças ambientais), mas não descreviam<br />
a variabilidade desses caracteres em populações naturais nem o quão herdáveis eram<br />
esses caracteres. O maior enfoque na variabilidade e na herdabilidade (características<br />
primordiais para a evolução) surgiu com o avanço tecnológico e teórico na área: uso de<br />
programas de análise filogenética e de estudos de seleção, e incorporação de conceitos da<br />
genética de populações e da genética quantitativa. Portanto, as variáveis estudadas são as<br />
mesmas da fisiologia comparativa e da ecofisiologia, o que muda é o contexto analítico, as<br />
309
V Curso de Inverno<br />
abordagens adotadas para a compreensão da evolução de sistemas fisiológicos (Bradley e<br />
Zamer 1999).<br />
Garland e Carter (1994) e Feder e colaboradores (2000) destacam o artigo de<br />
Stephan Jay Gould e Richard Lewontin, publicado em 1979, como um marco conceitual<br />
dentro da fisiologia evolutiva, um verdadeiro divisor de águas. No artigo “The sprandels of<br />
San Marco and the Panglossian paradigm: a critique of the adaptacionist programme”, Gould<br />
e Lewontin criticaram o que denominaram como ‘programa adaptacionista’: a pré-concepção<br />
de que todos os padrões de caracteres biológicos resultam de adaptação. De maneira mais<br />
direta: contrariaram o hábito de se considerar tudo como uma adaptação desde o início.<br />
Os autores ponderaram que o programa adaptacionista determina a seleção natural<br />
como uma força muito poderosa e única agindo sobre os indivíduos. Essa idéia contradiz o<br />
que o próprio Darwin afirmava: “Estou convencido de que a seleção natural é a maneira<br />
principal, mas não exclusiva de modificação”. Os estudos que se enquadram nesse<br />
paradigma, nesse modo de pensar, utilizam como único critério para aceitar uma<br />
determinada explicação evolutiva a consistência com a seleção natural. Gould e Lewontin<br />
defenderam que explicações alternativas à idéia de que ‘toda parte do organismo tem um<br />
propósito’ devem ser pensadas.<br />
Um bom exemplo dado por eles é o do Tyranosaurus: tenta-se explicar a existência<br />
de membros anteriores reduzidos em Tyranosaurus de diversas maneiras, sendo uma delas<br />
o uso pelo animal dos pequenos braços para se levantar. Gould e Lewontin enfatizaram que<br />
não era preciso ver o encurtamento dos braços como sendo exclusivamente uma<br />
adaptação. Provavelmente era uma conseqüência inevitável de padrões alométricos<br />
(alometria: estudo das proporções do corpo dos organismos em relação ao seu tamanho<br />
total) de aumento da cabeça em relação aos membros anteriores. Ainda advertiram que não<br />
se deve confundir o uso atual de uma estrutura com sua função original, já que os<br />
caracteres podem ser mantidos por pressões seletivas diferentes das que os originaram.<br />
O artigo de Gould e Lewontin perpetuou um maior rigor evolutivo nos estudos em<br />
fisiologia e uma transição de modelos dedutivos-especulativos (dificilmente testáveis) para<br />
modelos dedutivos-hipotéticos, com a possível falseabilidade das hipóteses e adoção de<br />
explicações alternativas. Com essa mudança de paradigma na fisiologia evolutiva, novas<br />
perguntas foram estabelecidas assim como novas abordagens. Dentre suas questões<br />
capitais estão (Feder e colaboradores 2000):<br />
(1)Quais são os padrões históricos, ecológicos e filogenéticos da evolução<br />
fisiológica?<br />
Quando contextualizamos as espécies em padrões filogenéticos determinamos o<br />
estado ancestral dos caracteres e sua taxa de mudança evolutiva, e aceitamos que a<br />
mudança evolutiva de um caracter (detectado no descendente) relaciona-se com seu estado<br />
ancestral. Um caracter existente em determinada espécie pode ter sido originado no<br />
ancestral e mantido/modificado no descendente pelas mesmas pressões seletivas, por<br />
310
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
outras pressões, ou mesmo ter expressão neutra diante da seleção natural (ou seja, não ser<br />
‘visto’ pela seleção natural por não interferir no sucesso reprodutivo do indivíduo). Ou,<br />
alternativamente, um caracter pode ser mantido/modificado no descendente por outros<br />
fenômenos evolutivos, que não estão necessariamente relacionados com o sucesso<br />
reprodutivo do indivíduo.<br />
A fisiologia evolutiva considera as alterações de caracteres fisiológicos em um<br />
contexto evolutivo, levando em conta a história natural das espécies, sua ecologia e suas<br />
relações filogenéticas. As variáveis estudadas a partir dessa perspectiva possuem agora<br />
uma história, fazem parte de um contexto mais amplo que é a evolução das espécies.<br />
(2) Quão importantes são os processos evolutivos em facilitar ou limitar a<br />
evolução fisiológica?<br />
Questionamentos desse tipo mostram claramente a incorporação de elementos da<br />
biologia evolutiva na fisiologia, principalmente provindos da genética de populações e da<br />
genética quantitativa. A genética de populações utiliza diversos parâmetros para determinar<br />
como evoluíram os genes ou conjuntos de genes dentro de uma população. Esses<br />
parâmetros são tamanho populacional, variação genotípica e fenotípica, herdabilidade,<br />
sobrevivência e reprodução diferenciais, taxas de mutação gênica, freqüência de alelos,<br />
entre outros. Os estudos em fisiologia evolutiva principiaram a utilizar esses parâmetros a<br />
fim de se concluir sobre quais condições naturais de uma população originaram e/ou<br />
mantiveram um certo caracter fisiológico.<br />
A genética de populações expandiu o horizonte de fenômenos evolutivos ressaltados<br />
pela fisiologia para além da seleção natural. Os autores passaram a se interessar por outros<br />
processos, como deriva genética, restrição evolutiva e compromisso evolutivo, e a<br />
considerá-los como mais importantes que a seleção natural em certos casos. Deriva<br />
genética é um processo evolutivo no qual as freqüências de alelos de genes mudam<br />
estocasticamente (ou seja, as probabilidades dos eventos são indeterminadas). A fixação ou<br />
desaparecimento de certos alelos na população ocorre como um fenômeno estocástico,<br />
impassível de previsão e sem a ação de pressão seletiva. A deriva genética é mais comum<br />
em populações pequenas nas quais o processo de especiação origina-se-se de um número<br />
pequeno de indivíduos. Processos de migração e desastres naturais podem levar uma<br />
pequena parcela de uma população a se isolar, e assim, evoluir a partir de número muito<br />
reduzido de indivíduos.. Utiliza-se a idéia de ‘gargalo de garrafa’ para se visualizar o que<br />
ocorre com a freqüência de alelos em uma população que se tornou pequena (Figura 1).<br />
311
V Curso de Inverno<br />
Figura 1 - Efeito gargalo: as bolas<br />
coloridas representam alelos de genes e o<br />
copo representa o isolamento reprodutivo. O<br />
gargalo limita drasticamente a variabilidade<br />
de alelos presentes na população isolada.<br />
O gargalo representa a drástica redução da variabilidade de alelos quando uma<br />
pequena população se isola. O isolamento não precisa ser necessariamente geográfico,<br />
mas precisa ser um isolamento reprodutivo (ou seja, impedimento do fluxo gênico). A deriva<br />
é um processo muito mais veloz que a seleção natural na especiação, e pode até mesmo<br />
fixar um alelo na população que é prejudicial para o sucesso reprodutivo dos indivíduos.<br />
Uma restrição evolutiva (“evolutionary constraint” em inglês) restringe os possíveis<br />
caminhos e modos de mudança evolutiva. Restrições podem ser agrupadas em duas<br />
categorias: filogenéticas e de arquitetura. A restrição filogenética refere-se à impossibilidade<br />
de origem/mudança de caracteres devido à dependência que os descendentes apresentam<br />
com seus ancestrais (inércia filogenética). Ao longo da evolução, certos caracteres/padrões<br />
originam-se e permanecem/mudam enquanto outros desaparecem para uma determinada<br />
espécie, ou seja, o caminho evolutivo vai sendo trilhado. Após certa distância não é mais<br />
possível realizar o caminho inverso e adquirir qualquer caracter/padrão. A inércia filogenética<br />
explica porque moluscos não voam e porque nenhum inseto é tão grande quanto um<br />
elefante.<br />
Restrições de desenvolvimento compõem uma subcategoria de restrição filogenética.<br />
Em organismos complexos, de alta integração das partes, estágios iniciais da ontogenia<br />
(embrião, por exemplo) são marcadamente refratários à mudança evolutiva. Isso se dá,<br />
presumivelmente, por conta de os processos de diferenciação dos órgãos e dos sistemas, e<br />
sua integração, constituírem um fenômeno delicado, muito suscetível a erros precoces que<br />
levam à morte. Como alterações que interferem no desenvolvimento geralmente levam à<br />
morte do indivíduo, a mudança não se perpetua nos descendentes. As mudanças que<br />
podem ocorrer ao longo do desenvolvimento são restritas.<br />
A segunda categoria de restrição evolutiva refere-se às restrições de arquitetura, que<br />
diferentemente das restrições filogenéticas, não são fruto da relação ancestral-descendente,<br />
mas sim provindas de propriedades da constituição e da estrutura dos organismos. Pode-se<br />
imaginá-la como uma restrição ‘interna’ aos organismos. Gould e Lewontin (1979)<br />
exemplificaram esse tipo de restrição com a própria arquitetura: se se desejasse construir<br />
uma estrutura na qual dois arcos são justapostos, uma conseqüência inevitável é o<br />
312
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
surgimento de estruturas triangulares entre os arcos. Os triângulos que surgem não podem<br />
ser quadrados ou retângulos, mas somente triângulos (Figura 2). Se houvesse uma pressão<br />
seletiva para transformar esse triângulo em um quadrado, nessa estrutura de arcos<br />
justapostos, ela não sucederia – uma restrição foi imposta. Uma restrição de arquitetura<br />
limita os caminhos evolutivos pela impossibilidade estrutural ou de constituição física de<br />
certos caracteres responderem a determinadas pressões seletivas.<br />
Figura 2 - Restrição de arquitetura.<br />
A foto da catedral de São Marco foi<br />
utilizada por Gould e Lewontin (1979)<br />
para exemplificarem uma restrição de<br />
arquitetura. A figura ao lado mostra<br />
graficamente o aparecimento inevitável<br />
de um triângulo quando dois arcos são<br />
justapostos.<br />
A idéia de compromisso evolutivo (‘evolutionary tradeoff’) está associada à<br />
genética quantitativa, ciência que foi criada para se compreender as bases genéticas de<br />
caracteres contínuos (de escala contínua, ou seja, qualquer intervalo da escala tem infinitos<br />
valores intermediários – temperatura, por exemplo, em contraponto com a variável discreta/<br />
categórica espécie – não existe 1,5 espécie!). A genética quantitativa assume que os<br />
caracteres contínuos são regulados por muitos alelos, e que cada um tem um pequeno<br />
efeito sobre o fenótipo. Quando há correlação genética entre caracteres, portanto uma<br />
ligação no nível genético entre os mesmos, um compromisso genético pode aparecer. Um<br />
compromisso genético pode ser resultante de pleiotropia, quando um alelo afeta mais de um<br />
caracter. Por exemplo: o desempenho locomotor possui propriedades de velocidade e<br />
resistência. Se um indivíduo sofre pressão em um conjunto de músculos (associados ao<br />
vôo, por exemplo) para atingir uma velocidade ótima, não poderá simultaneamente alcançar<br />
uma resistência ótima. Isso se dá porque as células que constituem os músculos – fibras<br />
musculares – ou aumentam a velocidade (aumento da quantidade de fibras de contração<br />
rápida – brancas) ou aumentam a resistência (aumento das fibras de contração lenta –<br />
vermelhas). Um organismo pode aumentar a velocidade e a resistência simultaneamente,<br />
mas não atingirá o estado ótimo para ambos, já que possuirá em seus músculos uma<br />
proporção de fibras rápidas e lentas.<br />
Um compromisso também pode ser fenotípico, portanto não ter origem em<br />
correlações genéticas e sim fenotípicas. A ligação, portanto, se dá entre fenômenos<br />
fenotípicos. Conhecem-se compromissos fenotípicos de:<br />
• Aquisição: o organismo aumenta o forrageamento – busca por alimento –<br />
mas se expõe mais à predação;<br />
313
V Curso de Inverno<br />
• Alocação: para a manutenção de um mesmo balanço energético, quanto<br />
mais energia metabólica é direcionada para uma parte, menos é direcionada<br />
a outras;<br />
• Especialista-generalista: organismos especialistas possuem desempenho<br />
ótimo em determinadas condições ecológicas, mas são restritos a um<br />
gradiente pequeno de nichos ecológicos, contra organismos generalistas,<br />
que não possuem um desempenho tão ótimo, mas ocorrem em uma ampla<br />
gama de nichos.<br />
O compromisso evolutivo representa a máxima: ‘Ninguém é bom em tudo’.<br />
Deriva genética, restrição evolutiva e compromisso evolutivo são conceitos<br />
fundamentais da fisiologia evolutiva, além de seleção natural e adaptação. A pergunta<br />
seguinte apresenta um dos principais paradigmas da fisiologia evolutiva: o paradigma do<br />
desempenho do organismo.<br />
(3) Como a interação entre genótipo, fenótipo, desempenho e sucesso<br />
reprodutivo influenciam seus próprios valores futuros?<br />
Um objeto clássico da fisiologia é a descrição de cadeias de eventos entre estímulo e<br />
resposta. A elucidação da transdução de sinal e de mecanismos homeostáticos serve de<br />
exemplo. Entretanto, pouco se estudou a recepção de sinais ecológicos e evolutivos por<br />
populações naturais e a manifestação da resposta correspondente – seleção, extinção –<br />
em termos de caracteres fisiológicos. Esse nível de organização mais elevado foi<br />
historicamente menos estudado que níveis menores, como sistemas, órgãos, células e<br />
moléculas.<br />
O indivíduo é uma das principais unidades a responder à seleção natural. O<br />
paradigma do desempenho do organismo mostra como se relacionam genótipo, fenótipo,<br />
desempenho e comportamento (inclusive o reprodutivo, que sofre muita pressão seletiva), e<br />
enfatiza que o desempenho do organismo só faz sentido em um contexto ecológico,<br />
aproximando a fisiologia da ecologia. Esse paradigma está representado na figura 3:<br />
A renovação conceitual dentro da área da fisiologia foi muito frutífera em culminar em<br />
novas perguntas e atingir um nível mais elevado de compreensão da fisiologia geral e da<br />
evolução da fisiologia. A inovação tecnológica também teve sua contribuição na expansão<br />
da fisiologia evolutiva, principalmente através dos estudos de seleção.<br />
Os estudos de seleção permitem a observação da evolução em ação, em tempo real,<br />
e não apenas a especulação de sua atuação através de suas conseqüências. As hipóteses<br />
evolutivas podem ser elaboradas a priori, havendo a migração de uma ciência dedutivaespeculativa<br />
para uma ciência dedutiva-hipotética. Estudos de seleção podem ser<br />
314
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
conduzidos na natureza ou no laboratório. Estudos em populações naturais medem a<br />
sobrevivência e o sucesso reprodutivo diferenciais dos indivíduos e procura correlacioná-los<br />
com caracteres fisiológicos. Notavelmente, houve pouco interesse na variação intraespecífica<br />
e no significado dessa variação em caracteres fisiológicos.<br />
Figura 3 - O paradigma do desempenho do organismo. O genótipo e o ambiente<br />
interagem através do desenvolvimento na determinação das características fenotípicas primárias dos<br />
organismos, categorizadas em bioquímicas, fisiológicas e morfológicas. Em conjunto, essas<br />
características determinam e limitam o desempenho e as habilidades dos organismos. O<br />
desempenho define a extensão ou os limites das capacidades de um organismo, e o comportamento<br />
indica como um organismo usa essas capacidades. Portanto, variações genotípicas ou fenotípicas<br />
apenas serão sujeitas à seleção se seus efeitos se estendem ao nível do desempenho, e portanto do<br />
comportamento.<br />
A grande inovação, contudo, ocorreu com os estudos de seleção em laboratório.<br />
Esse método permite a replicação de populações em ambientes que foram alterados<br />
propositadamente e de maneira controlada. Um dos grandes problemas de delineamento<br />
experimental (planejamento dos experimentos) em campo é a replicação dos dados.<br />
Experimentos sem réplica são experimentos pouco precisos, ou seja, os valores obtidos<br />
representam mal os valores reais para as variáveis consideradas. Além disso, no campo<br />
apenas se observa um número limitado de gerações.<br />
Apesar das destacadas vantagens dos estudos de seleção, o ambiente de<br />
laboratório não reproduz a complexidade da natureza e os animais utilizados como modelos<br />
para esses estudos (Drosophila, E. coli e C. elegans) não são os tradicionais da área da<br />
fisiologia comparativa. Esses modelos são preferidos em laboratório por se reproduzirem<br />
rapidamente, aumentando o número de gerações relativamente rápido, e cuja manutenção<br />
em condições laboratoriais é mais fácil. Mesmo com essas ressalvas, os estudos de seleção<br />
proporcionam condições fantásticas para o estudo de evolução:<br />
315
V Curso de Inverno<br />
• Análise rigorosa de hipóteses, com a implementação de controles e réplicas;<br />
• Minimização do efeito de deriva genética, pela manutenção de populações de grande<br />
tamanho;<br />
• Preservação dos organismos ancestrais (no caso de bactérias, com nitrogênio<br />
líquido) para mensuração de seu sucesso reprodutivo em direta competição com os<br />
descendentes.<br />
Os fisiólogos americanos Bennet e Lenski (1999) consideram que o diferencial dos<br />
estudos de seleção é sua habilidade de testar hipóteses gerais sobre padrões e<br />
conseqüências da adaptação evolutiva. Através dessa técnica, pode-se testar previsões<br />
sobre hipóteses gerais da fisiologia, como a existência de restrições e compromissos<br />
evolutivos, o surgimento de uma adaptação, além de haver a possibilidade de esmiuçar as<br />
vias fisiológicas envolvidas nas mudanças, identificando alterações nos mecanismos.<br />
A revolução conceitual e tecnológica que ocorreu na área de fisiologia evolutiva abriu as<br />
portas para o estudo de novas questões, fundamentais na fisiologia, de maneira rigorosa.<br />
Voltando à citação inicial de Darwin, percebemos que a idéia da seleção natural como único<br />
processo evolutivo perdurou por muito tempo (apesar do próprio Darwin admitir a existência<br />
de outros processos). Com a renovação conceitual e tecnológica a partir de 1970, a<br />
fisiologia evolutiva passou a enxergar outros processos evolutivos - como deriva genética,<br />
restrição e compromisso, e dar a devida importância a eles como agentes ou limites da<br />
evolução.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Bradley, T and WE Zamer (1999) Introduction to the Symposium: What is Evolutionary Physiology?<br />
American Zoologist 39: 321-322.<br />
Garland T and PA Carter (1994) Evolutionary Physiology. Annual Review in Physiology 56: 579-621.<br />
Feder, ME, AF Bennet and RB Huey (2000) Evolutionary Physiology. Annual Review in Ecology<br />
and Systematics. 21: 315-341.<br />
Gould, SJ and RC Lewontin (1979) Tha sprandels os San Marco and the Panglossian paradigm:<br />
a critique of the adaptationist programme. Proceedings of the Royal Society of London B<br />
205: 581-598.<br />
Bennet, AF and RE Zamer (1999) Experimental Evolution and Its Role in Evolutionary<br />
Physiology. American Zoologist 39: 346-362.<br />
Revisado por José Eduardo Pereira Wilken Bicudo<br />
316
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Análise de Dados Comparativos<br />
Fábio de Andrade Machado<br />
Museu de Zoologia da USP<br />
f.machado@usp.br<br />
Tatiana Hideko Kawamoto<br />
Laboratorio de Ecofisiologia e Fisiologia<br />
Evolutiva<br />
tatika@usp.br<br />
O termo Métodos Comparativos define atualmente um conjunto de práticas e<br />
técnicas descritivas e analíticas usadas na comparação entre espécies. A aplicação desses<br />
métodos é mais conhecida em estudos de biologia<br />
evolutiva, como as inferências filogenéticas<br />
(Amorim, 1997) e nos estudos sobre adaptações<br />
(Harvey & Pagel, 1991), muito comuns nas áreas<br />
de fisiologia comparativa e evolutiva.<br />
Historicamente, o conhecimento sobre os<br />
organismos vivos sempre se pautou em<br />
comparações. Desde a antiguidade, mais<br />
notadamente nos escritos de Aristóteles,<br />
definições e classificações foram criadas com<br />
base em comparações entre diferentes<br />
organismos. Ao publicar “A Origem das Espécies”<br />
em 1859, Darwin revolucionou o pensamento científico, na época ainda baseado no<br />
essencialismo aristotélico que havia perdurado por muitos séculos, transformando-o em<br />
pensamento evolutivo. É através da análise comparativa de diversas espécies e da<br />
qualidade transicional de diversos caracteres que Darwin fez sua hipótese a respeito da<br />
descendência comum com modificação. A característica naturalística dos métodos<br />
comparativos tem, assim, fortes laços com a proposição da teoria evolutiva de Darwin como<br />
maneira de estudar os padrões e processos encontrados na natureza. O olhar comparativo,<br />
entretanto, sempre permeou o modo dos cientistas interpretarem o mundo. Mesmo antes de<br />
Darwin, em 1798, o Barão Georges Cuvier desenvolveu o Princípio de Correlação de Partes<br />
que através de comparações anatômicas, mesmo sob uma perspectiva não-evolutiva,<br />
permitiram a reconstrução eficaz de diversas espécies fósseis a partir de materiais<br />
extremamente fragmentados. Apesar de não ser usado para a finalidade original, a idéia de<br />
correlações entre partes elaborada por Cuvier ainda hoje faz parte das técnicas aplicadas à<br />
análise de estrutura dos organismos.<br />
Figura 1 - Composição dos elementos<br />
ósseos dos membros anteriores: (A)<br />
humanos, (B) morcegos, (C) baleias e (D)<br />
cavalos.<br />
A concepção atual de biologia moderna apóia-se fortemente na metodologia<br />
comparativa quando o assunto tem enfoque evolutivo. O grande geneticista e um dos<br />
317
V Curso de Inverno<br />
principais articuladores da Teoria Sintética Theodosius Dobzhansky, em uma resposta às<br />
críticas infundadas contra a teoria evolutiva, escreveu um artigo intitulado “Nada em biologia<br />
faz sentido exceto à luz da evolução” (Dobzhansky, 1973), no qual aponta a evolução como<br />
a teoria unificadora da biologia. De fato, se toda a biologia se apóia em um alicerce<br />
evolutivo, o método comparativo é o que sustenta este alicerce, pois é ele que reúne as<br />
metodologias necessárias para se testar qualquer tipo de hipótese evolutiva.<br />
Em estudos de biologia evolutiva é procedimento comum “dividirmos” os organismos<br />
de interesse em partes ou caracteres, sejam estas “partes” comportamentos, funções<br />
metabólicas, aspectos morfológicos, entre outros. Tais caracteres isolados não<br />
necessariamente apresentam significado biológico (sensu Wilkinson, 1995), pois não<br />
correspondem a uma única unidade biológica válida (Lewontin, 1970; Hull, 1980). O sistema<br />
circulatório e o coração são exemplos de unidades biológicas básicas. Para entendermos<br />
melhor esse conceito, vamos avaliar um outro exemplo. Se quisermos estudar a variação<br />
dos tamanhos de cada dígito (dedo) em diversas espécies de mamíferos podemos fazê-lo,<br />
mesmo que esta informação não seja totalmente isolada e livre de efeitos de covariação.<br />
Considerando que o tamanho de dígitos varia em amplitude entre diferentes mamíferos,<br />
podendo ser grandes em primatas e, de modo extremo, em morcegos (Figura 1.A-B), muito<br />
reduzidos em baleias (Figura 1.C) ou ausentes em espécies de ungulados (Figura 1.D),<br />
medir independentemente cada um dos dígitos pode fazer sentido. Entretanto, morcegos<br />
maiores previsivelmente, possuirão dígitos maiores que morcegos menores como resultado<br />
simples de efeito alométrico, o que nos faz crer que tais medidas não são, de fato,<br />
totalmente desvinculadas. Mesmo assim, a divisão dos organismos nestes caracteres é<br />
válida, mesmo que aparentemente arbitrária, pois permite a investigação da variação nos<br />
padrões biológicos relacionando-os a estruturas que podemos reconhecer e mensurar. O<br />
cuidado que precisamos tomar aqui é não esquecer que cada caráter isolado não é um fator<br />
biológico único, e possíveis correlações devem ser consideradas nas análises e<br />
interpretações de estudos comparativos. Veremos mais adiante algumas formas de lidar<br />
com essas correlações.<br />
Podemos dividir arbitrariamente os métodos comparativos em dois quanto ao<br />
tratamento de caracteres. A primeira abordagem é mais clássica, tendo sido utilizada desde<br />
Carl Linnaeus em seu Systema Naturae, e consiste basicamente na identificação e<br />
descrição de caracteres que compõem um organismo. Estes caracteres são comumente<br />
codificados de maneira discreta (mas não necessariamente), ou seja, em categorias<br />
distintas. Podemos ver um exemplo disso na própria evolução humana, na qual apenas o<br />
Homo sapiens dentre todos os hominídeos não apresenta crista supra-ocular marcada. A<br />
outra abordagem é comumente utilizada em caracteres contínuos que apresentam valores<br />
ou estados que se sobrepõem entre espécies. Por exemplo, se medirmos a massa<br />
corpórea, podemos esperar que este valor seja igual entre, digamos, gatos e cães, apesar<br />
de possivelmente estas duas espécies apresentem tendências centrais (médias) distintas.<br />
318
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Tal abordagem poderia ser chamada de<br />
“populacional”, uma vez que leva em conta<br />
polimorfismos (poli - múltiplas morfia - formas de<br />
um caracter) entre grupos de indivíduos nas<br />
populações. O fato do rinoceronte negro<br />
apresentar dois chifres e de o rinoceronte indiano<br />
apresentar apenas um evidentemente não requer<br />
uma abordagem populacional, pois apenas um<br />
indivíduo (de cada espécie) contém toda a<br />
informação necessária para distinguí-las (apesar<br />
do conhecimento de outros indivíduos ser<br />
necessário para fazer este tipo de inferência).<br />
Figura 2 - Distribuições normais com<br />
diferentes parâmetros: média (µ) e desvio<br />
Entretanto, quando comparamos rinocerontes padrão (σ). Preta (µ=0; σ=1), vermelha (µ=1;<br />
brancos e negros notamos que poderiam diferir σ=1), cinza (µ=0; σ=0,25).<br />
quanto ao comprimento total de seus chifres, e<br />
que sua variação ocorre em função de diversas características ambientais e genéticas.<br />
Sendo assim, a medida do chifre de apenas um exemplar apresenta uma grande imprecisão<br />
que aumenta a possibilidade de generalizar a informação erroneamente. Seria como medir<br />
um homem pigmeu e chegar a conclusão que seres humanos são indistintos em termo de<br />
tamanho dos chimpanzés, ignorando totalmente a ampla diversidade humana. É válido notar<br />
que tais abordagens diferem quanto ao tratamento do caracter e não sua natureza. De<br />
forma similar, caracteres discretos podem apresentar variação populacional, como, por<br />
exemplo, na tentativa de distinguir duas populações humanas quanto ao sistema sanguíneo<br />
ABO, tendo que ser avaliados, assim como outros caracteres estruturados<br />
populacionalmente, de forma estatística.<br />
NOÇÕES DE ESTATÍSTICA<br />
Estatística é o campo matemático ligado à coleta, análise, interpretação e<br />
apresentação de informação que chamamos de dados. Historicamente, a primeira<br />
abordagem estatística é a que conhecemos como censo que procura descrever a população<br />
em sua totalidade. Uma segunda forma de levantarmos dados estatísticos é através de<br />
amostragens representativas do fenômeno de interesse. Dentro dessa segunda abordagem,<br />
muitas vezes as constatações de diferenças entre as amostras não é clara (p.e. há alguma<br />
sobreposição de intervalo de confiança das duas populações dos organismos comparados).<br />
Nestes casos se faz necessária a aplicação de procedimentos que permitam uma decisão, o<br />
mais objetiva possível, a respeito da existência de diferenças significativas entre as<br />
amostras. Assim sendo, a estimativa de parâmetros estatísticos destas populações, como<br />
médias e variâncias, nos fornecem poderosas ferramentas para avaliar as diferenças entre<br />
319
V Curso de Inverno<br />
grupos e nos dá base para inferências científicas. Quando usamos estatística, normalmente<br />
temos que entender um pouco sobre distribuições. Na concepção frequentista de estatística<br />
o que fazemos é utilizar um modelo de distribuição de dados para, de certa forma, simplificar<br />
nossas análises utilizando parâmetros de distribuição, calculados a partir dos dados, e não<br />
os dados em si. O que estamos comparando, no final, não são os dados brutos coletados e<br />
sim modelos de distribuição destes dados dentro de uma lógica de tendência central de<br />
valores (média) à qual está associada a uma<br />
dispersão própria (variância). Quando falamos de<br />
dados biométricos (ou seja, dados biológicos<br />
mensuráveis) normalmente falamos de<br />
informações contínuas que possuem um certo<br />
padrão que nos permite inferir uma distribuição<br />
normal, que é bem representada por apenas dois<br />
parâmetros descritores, a média e a variância<br />
(Figura 2). Tais parâmetros não são puramente<br />
abstratos e podem ser facilmente compreendidos<br />
em termos biológicos. A média (µ) de uma<br />
população de dados, em uma distribuição normal,<br />
pode ser interpretada como o fenótipo mais<br />
freqüente, ou em outras palavras, aquele que<br />
você espera encontrar com maior freqüência em<br />
seu grupo. Já variância (σ²) pode ser entendida como uma medida de dispersão dos dados<br />
ao redor desta média, ou seja, o quanto os pontos obtidos desviam da média. As causas<br />
desta dispersão podem ser muitas, desde variação populacional real até erro de<br />
amostragem, mas raramente a natureza exata destas causas é relevante (a não ser que<br />
algum fator de variação seja exatamente o objeto de estudo).<br />
Figura 3 - Exemplo de 5 grupos com variâncias<br />
intra-grupos iguais (σ²=25) e médias distintas.<br />
Discutiremos brevemente, a seguir, duas das principais técnicas estatísticas<br />
utilizadas em biologia: a analise de variância e a regressão linear. Ambos os métodos<br />
pertencem a uma família de análises chamada de modelos lineares gerais (General Linear<br />
Models). São assim chamados, pois partem do pressuposto que as variáveis em estudo<br />
variam de maneira linear, ou seja, aditiva em função dos fatores causais (ou seja, o efeito de<br />
cada fator pode ser somado para a obtenção do efeito geral). Estes modelos são os mais<br />
simples e serão explicados em sua forma univariada (ou seja, com apenas uma variável).<br />
Consulte Sokal & Rohlf (1995) e Zar (2007) para mais informações com enfoque biológico.<br />
ANOVA: A análise de variância univariada foi um método concebido por Fisher nas<br />
décadas de 1920 e 30 para avaliar simultaneamente as médias de uma dada variável entre<br />
diferentes grupos, sem incorrer no acúmulo de Erro tipo I (rejeitar a hipótese nula quando<br />
ela é verdadeira) ao realizamos comparações de diversos grupos par-a-par. O princípio é<br />
320
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
muito simples: você avalia a diferença estatística entre dois grupos averiguando se a<br />
variância dentro dos grupos é maior do que a entre-grupos (Figura 3). Se existe diferença<br />
entre as médias dos grupos, a variância inter-grupos será a variância total menos a<br />
variância intra-grupo. Note que só com a ANOVA não podemos saber onde está exatamente<br />
a diferença, sendo necessária a aplicação<br />
de testes posteriores.<br />
Regressão linear: Quando queremos<br />
analisar duas variáveis simultaneamente,<br />
avaliando a relação entre elas, estamos<br />
falando de técnicas de regressão.<br />
Intuitivamente o que tentamos fazer é obter<br />
uma reta que “passa” por uma nuvem de<br />
pontos (composta por seus dados), de<br />
maneira que esta reta se ajuste da melhor<br />
froma sobre seus dados (Figura 4). A<br />
regressão linear é muito utilizada para<br />
observar as relações causais entre fatores<br />
biológicos, possibilitando poder de previsão, uma vez que a reta ajustada possui uma<br />
formula que pode ser extrapolada para casos não observados. Por exemplo, se já temos a<br />
equação da reta obtida pela regressão linear da relação entre massa corpórea e consumo<br />
de oxigênio basal de dada espécie, podemos estimar de maneira indireta o consumo de<br />
oxigênio basal através da massa corpórea do novo indivíduo estudado.<br />
Estes métodos possuem premissas muito específicas que devem ser levadas em<br />
conta quando testamos qualquer hipótese científica. A primeira premissa óbvia é a de<br />
homogeneidade de variâncias (mesmo tamanho da variância) dentro da população. Isso é<br />
mais claro em ANOVA, uma vez que utilizamos apenas um parâmetro de variância intragrupo<br />
no teste. Se há diferenças de variância intra-grupo, no final da ANOVA não temos<br />
como saber se o teste detectou a diferença entre variâncias ou entre as médias. Entretanto,<br />
sabemos que normalmente nossos grupos de estudo apresentam variâncias distintas.<br />
Mesmo assim, há procedimentos em que podemos corrigir a amostragem de maneira a<br />
podermos aplicar o teste, e assim distinguir claramente o resultado (mais informações Sokal<br />
& Rohlf 1995 e Zar 2007). Existem, entretanto, premissas que não podem ser relevadas<br />
quando analisamos dados comparativos e a principal delas é a da independência dos<br />
dados.<br />
Figura 4 - Relação linear entre duas variáveis<br />
hipotéticas. O tracejado ilustra a reta com equação<br />
estimada pela regressão linear. A estimativa dos<br />
parâmetros minimiza a distância quadrada entre a<br />
reta e os pontos que representam os dados.<br />
Quando avaliamos dados populacionais de forma estatística esperamos que a<br />
inferência estatística seja realizada e sustentada por múltiplas fontes independentes de<br />
evidência. Sendo assim, você não poderia medir a taxa metabólica de um mesmo homem<br />
varias vezes e dizer que a média da sua amostra é uma boa estimativa da população<br />
humana, pois há um viés amostral. De forma análoga, se avaliamos indivíduos quanto à<br />
321
V Curso de Inverno<br />
capacidade de digerir lactose, mas não notarmos que 98% de nossa amostra é aparentada<br />
entre si (irmãos, primos, sobrinhos, tios, etc) nossos resultados apresentarão um forte viés,<br />
uma vez que sabemos que tal traço é fortemente influenciado pela genética. Quando<br />
avaliamos espécies distintas temos um caso especial disso. Tal problema é mais grave<br />
quando avaliamos mais de duas espécies, pois as relações de parentesco podem ser mais<br />
complexas e hierarquicamente estruturadas em filogenias.<br />
FILOGENIAS<br />
Inferência filogenética pode ser definida como o estudo comparativo das espécies ou<br />
grupos de espécies com o intuito de inferir padrões de parentesco entre eles. A taxonomia,<br />
com seu caráter puramente classificatório de um mundo essencialista passou, com o<br />
advento da teoria de descendência com modificação, a transformar-se em sistemática<br />
filogenética e a ter como objetivo último entender a relação de parentesco entre as formas<br />
de vida ao longo do tempo evolutivo (Hunter, 1998). A Sistemática Filogenética, proposta por<br />
Willi Hennig na década de 1950, é o estudo filogenético de grupos aparentados com a<br />
finalidade de testar a validade de grupos naturais (monofilia) e sua taxonomia. Vários<br />
métodos de Sistemática Filogenética foram desenvolvidos dentre os quais o dominante<br />
atualmente é a Cladística. A representação básica de uma hipótese filogenética é o que<br />
chamamos de árvore filogenética composta de uma topologia (espécies ou grupos de<br />
interesse), ramos e nós (representam ancestrais hipotéticos). A cladística baseia-se em<br />
critérios de similaridade para propor estas árvores, mas não em similaridade absoluta e sim<br />
compartilhada por clados. Por exemplo, apesar de hienídeos parecerem com canídeos em<br />
termos gerais, existem características que apontam que hienas são membros do grupo dos<br />
felídeos e viverrídeos. Tais características (sinapomorfias) definem grupos monofiléticos<br />
(que possuem um ancestral comum) e são corroboradas por informação concordante<br />
proveniente de outros caracteres ou fontes de dados do conjunto de organismos em estudo.<br />
É importante sempre lembrar que uma filogenia é uma hipótese de parentesco e sempre<br />
pode mudar, conforme novas evidências surgem. A escolha de uma boa filogenia em que se<br />
irá trabalhar segue critérios de estabilidade de acordo com sua pouca ou nenhuma alteração<br />
após alguns anos de sua proposição.<br />
MÉTODOS FILOGENÉTICOS COMPARATIVOS<br />
Como já colocado, a estruturação hierárquica das espécies gera um certo grau de<br />
dependência (expresso na hipótese filogenética) que se deve ter em mente quando<br />
testamos hipóteses em abordagens comparativas. A pergunta é: devemos sempre nos<br />
preocupar com tal dependência? A resposta obviamente é não. Por exemplo, quando<br />
realizamos uma análise filogenética, levar em conta a dependência seria totalmente<br />
infrutífero, pois destruiria exatamente o propósito da análise, que é testar e corroborar<br />
exatamente estas relações de dependência. Outro exemplo são estudos biomecânicos,<br />
322
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
onde o resultado da força aplicada pela mandíbula de um crocodilo pouco tem a ver com a<br />
filogenia subjacente, mas sim com tamanho da mandíbula, número de fibras musculares e<br />
etc. Mas quando buscamos abordagens evolutivas, a dependência de dados pode ofuscar<br />
completamente a questão.<br />
Quando tentamos correlacionar duas variáveis buscamos identificar fatores causais<br />
na natureza. Por exemplo, se tentarmos correlacionar em diapsidas a endotermia e a<br />
presença de penas, fica óbvio que estamos tentando verificar se a presença de penas está<br />
vinculada à endotermia. Entretanto, todos os diapsidas atuais que são endotermos possuem<br />
penas, o que pode parecer prova de que os fatores estão relacionados, mas não é. Seria o<br />
equivalente a dizer que vertebrados possuem olhos complexos e endosqueleto, logo estas<br />
duas características estão ligadas. Correlação evolutiva não é correlação funcional. Apesar<br />
dos vertebrados terem desenvolvido ossos e olhos, estes caracteres possuem funções<br />
distintas e provavelmente estão presentes em vertebrados simplesmente por estarem<br />
ambas no mesmo ancestral comum. Chamamos este padrão de Pseudo- repetição<br />
Filogenética.<br />
Quando nos deparamos<br />
com pseudorepetição, a principio,<br />
não invalidamos as análises<br />
estatísticas. Se tivermos a<br />
informação sobre a dependência<br />
dos dados podemos, de certa<br />
maneira, corrigir nossos testes para<br />
seu efeito. Na pseudorepetição<br />
filogenética a informação sobre<br />
dependência está codificada nas<br />
filogenias, permitindo inferir o efeito<br />
de tal estrutura nos dados e testar<br />
hipóteses. É importante ressaltar<br />
que as filogenias usadas como base para inferir a estrutura de dependência dos dados<br />
devem ser obtidas de forma independente, ou seja, com uma matriz de dados diferente<br />
daquele que está sendo comparado. Por exemplo, adaptações comportamentais podem ser<br />
testadas com filogenias baseados em morfologia, já adaptações morfológicas não podem<br />
ser analisadas com essa mesma filogenia. O conjunto de métodos utilizados para esta<br />
finalidade são chamados Métodos Filogenéticos Comparativos e a seguir veremos dois<br />
exemplos: Contrastes filogenéticos e Autovetores Filogenéticos.<br />
Figura 5 - Exemplo de aplicação do método de contrastes<br />
filogenéticos. A, B e C representam a topologia, X é o<br />
ancestral hipotético calculado como a média de A e B. Logo<br />
abaixo, os valores obtidos nos dois contrastes.<br />
CONTRASTES FILOGENETICOS<br />
Dentre as soluções propostas, a de Felsenstein (1985) é, de longe, a mais popular<br />
devido à maior simplicidade de sua aplicação. Carvalho et al. (2005) demonstram que o<br />
323
V Curso de Inverno<br />
artigo de 1985 já se tornou um clássico dos estudos de biologia evolutiva tendo sido citado<br />
por 1462 artigos no período de 1985 e 2002. Mesmo após 23 anos de existência, a<br />
expansão da influência do método de Contrastes Independentes ainda está aumentando e o<br />
número de trabalhos que aplicam o método cresce a cada ano.<br />
Felsenstein baseou-se na lógica de que grupos-irmãos divergem a partir de um<br />
mesmo momento no tempo, e por isso, a comparação entre eles não sofre dependência da<br />
estrutura hierárquica. Como a relação entre estes dois grupos é independente, o que<br />
fazemos é um contraste, ou seja, medimos a diferença entre os grupos-irmãos ao longo da<br />
filogenia, considerando o tempo de divergência dado pelo tamanho dos ramos (desviopadrão).<br />
O procedimento é executado de “cima para baixo”, começando no topo seguindo em<br />
direção à raiz, sempre identificando os grupos-irmãos. O número de contrastes resultantes é<br />
N-1, onde N é o número de espécies do clado analisado. Por exemplo, se tivermos 21<br />
espécies dentro de uma filogenia teremos como resultado 20 contrastes independentes.<br />
Outra premissa estatística importante, vista acima no item sobre estatística, é que os dados<br />
tenham distribuições idênticas para que sejam comparáveis. Quando olhamos para a<br />
filogenia percebemos que o tempo de divergência entre os ramos deve ser considerado, já<br />
que quanto mais antiga a divergência entre os ramos, maior a diferença esperada para os<br />
grupos-irmãos. Para resolver esse problema usamos um fator de correção, ou<br />
padronização, onde dividimos cada contraste com a raiz quadrada da soma do tamanho dos<br />
ramos (Figura 5). Como a comparação entre grupos-irmãos pode ser considerada um dado<br />
independente e estabelecendo-se distribuições idênticas através da padronização dos<br />
contrastes, cada contraste pode ser considerado um ponto independente passível de ser<br />
usado em métodos estatísticos convencionais, como regressões, correlações, entre outros.<br />
Agora, lembram-se de que a maior parte das inferências filogenéticas que temos<br />
disponíveis para que possamos usar em nossos contrastes são produzidos através de<br />
técnicas cladísticas, mais precisamente baseadas em morfologia? Essas filogenias não<br />
produzem ramos com relação proporcional de tempo, ou seja, não informam quanto ao<br />
tempo de divergência de cada contraste. O que fazer então? Podemos aplicar tamanho de<br />
ramos arbitrários. Apesar de parecer estranho, simulações em computador mostram que<br />
mesmo esse procedimento mais arbitrário apresenta resultados superiores e mais robustos<br />
do que, alternativamente, desconsiderar totalmente a estrutura filogenética subjacente. Ao<br />
que parece, os método de Contrastes Independentes é pouco sensível a erros de tamanho<br />
de ramos (Diaz-Uriarte & Garland, 1996).<br />
AUTOVETORES FILOGENÉTICOS<br />
O método de regressão de Autovetores Filogenéticos (RAF) foi originalmente<br />
proposto para medir a inércia filogenética de caracteres contínuos (Diniz-Filho et al,1998). A<br />
inércia filogenética pode ser definida como a proporção de variação fenotípica que está<br />
324
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
filogeneticamente estruturada (Diniz-Filho, 2000), ou seja, o quanto a filogenia pode prever o<br />
fenótipo. Por sua simplicidade e plasticidade o método foi estendido para a análise de<br />
correlação de elementos fenotípicos em um contexto filogenético (Diniz-Filho et al, 1999,<br />
2000). O princípio é muito simples: se pudéssemos codificar a filogenia como um caracter<br />
contínuo poderíamos usar este caracter como uma variável preditora (independente) em<br />
uma análise simples de<br />
regressão (como na figura<br />
4). Assim teríamos<br />
valores esperados pela<br />
filogenia (na reta de<br />
tendência) e desvios<br />
desse valor esperado (os<br />
r e s í d u o s ) . A s s i m<br />
d e s d o b r a r í a m o s a<br />
variância fenotípica em<br />
d o i s f a t o r e s , u m<br />
filogenético, proveniente da estrutura filogenética, e outro específico (Diniz-Filho, 2000).<br />
Figura 6 - A filogenia pode ser interpretada como um conjunto de distancias par-a-par entre os taxa,<br />
formando uma estrutura hiperdimensional com n dimensões (A). Como não existe um sistema de<br />
coordenadas pré-definido, qualquer rotação desta hiperestrutura mantêm as relações de distância (B).<br />
Assim, usamos técnica de Coordenadas Principais (C) que cria n eixos de modo que o primeiro novo<br />
eixo resuma a maior parte da variação e todos os seguintes sejam ortogonais (com ângulo de 90º) a<br />
ele, resumindo cada vez menos variação, criando um sistema de coordenadas arbitrário (D).<br />
O primeiro passo é, então, codificar a filogenia em forma de caracter. Para tal<br />
utilizamos uma técnica análoga à técnica de Componentes Principais chamada<br />
Coordenadas Principais, que transforma a informação filogenética na forma de distâncias<br />
filogenéticas (medido de alguma forma, seja distancia molecular, seja numero de passos<br />
entre nós, seja numero de nós, etc) entre cada par de espécies (ver figura 6). Uma vez<br />
extraídos estes novos eixos e (conseqüentemente) novas variáveis que codificam a filogenia<br />
do grupo, tais variáveis podem ser usadas em uma análise de regressão múltipla, que difere<br />
da univariada por ter diversas variáveis preditoras. Na verdade, no caso de RAF, o que<br />
temos é uma única variável preditora complexa, a filogenia.<br />
Apesar de parecer mais complexa, a regressão múltipla pode ser visualizada de<br />
maneira idêntica à regressão univariada, apresentando valores previstos e resíduos<br />
(variação não explicada pelo modelo) (figura 4). Assim sendo, se somarmos todos os<br />
resíduos e dividirmos pela variância total, encontraremos uma porcentagem NÃO explicada<br />
pela RAF e, conseqüentemente, achamos a porcentagem que é de fato explicada. Em<br />
outras palavras, se seu resíduo compõem 13% da variância total, então quer dizer que seu<br />
modelo de regressão (o RAF) explica 87% da variância. Esta variância explicada é o que<br />
325
V Curso de Inverno<br />
chamamos de inércia filogenética, uma vez que é o quão ajustado à uma dada filogenia o<br />
fenótipo está. Os resíduos podem ainda ser usados para testar diferença entre grupos<br />
através de ANOVA ou utilizados em regressões, isolando o efeito da filogenia nos caracteres<br />
avaliados.<br />
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326
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Fisiologia Evolutiva e Reprodução:<br />
o exemplo da evolução da viviparidade em Squamata<br />
Renata Brandt Nunes<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
renata.brandt@gmail.com<br />
Justifico a escolha deste tema para o módulo de Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
por 3 motivos. O primeiro deles é que nós humanos somos vivíparos e temos uma<br />
curiosidade natural sobre a nossa própria reprodução. Em segundo lugar, o modo de<br />
reprodução está intimamente relacionado à fisiologia, ecologia e comportamento de uma<br />
espécie. Por último, a viviparidade é recorrente na história dos vertebrados, com inúmeras<br />
origens distintas (Blackburn, 1999), o que levanta questões evolutivas e funcionais<br />
fascinantes.<br />
Muitas características dos Squamata os tornam o melhor modelo para as<br />
tentativas de se entender a evolução da reprodução mamífera. A maior parte das origens da<br />
viviparidade ocorreu recentemente e em níveis taxonômicos inferiores, o que permite uma<br />
potencial reconstrução da transição evolutiva (Blackburn, 1999). Além disso, por serem<br />
amniotas, suas membranas fetais são homólogas aquelas que contribuem para a placenta<br />
mamífera. Entretanto, é necessário cautela ao se aplicar as conclusões de estudos em<br />
sistemas reptilianos ao sistema mamífero, pois os Squamata são únicos quanto à fisiologia,<br />
apresentam outras características únicas (como clivagem do vitelo isolando parte de sua<br />
massa), além da seqüência pela qual a viviparidade e placentação evoluíram nos dois<br />
grupos ser diferente (Blackburn, 2006).<br />
Numa revisão recente, Blackburn (2006) argumenta que esse tema é recorrente na<br />
literatura e em propostas de financiamento, mas que a discussão de tais trabalhos nunca<br />
traça um paralelo entre a viviparidade de Squamata e Mamíferos, e que sempre fica uma<br />
promessa de estudo futuro. Minha opinião é que esse é um fenômeno interessante demais<br />
para ser justificado somente pelo entendimento da viviparidade nos mamíferos, sendo<br />
justificado por si só. Nesta última revisão citada, você encontrará ainda um pequeno<br />
histórico das pesquisas nesta área.<br />
Modos de reprodução<br />
Neste texto, como na maioria dos artigos científicos da área, seguiremos a<br />
terminologia proposta por Shine em 1985. São ovíparos os animais que fazem a postura de<br />
ovos com casca. Em contrapartida, os vivíparos são os animais dos quais os neonatos<br />
nascem ou que depositam ovos recobertos por um fino saco membranoso do qual emergem<br />
os neonatos em até alguns dias.<br />
Embora a maioria dos Squamata seja ovípara, a viviparidade evoluiu pouco mais de<br />
327
V Curso de Inverno<br />
100 vezes no clado (Blackburn, 1999; Blackburn, 2006; Shine, 1985). Apesar dessa maioria<br />
ovípara, a quase totalidade das espécies apresenta uma característica comum conservada,<br />
a retenção uterina prolongada dos ovos (Shine & Thompson, 2006). Dentro da diversidade<br />
de espécies ovíparas de cobras e lagartos, as fêmeas atrasam a postura por cerca de 1/3 do<br />
total do período de desenvolvimento embrionário (Calderon-Espinosa et al., 2006), que na<br />
tabela de desenvolvimento mais utilizada (Dufaure & Hubert, 1961) corresponde ao estágio<br />
30 (sistema circulatório funcional). Toda regra tem exceção e os camaleões estão entre os<br />
poucos squamata que fazem postura de ovos em estágios iniciais de desenvolvimento<br />
(Andrews & Donoghue, 2004) a exemplo de crocodilos e tartarugas.<br />
Transição para a viviparidade<br />
A viviparidade é um caráter derivado da oviparidade (Lee & Shine, 1998). Algumas<br />
espécies como Lacerta vivipara, Lerista bougainvilli, e Saiphos equalis podem ser tanto<br />
ovíparas quanto vivíparas, e isso sugere que a transição é gradual (Calderon-Espinosa et<br />
al., 2006). Entretanto, a escassez de espécies que realizam a postura de ovos, cujos<br />
embriões estão em estágios intermediários (entre os estágios 33 e 40), sugere que esta<br />
transição ocorre rapidamente ou que formas intermediárias não são adaptativas (Blackburn,<br />
1995). Algumas populações ovíparas de espécies bimodais (aquelas que apresentam os<br />
dois modos reprodutivos) fazem a postura de ovos com embriões em estágio de<br />
desenvolvimento mais avançado que a moda para squamata, o estágio 30 (Andrews &<br />
Mathies, 2000). Nestas espécies bimodais, a extensão do desenvolvimento embrionário<br />
intra-uterino é correlacionada negativamente com a espessura da casca. A espessura da<br />
casca, por sua vez, mais o aumento da vascularização do oviduto, e o desenvolvimento<br />
mais extenso do corioalantóide (ou membrana corioalantóide) são tidos como modificações<br />
morfológicas e fisiológicas associadas com a transição evolutiva da oviparidade para<br />
viviparidade (Andrews, 1997; Heulin et al., 2002).<br />
Lee e Shine (1998) concluíram que a viviparidade está sob restrição filogenética,<br />
pois evoluiu em alguns squamata mas não em tartarugas, archosauros e répteis<br />
sphenodontídeos. Robin Andrews explorou essa hipótese em diversos trabalhos posteriores<br />
com lagartos do gênero Sceloporus, comparando um clado tanto com espécies ovíparas<br />
quanto vivíparas (grupo S. scalaris) com um clado em que todas as espécies são vivíparas<br />
(grupo S. undulatus). Nas espécies ovíparas, foi estudada a capacidade para sustentar o<br />
desenvolvimento embrionário no útero sob condições que inibem a oviposição. Como<br />
conclusão, a evolução da viviparidade no grupo S. undulatus é limitada em razão da<br />
incapacidade dos embriões de continuar o desenvolvimento além do estágio normal de<br />
oviposição (Andrews & Mathies, 2000), com exceção de S. virgatus cujos embriões<br />
continuam o desenvolvimento até o estágio 37 (Andrews, 1997). Ao contrário da maioria das<br />
espécies do grupo S. undulatus, algumas espécies ovíparas do grupo S. scalaris, como S.<br />
scalaris e S. aeneus, e que são próximas a espécies vivíparas, têm a habilidade de<br />
328
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
sustentar a embriogênese in utero até estágios avançados (ao menos o estágio 36 em S.<br />
aeneus e 39.5 em S. scalaris (Mathies & Andrews, 1996).<br />
Num trabalho posterior, também com lagartos Sceloporus (Calderon-Espinosa et al.,<br />
2006), a abordagem mudou para a evolução da retenção dos ovos. Estudando grupo de<br />
lagartos Sceloporus, o grupo S. spinosus que apresentam um ancestral comum recente com<br />
o clado irmão, o grupo S. formosus, que é inteiramente vivíparo, os pesquisadores<br />
hipotetizaram que esses lagartos exibiriam uma capacidade maior para a retenção de ovos<br />
além do estágio normal para Sceloporus ovíparos (estágio 30). As fêmeas desse grupo<br />
exibiram de fato uma maior capacidade de retenção de ovos com continuação do<br />
desenvolvimento intra-uterino dos ovos além do estágio normal de postura. Entretanto, o<br />
grau de desenvolvimento variou dentro das ninhadas, como resultado da morte de embriões<br />
durante a embriogênese. Possíveis fatores foram investigados e a posição e o grau de<br />
lotação dentro do oviduto não estão relacionados à sobrevivência dos embriões. Outros<br />
fatores podem estar relacionados à variação no estágio no qual os embriões morreram<br />
como a heterogeneidade no grau de vascularização do oviduto, permeabilidade da casca do<br />
ovo a oxigênio ou os embriões podem ainda diferir na habilidade de sobreviver ou<br />
desenvolver sob pressão de oxigênio diminuída. Uma conclusão importante é que a alta<br />
mortalidade dos embriões retidos e das fêmeas grávidas sugere que a retenção dos ovos<br />
reduz a aptidão (“fitness”) e que a seleção não favoreceria normalmente essa característica.<br />
Cenários evolutivos<br />
E qual seria o cenário evolutivo que levou ao aparecimento da viviparidade?<br />
A resposta a esta pergunta parece envolver regimes térmicos, temperaturas mais<br />
altas aceleram a embriogênese e podem aumentar a viabilidade da prole. Em razão das<br />
temperaturas corpóreas maternas serem maiores do que as temperaturas dos ninhos em<br />
climas frios, mas não em áreas mais quentes, esta hipótese prediz que a viviparidade é mais<br />
provável de evoluir em áreas frias. Há uma revisão muito boa sobre as diversas hipóteses<br />
para o aparecimento da viviparidade em um dos volumes do Biology of the Reptilia, escrita<br />
por Shine (1985). Ele também apresenta uma análise bem completa dos clados e da<br />
distribuição geográfica de onde a viviparidade apareceu, e apesar de estarmos 20 anos de<br />
trabalhos a frente do que o Shine tinha disponível em 1985, esse é um capítulo que vale<br />
muito a pena ser lido ainda hoje.<br />
A hipótese dos “climas frios” concorda com dados de uma ampla variedade de<br />
táxons, adquirindo o status de ortodoxia (Shine, 1985) sem, no entanto, ser submetida<br />
algum desafio de teste (Mendez-de la Cruz et al., 1998; Hodges, 2004). Alguns estudos<br />
mediram diretamente as vantagens acumuladas devido ao prolongamento da retenção<br />
uterina dos ovos em climas frios (Shine, 2002). Algumas dessas vantagens podem ocorrer<br />
em climas mais quentes, como o tropical, por conta da melhora no desenvolvimento<br />
embrionário resultando da seleção materna por temperaturas mais estáveis (Webb et al.,<br />
329
V Curso de Inverno<br />
2006), em vez de mais altas (hipótese da manipulação materna do Shine). A hipótese de<br />
que a viviparidade evoluiu por benefícios térmicos tem apoio empírico bastante robusto,<br />
apesar de relativamente poucos táxons terem sido estudados (Shine & Thompson, 2006).<br />
Raridade dos estágios intermediários<br />
As pressões seletivas operando nos estágios embrionários de oviposição envolvem<br />
as conseqüências do desenvolvimento in útero contra o ninho, e vão depender, portanto,<br />
das respostas dos embriões a condições alternativas de incubação e como essas respostas<br />
mudam enquanto o desenvolvimento procede. De maneira simplista, os requisitos<br />
fisiológicos mais importantes são: temperaturas apropriadas, umidade e as trocas gasosas.<br />
A embriogênese continua normalmente apenas dentro de uma faixa limitada e<br />
espécie-específica (Shine, 1999). Mudanças dentro dessa faixa podem mudar tanto a taxa<br />
de embriogênese quanto as trajetórias de diferenciação (Shine & Thompson, 2006), o que<br />
significa que características fenotípicas dos squamata, como sexo da prole, cor, tamanho,<br />
forma, nível de atividade e desempenho locomotor (Ji & Brana, 1999; Ji et al., 2002;<br />
Deeming, 2004) são modificadas pela experiência térmica pré-eclosão ou de nascimento. É<br />
importante lembrar que a sensibilidade térmica não é constante ao longo da embriogênese,<br />
sendo mais pronunciada no começo do desenvolvimento (Andrews, 2004). Dessa forma,<br />
retenção por períodos mais prolongados no útero afetaria características fenotípicas<br />
diferentes de embriões retidos por um período menor.<br />
Há poucos dados de como mudanças na temperatura durante o período de<br />
incubação afetam as respostas embrionárias. Do que está disponível, se sabe, por exemplo,<br />
que embriões de Vipera aspis, uma espécie vivípara, nascem mais cedo depois de verões<br />
mais quentes. Altas temperaturas logo após a ovulação aumentaram a contagem de<br />
escamas ventrais (número de segmentos corporais), altas temperaturas no meio da<br />
gestação aceleraram o desenvolvimento e adiantaram o parto, e ainda altas temperaturas<br />
no final da gestação reduziram a freqüência de natimortos (Lourdais et al., 2004).<br />
Os embriões, assim como todos os organismos aeróbios, precisam obter oxigênio e<br />
eliminar gás carbônico. O gás carbônico se difunde mais rapidamente através da casca do<br />
ovo do que o oxigênio (Deeming & Thompson, 1991) razão pela qual se acredita que o<br />
oxigênio seja mais limitante ao se considerar custos e benefícios da retenção uterina de<br />
ovos (Andrews & Mathies, 2000). É importante lembrar ainda que o oxigênio difunde-se 4<br />
ordens de magnitude mais devagar na água que no ar. No útero, os poros da casca do ovos<br />
estão preenchidos por fluido, o que faz com que a condutância da casca seja baixa, mas em<br />
estágios iniciais de desenvolvimento a demanda do embrião por oxigênio também é mais<br />
baixa (Vleck & Hoyt, 1991). Em seu curso normal, logo após a postura, a casca do ovo seca<br />
e os poros passam a ser preenchidos por ar, facilitando a troca gasosa no momento anterior<br />
ao grande crescimento exponencial na demanda energética do embrião, quando este está<br />
rapidamente aumentando de massa (Vleck & Hoyt, 1991).<br />
330
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
A estrutura envolvida na troca gasosa do embrião com o meio é o córion, que se<br />
funde ao alantóide, e cresce em íntima associação à casca dos ovos. O corioalantóide<br />
cresce junto do embrião, ao menos em Bassiana duperreyi (Stewart & Thompson, 1996),<br />
não atinge seu tamanho máximo até o estágio 35/36. Mas a modulação das trocas gasosas<br />
pode também ser realizada pelo embrião, através de mudanças na afinidade do sangue pela<br />
molécula de hemoglobina (Ingermann et al., 1991), ou aumentando a capacidade carreadora<br />
do sangue (Warburton et al., 1995).<br />
Além de oxigênio, os embriões de squamata também precisam de água para um<br />
grande número de processos fisiológicos (Packard, 1991). Em contraste com ovos de outros<br />
grupos de répteis como tartarugas e crocodilos, cujo conteúdo inicial de água corresponde a<br />
78% (Belinsky et al., 2004), os ovos de squamata contém em média 69%, e 66% se<br />
considerarmos somente os de casca pergaminosa (Belinsky et al., 2004). Os squamata não<br />
dispõem de um reservatório de água como os outros grupos, o albúmen (Tracy & Snell,<br />
1985), e por essa razão a água necessária para completar o desenvolvimento deve vir de<br />
fontes externas. Entretanto, ainda não está claro como ovos e embriões controlam a troca<br />
de água com o substrato, que seria critico para avaliar as pressões seletivas impostas pela<br />
postura em diferentes estágios embrionários. Até agora, sabe-se que a água precisa se<br />
movimentar pela casca, e que esta portanto, seria um componente critico, e que o embrião<br />
teria certa capacidade de manipular o fluxo de água através de gradientes osmóticos ou por<br />
meio de aquaporinas (Andrews & Mathies, 2000).<br />
A casca é um potencial empecilho às trocas gasosas e hídricas dentro do útero. A<br />
casca dos ovos dos squamata é composta por uma membrana orgânica e uma camada<br />
calcificada fina. Um curto período após a ovulação, os ovos seguem para o útero, onde<br />
estão localizadas as glândulas da casca (Thompson et al., 2004), provavelmente envolvidas<br />
com a deposição da camada orgânica (Heulin et al., 2005). A deposição desta camada<br />
acontece momentos depois da fertilização (Demarco, 1988), quando provavelmente os<br />
embriões estão num estágio muito inicial do desenvolvimento. A calcificação ocorre também<br />
no útero (Girling, 2002). O tempo total para a deposição da casca é consideravelmente<br />
maior que as 24 horas necessárias para as aves (Packard & Demarco, 1991). Ovos de<br />
Sceloporus woodi, por exemplo, levam de 12-14 dias para a formação total da casca depois<br />
que chegam ao útero (Palmer et al., 1993). Portanto, algumas espécies ou seguram o<br />
desenvolvimento ou retêm os ovos por um período de tempo maior que o necessário para a<br />
formação completa da casca (Andrews & Mathies, 2000), implicando em uma certa restrição<br />
de trocas ao embrião.<br />
Forças seletivas<br />
Os efeitos da temperatura de incubação nas taxas e trajetórias de desenvolvimento<br />
embrionário provavelmente foram as forças seletivas mais importantes para a transição da<br />
oviparidade para viviparidade entre os squamata (Webb et al., 2006). Tendo em vista que (1)<br />
331
V Curso de Inverno<br />
em áreas mais frias, em razão da termorregulação materna, o oviduto proveria os embriões<br />
com um ambiente mais quente que o ninho; (2) temperaturas mais altas aceleram a<br />
embriogênese na maioria, senão em todo, período de desenvolvimento; (3) a diferença entre<br />
a temperatura média do oviduto e dos ninhos varia de forma consistente com a elevação e<br />
latitude (Shine and Thompson, 2006); é fácil imaginar um cenário onde a seleção natural<br />
favoreceria aumentos na duração da retenção uterina. Outros fatores, que também variam<br />
mais nos ninhos do que nos ovidutos, têm menor probabilidade de conferir alguma<br />
vantagem, pois geralmente variam menos clinalmente e sem padrão (Shine and Thompson,<br />
2006).<br />
Com relação às trocas hídricas, no solo os ovos estão sujeitos a um potencial hídrico<br />
(Ψ) que varia no tempo em razão por exemplo de diferenças na quantidade de chuva<br />
durante o ciclo de incubação (Packard, 1991). A variação de Ψ durante o período de<br />
incubação traz conseqüências ao “fitness” dos neonatos, como aumento do período de<br />
incubação, da taxa de crescimento, sucesso de eclosão e do tamanho dos embriões que<br />
eclodem (filhotes) quando os ovos são incubados em substratos mais úmidos (Ψ maior)<br />
(Packard, 1991). Dessa forma, no estágio inicial de desenvolvimento, os embriões ainda não<br />
dispõem de estruturas específicas para controle de trocas (como o alantóide), sendo<br />
portanto incapazes de sobreviver em ninhos naturais (Shine & Thompson, 2006).<br />
No útero, por sua vez, toda a superfície do ovo está em contato com um ambiente<br />
saturado e de Ψ constante no tempo (Shine & Thompson, 2006). Assim, as fêmeas<br />
reprodutivas devem reter seus ovos até a embriogênese atingir um estágio que garante a<br />
regulação hídrica adequada quando no ninho. A deposição da casca é um processo<br />
contínuo que se estende até o estágio 27 (Palmer et al., 1993) e o ao menos nos scincídeos<br />
Lampropholis guichenoti e Eumeces fasciatus, é entre os estágios 30-31 que o<br />
corioalantóide se estende por todo o embrião (Stewart & Florian, 2000); Stewart and<br />
Thompson, 1996). Então, ambos os mecanismos de controle de trocas hídricas podem estar<br />
insuficientemente formados até esse momento.<br />
Já sabemos que a demanda por gases respiratórios aumenta significativamente após<br />
o estágio 30. A inabilidade de ovos já depositados de realizar trocas gasosas<br />
adequadamente em ambiente saturado sugere que as trocas gasosas dentro do útero úmido<br />
podem ir se tornando problemáticas à medida que o desenvolvimento progride (Shine &<br />
Thompson, 2006). A ampliação na demanda por gases respiratórios impediria o<br />
prolongamento da retenção uterina além do estágio mais comum (o estágio 30 como<br />
sugerido por Shine (1983)? Na literatura, existem respostas contraditórias, até mesmo de<br />
um mesmo autor. Ovos de Sceloporus scalaris forçadamente retidos até o estágio 39.5 não<br />
retardaram o desenvolvimento em relação aos ovos controle (postura no estágio 31-33.5),<br />
não apoiando a hipótese que a postura acontece quando as trocas gasosas in útero não são<br />
mais suficientes para sustentar o desenvolvimento embrionário (Mathies & Andrews, 1996).<br />
332
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Entretanto, em Sceloporus undulatus a disponibilidade limitada de oxigênio in útero parece<br />
agir com uma restrição de desenvolvimento (Andrews, 2002). A favor dessa hipótese<br />
encontram-se ainda a correlação entre a espessura da casca e o estágio de<br />
desenvolvimento embrionário na postura dos ovos de squamatas que apresentam retenção<br />
uterina prolongada (Qualls et al., 1997). Contra os estágios intermediários está o fato da<br />
diminuição na espessura da casca tornar cada vez menos provável a sobrevivência dos<br />
ovos no ninho, pois os ovos se tornam mais vulneráveis a predadores, patógenos e a perda<br />
d’água (Andrews & Mathies, 2000).<br />
Deste modo, Shine e Thompson (2006) imaginam o seguinte cenário para a evolução<br />
da viviparidade em squamata:<br />
• A evolução da retenção uterina prolongada de ovos deve envolver uma<br />
seleção forte na seleção materna de sítios de postura, diminuição da<br />
espessura da casca e traria vantagens imediatas ao prolongamento da<br />
retenção uterina. A retenção uterina por um período cada vez maior reduz a<br />
duração da exposição dos ovos a condições potencialmente desfavoráveis e<br />
letais dos ninhos, mas também necessita cada vez mais do afinamento da<br />
espessura da casca, tornando o ovo cada vez mais sensível ao ambiente do<br />
ninho. Isso cria um ciclo de retro-alimentação positiva.<br />
• Uma vez que a retenção uterina passa do estágio 30 de desenvolvimento<br />
embrionário, o compromisso entre troca gasosa e balanço hídrico (afinamento<br />
da casca) impõem uma seleção forte para o prolongamento da retenção<br />
uterina até cobrir todo o período de desenvolvimento embrionário.<br />
• Desta forma, poucos táxons que passam por esse cenário evolutivo ficam nos<br />
estágios intermediários de retenção.<br />
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V Curso de Inverno<br />
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Revisado por José Eduardo Pereira Wilken Bicudo<br />
336
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Locomoção<br />
Meirielen Caroline da Silva<br />
Laboratório de Ecofisiologia Evolutiva<br />
meirielen@usp.br<br />
Os grupos de seres vivos apresentam diferentes formatos corporais que foram<br />
selecionados ao longo da evolução de modo a tornar os organismos bem-sucedidos em<br />
cada ambiente. Cada uma dessas variações de forma é mantida por tecidos ancorados a<br />
algum sitema de suporte e seu funcionamento é regido por princípios químicos, físicos e<br />
biológicos. Uma das grandes demonstrações do uso desse arranjo é a locomoção, série de<br />
reações e respostas que possibilita o deslocamento do animal, permitindo que este realize<br />
todas as partes de um ciclo de vida (Withers, 1992), sem, contudo, ser vital para a existência<br />
de vida ( vide caso dos organismos sésseis que cumprem todas as fases do seu ciclo sem<br />
realização de deslocamento).<br />
Aparato para locomoção<br />
Fluxo citoplasmático, cílios e flagelos<br />
1 Alguns protozoários e fungos realizam movimentos por meio de um fluxo<br />
citoplasmático muito parecido com a ciclose, fenômeno observado em todos os tipos de<br />
célula. Especulações acerca de uma possível origem dos movimentos em pontos de<br />
diferentes pressões dentro da célula já foram apresentadas, porém, pesquisas apontaram<br />
para a ocorrência de proteínas (actina e miosina) geradoras de força em todas as células<br />
animais, sendo as contrações realizadas por estas a origem mais provável para os<br />
movimentos observados ( Schmidt-Nielsen, 1996).<br />
Cílios e flagelos são estruturas formadas por proteínas (tubulina e dineína) capazes<br />
de realizar movimentos rápidos assimétricos e de ondulação simétrica, respectivamente.<br />
São observados, geralmente, auxiliando na locomoção de animais muito pequenos, mas<br />
podem ser encontrados em animais cujo tamanho é característico para relatos de ocorrência<br />
de musculatura .Sua ação acontece por meio da quebra de ATP, com eficiência variável. No<br />
deslocamento de espermatozóides, por exemplo, a eficiência total da conversão de energia<br />
metabólica em mecânica foi estimada como sendo de 19 a 25% (Rikmenspoel, 1969): bem<br />
semelhante à muscular.<br />
Músculos<br />
Os músculos são formados por fibras musculares que, por sua vez, são constituídas<br />
por miofibrilas. Nestas últimas, encontramos a unidade funcional do músculo, chamada<br />
sarcômero, constituída por filamentos de duas importantes proteínas: actina (filamentos<br />
finos) e miosina (filamentos grossos). O deslizamento destes filamentos protéicos um sobre<br />
o outro com gasto de ATP e geração de força, é o que denominamos contração muscular.<br />
337
V Curso de Inverno<br />
Os músculos podem ser lisos (de contração lenta, são responsáveis pelos movimentos de<br />
órgãos e vasos sangüíneos, por exemplo) ou estriados (esqueléticos, responsáveis por<br />
movimentos outros que não os da musculatura lisa , e cardíaco, um tipo especial de<br />
músculo estriado capaz de gerar ondas de propagação elétrica em suas superfície). Aqui,<br />
daremos especial atenção à musculatura responsável pela locomoção, a estriada<br />
esquelética.<br />
A contração muscular: a contração indica um estado de atividade mecânica do músculo e<br />
pode ser isométrica (extremidades musculares fixas) ou isotônica (extremidades livres e<br />
carga a ser movimentada variando), mas ambas geralmente ocorrem em conjunto nos<br />
músculos. O padrão de produção de força muscular após um estímulo ou vários, pode ser<br />
observado na figura abaixo:<br />
A contração ocorre quando um impulso nervoso atinge a junção neuromuscular,<br />
ocasionando uma onda de despolarização. Por meio da acetilcolina (vertebrados) e usando<br />
os túbulos T como canais de propagação, o impulso alcança todo o músculo, causando<br />
liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático e ligação da miosina com a actina<br />
(encurtamento do músculo). Esta ligação será desfeita, apenas, com gasto de ATP.<br />
A força exercida por um músculo é diretamente proporcional à sua área de secção<br />
transversal, não importando o seu comprimento. Os músculos dos animais apresentam uma<br />
força máxima por área de secção transversal de 4 a 5 Kg força por centímetro quadrado.<br />
Tipos de fibras musculares: há três tipos de fibras musculares (Purves et al, 2002):<br />
a)fibras musculares de contração lenta (tônicas ou SOs): apresentam grande irrigação e<br />
quantidade de mioglobina. Apesar de contrairem-se lentamente em relação às fibras fásicas<br />
(a contração das fibras fásicas, segundo Close, 1972, é cerca de duas a três vezes mais<br />
rápida que a contração das fibras tônicas), tal contração pode ser mantida por longos<br />
períodos. São fibras oxidativas e resistentes à fadiga (músculos para sustentação do vôo ou<br />
de longas corridas).<br />
b)Fibras musculares de contração rápida (fásicas ou FGs): poucos vasos sangüíneos,<br />
338
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
mitocôndrias e mioglobina. Estão geralmente associadas a grânulos de glicogênio e<br />
apresentam metabolismo anaeróbio. Podem desenvolver uma grande tensão rapidamente,<br />
porém, esta não é mantida por longos períodos (pernas de aranhas, músculos peitorais de<br />
galinhas).<br />
c)Fibras musculares de contração intermediária (FOG): são fibras glicolíticas e oxidativas<br />
rápidas. Nelas, observa-se uma quantidade intermediária de vasos sangüíneos,<br />
mitocôndrias e mioglobina. Contraem-se repidamente e sustentam a contração por um<br />
tempo médio, em relação aos dois tipos anteriores.<br />
Esqueleto<br />
Este é o nome dado à estrutura ou arranjo capaz de manter a forma do animal e<br />
ancorar os músculos. Pode ser:<br />
a)Hidráulico : um sistema de pressurização mantém a rigidez das paredes (Ex.: anêmona).<br />
Pode funcionar juntamente com um sistema onde a musculatura e fibras colágenas geram<br />
a pressão sobre o líquido, como nos equinodermas. Algumas juntas de aranhas, por exmplo,<br />
possuem apenas músculos flexores, de modo que a extensão das patas é proporcionada<br />
por geração de pressão hidráulica (extremamente alta quando comparada a outros<br />
artrópodes: cerca de 0,5 atm) (Foelix, 1996).<br />
b) Rígido: endo ou exoesqueleto (Ex.:ossos, quitina)<br />
Dentre as características mais relevantes de um esqueleto, destacamos:<br />
-densidade : (Kg m -3 ) determina a massa da estrutura de acordo com um determinado<br />
volume. A tendência evolutiva é desenvolver esqueletos o mais leve possível, uma vez que o<br />
animal deve gastar energia para suportá-lo;<br />
-elasticidade : capacidade de liberar a energia armazenada durante um processo de<br />
aplicação de força numa determinada área. Cada material possui um elasticidade particular<br />
que exerce um papel na tarefa para a qual foi designado.<br />
- resistência: a distribuição de exoesqueletos ou endoesqueletos entre os animais não é<br />
aleatória. Segundo leis físicas, um cilindro oco (exoesqueleto, no caso) é mais resistente<br />
que um maciço de mesmo tamanho e material. No entanto, para um aumento de tamanho<br />
com necessidade de manutenção da resistência, este cilindro teria que ter paredes mais<br />
grossas, o que acarretaria um aumento de massa. Assim, houve uma tendência de<br />
desenvolvimento de endoesqueletos conforme os animais atingiram portes maiores.<br />
As diferenças de preenchimento nos ossos, por exemplo, são respostas às<br />
diferentes pressões exercidas sobre determinada parte do corpo.<br />
Juntas<br />
Juntas são articulações entre elementos do esqueleto que agem com os músculos<br />
339
V Curso de Inverno<br />
para produzir movimento. São mais móveis quando suportam pouca aplicação de força e<br />
menos móveis quando suportam grandes aplicações de força. No caso dos vertebrados,<br />
encontram-se imersas em líquido sinuvial que proporciona lubrificação. Já nos artrópodes,<br />
como os insetos, estão envoltas em camadas de cutícula e podem absorver parte da<br />
energia requerida para o movimento. A inserção da musculatura nas juntas também<br />
determina as características do animal que as mantém. Podem apresentar uma organização<br />
fusiforme -característica de vertebrados- ou penada -comum em artrópodes; aqui, o<br />
encurtamento das fibras não altera sua área transversal, fator importante em animais que<br />
não suportam modificações na forma, com exoesqueleto.<br />
Locomoção<br />
Cada ambiente impõe forças distintas sobre os corpos dos seres vivos. Sendo assim,<br />
para cada meio, encontramos diferentes estratégias de deslocamento e diferentes custos<br />
envolvidos. O custo energético da locomoção é diretamente relacionado ao esforço<br />
muscular, sendo que o nível de atividade muscular é modulado pela forma dos membros e<br />
patas, padrão de deslocamento e mecanismos para poupar energia (Reilly et al, 2007).<br />
I) Meio terrestre<br />
Os organismos que habitam o meio terrestre sofrem, em grande parte, a influência<br />
da força gravitacional. O modo de andar diz muito sobre a história dos animais e vem sendo<br />
estudada para compreensão dos custos envolvidos e evolução dos grupos. No caso de<br />
humanos, por exemplo, a postura e padrão de deslocamento, bem como o posicionamento<br />
dos elementos no esqueleto, ajuda a estabelecer o parentesco entre linhagens do gênero<br />
Homo (Bramble e Lieberman, 2004). Dentre as maneiras de se deslocar dos animais<br />
terrestres, podemos citar:<br />
I.a) Rastejar<br />
Padrão de deslocamento no qual o animal mantém o corpo sempre junto ao solo.<br />
Pode ser observado em serpentes e anelídeos, por exemplo. Estes animais apresentam,<br />
geralmente, um corpo mole. Por meio de alterações da pressão hidrostática do corpo, as<br />
lagartas podem rastejar fazendo uso somente das patas anteriores e pró-patas posteriores.<br />
As minhocas, contraindo a musculatura circular e longitudinal, conseguem mover-se por<br />
meio de uma onda que vai da porção anterior para a posterior, ao contrário de alguns<br />
poliquetas onde a onda de contração desloca-se na direção de locomoção do animal. As<br />
serpentes e alguns nematódeos rastejam empurrando objetos que ficaram para trás, como<br />
pedras e grama. Em alguns casos, as serpentes podem desenvolver outros tipos de<br />
locomoção, como o peristaltismo retrógrado das minhocas.<br />
I.b) Andar e correr<br />
Este tipo de deslocamento é realizado por animais de esqueleto rígido e apêndices.<br />
340
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Os organismos capazes de andar e correr podem alcançar grandes velocidades e manter<br />
poucas partes do corpo em contato com o substrato. A chamada marcha se dá movendo<br />
alternadamente os apêndices de modo a manter o centro de gravidade pouco deslocado (no<br />
caso dos quadrúpedes) ou no pé que está em contato com o solo (bípedes) . O tempo em<br />
que os animais mantêm-se sem tocar o solo varia de acordo com a velocidade<br />
desenvolvida. Em altas velocidades, os vertebrados tendem a permanecer pouco tempo em<br />
contato com o solo, enquanto os insetos, por exemplo, mantêm sempre ao menos três patas<br />
no chão. A resistência do ar oferece importante fator limitante ou de gasto energético para<br />
corredores, sendo que pode comprometer até 13 % da energia total dispendida numa<br />
corrida<br />
A taxa metabólica específica de um animal é determinante nas variações de gasto<br />
energético para diferentes inclinações do terreno de corrida: animais de taxa metabólica<br />
específica elevadas apresentam pequeno aumento no gasto energético quando deslocamse<br />
por uma subida íngime quando comparados a animais de baixa taxa metabólica<br />
específica na mesma situação (McMahon e Bonner, 1985). É necessário dizer que músculos<br />
e tendões constituem importantes sítios armazenadores de energia elástica, contribuindo<br />
para uma diminuição do gasto energético esperado em determinada atividade. A importância<br />
desta característica é percebida, principalmente, durante os saltos, quando cada fase de<br />
contato com o substrato ocasiona dissipação de energia e conseqüente elevação dos gastos<br />
necessários para o próximo salto, caso não haja armazenamento de energia elástica.<br />
I.c) Saltar<br />
Muitos animais como cangurus, pássaros e alguns roedores são capazes de saltar.<br />
Para tal, mantêm contato com o solo por pouquíssimo tempo quando comparados aos não<br />
saltadores. Cada organismo apresenta uma estratégia diferente para a realização do salto.<br />
A pulga armazena energia elástica num material chamado resilina presente em suas patas,<br />
trabalhando com uma espécie de catapulta. No caso do canguru, arranjos anatômicos como<br />
a ocorrência de um tendão de Aquiles e músculos bem desenvolvidos proporcionam um<br />
maquinário potente para o salto, capaz de armazenar energia elástica e mover o animal<br />
vertical e horizontalmente (Dawson e Taylor, 1973). A velocidades maiores, o canguru tende<br />
a aumentar a distância coberta por salto e não a altura máxima atingida, de modo que há<br />
pouca variação no consumo de oxigênio. O primata galago tem 250 g e é capaz de saltar<br />
2,25 m de altura. Tal proeza é possível devido à grande massa muscular relativa deste<br />
animal. Forças físicas como a resistência do ar devem ser especialmente consideradas aqui,<br />
levando-se em conta, inclusive, o tamanho e a forma do animal. Considerando-se modelos<br />
que prevêem a altura máxima que um animal pode atingir, percebemos que quanto maior o<br />
animal, mais próximo do desempenho previsto ele chegará. Isso acontece porque animais<br />
menores apresentam uma maior área relativa em contato com o ar, sendo assim<br />
impossibilitados de performances mais próximas às previstas.<br />
341
V Curso de Inverno<br />
Custo metabólico:<br />
O custo metabólico da locomoção terrestre depende da massa do animal, da<br />
distância percorrida, da taxa metabólica específica em repouso, da velocidade e do tipo de<br />
deslocamento que o animal realiza (andar, correr, trotar, pular). O mesmo vale para o<br />
deslocamento em meio aéreo e aquático, sendo que, para uma mesma massa, os custos da<br />
natação tendem a ser menores.<br />
II) Meio aquático<br />
O meio aquático praticamente anula as forças gravitacionais possibilitando aos<br />
animais que flutuem ou façam uso de outras forças durante o deslocamento. Para os<br />
animais que possuem densidade maior que a da água, diferentes estratégias podem ser<br />
adotadas de modo a produzir uma flutuabilidade neutra, como veremos a seguir. A<br />
complexidade estrutural dos habitats das diferentes espécies pode também determinar o<br />
estilo de nado (Kendall et al, 2007). Trabalhos com o peixe Lepomis macrochirus, mostram<br />
que ele apresenta dois principais padrões de nado, de acordo com carcaterísticas<br />
ambientais tais como ocorrência de vegetação exuberante e densidade de predadores:<br />
utilização das nadadeiras peitorais ou ondulação do corpo, sendo que o custo energético<br />
difere para cada padrão.<br />
II.a) Boiar<br />
A capacidade de um animal boiar depende da constituição de seu corpo. Um<br />
organismo deve alcançar uma determinada densidade total que o torne neutro no ambiente<br />
para que possa flutuar. Tal objetivo pode ser alcançado de diferentes formas, tais como<br />
aumentar o volume de gordura no corpo (armazenada no fígado dos tubarões),aumentar a<br />
quantidade de óleos nos tecidos (celacantos), aumentar grandemente o volume de<br />
substâncias amoníacas (lula Helicocranchia) , diminuir a quantidade de sulfatos (águavivas),<br />
criar cavidades preenchidas por ar (teleósteis e alguns cefalópodes), desenvolver<br />
esqueletos leves (lula e seu esqueleto de quitina, a pena).<br />
**A bexiga natatória dos teleóstei: a bexiga natatória desenvolveu-se a partir de um<br />
divertículo do trato digestivo, localiza-se mais ou menos no meio do corpo e é preenchida<br />
por gases provindos do sangue (fisóclistos) ou por deglutição a partir da superfície<br />
(fisóstomos). O funcionamento da bexiga depende da rete mirabile, um arranjo contracorrente<br />
dos capilares sangüíneos que impede a perda de gás da bexiga, e do Efeito Root, a<br />
ação do ácido lático, neste caso, que favorece a liberação de oxigênio do sangue na bexiga.<br />
II.b) Nadar<br />
Para que o deslocamento na água seja possível, os animais devem valer-se de<br />
movimentos que dêem impulso ao empurrar o meio líquido, tais como remadas, movimentos<br />
ondulatórios, propulsão a jato.<br />
Duas forças específicas têm grande importância na locomoção aquática: a força inercial e a<br />
342
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
força viscosa. A primeira é uma propriedade física descrita por Newton que diz que um corpo<br />
submetido a um conjunto de forças de resultante nula não sofre variação de velocidade.<br />
Força viscosa seria a resistência oferecida por um fluido. A partir deses conceitos, Osborne<br />
Reynolds (1983) propôs uma relação, mais tarde nomeada Número de Reynolds, que que<br />
avalia a importância relativa da força inercial e da força viscosa sobre um corpo<br />
deslocando-se num fluido. Em animais muito pequenos, a força predominante é a viscosa,<br />
de modo que assim que páram de movimentar-se,o deslocamento cessa. Para organismos<br />
maiores, a força inercial é mais importante. Tais relações têm especial relevância quanto às<br />
estruturas desenvolvidas para natação nos animais a diferentes números de Reynolds.<br />
Cílios e flagelos são geralmente observados em organismos muito pequenos enquanto<br />
músculos propulsores surgiram nos animais de maior porte.<br />
A potência necessária para realizar deslocamento sob a água aumenta muito com a<br />
velocidade, de modo que animais que nadam desenvolvem velocidades inferiores aos<br />
voadores, por exemplo. Alguns animais como o atum, tartarugas-marinhas e pingüins usam<br />
a cauda ou os membros anteriores como hidrofólios, gerando propulsão para a frente e uma<br />
força para cima que os ajuda a flutuar. Também o fazem alguns cefalópodes e tubarões,<br />
sendo que parte da força criada para cima provém de propulsão a jato, no caso dos<br />
primeiros, e movimentos da cauda, nos segundos. A propulsão a jato pode ser gerada<br />
eliminando-se água de uma cavidade (manto em cefalópodes, cavidade gastrovascular em<br />
águas-vivas) de modo que essa saída resulte no movimento do organismo todo.<br />
Custo metabólico:<br />
O custo metabólico para o nado depende de variáveis como velocidade e número de<br />
Reynolds, e é proporcional à massa do organismo (o custo metabílico é baseado na taxa de<br />
consumo de oxigênio para deslocar determinada massa em determinada velocidade).<br />
III)Meio aéreo<br />
O vôo evoluiu independentemente em 4 grupos distintos: os insetos, os Pterosauros,<br />
as aves e os morcegos. A massa dos maiores voadores alcança cerca de 10 Kg. Os<br />
princípios que regem a movimentação no ar são muito semelhantes aos da água. No<br />
entanto, o primeira oferece uma série de complicações, como o fato do ar ser muito menos<br />
denso (não oferecer flutuação) e do animal ter de criar uma força de ascensão tal que<br />
contrabalanceie totalmente sua massa. Quase todos os animais que voam buscam força<br />
para manterem-se no ar por meio de formas aerodinâmicas e músculos peitorais vigorosos<br />
( o caso das aves), exceto os muito pequenos, cujas asas são projetadas para criar força de<br />
subida por arrasto.<br />
III.a) Planar<br />
Os animais que planam têm um custo metabólico de mais ou menos duas vezes seu<br />
metabolismo basal. O movimento envolve pouco gasto de energia uma vez que se trata do<br />
343
V Curso de Inverno<br />
uso de um fenômeno físico (uso de correntes de ar), cujo único gasto provém da<br />
manunentação das asas abertas e rígidas.<br />
III.b)Vôo batido<br />
Neste tipo de vôo, os animais são capazes de manter uma velocidade constante para<br />
frente e uma altitude, usando energia muscular para gerar a força de subida. Forças de<br />
arrasto estão envolvidas no batimento das asas. Para que o vôo seja possível, o animal<br />
deve ser capaz de gerar a potência necessária, o que é impossível para aves muito grandes<br />
tais quais os avestruzes que têm uma massa grande demais para ser levantada, tornando a<br />
sustentação aérea muito dispendiosa em termos energéticos.<br />
Notamos , então, que a massa é fator determinante na viabilidade do vôo. Nos insetos como<br />
alguns Ephemeroptera, por exemplo, houve uma redução do sistema digestivo e/ou<br />
quantidade de ovos – quanto comparados a outros insetos- a fim de reduzir a carga a ser<br />
levantada.<br />
Comparações<br />
As formas de deslocamento são distribuídas de modo a minimizar os custos<br />
locomotores a uma dada velocidade ou para minimizar o estresse mecânico (Alexander,<br />
1989). A seguir, custos de deslocamento para cada um dos meios (McMahon e Bonner,<br />
1985):<br />
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Revisado por José Eduardo Wilken Bicudo<br />
345
V Curso de Inverno<br />
Ajustes fisiológicos de anfíbios<br />
em ambientes com baixa disponibilidade de água<br />
Ivan Prates<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
ivanprates@gmail.com<br />
Os anfíbios e os gradientes de disponibilidade hídrica<br />
Ainda que grandemente modificados de seus ancestrais do Devoniano, os anfíbios<br />
modernos são muitas vezes considerados elementos de transição entre o modo de vida<br />
totalmente aquático e o terrestre (Claussen, 1973). Essa concepção suporta-se na grande<br />
importância da disponibilidade de água líquida para esses animais, expressa em diversos<br />
aspectos de sua biologia: a contribuição da respiração cutânea para muitas espécies, e o<br />
caráter associado do fluxo de gases respiratórios e de água; a presença, com poucas<br />
exceções, de uma fase larval aquática no ciclo de vida, bem como a necessidade do meio<br />
aquático para reprodução; a limitada capacidade de concentração da urina pelos rins; e o<br />
fato de que, em geral, a pele dos anfíbios não protege o corpo da perda de água por<br />
evaporação, sendo sua principal via de desidratação (Jorgensen, 1994; Pough et al. 1998;<br />
Shoemaker et al. 1992). A dependência da água, de qualquer forma, não impediu que os<br />
anfíbios invadissem muitos ambientes terrestres (Claussen, 1973). Nesse aspecto, é<br />
interessante que esses animais ocorram em ambientes que apresentam diferentes graus de<br />
disponibilidade hídrica, havendo inclusive formas bem sucedidas na colonização de<br />
ambientes de clima semi-árido (Duellman e Trueb, 1994). Na caatinga brasileira, por<br />
exemplo, os anuros estão representados por 40 espécies em cinco famílias (Rodrigues,<br />
2003), o que pode ser considerado exuberante para um ambiente de clima semi-árido<br />
(Navas et al. 2004). Para a ocupação bem sucedida de ambientes terrestres, os anfíbios<br />
desenvolveram diversos mecanismos de ordem fisiológica, morfológica e comportamental<br />
(Toledo e Jared, 1993).<br />
Pouca água...<br />
Paralelamente aos aspectos do comportamento, diferentes propriedades de caráter<br />
fisiológico estão envolvidas com a manutenção das relações hídricas em anfíbios. Dentre<br />
elas, as propriedades do tegumento são consideradas em uma parcela substancial dos<br />
estudos. As abordagens que estudam o papel da pele no balanço hídrico desses animais<br />
levam em conta a cinética do influxo e efluxo em diferentes condições e as características<br />
cutâneas que modulam as trocas de água com o ambiente (ver Shoemaker et al. 1992 e<br />
Toledo e Jared, 1993 para revisões).<br />
Desidratação<br />
346
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Com poucas exceções, a pele dos anfíbios não protege o corpo da perda de água<br />
por evaporação através da pele, de forma que as espécies terrestres estão<br />
permanentemente sob risco de desidratação (Jorgensen, 1994; Pough et al. 1983; Toledo e<br />
Jared, 1993). Os animais desprovidos de mecanismos fisiológicos para redução da perda<br />
evaporativa de água são definidos como “típicos”, sendo notáveis por apresentar taxas de<br />
desidratação equivalentes àquelas de uma superfície de água livre de mesmo tamanho e<br />
forma exposta às mesmas condições ambientais (Wygoda, 1984). A partir da tomada dos<br />
valores de taxas de desidratação de muitas espécies, elucidou-se que as formas aquáticas e<br />
semi-aquáticas comportam-se como típicas. Da mesma forma, as espécies terrestres não<br />
dispõem em geral de mecanismos fisiológicos para redução da perda evaporativa de água<br />
(Shoemaker et al. 1972; Wygoda, 1984). Nesse sentido, as formas terrestres diferem das<br />
demais primariamente por apresentar maior tolerância a grandes perdas de água<br />
(Jorgensen, 1994; Shoemaker et al. 1972) e por evitar a desidratação por meios<br />
comportamentais (Shoemaker et al. 1972). Por outro lado, as espécies de hábito arborícola<br />
têm se revelado atípicas, de forma que, quando comparadas a gêneros terrestres e<br />
aquáticos ou semi-aquáticos, possuem taxas de perda de água que são, no máximo,<br />
metade das dos demais (Wygoda, 1984).<br />
Apesar do caráter incomum dos mecanismos que previnem a desidratação através<br />
do tegumento, a importância de baixas taxas de perda evaporativa de água foi descrita para<br />
uma série de anfíbios que ocorrem em ambientes de clima semi-árido. Em anuros do gênero<br />
Phyllomedusa, por exemplo, essas taxas aproximam-se daquelas apresentadas por répteis,<br />
sendo até duas ordens de grandeza menores do que em Bufo, Rana e Scaphiopus<br />
(Wygoda, 1984). Essa propriedade foi associada à produção, pela pele, de secreções<br />
impermeabilizantes, de natureza lipídica, que são espalhadas sobre a superfície dorsal e<br />
cabeça através de movimentos estereotipados das patas (Shoemaker et al. 1992;<br />
Shoemaker et al. 1975). De forma semelhante, secreções de natureza lipídica e protéica<br />
conferem aos hilídeos australianos Litoria caerulea e Cyclorana australis taxas de<br />
desidratação reduzidas (Christian e Parry, 1997).<br />
Na Caatinga brasileira, o hilídeo Corythomantis greeningi apresentou cerca de<br />
metade das taxas de perda evaporativa de água atribuídas a anuros típicos, uma<br />
propriedade possivelmente associada à alta densidade de glândulas da pele e à presença<br />
de sais de cálcio na derme (Navas et al. 2002). Especula-se que a camada dérmica<br />
calcificada presente em certos anfíbios, em particular naqueles mais terrestres, esteja<br />
associada à absorção ou retenção de água (Toledo e Jared, 1993). Adicionalmente, a<br />
presença de iridóforos na derme de racoforídeos dos gêneros Chiromanthis e Hyperolius<br />
parece ser responsável por reduzidas taxas de desidratação, uma vez que tais<br />
cromatóforos, ricos em cristais insolúveis de bases purinas, formam uma barreira à<br />
passagem de água (Kobelt & Linsenmair, 1986).<br />
347
V Curso de Inverno<br />
Rehidratação<br />
Outro importante aspecto das relações hídricas em anfíbios trata da tomada de água.<br />
Os anfíbios não bebem; o influxo de água no corpo desses animais se dá pela pele (Toledo<br />
e Jared, 1993b; Shoemaker et al. 1992). Em formas terrestres, a alta susceptibilidade à<br />
perda de água está associada à alta tolerância à desidratação, bem como à capacidade de<br />
rápida rehidratação por absorção quando o contato com umidade é estabelecido<br />
(Jorgensen, 1994). Em anuros terrestres, foi observado que a área pélvica da superfície<br />
abdominal é especializada para a tomada de água. McClanahan et al. (1969), ao analisar as<br />
taxas de tomada de água em segmentos da superfície corpórea de Bufo puntactus, uma<br />
espécie do sudoeste semi-árido dos EUA, concluíram que a tomada de água na área<br />
peitoral do abdômen é desprezível quando comparada à área pélvica. Adicionalmente,<br />
esses autores verificaram que a pele dorsal e cabeça têm pouca importância na tomada de<br />
água, de forma que a área pélvica, que corresponde à cerca de 10% da superfície corpórea<br />
nesses animais, responde por 70% das taxas de absorção de água. Nessa espécie, essa<br />
região é caracterizada por menor espessura e maior vascularização quando comparada a<br />
outras porções da pele (McClanahan et al. 1969). Em geral, o tegumento da porção<br />
abdominal das espécies terrestres é mais granuloso do que o de espécies aquáticas, o que<br />
presumidamente aumenta a superfície para absorção de água (Toledo e Jared, 1993).<br />
Todos os anfíbios testados até aqui absorvem água através da pele quando em meio<br />
aquático (Shoemaker et al. 1992), mas a tomada de água em substrato apenas úmido foi<br />
demonstrada para uma série de espécies (Claussen, 1973; Jorgensen, 1994; Packer, 1963).<br />
Packer (1963) postula que essa capacidade é ecologicamente relevante para muitas<br />
espécies, como as que ocorrem em ambientes de clima semi-árido, que nunca voltam à<br />
água após a metamorfose.<br />
Na Austrália, as taxas de reidratação de quatro espécies de Neobatrachus estão<br />
fortemente correlacionadas à quantidade de dias do ano em que chove nos seus locais de<br />
origem. Por outro lado, essa mesma relação não foi verificada para cinco espécies do<br />
gênero Heleiporus, que ocorrem ao longo do mesmo gradiente. Os autores verificaram,<br />
entretanto, que as espécies do segundo gênero se enterram profundamente no solo em<br />
busca das camadas mais úmidas, concluindo que, se há um padrão comportamental que<br />
suprime o risco de desidratação, a capacidade de absorção não terá de ser paralela ao grau<br />
de aridez do ambiente (Bentley et al. 1958).<br />
Excreção<br />
Entre os anfíbios, a excreção de nitrogênio se dá geralmente na forma de amônia e<br />
uréia, sendo ureotélicas as espécies mais terrestres (Shoemaker et al. 1972). A excreção de<br />
ácido úrico, característica de aves e répteis, exige um volume menor de água e,<br />
surpreendentemente, foi relatada para alguns sapos de ambientes semi-áridos. A<br />
capacidade de osmorregulação em situações de estresse hídrico é maior em espécies do<br />
348
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
gênero arborícola Phyllomedusa do que três outras espécies de hilídeos (Hyla pulchella,<br />
Pachymedusa dacnicolor e Agalychnis annae) (Shoemaker e McClanahan, 1975). Quando<br />
privados de água, observa-se nos phyllomedusíneos um aumento menor das concentrações<br />
plasmáticas em comparação com as demais espécies. A excreção de nitrogênio na forma de<br />
ácido úrico previne o acúmulo plasmático de uréia e vem acompanhada com a excreção de<br />
Na + , K + e NH4 + . Ao excretar 80% dos resíduos de nitrogênio na forma de ácido úrico,<br />
Phyllomedusa sauvagei economiza 93% da água que seria necessária para a excreção dos<br />
mesmos resíduos na forma de uréia (Shoemaker e McClanahan, 1975).<br />
Muito sal!<br />
A limitada capacidade de concentração da urina e a pele muito permeável impedem<br />
que os anfíbios de maneira geral vivam em ambientes de água salgada. Entretanto, existem<br />
espécies que toleram água salobra. Dentre elas, a surpreendente Rana cancrivora, que vive<br />
em manguezais do sudeste da Ásia, sobrevive por períodos prolongados em misturas de até<br />
80% de água do mar. Em uma estratégia semelhante à dos elasmobrânquios, esses animais<br />
mantém a osmolalidade do plasma em níveis superiores à da água do meio, através da<br />
concentração de uréia de sangue (Schmidt-Nielsen e Lee, 1972). Essa condição, que<br />
promove a entrada passiva de água através da pele permeável, preserva os animais dos<br />
problemas em ingerir água salgada, como a eliminação de sais, para os quais seu sistema<br />
excretor não está capacitado. Essas rãs têm filtragem gromerular reduzida e elevada<br />
reabsorção tubular de água nos rins (Schmidt-Nielsen e Lee, 1972). Aumentos intracelulares<br />
nos níveis de uréia e aminoácidos garantem o equilíbrio osmótico dos tecidos com o sangue<br />
(Gordon e Tucker, 1968). Os girinos não são capazes de acumular uréia nos fluídos<br />
corpóreos; nessa fase, há evidências de que os animais ingerem água do meio e excretam o<br />
excedente de sais através das brânquias, como fazem os peixes teleósteos (Gordon e<br />
Tucker, 1965).<br />
Estivação<br />
Para várias espécies de anfíbios de clima semi-árido, a sobrevivência durante o<br />
período de estiagem está associada ao comportamento de estivação (Abe, 1995; Storey e<br />
Storey, 1990; Pinder et al., 1992). A estivação preserva o animal das elevadas temperaturas,<br />
da baixa umidade atmosférica e da ausência de fontes para reidratação. É um fenômeno<br />
complexo que inclui diversos ajustes fisiológicos.<br />
Durante a estivação, há redução da taxa metabólica, que pode chegar a 85% na rã<br />
Neobatrachus wilsmorei (Hand e Hardewing, 1996). Ocorre incremento na dependência dos<br />
lipídeos como fontes de energia. Paralelamente, uma baixa taxa de gliconeogênese se<br />
mantém, de forma que glicose é sintetizada a partir de glicerol ou aminoácidos para manter<br />
a atividade dos tecidos dependentes, como o cérebro (Fuery et al. 1998). A síntese protéica,<br />
um processo custoso, é suprimida (Hand e Hardewing, 1996). Em anuros, a estivação é<br />
349
V Curso de Inverno<br />
caracterizada por uma drástica redução na respiração cutânea, com conseqüente redução<br />
da perda de água (Guppy & Withers 1999; Abe, 1995; Guppy, et. al., 1994; Hochachka &<br />
Guppy 1987).<br />
Várias espécies de anuros, dentre hilídeos, ranídeos, leptodactilídeos e outros, bem<br />
como alguns urodelos, apresentam a habilidade de secretar carapaças (cocoons)<br />
compostas por várias camadas de células mortas, de natureza essencialmente protéica, que<br />
lhes conferem taxas de perda de água muito próximas a zero (Christian e Parry, 1997;<br />
Toledo e Jared, 1993b). Esses casulos são essenciais à sobrevivência de vários anuros que<br />
estivam. Adicionalmente, a reabsorção da água estocada na bexiga urinária é um<br />
mecanismo fundamental a sobrevivência dessas espécies (Shoemaker et al. 1972).<br />
Finalmente, enquanto mamíferos não suportam a perda de água em mais do que 12% de<br />
sua massa, anfíbios toleram até 30%, chegando a 50% em sapos estivadores do semi-árido.<br />
Nos anfíbios de ambientes semi-áridos, o tempo disponível para reprodução<br />
corresponde à estação chuvosa. Em resposta a essa limitação de tempo, a maioria das<br />
espécies que estivam apresentam reprodução explosiva, que se inicia com as primeiras<br />
chuvas (Pinder et al., 1992). Portanto, paralelamente aos ajustes metabólicos, os anfíbios<br />
precisam iniciar a custosa gametogênese, a partir de reservas protéicas. Finalmente, a<br />
estivação exige ajustes cronobiológicos, que determinam seu início e fim. Esse fenômeno<br />
complexo, que assegura a manutenção do balanço hídrico no semi-árido, exigiu<br />
evolutivamente o ajuste simultâneo de vários sistemas fisiológicos.<br />
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Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
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351
V Curso de Inverno<br />
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Revisado por Carlos Arturo Navas Ianinni<br />
352
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Introdução à Endocrinologia Comparada:<br />
Fatos e Curiosidades<br />
Vânia Regina de Assis<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
v.regina.a@ib.usp.br<br />
Flávio da Silva Nunes<br />
Médico Veterinário Autônomo<br />
medvetfisio@gmail.com<br />
INTRODUÇÃO À ENDOCRINOLOGIA<br />
A endocrinologia é o estudo dos hormônios, mensageiros químicos que atuam sobre<br />
órgãos alvo e influenciam muitos processos, que vão do crescimento à reprodução. São<br />
secretados por glândulas sem ductos, denominadas glândulas endócrinas, e possuem<br />
diferentes ações: 1) Endócrina (hormônio secretado que alcança os órgãos alvo via corrente<br />
sangüínea); 2) Parácrina (hormônio secretado no interstício celular e que age em outras<br />
células); e 3) Autócrina (hormônio secretado no interstício celular e que age na própria<br />
célula e em células vizinhas). Ao contrário das glândulas endócrinas, as glândulas exócrinas<br />
não produzem hormônios e liberam suas secreções por ductos ou canais, como as<br />
glândulas lacrimais, salivares e sudoríparas.<br />
O hormônio recebe este nome, não só por ser um tipo de produto bioquímico, mas<br />
por sua função. É uma substância que ativa, inibe ou modula a atividade de células alvo.<br />
Quanto à natureza química podem ser classificados como proteínas (peptídeos), derivados<br />
protéicos (aminoácidos modificados) ou esteróides. Para exercer suas ações deve se ligar,<br />
com alta afinidade, a um receptor específico. Estes receptores podem estar localizados na<br />
membrana celular, como no caso de muitos receptores para hormônios protéicos, ou no<br />
núcleo, como no caso dos receptores para hormônios esteróides.<br />
Uma vez que um hormônio é liberado na corrente sangüínea ele pode circular<br />
livremente, se for solúvel em água (hidrofílico), ou pode estar ligado a uma proteína<br />
carreadora. Devido à natureza química dos diferentes hormônios, alguns não são solúveis<br />
no plasma (hidrofóbico) e por isso necessitam de uma proteína (que seja solúvel e que<br />
permita a ligação com esse hormônio) para ser transportado. Este é o caso dos hormônios<br />
esteróides, por exemplo, por sua natureza lipídica, se eles não estiverem ligados a uma<br />
proteína de transporte, eles não conseguem circular no sangue devido a sua insolubilidade.<br />
Em geral, aminas, peptídeos e proteínas por serem solúveis, circulam na sua forma livre.<br />
Além dos hormônios, existem outras categorias de mensageiros químicos:<br />
Neurohormônios<br />
Dentro do sistema nervoso de todos os animais, de celenterados e vermes chatos a<br />
seres humanos, há células que mostram indicações citológicas de serem capazes de<br />
funcionar como glândulas. Neurohormônios são mensageiros químicos liberados por<br />
353
V Curso de Inverno<br />
células neurosecretoras do sistema nervoso e são transportados por todo o corpo tanto<br />
através dos axônios dos neurônios quanto através da corrente sangüínea. Estas células são<br />
capazes de conduzir impulsos, mas não inervam órgãos efetores; recebem informações dos<br />
centros neurais via neurônios aferentes e respondem através da liberação de mensageiros<br />
químicos. O terminal axônico está tipicamente em contato com vasos sangüíneos, mas<br />
também pode estar dentro de órgãos neurohemais (centros de armazenamento e liberação)<br />
tais como a neurohipófise, a eminência mediana de vertebrados e a glândula do seio de<br />
crustáceos.<br />
Curiosidades:<br />
• Há situações nas quais um mesmo produto de uma glândula endócrina pode estar<br />
ativo dentro do indivíduo (hormônio) e entre indivíduos de uma colônia (feromônio).<br />
Certos hormônios da corpora allata de cupins provavelmente funcionam desta forma.<br />
• Há também casos de hormônios do hospedeiro influenciando o comportamento<br />
reprodutivo de parasitas que habitam seus tecidos e órgãos. Neste caso uma mesma<br />
substância serve como hormônio (para o hospedeiro) e feromônio (para o parasita).<br />
• Algumas plantas produzem compostos secundários que interrompem a reprodução, de<br />
invertebrados e vertebrados, através de seus efeitos nos hormônios esteróides e em<br />
seus receptores. Algumas plantas mimetizam o hormônio da muda de artrópodes,<br />
fazendo com que os animais sofram mudas consecutivas e não possam se reproduzir..<br />
Neurotransmissores<br />
Atuam nos terminais nervosos em pequenas quantidades, sobre curtos períodos de<br />
tempo e não empregam vias vasculares para a sua disseminação; provém de células<br />
nervosas convencionais e não secretórias. Exemplos: acetilcolina e noradrenalina.<br />
Fitohormônios<br />
São os hormônios vegetais, como as giberelinas, auxinas, florígenos... As<br />
células vegetais que sintetizam os fitohormônios não são suficientemente diferenciadas para<br />
serem consideradas glândulas de secreção endócrina, além disso, os hormônios vegetais se<br />
movem principalmente por transporte via célula a célula ao invés de utilizarem os canais<br />
vasculares.<br />
Feromônios<br />
Este termo foi originalmente aplicado para a substância de atração sexual em<br />
insetos, mas atualmente incluí vários tipos de agentes liberados no ambiente e funcionam<br />
em todos os grupos principais de animais, para a integração dos indivíduos dentro de uma<br />
mesma população. Podem ser ingeridos, absorvidos através das superfícies corpóreas ou<br />
percebidos pela olfação. Não são propriamente hormônios por serem produtos de glândulas<br />
exócrinas (glândulas cujas secreções são liberadas por ductos ou canais, como nas<br />
354
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
glândulas lacrimais, salivares e sudoríparas), contudo a capacidade das glândulas exócrinas<br />
produzirem feromônios é freqüentemente dependente de estímulos hormonais.<br />
Os feromônios diferem dos hormônios em vários aspectos: 1) são transmitidos via<br />
ambiente externo; 2) são geralmente mais espécie-específicos; 3) atuam sobre outros<br />
indivíduos, enquanto os hormônios tipicamente têm suas atividades confinadas no<br />
organismo que os produziu.<br />
Glândulas endócrinas estão presentes em alguns invertebrados, elas são poucas em<br />
número e bem menos especializadas do que em vertebrados. Do ponto de vista da<br />
anatomia comparada, as glândulas endócrinas não passaram por mudanças estruturais<br />
notáveis nas várias classes de vertebrados, mas tiveram importantes mudanças<br />
filogenéticas em suas propriedades químicas e ações hormonais dentro do corpo de<br />
vertebrados.<br />
ORGANIZAÇÃO GERAL DO SISTEMA ENDÓCRINO EM VERTEBRADOS<br />
Ocorreram poucas mudanças na posição das estruturas durante a evolução, então<br />
esta figura serve para quase todos os vertebrados (Figura1).<br />
Figura 1 - Localização aproximada das glândulas endócrinas em humanos. (http://<br />
www.horacertacascavel.com/saude/empresas.php?cat=11&ramo=4)<br />
Curiosidades:<br />
A PRL estimula em:<br />
Peixes teleósteos: construção de ninho, crescimento e secreção das vesículas seminais,<br />
preparação para a migração.<br />
Anfíbios: mudanças na pele, secreção de geléia no oviduto, espermatogênese ou antiespermatogênese<br />
(término do ciclo de atividade sexual dos machos).<br />
Aves: secreção do leite do papo (em columbídeos), formação de bando, efeitos prémigratórios<br />
(lipogênese, deposição de gordura, agitação), cuidado parental. No pingüim<br />
imperador (Aptenodytes forsteri, fêmeas com níveis muito elevados de prolactina e que<br />
perderam seus filhotes exibem o comportamento de roubo de filhotes.<br />
355
V Curso de Inverno<br />
HIPÓFISE OU GLÂNDULA PITUITÁRIA<br />
O centro de controle do sistema endócrino em vertebrados é a hipófise ou glândula<br />
pituitária, uma vez que seus hormônios controlam o metabolismo de diversas outras<br />
glândulas. É uma glândula endócrina, não pareada, situada na sela túrcica (uma cavidade<br />
do osso esfenóide) na parte central da base do crânio (entre os olhos), que se liga ao<br />
hipotálamo através do pedúnculo hipofisário ou infundíbulo. Nos seres humanos, tem o<br />
tamanho aproximado de um grão de ervilha (Figura 2).<br />
É formada a partir de duas estruturas embrionárias distintas, e assim é divida em:<br />
lobo anterior (ou adenohipófise - originada de células epiteliais), e lobo posterior (ou<br />
neurohipófise - de origem nervosa, não produz hormônios, armazena e lança na circulação<br />
os hormônios produzidos pelo Hipotálamo). Entre estes dois lobos está o lobo intermédio,<br />
que secreta o hormônio melanotrófico (MSH) ou intermedina, importante no controle da<br />
pigmentação<br />
da pele de<br />
p e i x e s ,<br />
a n f í b i o s e<br />
répteis.<br />
Figura 2 -<br />
Localização e<br />
divisão da<br />
Hipófise.<br />
A hipófise secreta uma série de hormônios que dirigem funções vitais diversas tais<br />
como crescimento, desenvolvimento sexual, volume urinário etc. Os hormônios hipofisários<br />
que estimulam outras glândulas do corpo são chamados hormônios tróficos. Os principais<br />
órgãos alvo sob o controle dos hormônios tróficos são a o córtex da adrenal, a tireóide,<br />
testículos e ovários.<br />
Adenohipófise<br />
Secreta diversos hormônios:<br />
GH ou STH - hormônio de crescimento, também conhecido como hormônio<br />
somatotrófico. Promove o alongamento dos ossos, estimula a síntese de proteínas e o<br />
desenvolvimento da massa muscular.<br />
PRL - prolactina ou hormônio lactogênico. Em mamíferos estimula a produção de<br />
leite pelas glândulas mamárias. Sua produção se inicia no final da gestação, aumenta após<br />
o parto e persiste enquanto durar o estímulo da sucção.<br />
TSH - hormônio tireotrófico. Age sobre a tireóide, estimulando à secreção de seus<br />
hormônios.<br />
356
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
ACTH - hormônio adrenocorticotrópico. Regula a atividade do córtex da glândula<br />
surpa-renal ou adrenal. Estimula a secreção de glicocorticóides.<br />
FSH - hormônio folículo-estimulante. Estimula a produção de espermatozóides nos<br />
testículos, e o desenvolvimento de folículos no ovário.<br />
LH - hormônio luteinizante. Estimula a liberação dos hormônios sexuais.<br />
Neurohipófise<br />
Não é um órgão produtor de hormônios. Libera na circulação dois hormônios que são<br />
sintetizados pelo hipotálamo, e que chegam até ela pelos prolongamentos dos neurônios.<br />
Ocitocina - Estimula as contrações do útero, durante o trabalho de parto. Provoca,<br />
também, em mamíferos, contrações dos ductos das glândulas mamárias e a saída do leite.<br />
Durante a lactação, a sucção do mamilo estimula a neurohipófise a secretar a ocitocina.<br />
Portanto, conclui-se que a prolactina estimula a produção do leite; a ocitocina determina sua<br />
ejeção.<br />
ADH - hormônio antidiurético (também conhecido como vasopressina ou AVP<br />
(arginina vosopressina)). Aumenta a permeabilidade dos túbulos renais à água, aumentando<br />
sua reabsorção. Com isso, o volume da urina produzida diminui e ela torna-se mais<br />
concentrada. Além disso, esse hormônio provoca vasoconstrição e pode elevar a pressão<br />
arterial.<br />
TIREÓIDE<br />
Presente em todos os grupos de vertebrados, mas ausente em invertebrados e<br />
protocordados, embora o endóstilo do anfioxo mostre algumas propriedades funcionais da<br />
tireóide.<br />
Um dos precursores da tiroxina (T4), a diiodotrionina, é encontrada no esqueleto<br />
orgânico de corais. Esqueletos de esponjas e corais contêm também moniodotirosina,<br />
monobromotirosina, dibromotirosina e até traços de tiroxina. A tiroxina e seus precursores<br />
têm sido encontrados em muitos invertebrados, e estudos indicam que eles se tornaram<br />
disponíveis para esses organismos, antes mesmo que uma discreta glândula tireóide se<br />
desenvolvesse. Entretanto, a presença dessas substâncias em invertebrados não significa<br />
que elas tenham a mesma função nestes animais que nos vertebrados.<br />
A maioria dos vertebrados não pode atingir dimensões e forma adulta na ausência<br />
das secreções da tireóide: T3 - Triiodotironina e T4 – Tiroxina (Figura 3). Efeitos dos<br />
hormônios da tireóide no desenvolvimento são vistos na metamorfose das larvas de<br />
anfíbios, onde esses hormônios são essenciais. Em salmão, ocorre um aumento da taxa<br />
metabólica e hiperatividade da tireóide quando o animal se prepara para a migração para o<br />
mar.<br />
357
V Curso de Inverno<br />
Figura 3 - Localização da glândula tiróide em humanos.<br />
(http://www.virtual.epm.br/material/tis/curr-bio/trab2004/2ano/obesidade/tireoide.jpg)<br />
ADRENAIS OU SUPRA-RENAIS<br />
Tecidos da adrenal estão presentes em todos os vertebrados de ciclóstomos a<br />
mamíferos, mas profundas diferenças são encontradas na organização dos componentes<br />
funcionais - células esteróidogênicas e células cromafins.<br />
O córtex é a região mais externa das glândulas supra-renais, onde são produzidos<br />
vários hormônios esteróides. Os mineralocorticóides (como a aldosterona) são produzidos<br />
na Zona Glomerulosa (mais externa), os glicocorticóides (como a corticosterona) são<br />
produzidos na Zona Fasciculata (intermediária) e os andrógenos (testosterona e DHT -<br />
dihidrotestosterona) que são produzidos na Zona Reticularis (mais interna).<br />
A medula é fonte de epinefrina (ou adrenalina), um hormônio circulante e também de<br />
norepinefrina (ou noradrenalina), um neurotransmissor. É geralmente ativada conjuntamente<br />
com o Sistema Nervoso Simpático e age sinergicamente com ele (Figura 4).<br />
Curiosidades:<br />
• Em animais homeotermos, que são ativos ao longo do ano, a tireóide é geralmente<br />
mais ativa durante os meses frios de inverno do que durante o verão. Contudo em<br />
mamíferos hibernantes, a tireóide tende a estar inativa durante o inverno e alcança um<br />
pico de atividade na primavera, quando os animais saem da hibernação.<br />
• Observações indicam que o inverso ocorre em heterotermos hibernantes. Em rãs e<br />
sapos hibernantes, a tireóide é moderadamente ativa durante o inverno e mais inativa<br />
durante o verão.<br />
INVERTEBRADOS<br />
Os órgãos endócrinos em crustáceos, como em insetos, estão presentes em 3<br />
categorias: 1) agregados de células neurosecretoras que produzem neurohormônios<br />
liberando-os nos terminais axônicos (que parece ser a forma mais comum); 2) órgãos<br />
neurohemais de armazenamento, possibilitando modificação e liberação desses<br />
358
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
neurohormônios; 3) glândulas endócrinas verdadeiras (não-neurais) que liberam hormônios<br />
no sangue.<br />
Figura 4 - Corte transversal da adrenal,<br />
indicando as zonas da região cortical e a<br />
região medular, destacando os locais de<br />
produção hormonal.<br />
(http://www.mmi.mcgill.ca/<br />
mmimediasampler2002/images/<br />
zingg-61no2.gif)<br />
I m p o r t a n t e s c e n t r o s<br />
neurosecretores são encontrados em<br />
conexão com o gânglio óptico, que<br />
fica dentro dos olhos pedunculados.<br />
Os mais conhecidos são os órgãos X,<br />
que estão presentes na maioria das<br />
espécies com olhos pedunculados, ou<br />
na cabeça, quando estes estão<br />
ausentes. Agrupamentos de células neurosecretoras também são encontrados na glândula<br />
protorácica.<br />
Em crustáceos existem 3 glândulas endócrinas que não são compostas por<br />
neurônios neurosecretores: os órgãos Y (localizados no segmento antenal ou maxilar), as<br />
glândulas androgênicas (localizadas fora dos testículos, ao longo dos vasos deferentes,<br />
presentes também em algumas espécies de insetos) e os ovários. A glândula do seio é um<br />
órgão de armazenamento e liberação de neurohormônios.<br />
A muda<br />
O crescimento é um processo descontínuo em artrópodes, o aumento de tamanho<br />
está restrito ao período entre a perda do exoesqueleto antigo e a produção do novo. É um<br />
processo que pode ser sazonal ou contínuo, é influenciado por uma grande variedade de<br />
condições ambientais.<br />
Estudos revelaram que células neurosecretoras do órgão X secretam um<br />
neurohormônio inibidor da muda, que é estocado e liberado pela glândula do seio, enquanto<br />
os órgãos Y produzem um hormônio que estimula o processo.<br />
Em insetos a ativação de células neurosecretoras do cérebro produz o hormônio<br />
cerebral (BH), os axônios desses neurônios desembocam na corpora cardiaca, onde são<br />
armazenados e posteriormente liberados para o sangue. O BH atua sobre as glândulas<br />
protorácicas estimulando a produção de ecdisona (o hormônio da muda - MH), que promove<br />
crescimento e diferenciação.<br />
359
V Curso de Inverno<br />
Curiosidade:<br />
• Os órgãos Y são análogos (e possivelmente homólogos) às glândulas protorácicas<br />
de insetos. As glândulas protorácicas degeneram em insetos adultos, após a última<br />
muda, e os órgãos Y estão bastante reduzidos em caranguejos durante a anecdise<br />
O hormônio juvenil (JH) é secretado pela corpora allata. Enquanto a função do MH é<br />
causar a diferenciação dos tecidos corpóreos para estruturas adultas, a do JH é manter as<br />
estruturas larvais ou ninfais. A atividade secretora da corpora allata também é regulada pelo<br />
sistema nervoso, e a quantidade de JH presente no sangue diminui progressivamente com<br />
as mudas sucessivas. O JH é essencial para a deposição de vitelo nos ovos e a formação<br />
de espermatóforos em muitas espécies de insetos.<br />
A diferenciação ocorre sob a influência da ecdisona, quando os níveis de JH estão<br />
reduzidos.<br />
Reprodução<br />
Há evidências da existência de mais hormônios sexuais em crustáceos superiores do<br />
que em outros invertebrados. Os hormônios regulam a diferenciação dos caracteres sexuais<br />
de machos e fêmeos através das glândulas androgênicas e dos ovários, respectivamente.<br />
Os testículos provavelmente não têm função endócrina.<br />
Conclusão<br />
Podemos perceber que a ocorrência de substâncias sinalizadoras (como neuro<br />
secreções, feromônios, hormônios) é bastante primitiva do ponto de vista evolutivo, e<br />
mantida em muitos grupos. Isso demonstra a importância dessas substancias para o<br />
funcionamento dos sistemas fisiológicos e também deixa claro que a conservação, tanto<br />
estrutural quanto funcional, é uma característica da evolução.<br />
Referências Bibliográficas<br />
Griffin, J. E.; Ojeda, S. R. 1996. Textbook of Endocrine Physiology. 3ª edição. 396p.<br />
Nelson, R. J. 1995. An Introduction to Behavioral Endocrinology. 612p.<br />
Prosser, C. L. 1991. Neural and Integrative Animal Physiology. 4ª edição. 776p.<br />
Turner, C. D.; Bagnara, J. T. 1971. General Endocrinology. 5ª edição. 659p.<br />
Wynne-Edwards, K. E. 2001. Evolutionary biology of plant defenses against herbivory and their<br />
predictive implications for endocrine disruptor susceptibility in vertebrates. Environ. Health.<br />
Perspect. 109:443-448.<br />
Revisado por Carlos Arturo Navas Ianinni<br />
360
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Mecanismos Neurosensoriais e “O Exemplo da Visão”<br />
Antonio Carlos da Silva<br />
Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />
acsilva@gmail.com<br />
Todos os animais necessitam receber e interpretar corretamente as informações do<br />
meio ambiente interno e externo. Um pássaro em uma manhã de primavera ouvindo o<br />
canto de outros machos competidores em busca de uma fêmea para acasalar, um lagarto do<br />
deserto buscando abrigo do sol escaldante, ou uma águia em seu vôo em busca de uma<br />
presa - em todos os exemplos, estes animais precisam de uma acurada informação sobre o<br />
que ocorre ao seu redor para decidirem o que fazer em seguida. A sua decisão poderá ser<br />
apropriada somente se a informação oferecida pelo meio ambiente for corretamente<br />
codificada e transformada em sinais que possam ser processados pelos neurônios<br />
cerebrais.<br />
De fato, isso só é possível por existirem órgãos sensoriais que providenciam os<br />
canais de comunicação destes estímulos do mundo externo para o sistema nervoso. Os<br />
órgãos sensoriais são compostos de células especializadas e respondem a uma classe<br />
particular de estímulos. Eles estão posicionados em muitos locais entre a superfície e o<br />
interior do corpo (neurônios que carregam os estímulos da periferia para o sistema nervoso<br />
central, chamados de neurônios aferentes. Neurônios que carregam a informação do<br />
sistema nervoso central para periferia são chamados de eferentes).<br />
Ao listarmos as modalidades sensoriais (ex. tipos de informações sensoriais que<br />
podemos distinguir) tipicamente incluímos a mudança de temperatura, o tato, o olfato,a<br />
gustação e a visão. Todas estas modalidades envolvem importantes sistemas sensoriais<br />
internos, por exemplo, proprioceptores que monitoram a posição do músculo (ex. relaxado,<br />
contraído).<br />
No caso da “visão” uma variedade de tipos e estruturas de olhos é encontrada no<br />
reino animal, além de estruturas que permitem a percepção luminosa em grupos de animais<br />
unicelulares (células fotorreceptoras dermais). Estudos filogenéticos relevaram que todos os<br />
filos animais já apresentaram de alguma forma um “órgão sensível a luz”, o que nos leva a<br />
tentar compreender quais as soluções encontradas por cada grupo de animais durante o<br />
processo de evolução em que resulta essa enorme diversidade (Halder et al.1995).<br />
Estas estruturas (ex. ocelos, olhos compostos, olhos em câmara) que permitiram aos<br />
organismos “perceberem” estímulos luminosos nos levam a relembrar Darwin em “ como a<br />
seleção natural.... pode produzir um órgão tão maravilhoso como o olho” (Darwin 1859).<br />
As unidades básicas do olho, as células fotorreceptoras, podem ser divididas em<br />
duas grandes classes, uma ciliar (conjunto de cílios sensíveis a luz) e um tipo rabdomerico<br />
(microvilar) o qual é constituído por um conjunto de células receptoras de luz, paralelas<br />
umas às outras, o exemplo mais comum é em olhos compostos de insetos que são<br />
361
V Curso de Inverno<br />
formados por omatídeos (um pequeno sensor que distingue a claridade da escuridão) e este<br />
é formado de uma lente e um rabdoma.(Halder et al. 1995).<br />
A estrutura ancestral que poderia ser chamada de precursora do olho – “foto-olho” –<br />
não tem bem esclarecido o seu surgimento na árvore evolutiva, mas pesquisadores<br />
sugerem que poderiam ter surgido como duas células foto-olho, compostas por células<br />
fotorreceptoras e um pigmento celular, como observado em pequenas larvas ciliadas de<br />
poliqueta trocóforo (Figura 1) (Pichaud and Desplan 2002, Gehring and Ikeo 1999)<br />
Em sua origem o olho simples (ex. protozoário Euglena possui pequenas vesículas<br />
sensíveis a luz “eyes spot”) poderia ter realizado alguma forma primitiva de visão a qual teria<br />
a função de detectar a direção da luz para fototaxia e além disso, poderia ter uma forma<br />
primitiva de relógio circadiano, que permitisse a oscilação do animal entre ciclos de claro e<br />
escuro. (Gehring e Rosbash 2003).<br />
Especializado, este o órgão fotorreceptor primitivo providencia uma discreta<br />
informação à célula dermal sensível a luz. A localização de fotorreceptores em pequenas<br />
vesículas ou bolsas com pigmentos sensíveis a luz, proporciona informação adicional como<br />
observado em Euglena, existem células sensíveis a luz no citoplasma que contém um<br />
pigmento vermelho-alaranjado responsável por essa percepção da luz.<br />
Figura 1 - Foto ilustrativa (D. Arendt), Duas células olho larval e protótipo pigmento-taça com olho<br />
fotoreceptores rabdomerico em Platynereis dumerilii (Polychaeta, Annelida, Lophotrochozoa). Ultraestrutura<br />
larval 24 h (canto superior esquerdo), (canto superior direito) adulto (72 h) e (estrutura maior<br />
abaixo) olhos totalmente crescidos. Amarelo, células fotoreceptoras rabdomerico; verde, células de<br />
pigmento.<br />
Alguns estudos sugerem que o olho do tipo ciliar é comum a deuterostômios e o do<br />
tipo rabdomerico de protostômios (Land 1992). Entretanto novas descobertas relacionando o<br />
362
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
gene “controlador principal” - homeobox, genes estruturais responsáveis por determinar qual<br />
a posição de determinadas estruturas dentro do organismo - têm revelado um terreno<br />
comum aos olhos de praticamente todos os animais multicelulares (Arendt 2003).<br />
Durante a evolução do olho, tipos adicionais de células foram surgindo entre elas<br />
células dermais foto-sensível. Os tipos de células que compõem as estruturas sensíveis a<br />
luz atingiram a sua diversidade máxima na estrutura “olho câmara” de vertebrados e<br />
cefalópodes, assim como nos olhos compostos de artrópodes (Arendt e Wittbrodt 2001).<br />
Todos os fotorreceptores sensíveis à luz utilizam um pigmento derivado da vitamina A, e<br />
este pigmento está vinculado a uma proteína chamada opsina. A informação luminosa ativa<br />
a opsina e causa uma mudança na conformação do pigmento fotossensível, o qual permite<br />
que a opsina se ligue a uma proteína G, - uma molécula comum e versátil usado em muitos<br />
sinais de transdução em cascata. Estas semelhanças sugerem que todos os olhos têm um<br />
antepassado evolutivo comum (Arendt 2001).<br />
Nos vertebrados, a pax6 é exigida para a formação de praticamente todos os tipos<br />
de células da retina (Marquardt et al. 2001) e em Drosophila, o pax6 é necessária para a<br />
formação de todo o disco dos olhos (Jang et al. 2003).<br />
Fotorreceptores rabdomericos são encontrados nos olhos compostos de artrópodes.<br />
Eles aumentam as suas superfícies apicais em numerosas dobras, nas quais a célula<br />
parece ter um achatamento, com a coroação de cerdas finas e cerdas membranosas,<br />
apesar de a própria célula poder assumir muitas formas em espécies diferentes. A<br />
Transdução do sinal em fotorreceptores rabdomericos envolve ativação de fosfolipase C<br />
(PLC) e do inositol tri-fosfato (IP3), um exemplo de como se dá a formação de imagem<br />
podem ser observado na Fig.2 (Arendt, 2001, 2003).<br />
O tipo de fotorreceptores ciliar, é comum em vertebrados, sua característica é um<br />
aumento da área superficial na membrana celular externa, que é uma modificação do cílio.<br />
A membrana ciliar é expandida e empacotada em dobras profundas de modo que a região<br />
de receptores da célula se parece com uma pilha de discos. Os fotorreceptores ciliares<br />
usam uma via diferente de sinalização, ativam uma fosfodiesterase (PDE) que muda a<br />
concentração de GMP cíclico na célula. Tanto o IP3 e ao PDE existem em todos os animais,<br />
a diferença está que a via é utilizada em diferentes fotorreceptores (Arendt 2001).<br />
As diferenças fundamentais de morfologia, desenvolvimento e estrutura dos<br />
fotorreceptores de diversos tipos de olhos encontrados no reino animal sugerem que os<br />
olhos surgiram independentemente pelo menos 40 vezes. Ao analisarmos as estruturas que<br />
compõem o olho em câmara em especial as camadas da célula da retina (ganglionar,<br />
plexiforme interna, nuclear interna, plexiforme externa, nuclear externa, externa, epitélio<br />
pigmentar). Observamos que os sistemas de transdução são muito parecidos<br />
desempenhando operações de detecção, amplificação, e transmissão (Randall. et al.1997).<br />
As evidências aqui levantadas nos mostram que existem relações importantes entre<br />
as estruturas básicas dos fotorreceptores, e nos levam a refletir no processo de evolução,<br />
363
V Curso de Inverno<br />
onde cada grupo animal enfrentando pressões seletivas nos mais variados ambientes<br />
desenvolveram uma grande diversidade de tipos de olhos, cada um com sua peculiaridade,<br />
atendendo a condições necessárias a sobrevivência do indivíduo e conseqüentemente da<br />
espécie.<br />
olho composto<br />
olho de vertebrados<br />
vertebrado.<br />
Figura 2 - (esquema ilustrativo). Formação de imagem: A) olho composto; B) Olho de<br />
Referências Bibliográficas<br />
Arendt, D and Wittbrodt, J (2001). Reconstructing the eyes of Urbilateria. Phil.Trans. Roy. Soc. Lond.<br />
B 356: 1545-1563.<br />
Arendt, D (2003). Evolution of eyes and photoreceptor cell types Int. J. Dev. Biol. 47: 563-571<br />
Halder, G, SP Callaert and WJ Gehring (1995). New perspectives on eye evolution. Current Opinion in<br />
Genetics & Development, 5:602-609<br />
Gehring, WJ and M Rosbash (2003). The co-evolution of blue-light photoreception and circadian<br />
rhythms. J Mol Evol 57,<br />
Gehring, WJ and K, Ikeo (1999). Pax 6: mastering eye morphogenesis and eye evolution. Trends<br />
Genet. 15: 371-7.<br />
364
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
Jang, CC, JL Chao, N Jones, LC Yao, DA Bessarab, YM Kuo, S Jun, C Desplan, SK Beckendorf and<br />
YH Sun (2003). Two Pax genes, eye gone and eyeless, act cooperatively in promoting<br />
Drosophila eye development. Development 130: 2939-2951.09<br />
Land MF and RD Fernald (1992): The evolution of eyes. Annu Rev Neurosci, 15:1-29<br />
Marquardt, T, R Ashery-Padan, N Rejewski and R Scardigli (2001). Pax6 is required for the multipotent<br />
state of retinal progenitor cells. Cell 105: 43-55.<br />
Pichaud, F and C Desplan (2002). Pax genes and eye organogenesis. Curr. Opin. Genet. Dev. 12:<br />
430-4.<br />
Randall, D, W Burggren and K Fench (1997). In: Eckert, Animal Physiology Mechanisms and<br />
adaptations, 4ª ed. Editora WH FREEMAN and Company..<br />
Revisado por José Eduardo Pereira Wilken Bicudo<br />
365
V Curso de Inverno<br />
Evolução do Comportamento Eusocial:<br />
o Eterno Paradigma<br />
Pedro Leite Ribeiro<br />
Laboratório de Ecofisiologia Evolutiva<br />
pedrolribeiro@gmai.com<br />
Nos arredores de um depósito de lixo, uma mosca varejeira macho encontra uma<br />
fêmea, uma breve corte acontece. Ele exibe um repertório comportamental de danças<br />
estereotipadas que impressionam a fêmea, esta aceita a cópula que dura alguns poucos<br />
minutos.<br />
Perto dali, apoiado numa trama de galhinhos de uma trepadeira, a uns 15 cm do<br />
solo, um ninho de tico-tico abriga um só filhote, na primeira semana de vida. Está<br />
sossegado, talvez dormindo, protegido do sol de verão pela folhagem acima. De repente,<br />
bem rápida, chega a fêmea de tico-tico e habilmente pousa na beirada do ninho. Ato<br />
contínuo, o filhote se ergue, pescoço esticado para cima, o bico escancarado. A fêmea,<br />
agitada ou apressada, mete o bico goela adentro do pidão, retira-o, e girando o corpo, voa<br />
para trás, na direção de onde chegou. Não ficou nem um instante para descansar do sol<br />
dardejante de verão. Alguns minutos depois, ela chega de novo, mais uma refeição. Mais<br />
alguns minutos e a cena se repete. No entanto, ela não vai à exaustão total, e acaba<br />
descansando um pouco. (Robert et al. 1961)<br />
Bem mais longe, uma outra fêmea, uma mulher, engata a primeira marcha em seu<br />
carro e parte para o shopping center. Na lista que leva na bolsa estão anotados vários itens,<br />
incluindo fraldas, mamadeira, chupetas, leite em pó e um carrinho de bebê. Enquanto dirige,<br />
ela pensa na lista, e faz cálculos de dinheiro. Fica preocupada e percebe que vai ter de<br />
pagar com o cartão de crédito. Ao pensar em cada item, aparece em sua mente a imagem<br />
de um bebê, o filho de uma amiga, e ela sorri.<br />
No jardim da casa desta mulher há uma colméia de abelhas. Lá, milhares de<br />
operárias trabalham freneticamente em diferentes tarefas de forma a suprir todas as<br />
necessidades do grupo. Um olhar atento revela que há uma divisão de tarefas, grupos de<br />
abelhas fazem coisas distintas, cada indivíduo parece ser responsável por uma tarefa<br />
diferente, e de forma harmônica e um pouco misteriosa, tudo que precisa ser feito para que<br />
a colônia sobreviva é feito. Numa outra câmara desta mesma colônia há uma abelha<br />
diferente, um pouco maior e não parece estar engajada em nenhuma tarefa de mesma<br />
classe que todas as outras. A abelha rainha. Ela põe ovos, que são cuidados pelas<br />
operárias, quando se transformam em larvas estas são alimentadas pelas suas irmãs mais<br />
velhas até que se transformem em adultos e comecem colaborar com necessidades da<br />
colônia. A rainha desta espécie de abelhas, além de pôr ovos, tem uma outra silenciosa e<br />
importante tarefa. Ela usa substâncias químicas, feromônios, que inibem as suas filhas, as<br />
operárias, de se tornarem fêmeas férteis (Wenseleers e Ratnieks 2006).<br />
366
Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
A um metro dali, uns 2m abaixo da superfície do solo, enclausurada numa câmara,<br />
uma saúva fêmea, conhecida popularmente pelos nomes de içá e tanajura, põe mais um<br />
ovo. Este ovo, que se transformará numa larva, numa pupa e finalmente no adulto terá<br />
cuidados providos pelas operárias inférteis da colônia. Nenhuma dos poucos milhões de<br />
operárias jamais terá a chance de reproduzir. A colônia sobrevive harmonicamente, sem<br />
conflitos pelo direito de reproduzir, por aproximadamente 15 anos, que é quando a Içá<br />
morre. Esta não é substituída e toda colônia morre poucos messes depois de sua morte<br />
(Autuori 1942, 1941).<br />
Assim, nos exemplos acima, temos animas que exibem diferentes graus de<br />
socialidade, desde aqueles praticamente solitários onde apenas na cópula há algum tipo de<br />
interação até os verdadeiramente sociais ou eusociais como as abelhas e as formigas além<br />
de vários outros não citados aqui. Wilson em 1971 estipula três critérios que têm a<br />
pretensão de classificar todas as espécies animais com relação aos níveis de socialidade, a<br />
saber: 1) indivíduos da mesma espécie que ajudam de forma cooperativa na criação dos<br />
jovens 2) uma divisão de tarefas reprodutiva, uma sociedade na qual um grupo de<br />
indivíduos é infértil e colabora com a criação dos filhos dos indivíduos férteis da colônia 3)<br />
quando existe uma sobreposição de pelo menos duas gerações, de forma que os filhos<br />
possam ajudar seus pais. Wilson define como eusociais apenas aqueles animais que<br />
exibem os três critérios estipulados por ele (Wilson 1971). Importante notar, portanto, que<br />
existem também vários estágios considerados intermediários, como nós humanos que<br />
somos capazes de comportamentos solidários com a prole alheia, sem, no entanto,<br />
abdicarmos de nossa própria capacidade reprodutiva.<br />
É, no entanto, a existência de um grupo de indivíduos inférteis dentro uma sociedade<br />
que mais chama atenção de teóricos a respeito da evolução biológica. Afinal, a infertilidade<br />
parece ir à contramão de tudo que entendemos a respeito de seleção natural. Como um<br />
indivíduo com zero de “fitness” (“fitness” sendo definido como a capacidade de deixar<br />
descendentes) pode ter sido selecionado? Darwin ao propor a teoria da Seleção Natural em<br />
seu livro “Origem das Espécies” questiona a abrangência de sua teoria quando, por<br />
exemplo, fala dos insetos sociais: “ Há que se admitir a existência de casos que apresentam<br />
especial dificuldade com relação à teoria da seleção natural. Um dos mais curiosos é o da<br />
existência de duas ou três castas definidas de formigas-operárias ou fêmeas estéreis na<br />
mesma comunidade de insetos”.<br />
Hamilton em 1964 publicou dois trabalhos que pretendem explicar, sob a luz da<br />
seleção natural, o comportamento eusocial nas diferentes espécies animais. Estes<br />
trabalhos, que são considerados por muitos os mais importantes trabalhos sobre evolução<br />
depois de Darwin, introduzem uma importante idéia nova no contexto da evolução. A idéia<br />
da seleção de parentesco. No entanto, para entendermos a idéia de seleção de parentesco<br />
temos primeiro que entender o conceito de fitness inclusivo, ou fitness total, que é a base da<br />
teoria de Hamilton.<br />
367
V Curso de Inverno<br />
Fitness total é o resultado da soma do Fitness direto com o Fitness indireto. Sendo<br />
que o fitness direto é dado pela capacidade reprodutiva do animal em questão, enquanto<br />
que fitness indireto é dado pela capacidade reprodutiva dos outros membros da comunidade<br />
na qual o animal vive. Para se calcular o fitness indireto é necessário levar em consideração<br />
o grau de parentesco dos outros membros da comunidade com o indivíduo em questão.<br />
Assim, a capacidade reprodutiva de membros geneticamente relacionados (parentes) de um<br />
determinado indivíduo tem uma importante participação no fitness total do indivíduo. Desta<br />
forma, temos o cálculo do ftiness de um individuo parcialmente desvinculado da capacidade<br />
do indivíduo de gerar filhos. Pois seus genes podem ser transmitidos para as gerações<br />
futuras, por exemplo, pelos seus irmãos, através dos sobrinhos. É esse o principal<br />
argumento sobre o qual Hamilton tece sua teoria (Hamilton 1964b; 1964a).<br />
Afinal, comportamentos altruísticos poderiam ser justificados pelo aumento do fitness<br />
indireto sempre que este aumento fosse maior que o prejuízo no fitness direto que o<br />
comportamento altruístico possa provocar no individuo que faz a generosidade. Ou seja, um<br />
aumento no ftiness total. Assim, em situações particulares nas quais exista um alto grau de<br />
parentesco entre os membros de uma comunidade, pode ser mais vantajoso, do ponto de<br />
vista de transmissão de genes para gerações futuras, abdicar do fitness direto em prol do<br />
fitness indireto.<br />
É em sociedades partenogênicas que este raciocínio ganha força, afinal, as irmãs<br />
compartilham 75% dos genes umas com as outras em média, enquanto que mães e filhas<br />
compartilham apenas 50% dos genes. Assim, o fitness indireto fica potencializado. È<br />
possível com isso ser mais interessante, do ponto de vista da transmissão gênica, cuidar<br />
das irmãs do que dos próprios filhos.<br />
Estas idéias parecem, portanto, acalmar as críticas com relação a espetacular<br />
contradição que os insetos sociais e alguns outros poucos animais escancaravam com<br />
relação a principal teoria da biologia, a seleção natural. Então, uma vez que temos uma<br />
explicação lógica e coerente com relação ao status quo dos sistemas biológicos que nos<br />
propusemos a estudar, por que não tentarmos explicar o surgimento dos sistemas biológicos<br />
eusocias? Quais eram, ou deveriam ser, as condições ecológicas dos ancestrais dos<br />
animais eusociais que conhecemos hoje? Sabemos que o comportamento eusocial em<br />
insetos surgiu pelo menos cinco vezes distintas. Afinal, este comportamento pode ser<br />
observado em isoptera, thysanoptera, hemíptera, coleóptera e hymenoptera que são grupos<br />
de insetos filogeneticamente distantes.<br />
Desta forma, a descoberta de características comuns aos ancestrais destes cinco<br />
grupos pode ser de grande valor para o entendimento de quais são as condições<br />
necessárias ou pelo menos favoráveis ao surgimento de animais eusociais. Infelizmente, o<br />
estudo de fósseis é pouco revelador com relação ao comportamento. Apenas algumas<br />
informações podem ser tiradas através de estruturas morfológicas que evidenciem algum<br />
tipo de comportamento, ou a fossilização de grupos de insetos num único evento pode<br />
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Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />
eternizar um momento da vida social de uma determinada espécie. A fossilização de<br />
formigas aladas e outras ápteras pode revelar a existências de indivíduos férteis e outros<br />
estéreis, um indicativo de eusocialidade. No entanto, as condições ecológicas nas quais<br />
estes animais viviam são de difícil ou praticamente impossível fossilização.<br />
Resta aos estudiosos destes assuntos, então, fazer inferências teóricas de como<br />
deveriam ser as condições ecológicas dos ancestrais dos animais eusociais que<br />
conhecemos hoje. Estas inferências podem usar de apoio as poucas evidências fósseis, as<br />
características comportamentais e ecológicas dos animais em estágios intermediários de<br />
socialidade que conhecemos hoje e o próprio estudo dos animais eusocias atuais.<br />
De maneira geral acredita-se que algumas condições devam ser satisfeitas para que<br />
exista a possibilidade do surgimento da eusocialidade. 1) Deve existir uma situação<br />
ecológica tal que grupo de indivíduos da mesma espécie sejam obrigados a viver juntos.<br />
Seja porque eles vivem em ninhos ou exista a necessidade de manutenção de um território<br />
que dificilmente possa ser mantido por um único indivíduo. 2) Necessidades alimentares<br />
restritas de forma que a tarefa de procura por alimento tenha tal intensidade que inviabilize o<br />
cumprimento das outras tarefas que este indivíduo precisa fazer, como, por exemplo, o<br />
cuidado com prole (Wilson <strong>2008</strong>). Portanto, parece existir uma situação na qual as<br />
condições ecológicas adversas obriguem o trabalho coletivo através da imposição de<br />
dificuldades à vida solitária.<br />
Então a teoria que tiver a pretensão de explicar a eusocialidade deve também ser<br />
capaz de explicar as suas origens. A idéia de seleção de parentesco, as vezes, pode<br />
parecer insuficiente quando consideremos as condições pré-eusociais. Principalmente<br />
quando consideramos o surgimento da eusocialidade em cupins (diplobiontes) e em<br />
formigas cujas fêmeas foram fecundadas por vários machos. Afinal, nestes casos a relação<br />
de parentesco entre os irmãos deixa de ser de 75% e pode passar para menos de 30%.<br />
Neste contexto o fitness indireto nunca será maior que o fitness direto – cuidar da própria<br />
prole sempre será mais vantajoso do que abdicar dos próprios filhos em favor dos filhos de<br />
seus pais-.<br />
Neste contexto surge uma idéia alternativa ou pelo menos complementar as idéias<br />
de Hamilton (seleção de parentesco). Esta idéia inicialmente apresentada por Richard<br />
Alexander em 1974 e que ganha apoio em publicações recentes de Francis (Wenseleers<br />
Ratnieks et al. 2003; Ratnieks e Wenseleers <strong>2008</strong>) introduz um novo conceito dentro do<br />
contexto da evolução da eusocialidade, o altruísmo forçado.<br />
Estas idéias ganham suporte em recentes estudos com diferentes espécies de<br />
insetos sociais (Ratnieks 1988; Ferracane e Ratnieks 1989; Ratnieks e Visscher 1989;<br />
Ratnieks e Reeve 1991; Anderson, Franks et al. 2001; Oldroyd, Wossler et al. 2001;<br />
Wenseleers, Badcock et al. 2005; Camargo, Lopes et al. 2006; Foster, Wenseleers et al.<br />
2006; Ratnieks e Wenseleers <strong>2008</strong>). Estes estudos descrevem uma série de<br />
comportamentos agressivos dentro da sociedade de insetos, que podem ser resumidos em<br />
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V Curso de Inverno<br />
três tipos distintos: 1) Coerção, comportamento social agressivo que pune e policia o<br />
comportamento individual egoísta. 2) Manipulação parental, comportamento exibido pelos<br />
pais que visa a persuasão dos filhos para que cuidem dos irmãos. 3) Policiamento,<br />
comportamento de inibição da atividade de reprodução de determina operária, que pode<br />
acontecer pela destruição dos ovos postos ou agressão física a operária. É a descrição<br />
destes comportamentos que levaram os estudiosos destes assuntos a acreditar que o<br />
comportamento altruísta poderia não ser voluntário, como a idéia de Hamilton supunha.<br />
Isso traz uma sutil e importante diferença no entendimento de como se deu o<br />
surgimento do comportamento eusocial. Afinal, não seria apenas as relações genéticas<br />
entre os indivíduos que vivem juntos a questão permissiva e causal do surgimento de castas<br />
inférteis. E sim o comportamento agressivo de membros dominantes dentro do grupo que<br />
levaria a esterilidade de alguns indivíduos do mesmo grupo.<br />
É claro que as idéias de Hamilton não podem ser desconsideradas ou totalmente<br />
substituídas, afinal o entendimento de como se deu a origem do comportamento eusocial<br />
ainda não está totalmente elucidado. Isso sem falar que a manutenção, do ponto de vista<br />
evolutivo, das relações altruísticas pacíficas em animais eusocias pode ter como explicação<br />
parcial ou até mesmo total as idéias de seleção de parentesco.<br />
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