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Livro CI 2008

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Comissão Organizadora:<br />

Ananda Brito de Assis<br />

Andreas Betz<br />

Breno Teixeira Santos<br />

Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa<br />

Meirielen Caroline da Silva<br />

Renata Brandt Nunes<br />

Tatiana Hideko Kawamoto<br />

Prof. Coordenador:<br />

Prof. Dr. José Eduardo P. W. Bicudo


<strong>Livro</strong> do V Curso de Inverno:<br />

Tópicos em Fisiologia<br />

Comparativa<br />

Departamento de Fisiologia<br />

Instituto de Biociências<br />

Universidade de São Paulo<br />

Julho de <strong>2008</strong>


Prefácio<br />

Recuperar, reunir e trazer à reflexão os mais variados temas abrangidos<br />

pela ciência da fisiologia, foi o estímulo-chave que motivou os alunos de<br />

pós-graduação do ano de <strong>2008</strong> - Universidade de São Paulo / Instituto de<br />

Biociências / Departamento de Fisiologia – a empenharem-se no preparo<br />

deste livro, facilitando o acesso e disseminação de informações desta<br />

fantástica área do conhecimento científico. O livro também serviu de apoio<br />

didático aos participantes do V Curso de Inverno: Tópicos em Fisiologia<br />

Comparativa, realizado entre os dias 7 e 25 de julho do ano citado. Sete<br />

são os capítulos que permitem ao leitor explorar desde mecanismos<br />

fisiológicos básicos até as mais atuais discussões acerca das sub-áreas<br />

discutidas.<br />

Desejamos uma boa leitura a todos.<br />

Comissão Organizadora<br />

V Curso de Inverno: Tópicos em Fisiologia Comparativa


Conteúdos<br />

1. Fisiologia da Audição................................................................3<br />

2. Fisiologia da Conservação......................................................27<br />

3. Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos......93<br />

4. Cronobiologia.........................................................................125<br />

5. Neurofisiopatologia................................................................195<br />

6. Fisiologia do Comportamento................................................263<br />

7. Evolução dos Sistemas Fisiológicos......................................307


Fisiologia da Audição<br />

Capítulo 1<br />

Fisiologia da Audição<br />

Autores:<br />

Felipe Viegas Rodrigues<br />

Rodrigo Collino<br />

3


4<br />

V Curso de Inverno


Fisiologia da Audição<br />

Fisiologia da Audição<br />

Felipe Viegas Rodrigues & Rodrigo Collino<br />

Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />

fvrodrigues@usp.br<br />

A audição tem um peso muito importante no nosso dia-a-dia, nos permitindo interagir<br />

com o mundo ao nosso redor e com outros seres humanos. Embora alguns a considerem<br />

menos importante que a visão, seguramente a audição trabalha complementando nosso<br />

sentido visual, sendo também fundamental.<br />

Um pouco de Física...<br />

Compressões e descompressões: ondas!<br />

Tudo o que ouvimos é composto por ondas sonoras. Tecnicamente falando, sons são<br />

ondas mecânicas longitudinais. Isso significa que eles são causados pela vibração de<br />

partículas do meio por onde se propagam; há uma transferência de energia no meio, que se<br />

propaga por meio da compressão e rarefação de suas moléculas, longitudinalmente (Figura<br />

1). Portanto, não há som no vácuo. Ondas sonoras podem ser representadas como na parte<br />

de baixo da Figura 1, com picos representando compressão das moléculas, e vales<br />

representando a rarefação das moléculas (no caso da Figura 1 estão representadas<br />

moléculas de ar). A velocidade de propagação dessas ondas no ar é de cerca de 340 m/s.<br />

Em meios mais densos, como a água ou mesmo sólidos, a velocidade é maior; 5.100 m/s no<br />

ferro, 1.500 m/s na água do mar. O comprimento de onda (representado por λ - ver Figura<br />

1) mantém uma relação inversa com a freqüência da onda.<br />

A freqüência de um som é o número de comprimentos de onda ocorridos em um<br />

segundo, usualmente expressa em Hertz (Hz). Biologicamente este conceito tem<br />

fundamental importância. Primeiramente, porque não ouvimos todas as freqüências. O<br />

aparelho auditivo humano está limitado a ouvir freqüências entre 20 Hz e 20.000 Hz. Tal<br />

5


V Curso de Inverno<br />

limitação é causada por características implícitas a um órgão do sistema auditivo chamado<br />

cóclea, mais especificamente, por estruturas presentes em uma membrana, chamada<br />

membrana basilar, dentro da cóclea, que não vibram com sons abaixo de 20 Hz ou acima de<br />

20.000 Hz. Trataremos desse assunto com detalhes mais adiante.<br />

Em segundo lugar, porque diferentes freqüências têm diferentes propriedades quanto<br />

à propagação e reflexão. Freqüências de um até cerca de 100 Hz tem pouca reflexão,<br />

passando entre meios, como do ar para a terra diretamente e praticamente sem perda de<br />

energia. Tais freqüências implicam em consideráveis deslocamentos de massas de ar e,<br />

portanto, só podem ser produzidas por animais maiores. Por exemplo, sabe-se hoje que<br />

infra-sons (freqüências abaixo de 20 Hz) são utilizados por Tigres e Elefantes como forma<br />

de comunicação, que, no caso de elefantes, pode ser feita a quilômetros de distância.<br />

No outro extremo, os superagudos, freqüências acima de 10.000 Hz, têm<br />

comportamento extremamente direcional e reflexivo, características que se tornam ainda<br />

mais exacerbados nos ultra-sons, freqüências acima de 20.000 Hz. O melhor exemplo para<br />

tal característica são os morcegos, que tem faixa de audição começando em 10.000 Hz e<br />

indo até cerca de 120.000 Hz. Emitindo sons acima de 50.000 Hz, os morcegos podem<br />

perfeitamente voar no escuro total, conseguindo desviar dos obstáculos presentes em seu<br />

caminho. Eles utilizam-se do que chamamos de sonar: um mecanismo de ecolocalização<br />

baseado na percepção da posição de objetos no espaço pelo geração de um som e<br />

recaptura do mesmo após reflexão nas barreiras do ambiente.<br />

Por último, ressalta- se que os limiares de audição para as diferentes freqüências não<br />

Figura 2 – Limiares de audibilidade e dor (120 dB) para o<br />

ouvido humano em todo o espectro de audição. As curvas<br />

mostram a intensidade sonora necessária para a<br />

estimulação do aparelho auditivo humano de acordo com a<br />

freqüência.<br />

são iguais. A figura 2<br />

mostra como isso se<br />

comporta no homem.<br />

Note que é preciso<br />

pouco mais de zero<br />

dB para ser possível<br />

alguma<br />

s o n o r a<br />

percepção<br />

e m<br />

freqüências em torno<br />

de 2.000 Hz (faixa de<br />

freqüência altamente<br />

relacionada<br />

com<br />

nossa voz); no<br />

entanto, a percepção<br />

s o n o r a<br />

f r e q ü ê n c i a s<br />

d e<br />

t ã o<br />

baixas quanto no<br />

extremo de nossa<br />

6


Fisiologia da Audição<br />

audição, cerca de 20 Hz, dá-se somente com pressões sonoras acima de 70 dB. Sons<br />

naturais são usualmente complexos e compostos por mais de um tipo de freqüência,<br />

resultando em gráficos não totalmente regulares, produto da interação de ondas de diversas<br />

amplitudes e freqüências.<br />

A quantidade de energia presente em um som, ou a Intensidade Sonora, é medida<br />

em decibéis (dB). Decibel, assim como porcentagem, é uma escala relativa e não absoluta;<br />

nesse caso, relativa à pressão sonora. É também uma escala logarítmica e visa facilitar<br />

nosso tratamento com a pressão sonora, já que a mesma pode variar de 10 -12 até 1 W/m²,<br />

sendo esses, respectivamente, os limiares de audibilidade e de dor para o ouvido humano, a<br />

freqüências de cerca de 2.000 Hz. Convertendo W/m² em decibéis, fazemos com que o<br />

limiar de audibilidade seja apresentado como zero decibel e o limite de dor como 120 dB,<br />

números muito mais palpáveis para qualquer pessoa. Entretanto, alguns truques se<br />

escondem debaixo dessa escala logarítmica. O principal deles, é que a pressão sonora<br />

dobra a cada três decibéis a mais; em outras palavras, precisamos dobrar o trabalho<br />

realizado para conseguir elevar em três dB a intensidade sonora gerada.<br />

Sons naturais e sons musicais...<br />

Não especificamos ainda, propositadamente, o que faz música e o que faz barulho.<br />

Há diferenças. A freqüência de um som, sozinha, não nos diz que tipo de som é aquele. Há<br />

sons que entendemos como sendo ruídos, há sons que entendemos como vozes e há sons<br />

que classificamos como musicais. Em verdade, qualquer proposta de classificação poderá<br />

ser controversa. Há quem ouça música em latas. E há quem diga que um determinado<br />

músico só faz ruídos. Qual é o ponto de equilíbrio então?<br />

Talvez um fator crucial para tal diferenciação seja o ritmo. Afinal, uma lata batendo<br />

sempre terá som de lata. Mas nem todo som de lata possuirá ritmo. Esse é um dos fatores<br />

cruciais em música. Cabe nesse momento falarmos também sobre periodicidade. Os sons<br />

utilizados em música são sons que chamamos de periódicos – sons que mantém suas<br />

características ao longo do tempo. A melhor forma de pensarmos em um som periódico é<br />

pensando em uma corda de um violão vibrando. Tal vibração se mantém constante e em<br />

uma mesma freqüência ao longo do tempo. Ruídos, por outro lado, são caracterizados por<br />

sons não periódicos, que mudam em freqüência e amplitude constantemente, não<br />

resultando em um gráfico perfeito como o da figura 1.<br />

Entretanto, como já vimos em física, nenhum movimento ondulatório é composto<br />

apenas por sua freqüência fundamental, mas por vibrações secundárias, terciárias e outras.<br />

Isso faz com que, de fato, nenhum instrumento provoque uma onda como na figura 1, mas<br />

as ondas serão o resultado da composição de todas essas vibrações, ainda assim<br />

periódicas e com um tom fundamental. É exatamente por esse fator que conseguimos<br />

distinguir uma nota Lá vinda de um piano, de um trompete ou mesmo da voz. Todas elas<br />

terão como freqüência fundamental 440 Hz (considerando-se notas da mesma oitava<br />

7


V Curso de Inverno<br />

musical), mas é devido às diferentes freqüências de outras ordens (2ª, 3ª, 4ª...) que<br />

conseguimos distinguir as diferentes fontes. Esse é o conceito de timbre. Feitas estas<br />

considerações, podemos continuar nossa discussão partindo para como funciona nossa<br />

audição propriamente e como nosso cérebro interpreta vozes, ruídos e músicas.<br />

Enfim... Orelhas! 1<br />

Você já transduziu hoje?<br />

O homem parece excelente<br />

ao ser capaz construir autofalantes<br />

e microfones,<br />

tecnicamente conhecidos<br />

como transdutores. Mas ele<br />

nada mais fez que copiar<br />

uma tecnologia presente na<br />

n a t u r e z a . N o s s o s<br />

Tímpanos! Um transdutor é<br />

um dispositivo capaz de<br />

receber um tipo de energia e<br />

transformá-la em outra. É<br />

exatamente para isso que<br />

nossas orelhas estão aí.<br />

Elas captam a energia<br />

sonora proveniente do ambiente e a transformam em energia elétrica - impulsos nervosos<br />

que atingirão nosso cérebro para processamento e interpretação daquele estímulo. Mas<br />

enfim, exatamente, como ouvimos? Na figura 3, vemos os componentes envolvidos com<br />

essa transdução.<br />

Para fins didáticos, dividimos nossa orelha em três partes: orelha externa, orelha<br />

média e orelha interna. A energia sonora no ambiente chega até ao Tímpano pelo canal<br />

auditivo, parte da orelha externa. Essa energia, com todas as suas características de<br />

freqüência e intensidade, é transmitida pelo tímpano aos ossículos da orelha média<br />

(martelo, bigorna e estribo), que farão a transmissão para a janela oval na cóclea,<br />

integrantes da orelha interna. O processo de passagem pela orelha média não é, em<br />

absoluto, puro. A interação existente entre os três ossículos causa uma amplificação de até<br />

30x na energia sonora que recebemos. Isso é um ganho de aproximadamente 15 dB em<br />

intensidade – uma pressão sonora cinco vezes maior.<br />

1 Nota: Pela nomina anatomica atual, orelhas, e não ouvidos, é o termo correto para descrever as<br />

estruturas responsáveis pela audição. A estrutura comumente conhecida por orelha tem por nome<br />

correto Pavilhão auditivo.<br />

8


Fisiologia da Audição<br />

A cóclea é a estrutura<br />

onde toda a mágica da<br />

audição e transdução<br />

acontece. A cóclea,<br />

como vista nas Figuras<br />

3 e 4, é uma estrutura<br />

tubular enrolada sobre<br />

si mesmo, com três<br />

câmaras internas.<br />

As câmaras são<br />

chamadas escalas e<br />

são preenchidas por<br />

l í q u i d o s d e<br />

c o m p o s i ç õ e s<br />

e s p e c í f i c a s . U m a<br />

representação esquemática do tubo da cóclea pode ser vista na Figura 5.<br />

Quando um som atinge o tímpano, causará uma vibração que será transferida aos<br />

ossículos e, então, à Janela Oval da cóclea. A vibração da janela oval é então transferida<br />

para os líquidos internos da cóclea e para as escalas vestibular e média, mais<br />

especificamente (a Membrana de<br />

Reissner é fina e desprezível para<br />

separar as vibrações entre elas.<br />

Sua função é unicamente de<br />

garantir composições iônicas<br />

diferentes entre as duas câmaras.)<br />

e, então, à membrana basilar.<br />

Como a cóclea é um tubo<br />

inextensível, a Janela Redonda<br />

funciona como uma válvula de<br />

escape, permitindo a movimentação dos líquidos internos e vibração nas membranas.<br />

Como já dito, a membrana basilar é a responsável pela nossa amplitude de audição.<br />

Estruturas fixas a ela, chamadas Fibras Basilares (não representadas nas figuras) tem<br />

tamanhos progressivamente variáveis ao longo da cóclea. Essas estruturas fazem com que<br />

diferentes regiões da membrana (e da cóclea) sejam mais sensíveis a uma ou outra<br />

freqüência. Pela Figura 6, podemos notar que sons agudos, altas freqüências, são melhores<br />

percebidos no início da cóclea. Sons médios, no meio dela. E sons graves, baixas<br />

freqüências, no final da cóclea, próximo à região chamada de Helicotrema (Figura 5). Tais<br />

constatações não significam que um som fará com que só aquela região vibre. Pelo<br />

9


V Curso de Inverno<br />

contrário, todo som causará com que<br />

a membrana basilar como um todo<br />

vibre. Mas essa vibração será muito<br />

pequena fora do ponto ótimo de<br />

vibração, não chegando nem mesmo<br />

a causar potenciais de ação. Vale<br />

lembrar também, como já dito, que<br />

sons puros são raros na natureza e<br />

um mesmo som, portanto, causará a<br />

vibração de partes distintas da<br />

membrana basilar.<br />

A estrutura chamada de Órgão de<br />

Corti é a responsável pela<br />

transdução de fato de energia sonora<br />

em impulsos nervosos. É nele que se<br />

encontram células receptivas<br />

específicas que iniciam a despolarização que chegará ao cérebro, conduzida inicialmente<br />

pelo nervo coclear. Detalhes de sua organização podem ser vistos na Figura 7.<br />

A Membrana Tectorial é uma estrutura rígida e fixa. A vibração da membrana basilar<br />

acaba causando o deslocamento de todo o Órgão de Corti; os cílios das células ciliadas, no<br />

entanto, acabam por não se deslocar por estarem imersos e fixos na membrana tectorial,<br />

dando a sensação de movimento<br />

em relação à célula e causando a<br />

despolarização. O mecanismo<br />

para tal é mecânico, por abertura<br />

de canais de Cálcio devido ao<br />

estiramento da parede dos cílios.<br />

Uma vez causados potenciais que<br />

sejam suficientes para despolarizar<br />

a célula receptiva, a mensagem<br />

será transmitida aos neurônios<br />

seguintes, integrantes do nervo<br />

coclear, e seguirá em direção ao<br />

córtex.<br />

Orelhas não são nada sem um encéfalo...<br />

Primeiro, uma parada rápida<br />

Muito bem. Estamos entendidos quanto à nossas orelhas. Sem elas, nosso encéfalo<br />

estaria isolado do que acontece no mundo sonoro exterior. Mas tendo feita a transdução de<br />

10


Fisiologia da Audição<br />

energia sonora em elétrica (impulsos nervosos) – agora é a vez dele.<br />

As fibras nervosas que saem da cóclea, não atingem diretamente o cérebro, mas<br />

algumas sinapses acontecem no trajeto. Veja na Figura 8. Resumidamente, o primeiro ponto<br />

de sinapse é logo que as fibras entram na<br />

medula espinhal, em sua porção terminal<br />

superior. Daí, as fibras secundárias dirigemse<br />

ao núcleo olivar superior, onde algumas<br />

fibras fazem nova sinapse. Subindo pela<br />

ponte, algumas poucas fibras param no<br />

Núcleo do Lemnisco Lateral e, enfim, a<br />

maioria delas chega ao colículo inferior, no<br />

mesencéfalo, onde todas (ou quase todas)<br />

fazem sinapse e, por último, chegam ao<br />

Núcleo Geniculado Medial (NGM), onde todas<br />

sofrem nova sinapse. Só então, os potenciais<br />

de ação que codificam estímulos sonoros<br />

chegam ao cérebro, na região cha mada<br />

córtex auditivo (Figura 9).<br />

O córtex auditivo<br />

Como já sabemos, nosso encéfalo é<br />

divido em lobos, com suas subáreas, e em<br />

giros e sulcos. Nosso foco de interesse nesse<br />

momento concentra-se na região superior do<br />

Lobo Temporal (Figura 9). É nessa região<br />

que se encontra nosso Córtex Auditivo<br />

Primário. Todas as fibras que saem do NGM<br />

chegam até essa região do córtex. Dela,<br />

então, os estímulos partem para o córtex<br />

auditivo de associação, também chamado de<br />

Córtex Auditivo Secundário, que também recebe algumas fibras intra-talâmicas, de<br />

regiões vizinhas ao NGM. Nesse momento, tais informações serão processadas e<br />

integradas com outras regiões do cérebro. No entanto, nos deparamos com alguns<br />

problemas no meio de todo esse caminho.<br />

Em primeiro lugar, precisamos novamente pensar em como transmitir diferentes<br />

freqüências ao cérebro. Falamos que existem diferentes regiões da cóclea para diferentes<br />

freqüências sonoras captadas no ambiente. Isso é chamado “Princípio de Localização”.<br />

Tais informações são fielmente transmitidas ao córtex - uma grande quantidade de fibras<br />

nervosas sai da cóclea, cada uma levando a informação de uma dessas regiões. No córtex<br />

auditivo primário, diferentes grupos de neurônios serão ativados para essas diferentes<br />

11


V Curso de Inverno<br />

freqüências. Tal estruturação da Cóclea e<br />

do Sistema Nervoso Central resolve<br />

nosso primeiro problema. Em segundo<br />

lugar, precisamos entender como o<br />

cérebro entende as chamadas oitavas<br />

musicais. Tais freqüências, ainda que<br />

diferentes em valor de freqüência (uma<br />

grave, outra aguda), são percebidas<br />

como mesma nota musical pelo cérebro.<br />

Tal funcionamento é possibilitado por<br />

grupos de neurônios que são ativados<br />

pela estimulação de diferentes<br />

freqüências, porém, de mesmo tom<br />

fundamental (as oitavas musicais).<br />

Portanto, um Lá grave ou agudo,<br />

estimulará um mesmo grupo de<br />

neurônios. Esses dois fatores em<br />

conjunto, nos permitirão ter a percepção<br />

de timbre.<br />

Feitas tais estimulações no córtex<br />

auditivo primário, as associações cabíveis serão realizadas no córtex auditivo secundário,<br />

onde regiões específicas lidarão com estímulos sonoros específicos. Podemos então partir<br />

para os assuntos mais complexos e que nos interessam: fala e música. Cabe adiantar a<br />

primeira distinção encontrada entre essas duas propriedades do nosso cérebro, que é<br />

fundamental e mais global. Na grande maioria das pessoas, fala tem suas funções<br />

concentradas no hemisfério esquerdo do nosso cérebro, enquanto que a música está<br />

intimamente associada ao hemisfério direito. Tal constatação fica clara quando olhamos<br />

para um caso de dupla-dissociação entre linguagem e música apontado pela pesquisadora<br />

Isabelle Peretz, pelo relato de dois casos clínicos. O primeiro deles de um compositor que<br />

sofreu uma lesão no hemisfério cerebral esquerdo aos 57 anos, perdendo, então, a<br />

capacidade de falar e compreender a fala, mas que continuou a compor até sua morte<br />

quatro anos mais tarde – um caso de afasia sem amusia. O segundo, de uma mulher que<br />

teve lesões bilaterais no córtex auditivo e no córtex frontal direito como conseqüência de<br />

cirurgias para tratar de aneurismas; ela perdeu a capacidade de aprender novas músicas,<br />

cantarolar uma melodia qualquer e até mesmo de se lembrar das músicas que conhecia.<br />

Porém, sua fala, memória (excetuando-se aquela para música) e inteligência estavam<br />

intactas – um caso de amusia sem afasia.<br />

Revisado por André Frazão Helene e Gilberto Xavier<br />

12


Fisiologia da Audição<br />

Neurofisiologia da Música<br />

Felipe Viegas Rodrigues<br />

Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />

fvrodrigues@usp.br<br />

Neurofisiologicamente, ouvimos notas e oitavas musicais porque a estruturação do<br />

nosso sistema auditivo é organizado de forma propícia a tal. A descoberta dos neurônios<br />

que disparam estimulados por tons ou oitavas musicais não é uma coincidência. É uma<br />

mostra de que nós fizemos a classificação de notas musicais de acordo com aquilo que<br />

nosso cérebro está apto a ouvir. E assim cantamos e afinamos nossos instrumentos.<br />

Afinal... Pra que existe música? Há vantagens evolutivas nela? O autor Steven<br />

Pinker nos ajuda nessa busca. Ele estabelece algumas razões pelas quais a música possa<br />

existir. E ousa dizer: “Eu suspeito que a música seja um ‘bolo de queijo’ auditivo, uma<br />

confecção rara artesanalmente construída para agradar os pontos sensíveis de pelo menos<br />

seis de nossas faculdades mentais”.<br />

O primeiro aspecto levantado por Pinker é a própria fala. O autor defende que a letra<br />

presente nas músicas (e também os paralelos que ainda serão apresentados) faz com que<br />

ela ative circuitos neurais “emprestados” da fala e, em particular, da prosódia.<br />

O segundo aspecto refere-se ao circuito neural ativado pela música, relacionado à<br />

análise auditiva do ambiente. Pinker compara a audição à visão, dizendo que assim como<br />

recebemos uma série de estímulos luminosos que precisam ser diferenciados e separados<br />

(uma pessoa de um fundo de árvores, por exemplo), precisamos distinguir os diversos<br />

estímulos sonoros que nos são apresentados, por exemplo, separar um solista de uma<br />

orquestra, uma voz em um ambiente cheio de ruídos, uma vocalização animal em meio a<br />

uma floresta cheia de ruídos. O autor defende que nosso ouvido detecta cada freqüência e<br />

envia cada uma delas ao sistema nervoso, que as associa, percebendo-as como um tom<br />

complexo. “Presumivelmente o cérebro as associa para construir nossa percepção da<br />

realidade do som”. Isto é, a interpretação em tons complexos provavelmente se dá pelo fato<br />

de que sons naturais não ocorrem em freqüências puras, mas como tons complexos; logo, o<br />

sistema nervoso associa novamente as diferentes freqüências que constituem um som<br />

oriundo de um mesmo ponto no espaço e ao mesmo tempo porque são, em verdade, uma<br />

mesma fonte sonora. Nesse sentido, “melodias são agradáveis ao ouvido pela mesma razão<br />

que linhas simétricas, regulares, paralelas ou repetitivas são agradáveis aos olhos”. O<br />

sistema nervoso, então, se utiliza desse circuito neural para fazer a interpretação das<br />

melodias e harmonias presentes na música.<br />

O terceiro aspecto defendido por Pinker é a emoção trazida pela música. Baseandose<br />

numa sugestão de Darwin de que a música surgiu no homem devido às chamadas de<br />

acasalamento de nossos ancestrais, o autor defende que uma série de “chamadas<br />

emocionais” (como murmurar, chorar, rir, resmungar, gritar) tem um apelo acústico próprio;<br />

13


V Curso de Inverno<br />

“é provável que melodias evoquem fortes emoções porque sua estrutura assemelha-se a<br />

chamadas emocionais de nossa espécie”. A música, então, traria diversos sentimentos à<br />

tona semelhantemente a essas expressões emocionais.<br />

Outro aspecto apontado por Pinker é a seleção de habitat. Fazendo mais uma<br />

comparação entre o campo visual e auditivo, o autor ressalta que prestamos atenção a uma<br />

série de características visuais que sinalizam segurança, insegurança ou mudança de<br />

habitat, como vistas distantes, paisagens verdejantes, nuvens (que trazem chuva) ou pôrdo-sol.<br />

Ele então escreve:<br />

“Talvez nós também prestemos atenção a características do mundo auditivo<br />

que sinalizem segurança, insegurança ou mudança de habitat. Trovões, ventos,<br />

água correndo, pássaros cantando, rosnados, passos, corações e galhos<br />

batendo, todos têm efeitos emocionais, presumivelmente porque eles revelam<br />

eventos dignos de atenção no mundo”.<br />

A música também interferiria com tais circuitos neurais, de tal forma que ela altera<br />

nossas emoções e nossa noção de segurança ou insegurança.<br />

O quinto aspecto ressaltado por Pinker é o controle motor. O ritmo é um componente<br />

universal da música e até mesmo único em algumas culturas. Tal ritmicidade que nos faz<br />

dançar, bater palmas, balançar, e acompanhar a música, certamente estimula nosso sistema<br />

motor.<br />

O último aspecto defendido pelo autor é um “algo a mais” sem explicação conhecida<br />

e que ele coloca como sendo, possivelmente, desde um acidente do funcionamento<br />

conjunto de diversos circuitos neurais até uma ressonância entre disparos neuronais e<br />

ondas sonoras. Seja como for, a música tem estreitas e importantes relações com o<br />

funcionamento de diversos circuitos neurais.<br />

Origens da musicalidade<br />

Se de fato a música tem envolvimento com tantos circuitos neurais, essa propriedade<br />

não pode ser uma exclusividade apenas da espécie humana, mas deve ser produto do<br />

cérebro de outros animais também. A capacidade para interpretar música, de uma forma<br />

diferente de outros sons quaisquer (também chamados sons não musicais) ou, até mesmo,<br />

produzi-la, deve estar presente pelo menos em outras espécies de mamíferos.<br />

Entretanto o primeiro grupo lembrado quando se fala de música em animais são os<br />

pássaros. Desde o século retrasado (Clark, 1879) tal grupo é investigado. As razões são<br />

óbvias, percebidas por qualquer pessoa que tenha entrado em contato com a natureza ao<br />

menos uma vez na vida (e escutado o som produzido pelos pássaros). Estudos recentes<br />

sobre o assunto (Baptista e Keister, 2000) apontam semelhanças entre a melodia do canto<br />

dos pássaros e as melodias produzidas pelo homem. Segundo os autores, os pássaros<br />

“freqüentemente usam as mesmas variações rítmicas, relações tonais, permutações e<br />

combinações de notas que os compositores humanos”. Detalhes presentes nas músicas<br />

produzidas pelo homem são também notadas nas melodias usadas pelos pássaros, como<br />

inversões de intervalo, relações harmônicas simples e retenção de uma determinada<br />

14


Fisiologia da Audição<br />

melodia com a troca de registro (tonalidade) usado. O caso mais atípico e impressionante,<br />

talvez, seja da espécie Probosciger aterrimus, a Cacatua-Negra, uma espécie de papagaio<br />

do extremo norte da Austrália e Nova Guiné, que molda gravetos para que se assemelhem a<br />

baquetas (de bateria) e batucam em diversos troncos até que achem um com ressonância<br />

que agradável e, então, o utilizam para produzir sons como parte de seu ritual de<br />

acasalamento.<br />

Mas voltando aos mamíferos, Wright e colegas (2000), trabalhando com macacosrhesus,<br />

mostraram que os mesmos são capazes de reconhecer como semelhantes melodias<br />

idênticas tocadas em oitavas diferentes, mas não em tons diferentes. Ainda, tal<br />

reconhecimento positivo aconteceu para melodias tonais, mas não para melodias atonais.<br />

Estes resultados são consistentes com o achado de Bendor e Wang (2005) de que sagüiscomuns<br />

(e provavelmente outras espécies de primatas também, incluindo nós humanos)<br />

possuem no córtex auditivo neurônios capazes de perceber tons. Tais neurônios disparam<br />

para uma determinada freqüência e também para seus múltiplos, caracterizando as oitavas<br />

tonais (ou musicais). O experimento de Wright e colegas, porém, pode ter sido afetado pela<br />

exposição prévia dos animais a música. Freqüentemente tais animais ficam em ambientes<br />

com televisões ligadas para os mesmos (Hauser e McDermott, 2000), portanto, expostos a<br />

música e melodias diversas.<br />

É provável que o caso mais conhecido e consistente de musicalidade nos mamíferos<br />

esteja nas baleias-jubarte. Há décadas que se conhece o “canto” dessas baleias e estudos<br />

recentes (Payne, 2000) também apontam para semelhanças estreitas com as regras de<br />

construção musical utilizadas pelo homem. A despeito de poderem produzir sons sem<br />

ritmicidade ou tonalidade, as baleias optam por produzir sons rítmicos, de forma semelhante<br />

a composições humanas e com tonalidade definida. Mais do que isso:<br />

- O canto produzido por elas é composto de fraseados de tamanho semelhante às<br />

frases na música composta por homens e, assim como nós, elas exploram diversos<br />

fraseados dentro de um mesmo tema antes de partir para um tema diferente. Da mesma<br />

forma, composições que exploram um tema, partem para uma seção mais elaborada e,<br />

depois, retornam ao tema inicial (semelhante ao nosso formato de composição: estrofe –<br />

refrão – estrofe) são freqüentes;<br />

- O tamanho total de um canto (uma música?) assemelha-se ao tamanho médio de<br />

músicas produzidas pelo homem, possivelmente pelo fato de que o tamanho de seu córtex<br />

permite uma capacidade atencional semelhante à nossa;<br />

- Ainda que elas tenham uma extensão tonal que alcança sete oitavas musicais, as<br />

baleias preferem compor músicas com intervalo entre notas também semelhantes às nossas<br />

composições (que raramente explora toda essa extensão em uma única composição);<br />

- Elementos percussivos são incorporados à música e intercalados com tons puros<br />

numa taxa semelhante àquela encontrada em composições humanas;<br />

- Algumas repetições encontradas são semelhantes a rimas, indicando que as<br />

15


V Curso de Inverno<br />

baleias possam usar desse artefato tanto quanto os humanos usam: um recurso mnemônico<br />

para lembrar-se de composições complexas.<br />

Tantos elementos comuns entre os sons musicais produzidos por essas diferentes<br />

espécies apontam para o fato de que a música não possa ser apenas um produto cultural<br />

humano. Nas palavras de Gray ET AL, <strong>2008</strong>:<br />

“O fato de que a música das baleias e dos homens tem tanto em comum,<br />

mesmo com nossos caminhos evolucionários não tendo se cruzado em 60<br />

milhões de anos, sugere que a música deve ‘predar’ os humanos, ao invés de<br />

sermos os inventores dela. Nós somos adeptos tardios do ambiente musical.”<br />

As raízes da musicalidade devem residir em outros fatores. Talvez uma<br />

conseqüência natural da interação entre as freqüências sonoras, que causa sons mais ou<br />

menos desagradáveis ao encéfalo dependendo das freqüências envolvidas. Sons musicais<br />

chamados de dissonantes causam um fenômeno chamado batimento, encarado como<br />

desagradável pela grande maioria das pessoas e até mesmo utilizado pelos músicos para<br />

afinar seus instrumentos musicais (cordas diferentes de um instrumento que deveriam<br />

produzir uma mesma nota em oitavas diferentes, portanto desafinadas, provocam batimento.<br />

A ausência do fenômeno indica a correta afinação). Ainda, sons dissonantes apresentados a<br />

bebês de apenas quatro meses causam afastamento da fonte sonora, expressões facias<br />

fechadas e até choro, enquanto que sons consonantes os fazem virar-se para a fonte<br />

sonora e freqüentemente sorrirem (Trainor e Heinmiller, 1998).<br />

É então plausível que a própria física da interação de freqüências induza a nossa<br />

interpretação daquilo que consideramos agradável ou desagradável e permita a produção<br />

ou reconhecimento de sons musicais mesmo em outras espécies que não homem. Há uma<br />

última distinção a ser considerada (geralmente colocada em tom de crítica pelos<br />

pesquisadores que não admitem musicalidade fora da espécie humana). O canto de<br />

pássaros e baleias é essencialmente produzido por machos, sendo parte do ritual de<br />

acasalamento. Produção ou apreciação de música por puro prazer, isso sim, parece ser uma<br />

exclusividade da espécie humana.<br />

Música e Linguagem Humana<br />

Sintaxe<br />

Tratando agora das sobreposições existentes entre música e linguagem, vamos nos<br />

surpreender com o que antes tratávamos como sendo dois aspectos completamente<br />

diferentes. Um primeiro ponto que vale a pena ser comentado, é a sobreposição existente<br />

no processamento da sintaxe. Sim, música possui também sintaxe e os circuitos neurais que<br />

fazem o processamento dessa sintaxe musical seriam os mesmos utilizados para a fala. As<br />

áreas envolvidas seriam regiões do lobo frontal anterior (Patel, 2003).<br />

Semântica<br />

Koelsch e colaboradores (2004) mostraram que “a música pode não apenas<br />

influenciar o processamento de palavras, mas ela pode também pré-ativar representações<br />

16


Fisiologia da Audição<br />

de conceitos, sejam eles abstratos ou concretos, independente do conteúdo emocional<br />

desses conceitos”; em outras palavras, assim como a linguagem, a música pode facilitar a<br />

compreensão de significados (em palavras e, provavelmente, também contextos). Na<br />

pesquisa realizada pelos autores, palavras aleatórias foram apresentadas aos indivíduos<br />

após eles terem ouvido ou uma frase ou um trecho musical. Resultados obtidos com testes<br />

específicos de eletroencefalografia mostraram dados semelhantes para a ativação<br />

resultante causada pela música ou pelas frases.<br />

Ritmicidade<br />

Há ainda mais: paralelos entre a rítmica da linguagem e a da música (Patel, 2003b).<br />

A análise do ritmo da linguagem e da música em subcomponentes e a comparação entre os<br />

domínios revelam que o agrupamento rítmico é semelhante na linguagem e na música, mas<br />

não sua estrutura periódica (que é mais organizada na música). Novas evidências ainda<br />

sugerem que a rítmica de linguagem de uma cultura deixa impressões na sua rítmica<br />

musical. Isto é, diferenças na rítmica da linguagem refletem-se na rítmica musical nas<br />

diferentes culturas. Novos estudos transculturais permitirão afirmar se essas evidências se<br />

confirmam. Esses achados reforçam a noção de que a música possui tanto sintaxe quanto<br />

semântica e seja, possivelmente, como a linguagem, relativamente inerente ao homem e<br />

não um simples produto da cultura.<br />

Timbre<br />

Trabalhos recentes relacionados a timbre mostram que o processamento dessa<br />

propriedade do som envolve redes neurais próprias, incluindo regiões anteriores e<br />

posteriores do giro temporal superior, e, possivelmente, áreas frontais também (o que<br />

parece bastante claro, dada a necessidade de memória operacional – ver no tópico seguinte<br />

explicação – à manutenção de informações sobre qualquer som percebido). Uma revisão<br />

sobre esses trabalhos parece apontar que o timbre musical é uma propriedade<br />

multidimensional do som que nos permite distinguir instrumentos musicais (e certamente<br />

também vozes).<br />

A evolução da discriminação de timbres certamente não é produto da necessidade<br />

de reconhecimento de diferentes instrumentos musicais. O reconhecimento de tonalidades<br />

(característica gerada por vibrações sonoras periódicas) é importante para reconhecer<br />

diferentes vocalizações de animais na natureza; elas seriam uma boa indicação para<br />

distinguir as vocalizações de outros ruídos. As tonalidades e o timbre certamente serviriam<br />

também à identificação de vozes (é sabido, por exemplo, que mesmo bebês recém nascidos<br />

discriminam a voz da mãe de outras vozes). Relativamente à música, a capacidade de<br />

reconhecimento de timbre seria utilizada no reconhecimento de diferentes instrumentos<br />

musicais e as tonalidades no reconhecimento de diferentes notas.<br />

Diante de tais paralelos, torna-se praticamente inegável que a música está presente<br />

no cotidiano humano mais do que apenas por prazer ou questões culturais. A organização<br />

de nosso sistema nervoso e as implicações que as estimulações musicais trazem nos<br />

17


V Curso de Inverno<br />

mostra que música não é um acidente, mas uma propriedade específica de nosso sistema<br />

nervoso central; mais do que isso, uma propriedade que surge em outras espécies<br />

separadas mesmo por milhões de anos, mas que no homem, caminha em estreitas relações<br />

com a linguagem.<br />

Referências Biblográficas<br />

Baptista, L.F. e Keister, R. Why Bird Song Is Sometimes Like Music, BioMusic Symposium, 2000<br />

AAAS Annual Meeting, apud Gray et al - The Music of Nature and the Nature of Music.<br />

Science 2001 Jan 5;291(5501):52-4.<br />

Gray, P.M.; Krause, B.; Atema, J.; Payne, R.; Krumhansl, C. e Baptista, L. - The Music of Nature and<br />

the Nature of Music. Science 2001 Jan 5;291(5501):52-4.<br />

Koelsch, S.; Kasper, E.; Sammler, D.; Schulze, K.; Gunter, T.; Friederici, A.D. – Music, language and<br />

meaning: Brain signatures of semantic processing. Nat Neurosci 2004 Vol. 7, nº 3.<br />

Patel, A.D. – Language, music, syntax and the brain. Nat Neurosci, 2003a 6(7):674-681.<br />

Patel, A.D. – Rhythm in language and music: parallels and differences. Ann NY Acad Sci 2003b 999:<br />

140-143.<br />

Payne, R. Whale Songs: Musicality or Mantra? BioMusic Symposium, AAAS Annual Meeting, 2000.<br />

Samson, S. – Neuropsychological studies of musical timbre. Ann NY Acad Sci 2003 999:144–151<br />

Trainor, L.J. e Heinmiller, B.M. Infants prefer to listen to consonance over dissonance. Inf. Behav. Dev.<br />

1998 21, 77-88 apud Hauser M. D., McDermott J. The evolution of the music faculty: a<br />

comparative perspective. Nat Neurosci. 2003 Jul;6(7):663-8.<br />

Wright, A. A.; Rivera, J. J.; Hulse, S. H.; Shyan, M. e Neiworth, J. J. Music perception and octave<br />

generalization in rhesus monkeys. J Exp Psychol Gen. 2000 Sep;129(3):291-307.<br />

Revisado por André Frazão Helene e Gilberto Xavier<br />

18


Fisiologia da Audição<br />

Neurofisiologia da Linguagem<br />

Rodrigo Collino<br />

Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />

rodrigocollino@usp.br<br />

Introdução<br />

Dentro das ciências cognitivas, o estudo da linguagem tem ganhado grande atenção<br />

nas últimas décadas. É uma área que envolve diversos detalhes e grande complexidade,<br />

dado o emprego de técnicas desenvolvidas apenas recentemente (a partir da metade do<br />

séc. XX) em estudos neurocientíficos. Anteriormente a este período, as conclusões de<br />

médicos acerca da neurofisiologia da linguagem eram abstraídas somente através da<br />

análise da casos clínicos, advindos de acidentes que causassem danos a áreas específicas<br />

do cérebro, e que acabavam por desenvolver sequelas de cunho linguístico – na<br />

compreensão da fala, ou na produção de mesma, por exemplo. Retrocedendo mais ainda no<br />

tempo, pensava-se na Grécia Antiga que o controle da linguagem estivesse concentrado<br />

totalmente na língua do indivíduo. Assim, ao encontrar um indivíduo que, provavelmente<br />

devido a um acidende vascular cerebral (AVC), apresentasse dificuldades na dicção, era<br />

comum oferecer-lhe tratamento através de massagens em sua língua, na esperança de<br />

recobrar-lhe a fala. Atualmente, estudiosos da neurociência contam com instrumentos<br />

aguçados de avaliação da atividade cerebral, tais como fMRI, MEG, PET e ERP, a fim de<br />

correlacionar características da linguagem e regiões cerebrais específicas e seus<br />

respectivos padrões de ativação neuronal.<br />

Neste capítulo, vamos explorar algumas das maravilhas da linguagem produzidas<br />

pelo cérebro humano: o que a torna tão particular da espécie humana, sua lateralização e<br />

modularidade cerebral, distúrbios ocasionados pela falha em alguns de seus mecanismos, e<br />

como é possível o cérebro aprender e utilizar mais de uma língua para nossa comunicação.<br />

A Linguagem é exclusiva do Homem?<br />

Vivemos imersos neste complexo comportamento chamado linguagem; ouvimos,<br />

falamos, lemos e escrevemos quase que instintivamente e inconscientemente, sem pensar<br />

muito na ordem das palavras que emitimos, ou no som das sílabas que ouvimos. Bebês<br />

nascem e, em questão de 1 ou 2 anos, já entendem muito de sua língua-mãe e não levam<br />

muito mais tempo para se comunicarem fluentemente.<br />

Antes objeto de estudo apenas de linguistas, hoje a Linguagem passa também ao<br />

domínio de neurocientistas que procuram traçar sua ontogenia cerebral, e até mesmo<br />

encontrar semelhanças entre a nossa comunicação e aquela usada por outros animais. De<br />

certo, algumas espécies de animais se comunicam, como as aves, cães, lobos e primatas,<br />

mas até que ponto esta forma de comunicação pode ser equiparada à nossa? Será que<br />

alguma outra espécie poderia aprender a “linguagem dos homens”?<br />

19


V Curso de Inverno<br />

Neste sentido, vários experimentos têm sido realizados, especialmente com<br />

chipanzés. Em um deles, tentou-se ensiná-los a aprender palavras em Inglês de elementos<br />

presentes em seu ambiente, e esperar que falassem ou ao menos entendessem o que lhes<br />

fora apresentado. Um dos resultados mais significativos deste experimento foi perceber que<br />

tais primatas possuem um sistema fonador diferenciado do nosso, o que limita<br />

enormemente a produção de nuances dos sons que podem ser emitidos pela espécie<br />

humana, e também que conseguiam compreender apenas 400 palavras aos 2,5 anos. Em<br />

outra tentativa de ensinar um chipanzé a comunicar-se, optou-se pela Linguagem de Sinais<br />

(ASL), e chegou-se à seguinte conclusão: até os 4 anos de idade, o chipanzé havia<br />

aprendido a sinalizar 160 palavras, e chegou até mesmo a produzir a composição “water<br />

bird” ao ver um cisne em um lago. Pois bem, comparando-se com crianças de nossa<br />

espécie, aos 4 anos de idade, elas já possuem um vocabulário de aproximadamente 3.000<br />

palavras. Além disso, não é possível saber com certeza se a produção de “water bird” por<br />

aquele chipanzé representava uma alegoria ao cisne ou se, simplesmente, eram duas<br />

mensagens separadas – uma indicando a água em si, e a outra indicando o cisne.<br />

De modo muito diferente, a espécie humana parece ter sido selecionada com esta<br />

característica inata à linguagem: atualmente, no planeta, contam-se 10.000 idiomas e<br />

dialetos dentre todos os povos da raça humana. Além disso, casos de indivíduos que<br />

cresceram em total isolamento com a sociedade relatam o desenvolvimento de formas<br />

próprias de comunicação. Por fim, há algumas características que diferem a comunicação<br />

humana daquela encontrada em qualquer outra espécie animal. São elas:<br />

•criatividade: a capacidade de gerar novas associações de palavras – ou até<br />

mesmo criar um novo dialeto;<br />

•forma: uso de fonemas e sílabas para compor palavras, e emprego de regras<br />

sintáticas bem definidas para compor sentenças, tudo isso sem a necessidade de<br />

intrução formal, mas da aprendizagem implícita – experienciada em nosso diadia;<br />

•conteúdo: não só as palavras, mas também gestos, expressões faciais e a<br />

entonação utilizadas carregam significado na comunicação humana.<br />

•uso: a língua serve o propósito de meio de comunicação social e também para<br />

identidade própria (expressa nossos pensamentos e emoções).<br />

Assim, podemos dizer que nossa forma de comunicação é única e complexa dentre<br />

os seres vivos de nosso planeta. Surgem também algumas questões, de discussão atual no<br />

meio científico: esta capacidade única do ser humano reflete algum ajuste fino do cérebro<br />

primata para o propósito específico da linguagem? Ou tal capacidade dever-se-ia ao<br />

desenvolvimento de uma arquitetura neural completamente nova? Para melhor nos ajudar<br />

na busca por respostas a estas perguntas, vamos agora olhar para dentro do centro da<br />

linguagem: o cérebro humano.<br />

20


Fisiologia da Audição<br />

Neuroanatomia da Linguagem<br />

Todos os aspectos da linguagem são comandados pelo cérebro: a captação de<br />

ondas sonoras provenientes da conversa entre duas pessoas é levada ao sistema nervoso<br />

central pelo nosso sistema auditivo; a produção da fala, envolvendo a articulação dos lábios<br />

e língua, também tem seu controle motor coordenado pelo cérebro; a leitura e a escrita, e<br />

até mesmo nossa linguagem corporal, intermediados pelos sistemas visual e motor, são<br />

orquestrados pelos 1,5 quilo de massa cinzenta que se encontra dentro de nossa caixa<br />

craniana.<br />

Cada uma destas funções linguísticas encontra-se sob responsabilidade de áreas<br />

neuroanatômicas bem definidas e localizadas, que serão ilustradas na Figura 1 e Tabela 1:<br />

Figura 1: Principais áreas<br />

anatômicas do cérebro humano.<br />

Tabela 1: Relação de algumas estruturas cerebrais e seus respectivos papéis na linguagem.<br />

Estrutura neuroanatômica<br />

Função controlada<br />

Região temporo-superior posterior esquerda Compreensão da fala e escrita<br />

Região frontal inferior posterior esquerda Expressão oral e escrita<br />

Córtex auditivo primário<br />

Percepção de sons<br />

Região temporo-parietal esquerda<br />

Categorização de fonemas<br />

Córtex estriado e pré-estriado<br />

Visualização de palavras<br />

Córtex pré-frontal<br />

Iniciação e categorização de palavras<br />

Tálamo<br />

Interface semântico-lexical<br />

Percebemos, então, um fenomêno de lateralização cerebral no que se diz respeito<br />

ao controle da linguagem, determinando o hemisfério esquerdo como dominante. De fato,<br />

99% das pessoas destras e 70% dos canhotos desenvolvem tal característica. O hemisfério<br />

direito também participa em características importantes da linguagem, tais como<br />

21


V Curso de Inverno<br />

compreensão de respostas não-verbais, leitura de números, letras e palavras curtas, e<br />

conferir entonação, ritmo e prosódia à lingua falada. O centro de compreensão prosódica<br />

também localiza-se no hemisfério direito (córtex posterior).<br />

Hoje é possível “ver” o cérebro em funcionamento através de procedimentos como<br />

PET e fMRI. Vários experimentos tem sido feito envolvendo linguagem e mapeamento<br />

cerebral. Na Figura 2 estão representados resultados obtidos quando da ativação cerebral<br />

em função de diferentes usos da linguagem:<br />

Figura 2: Níveis relativos de fluxo<br />

sanguíneo representado por cores.<br />

Vermelho indica os maiores níveis, e<br />

níveis progressivamente menores são<br />

indicados por laranja, amarelo, verde e<br />

Portanto, podemos prever que danos em determinada porção do tecido cerebral<br />

podem afetar uma característica específica da linguagem. São diversas as disfunções<br />

decorrentes de AVC, conhecidas como afasias (difunções na produção ou compreensão da<br />

fala) , alexias (disfunções na leitura) e agrafias (disfunções na escrita). As mais conhecidas<br />

são as afasias de Broca, de Wernicke e de Condução.<br />

A afasia de Broca afeta o conteúdo da expressão oral e escrita.Geralmente é<br />

decorrente de lesões na região fronto-posterior esquerda, produzindo alterações no paciente<br />

equivalentes a uma “fala telegráfica”: substantivos são usados apenas no singular, verbos<br />

sem flexão, levando até mesmo a uma total quebra na sintaxe da frase (p.e., “Senhoras e<br />

senhores, por favor dirijam-se à sala de jantar”, seria produzido por um destes pacientes<br />

como “senhora, senhor, sala”). A afasia de Wernicke não prejudica a produção, mas sim a<br />

compreensão da fala e da escrita. Devido a esta dificuldade de compreensão, sua fala fica<br />

afetada por uma fluência em excesso, com abundância de palavras e frequentes trocas de<br />

assunto dentro do mesmo trecho discursivo, produzindo uma espécie de “vazio” na fala.<br />

Geralmente é resultado de lesões na região temporo-posterior superior esquerda. A afasia<br />

de Condução ocorre quando o fascículo arqueado (região parietal esquerda), que interliga<br />

as regiões de Broca e Wernicke, é rompido. Seus principais sintomas são dificuldades na<br />

repetição de frases e palavras e na nomeação de objetos, e troca de letras durante a escrita.<br />

22


Fisiologia da Audição<br />

Existem também disfunções da linguagem observadas por lesões no hemisfério<br />

direito do cérebro: indivíduos que utilizam um único tom de voz na linguagem após lesão no<br />

córtex frontal direito, e indivíduos que não conseguem realizar compreensão prosódica após<br />

lesão no córtex posterior direito.<br />

Há, ainda, aqueles distúrbio linguísticos sem lesões vasculares ou mecânicas<br />

aparentes, apontando apenas para um componente genético. A dislexia, por exemplo,<br />

envolve grandes dificuldades em processos fonêmicos, ocasionando atrasos no aprendizado<br />

de leitura e grafia incorreta de palavras. Estudos recentes apontam para um possível<br />

correlato anatômico da dislexia: indivíduos disléxicos apresentam tamanho levemente<br />

reduzido do hemisfério esquerdo, com grupos de neurônios “mal-posicionados” no planum<br />

temporale esquerdo – o que sugere um atraso na migração daquelas células durante o<br />

desenvolvimento. Existe, ainda, uma dificuldade em processar estímulos sensoriais (visuais<br />

ou auditivos) de forma rápida por parte de indivíduos disléxicos, quando comparados à<br />

população normal.<br />

O Cérebro Bilíngue<br />

Comunicar-se, portanto, parece pertencer ao acervo biológico do homem, herdado<br />

geneticamente de nossos ancestrais; em nossa espécie, há um instinto para o<br />

desenvolvimento da linguagem – apesar dos possíveis problemas ou deficiências no<br />

decorrer do percurso. E quanto à comunicação em duas línguas? Como está preparado o<br />

nosso cérebro para aprender dois ou mais idiomas, e processá-los a nível neural? Existem<br />

populações neurais específicas para cada idioma, ou que se complementam no<br />

processamento de mais de um idioma? Aqui, devido à modularidade cerebral - já conhecida<br />

não apenas para diferentes funções cognitivas do ser humano (como memória, motricidade,<br />

visão, olfato), mas também para diferentes características linguísticas, temos novamente<br />

que discernir entre as várias habilidades envolvidas também na comunicação bilíngue:<br />

percepção de fonemas estrangeiros, aquisição de um léxico e de estruturas próprias da<br />

língua em questão, articulação da fala e compreensão auditiva a uma velocidade adequada<br />

para interação com nativos daquela língua, entre outras.<br />

Experimentos em eletrofisiologia têm privilegiado as questões linguísticas que<br />

envolvem aquisição e uso do léxico e da gramática em uma ou mais línguas (Perani &<br />

Abutalebi, 2005), enquanto outros se propuseram a abordar a percepção fonêmica,<br />

destacando-se entre estes Kuhl (2000), Stager & Werker (1997) e Rivera-Gaxola et al.<br />

(2001), apontando para padrões de organização neural no córtex auditivo primário de<br />

crianças e adultos.<br />

A plasticidade neural particularmente em crianças é algo notável e aceito tanto pela<br />

comunidade científica como pela sociedade leiga em geral, a qual percebe a facilidade e<br />

velocidade de aprendizado de novas tarefas – em especial, a aquisição de outro idioma.<br />

Estudo publicado por Mehler e Christophe parecem indicar que recém-nascidos já<br />

23


V Curso de Inverno<br />

discriminam entre dois idiomas estrangeiros, ao passo que, curiosamente, bebês aos 2<br />

meses de idade não o fazem mais (Mehler & Christophe, 2000). Isso parece indicar haver<br />

um período ótimo para esta percepção, após o qual ela deixa de existir. Ainda assim,<br />

percebe-se que a facilidade em aprender uma outra língua (o chamado período crítico)<br />

continua até aproximadamente quando se inicia a puberdade (Stromsworld, 2000),<br />

caracterizando ao longo do desenvolvimento infantil algumas janelas de oportunidade -<br />

períodos em que a aquisição de habilidades específicas seriam favorecidas por fatores<br />

genéticos, hormonais e de plasticidade neural. Os primeiros estudos utilizando-se de<br />

indivíduos bilíngues demonstraram que adultos que haviam aprendido duas línguas<br />

simultaneamente na infância apresentaram uma região em comum para processamento de<br />

ambas as línguas, ao passo que aqueles adultos que haviam aprendido duas línguas em<br />

momentos distintos de sua vida apresentavam regiões corticais também distintas quando<br />

utilizando cada um dos idiomas (Figura 3):<br />

Outro importante estudo neste campo provou que não somente a idade, mas também o<br />

nível de proficiência (ou domínio) do idioma influi na representação cerebral. Estudos com<br />

fMRI encontraram maior densidade de massa cinzenta na região temporo-parietal esquerda<br />

do cérebro daquelas pessoas que haviam aprendido mais precocemente duas línguas e que<br />

possuíam maior grau de proficiência. (Mechelli et al, 2004). Isto equivale a dizer que quanto<br />

mais cedo alguém é exposto a um idioma estrangeiro, maior a quantidade de conexões<br />

entre neurônios naquela região cerebral específica envolvida no processamento daqueles<br />

idiomas.<br />

De fato, tomado de um ponto de vista neurobiológico, nascemos prontos para<br />

aprender qualquer idioma. Uma criança que nasce na Coréia vai aprender coreano tão bem<br />

quanto uma criança que aprende italiano por ter nascido na Itália, embora estas duas<br />

línguas possuam sotaques e alguns sons de vogais e consoantes próprios, diferentes entre<br />

elas. Nosso cérebro, nos primeiros anos da infância, não faz distinção entre japonês e<br />

inglês, português e alemão, ou quaisquer outras línguas entre si. É somente após alguns<br />

meses de vida que nosso sistema nervoso central começa a privilegiar os sons mais<br />

freqüentes ao nosso meio, e por consequência, a não mais reconhecer fonemas<br />

estrangeiros que não fazem parte do sistema de sons a que a criança está sendo exposta<br />

24


Fisiologia da Audição<br />

(Figura 4). Daí vem a dificuldade que muitos adultos encontram em, primeiro, perceber<br />

auditivamente e, depois, em pronunciar determinados fonemas estrangeiros – como nas<br />

palavras bad e bed, em inglês, para os brasileiros, ou como nas palavras avô e avó, em<br />

português, para os povos de língua espanhola.<br />

Figura 4:<br />

Linha do<br />

tempo para<br />

percepção<br />

de sons da<br />

fala em<br />

bebês, de 0<br />

a 12 meses<br />

Conclusão e Perspectivas<br />

O campo da neurociência se abre cada vez mais para estudos da linguagem.<br />

Processos que envolvem desde a aquisição de uma língua, passando pelo seu<br />

processamento, distúrbios, anomalias, codificação gênica, representação mental, e<br />

chegando até o fenômeno do bilinguismo, todos ainda reservam perguntas que têm ajudado<br />

em nossa construção do conhecimento acerca desta fascinante área.<br />

Podemos apontar, como perspectivas para o futuro, algumas linhas de estudo:<br />

•Interação entre linguagem e sistemas de memória;<br />

•Ontogenia, prevenção e reabilitação de afasias e dislexias;<br />

•Melhor compreensão do papel de estruturas subcorticais no processamento<br />

liguístico;<br />

•Organização do léxico de duas ou mais línguas na memória;<br />

•Neurofisiologia da aquisição e processamento de duas ou mais línguas em<br />

diferentes idades e níveis de proficiência.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Bosch, L, Sebastián-Gallés, N., 2003. Simultaneous Bilingualism and the Perception of a Language-<br />

Specific Vowel Contrast in the First Year of Life. Language and Speech 46 (2-3), 217-243.<br />

Callan, D., Tajima, K., Callan, A., Kubo, R., Masaki, S., Akahane-Yamada, R., 2003. Learning-induced<br />

neural plasticity associated with improved identification performance after training of a difficult<br />

second-language phonetic contrast. Neuroimage 19, 113-124.<br />

Kim, K.H.S., Relkin, N. R., Lee, K., Hirsch, J., 1997. Distinct cortical areas associated with native and<br />

second languages. Nature 388, 171-174.<br />

25


V Curso de Inverno<br />

Kuhl, P. K., 2000. A new view of language acquisition. Proceedings of the National Academy of<br />

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Revisado por André Frazão Helene e Gilberto Xavier<br />

26


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

Capítulo 2<br />

Fisiologia, Conservação e Meio<br />

Ambiente<br />

Autores:<br />

Ananda Brito de Assis<br />

Amanda de Moraes Narcizo<br />

Isabel Cristina Pereira<br />

Juliane Suzuki Amaral<br />

Lye Otani<br />

Lucas Francisco Ribeiro do Nascimento / Laura Haddad<br />

Marina Granado e Sá<br />

Renato Massaaki Honji<br />

Tiago Gabriel Correia<br />

27


V Curso de Inverno<br />

Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

Lye Otani<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

lye@usp.br<br />

1. Introdução<br />

O universo tem aproximadamente 13,7 bilhões de anos, sendo que o nosso sistema<br />

solar foi formado há cerca de 5 bilhões de anos atrás. As primeiras formas de vida em nosso<br />

planeta surgiram há cerca de 3,8 bilhões de anos atrás, quase que concomitantemente ao<br />

resfriamento do nosso planeta. A partir de então, as mais diversas formas de vida foram<br />

evoluindo, sendo que os primeiros organismos multicelulares surgiram há cerca de 1 bilhão<br />

de anos atrás. As plantas vasculares e os animais como artrópodes não-marinhos e os<br />

precursores dos anfíbios, por sua vez, surgiram sobre a Terra há aproximadamente 450-400<br />

milhões de anos. Todavia, nenhuma vida teria evoluído e se desenvolvido se não fosse pela<br />

formação da camada de ozônio há 1-2 bilhões de anos atrás (Williams & Fraústo da Silva<br />

2005). Esse ciclo evolutivo, que inclui processos naturais de extinção, dos diversos tipos de<br />

organismos vivos em nosso planeta tem sido decorrente da constante alteração do meio<br />

ambiente desde o início dos tempos. No entanto, além das variações ambientais naturais, os<br />

seres vivos agora têm que lidar com as alterações ambientais causadas pelas atividades<br />

humanas (Pough et al. 1998; Carey 2005).<br />

O ser humano surgiu há 100 mil anos atrás (Williams & Fraústo da Silva 2005), e<br />

principalmente após meados do sec. XVIII, com a Revolução Industrial, esta espécie vem<br />

explorando os recursos naturais descontroladamente (Ribeiro 2002). As populações<br />

humanas têm consumido e desperdiçado cerca de 40% da produtividade primária líquida<br />

total do ambiente terrestre, levando espécies e comunidades inteiras ao ponto de extinção.<br />

As principais ameaças à diversidade biológica e ao meio ambiente são: destruição,<br />

fragmentação e degradação do hábitat (incluído poluição), super-exploração das espécies<br />

para uso humano, introdução de espécies exóticas e aumento de ocorrência de doenças<br />

(ver revisão em Primack & Rodrigues 2001).<br />

2. Impactos Ambientais e a Biologia da Conservação<br />

A perda de habitat resultante do desenvolvimento urbano e da agricultura, e a<br />

subseqüente fragmentação de habitat vem ocorrendo em todo o mundo (Miller & Cale 2000;<br />

Primack & Rodriques 2001). Essa diminuição do tamanho do habitat e o aumento do<br />

isolamento dos organismos acarretam em um aumento de extinções localizadas (Fahring &<br />

Merriam 1994; Zuidema et al. 1996), o que resulta em redução da biodiversidade nos<br />

fragmentos remanescentes (Drinnan 2005). Além disso, a fragmentação ocorre mesmo<br />

quando a área do habitat não é tão afetada, como no caso do habitat original ser dividido por<br />

estradas ferrovias, canais, linhas de energia, cercas, tubulação de óleo, aceiros, ou outras<br />

28


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

barreiras ao fluxo de espécies (Schonewarld-Cox & Buechner 1992). Essa redução na<br />

dispersão animal acarreta em uma diminuição na dispersão de diversos tipos sementes,<br />

levando à diminuição das populações vegetais e da disponibilidade de alimento. Assim, as<br />

populações menores restritas aos fragmentos tornam-se vulneráveis à depressão<br />

endogâmica, à mudança genética, e a outros problemas associados com o tamanho<br />

reduzido de população (Fahring & Merriam 1994; Zuidema et al. 1996). A fragmentação<br />

também aumenta drasticamente o efeito de borda, alterando o microambiente, causando<br />

alterações nos níveis de luz, temperatura, umidade e vento (Kapos 1989; Bierregaard et al.<br />

1992; Rodrigues 1998; Ganlindo-Leal & Câmara 2005). Essas mudanças interferem nas<br />

espécies que se instalarão nesta região e eliminarão muitas outras espécies, alterando a<br />

composição das espécies da comunidade (Primack & Rodrigues 2001; Galindo-Leal &<br />

Câmara 2005).<br />

Outro impacto causado pela atividade humana é a poluição da água e do ar, o qual<br />

leva a destruição de fontes de alimento e água potável, além de causar alterações e<br />

contaminações à atmosfera da Terra. Os produtos químicos tóxicos, como por exemplo,<br />

pesticidas, herbicidas, dejetos e derramamento de óleo e metais pesados (tais como<br />

mercúrio, chumbo e zinco), mesmo em baixos níveis, podem ser concentrados em níveis<br />

letais pelos organismos aquáticos filtradores, além de causarem danos irreversíveis mesmo<br />

em doses sub-letais. Os nitratos e fosfatos, apesar de serem essenciais para a vida,<br />

também apresentam conseqüências danosas tanto na água quanto no ar. Na água, esses<br />

compostos são provenientes dos esgotos urbanos, fertilizantes agrícolas e outros processos<br />

industriais, e favorecem a proliferação de algas e seu domínio sobre outras espécies de<br />

plânctons. Essa proliferação reduz a incidência de luz e a concentração de oxigênio, devido<br />

ao aumento de bactérias e fungos decompositores (eutrofização cultural), levando a seleção<br />

de espécies tolerantes a água poluída e níveis baixos de oxigênio (ver revisão em Primack &<br />

Rodrigues 2001). No ar, estes compostos são liberados principalmente com a queima de<br />

óleos e combustíveis fósseis, e são prejudiciais à saúde pública e ao meio ambiente.<br />

Reagindo com a umidade atmosférica, há a formação dos ácidos nítrico e sulfúrico e,<br />

conseqüentemente, levando à produção da chuva ácida. Esta, por sua vez, diminui o pH do<br />

solo e de corpos d’água como lagos e lagoas, acarretando na morte e redução da<br />

reprodução de diversas espécies aquáticas (Beebee et al. 1990; Blaustein & Wake, 1995;<br />

France & Collins 1993) e de plantas (Hinrichsen 1987; MacKenzie & El-Ashry 1988).<br />

Hidrocarbonetos e óxidos de nitrogênio liberados por automóveis e termoelétricas, na<br />

presença da luz, reagem com outros compostos atmosféricos e produzem ozônio e outros<br />

compostos químicos. As altas concentrações de ozônio ao nível do solo danificam tecidos<br />

de plantas e as tornam vulneráveis, danificando comunidades biológicas e reduzindo a<br />

produtividade agrícola. Metais pesados, como o chumbo e o zinco, também têm sido<br />

liberados em grandes quantidades, sendo tóxicos para a grande maioria dos seres vivos. E,<br />

por último, a grande liberação de dióxido de carbono, metano e outros gases na atmosfera<br />

29


V Curso de Inverno<br />

acarretam na diminuição da taxa de dissipação do calor da superfície da Terra. Tal processo,<br />

conhecido pelo nome de efeito estufa, pode ser responsável, juntamente com o<br />

desmatamento, pela grande alteração climática que vem sendo registrada nos últimos anos<br />

(ver revisão em Primack & Rodrigues 2001).<br />

A mudança climática global e o aumento de concentrações de CO2 atmosférico têm o<br />

potencial de reestruturar radicalmente as comunidades biológicas, favorecendo aquelas<br />

espécies capazes de se adaptar às novas condições (Bazzaz & Fajer 1992). Há uma grande<br />

evidência de que este processo de mudança já teria começado (Grabherr et al. 1994;<br />

Phillips & Gentry 1994), causando um aquecimento de cerca de 0,5 o C durante o século 20<br />

(Jones & Wigley 1990). Essas alterações afetarão principalmente as espécies de<br />

distribuição mais restritas e de pouca habilidade de dispersão. A elevação do nível do mar<br />

também acarretará em graves conseqüências as comunidades marinhas, principalmente<br />

para algumas espécies de corais que necessitam de uma determinada luminosidade,<br />

correntes marítimas e temperatura (Carey 2005).<br />

Além das intervenções químicas e físicas, as atividades humanas também têm<br />

acarretado em intervenções bióticas como, por exemplo, a introdução de espécies exóticas<br />

e novas patologias resultantes. Até hoje, um grande número de espécies já foram<br />

introduzidas, deliberadamente ou acidentalmente, em áreas onde não são nativas (Grove &<br />

Burdon 1986; Drake et al. 1989; Hedgpeth 1993). As espécies animais introduzidas podem<br />

alterar o hábitat, competir por recursos ou, até mesmo, se tornar predadoras das espécies<br />

nativas e levá-las a extinção. Já a proliferação de patologias e/ou surgimento de novas<br />

doenças podem ser resultantes da somatória das diversas alterações citadas anteriormente,<br />

uma vez que as comunidades estão mais vulneráveis, por exemplo, as superpopulações de<br />

determinadas espécies em fragmentos florestais favorecem altas taxas de transmissão de<br />

doenças (Primack & Rodrigues 2001; Navas & Otani 2007). Um exemplo é o surgimento da<br />

quitridiomicose em anfíbios, causada pelo fungo Batrachochytrium dendrobatidis. Este tem<br />

sido apontado como um dos principais responsáveis pelo declínio global de anfíbios e pode<br />

estar associada à mudança climática global (Navas & Otani 2007).<br />

Diante dessas adversidades, inclusive das que ainda não tomamos ciências, a<br />

melhor maneira de proteger e manejar as comunidades biológicas é entendendo suas<br />

relações biológicas com o ambiente e a sua situação atual. A partir de informações sobre a<br />

história natural das espécies, nós seremos aptos a manejar e conservar as espécies e<br />

identificar os fatores que colocam em risco sua existência e bem estar (Gilpin & Soulé 1986).<br />

A biologia da conservação surgiu de forma a complementar as diversas disciplinas<br />

aplicadas, de uma maneira mais teórica e geral para a proteção da diversidade biológica.<br />

Sendo uma ciência multidisciplinar que foi desenvolvida como resposta à grande<br />

degradação ambiental, a biologia da conservação tem como intuito entender os efeitos da<br />

atividade humana nas espécies, comunidades e ecossistemas, e desenvolver abordagens<br />

30


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

práticas para prevenir a extinção de espécies e, se possível, reintegrar as espécies<br />

ameaçadas ao seu ecossistema funcional (Primack & Rodrigues 2001).<br />

Segundo Primack & Rodrigues (2001) a biologia da conservação tenta responder<br />

diversas perguntas referentes às características das espécies, por exemplo: (1) Ambiente:<br />

quais os tipos de habitat utilizados pelas espécies? Como o ambiente varia no tempo e no<br />

espaço? Com que freqüência o ambiente é afetado por perturbações catastróficas? (2)<br />

Distribuição: Como os seus habitats estão distribuídos no planeta? Desloca-se ou migra<br />

entre os habitats ou para diferentes áreas geográficas durante o curso de um dia ou de um<br />

ano? É bem-sucedida na colonização de novos habitats? (3) Interações bióticas: Que tipos<br />

de alimentos e outros recursos necessitam? Que outras espécies competem por esses<br />

recursos? Quais os predadores, as pestes e os parasitas que afetam o tamanho de sua<br />

população? (4) Morfologia: Como a forma, o tamanho, a cor e textura dos indivíduos<br />

permitem sua existência em seu ambiente? (5) Demografia: Qual é o tamanho atual da<br />

população e qual era no passado? O número de indivíduos é estável, está aumentando ou<br />

diminuindo? (6) Comportamento: Como suas ações permitem que ele sobreviva? Como se<br />

acasalam e têm filhotes? De que forma os indivíduos interagem entre si, tanto de forma<br />

cooperativa como de forma competitiva? (7) Genética: Quanto de variação nas<br />

características morfológicas e fisiológicas entre os indivíduos é controlada geneticamente?<br />

(8) Fisiologia: Qual a quantidade de alimento, água, minerais e de outras necessidades é<br />

necessária para sobreviver, crescer e reproduzir-se? Qual sua eficiência das espéciesno uso<br />

dos recursos? Qual sua vulnerabilidade a condições extremas de clima, tais como calor, frio,<br />

vento e chuva?<br />

3. Fisiologia da Conservação<br />

Dentro desta perspectiva, os princípios, conceitos e métodos utilizados na área da<br />

fisiologia são de extrema importância para o entendimento dos declínios populacionais e<br />

para a conservação ambiental (Koeman 19991; Zachariassen et al. 19991; Carey 2005;<br />

Wikelski & Cooke 2006; Navas & Otani 2007). As diferentes variáveis dos estudos sobre a<br />

fisiologia trazem informações importantes que ajudam a elucidar os mecanismos<br />

relacionados à variação ambiental e sua influência sobre a aptidão de sobrevivência e<br />

reprodução dos diversos organismos vivos. Assim, o campo da fisiologia que estuda as<br />

respostas fisiológicas frente às alterações ambientais causadas pelo homem é atualmente<br />

denominado como Fisiologia da Conservação (Carey 2005; Wikelski & Cooke, 2006).<br />

Inicialmente, a fisiologia da conservação propõe utilizar-se de dados básicos sobre a<br />

fisiologia e a aptidão e suas interações para prever e antecipar problemas futuros. No<br />

entanto, poucos dados desta natureza estão disponíveis ou são insuficientes para que<br />

possam ser realizados programas de gestão ambiental aptos a prever quando e onde irão<br />

surgir problemas. Conseqüentemente, a escassez de dados sobre a fisiologia básica dos<br />

organismos em seu ambiente natural faz com que a fisiologia da conservação abranja<br />

31


V Curso de Inverno<br />

diversas abordagens, incluindo levantamentos dos dados básicos em seus objetivos para<br />

poder comparar com os dados sobre o ambiente estressante, em vez de simplesmente<br />

realizar medições pós-impactos (Wikelski & Cooke 2006).<br />

Utilizando os métodos desenvolvidos pela fisiologia, os estudos sobre conservação<br />

são capazes de identificar os principais fatores ou períodos de como ou quando os<br />

organismos se tornaram estressados. Por exemplo, as diversas técnicas utilizadas na<br />

endocrinologia podem ser utilizadas para detectar os problemas de reprodução em cativeiro<br />

encontrados em diversas espécies, favorecendo terapias hormonais principalmente em<br />

espécies ameaçadas de extinção. Esses estudos também possibilitam agrupar casais em<br />

períodos reprodutivos sincronizado, a fim de facilitar a reprodução em cativeiro, todavia, tais<br />

medidas não desvalorizam a importância da conservação da vida selvagem em seu habitat<br />

natural (Wikelski & Cooke 2006). Outro exemplo são os estudos que têm demonstrado que a<br />

modificação física do ambiente e a introdução de poluentes causam alterações sobre<br />

diversos aspectos da fisiologia metabólica de vertebrados e invertebrados (Calow 1991;<br />

Zachariassen et al. 1991; Hopkins et al. 1998; Beyers et al. 1999; Barbieri et al. 2002; Carey<br />

2005). Já a diminuição do tamanho do habitat e o aumento da isolação dos organismos<br />

causada pela fragmentação, além de acarretam no aumento de extinções localizadas<br />

(Fahring & Merriam 1994; Zuidema et al. 1996; Drinnan 2005), podem atuar na seleção<br />

natural das espécies através de suas características fisiológicas, por exemplo, o<br />

desempenho locomotor (Navas & Otani 2007) ou até mesmo causar alterações hormonais<br />

prejudicando o ciclo reprodutivo (Suorsa et al. 2003; 2004).<br />

O estudo da energética também representa uma ferramenta importante para a<br />

fisiologia na avaliação toxicológica, possibilitando o estabelecimento de relações de causae-efeito<br />

entre os agentes estressores e as respostas obtidas nos diversos níveis de<br />

organização biológica (Clements 2000; Carlisle 2000). Apesar das ligações energéticas<br />

entre escalas não serem bem definidas, existem evidências de que a energética individual<br />

possa influenciar os padrões e processos do ecossistema (Parmelee 1995; DeAngelis<br />

1995). Diversas técnicas podem ser utilizadas, em campo, para avaliar o equilíbrio<br />

energético dos animais, com mínimo de estresse, como por exemplo: a biotelemetria, que<br />

nos possibilita detectar alterações comportamentais e fisiológicas (freqüência cardíaca,<br />

temperatura corpórea, taxa opercular, batimento caudal, da asa ou de outros apêndices) em<br />

tempo real, e a água duplamente marcada (quantificação de produção de CO2 através de<br />

isótopos (Speakman 1997; Nagy et al. 1999; Costa & Gales 2003).<br />

Utilizando os dados obtidos por esses estudos, a fisiologia da conservação também<br />

pode destacar os principais organismos mais vulneráveis aos diversos fatores estressores<br />

imposto pelo homem (Mangum & Hochachka 1998; Somero 2000; Costa & Sinervo 2004).<br />

Estudos sobre a susceptibilidade dos organismos diante aos fatores estressantes,<br />

juntamente com dados básicos a respeito de sua biologia e fisiologia, são essenciais para o<br />

desenvolvimento, ainda mais a longo prazo, de planos para monitorar os ambientes<br />

32


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

alterados (Carey 2005; Wikelski & Cooke 2006). Wikelski & Cooke (2006) sugerem que os<br />

programas de conservação sejam acompanhados de avaliações fisiológicas para que<br />

possamos obter uma compreensão geral dos problemas que concernem à conservação<br />

ambiental. Posteriormente, as estratégias de conservação devem ser disponibilizadas em<br />

um catálogo contendo os dados sobre os diversos tipos de manipulações utilizados para<br />

cada tipo de estressor, facilitando assim a divulgação integrada dos dados sobre todos os<br />

aspectos biológicos, fisiológicos e ecológicos das espécies juntamente com os programas<br />

de conservação já realizados, constando seus principais problemas e sucessos. De fato, a<br />

Rede de Observatório Ecológico Nacional (NEON - http:// www.neoninc.org/) já estão<br />

incluindo os parâmetros fisiológicos para o acompanhamento de diversas espécies de<br />

animais, a fim de tornar disponível a maior quantidade de dados para incorporá-los à metaanálises<br />

do impacto dos estressores sobre as populações (Wikelski & Cooke 2006).<br />

Tendo em vista que variabilidade na capacidade das diversas espécies de animais<br />

para tolerar a modificação antrópica do ambiente guarda relação como a fisiologia e a<br />

capacidade para manter o balanço energético e o equilíbrio interno (homeostase), o<br />

presente capítulo tratará de oito tópicos mais detalhadamente. Em primeiro lugar serão<br />

discutidos como alguns disruptores ambientais acarretam na deficiência imunológica dos<br />

organismos, tornando-os mais vulneráveis aos patógenos. Existem casos em que surtos de<br />

doenças podem estar relacionados a alguns casos de declínio e extinção de populações,<br />

como é o caso de algumas espécies de anfíbios. Em segunda estância, serão abordados os<br />

mecanismos comportamentais, fisiológicos e bioquímicos relacionados à depressão<br />

metabólica em diferentes grupos de vertebrados frente a variações ambientais sazonais, e<br />

de que maneira as acentuadas mudanças ambientais globais causadas pela ação do<br />

homem atuam sobre estes padrões e afetam a sobrevivência dos animais. Dando<br />

continuidade a este tema, serão realizados um estudo de caso sobre as alterações sofridas<br />

por um dos mais típicos bioma brasileiro, a Caatinga. Nesse momento, analisaremos como<br />

as atividades antrópicas estão alterando o bioma e quais as conseqüências sobre a<br />

fisiologia e, conseqüentemente, a aptidão das espécies ali presentes.<br />

Em quarto lugar, analisaremos como a resposta celular ao estresse está relacionada<br />

à proteção do organismo contra danos provocados pela exposição a uma ampla variedade<br />

de agentes estressores, como por exemplo, calor, luz ultravioleta, metais pesados e<br />

xenobióticos. Além de avaliar como essa resposta levam a conseqüências fisiológicas<br />

(disrupção endócrina, disfunções metabólicas, osmorregulatórias, reprodutivas) e ecológicas<br />

(influência sobre a distribuição geográfica, alteração sobre a dinâmica de populações e até<br />

mesmo a estrutura de ecossistemas). Como quinto tópico, termos uma visão mais detalhada<br />

de como o pH da água pode ser alterado e quais as suas conseqüências sobre os<br />

organismos aquáticos. Em seguida, será discutida a importância e os métodos de utilização<br />

dos biomarcadores como instrumentos que possibilitam a identificação de substâncias<br />

tóxicas ou uma condição adversa antes que sejam evidenciados danos à saúde organismal.<br />

33


V Curso de Inverno<br />

O sétimo tópico relatará a ação de disruptores endócrinos sobre os hormônios esteróides, e<br />

os seus efeitos na reprodução, principalmente, dos organismos aquáticos. Por fim, a<br />

construção de reservatórios nos rios será analisada com relação aos grandes impactos<br />

causados no ciclo de vida dos animais, relatando estudos de casos em peixes.<br />

Apesar de tratarmos principalmente sobre a fisiologia e conservação dos animais, é<br />

importante ressaltar que esta área também é relevante para outros organismos não animais.<br />

No caso das plantas, por exemplo, Pywell e colaboradores (2003) utilizou-se de dados<br />

fisiológicos para predizer o desempenho de pastagens e de reflorestamentos. Orth e<br />

colaboradores (2000) basearam-se em estudos sobre a fisiologia de dormência e<br />

germinação de sementes para projetos de conservação de plantas marinhas. Outros autores<br />

têm utilizado as informações sobre tolerâncias fisiológicas para predizer respostas de<br />

plantas marinhas (Beardall et al. 1997) e terrestres (Tilman & Lehman 2001) frente às<br />

alterações climáticas. Conseqüentemente, a diversidade e os padrões de distribuição de<br />

animais e plantas estão relacionados com o potencial de diferentes grupos sistemáticos para<br />

produzir ajustes comportamentais, morfológicos ou fisiológicos, ao longo de gradientes<br />

ecológicos espaciais e temporais. Dessa maneira, a fisiologia da conservação tem um papel<br />

fundamental ao estabelecer os limites ambientais que garantem a reprodução dos indivíduos<br />

e, conseqüentemente, a viabilidade das populações, comunidades e ecossistemas.<br />

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Revisado por José Eduardo de Carvalho<br />

37


V Curso de Inverno<br />

Mudanças Ambientais: Uma Perspectiva Imunológica<br />

Ananda Brito de Assis<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

ananda_wu@yahoo.com.br<br />

1. O Sistema Imunológico<br />

O conceito corrente de sistema imunológico está baseado em estudos realizados<br />

com humanos e outros mamíferos. Este sistema é caracterizado pelo conjunto de órgãos<br />

relacionados às reações imunológicas, à diferenciação e maturação das células<br />

encarregadas das respostas imunitárias (Manning & Turner, 1976). Este sistema possui<br />

grande eficiência na inativação e eliminação de organismos invasores, particularmente<br />

microrganismos patógenos, e na remoção de células mortas ou mutantes e constitui um dos<br />

mecanismos adaptativos mais importantes ao permitir a permanência dos organismos em<br />

ambientes potencialmente lesivos Considerado um dos maiores mecanismos fisiológicos<br />

reguladores da sobrevivência, esse sistema é de fundamental importância na<br />

sustentabilidade das populações (Russo 2001).<br />

O sistema imunológico compreende mecanismos inespecíficos e específicos. Os<br />

primeiros, protegem o corpo de qualquer material ou microorganismo estranho e tem duas<br />

linhas de ação: as barreiras naturais, como a própria pele, saliva, ácido clorídrico do<br />

estômago, a cera da orelha externa, as mucosas no geral, cílios, pêlos e outros. Os<br />

mecanismos específicos são caracterizados pela presença de células fagocitárias,<br />

substâncias antimicrobianas e aumento da temperatura, componentes do processo<br />

inflamatório. Se a inflamação não for eficiente para conter a invasão do patógeno, os<br />

mecanismos específicos são ativados, onde vários tipos celulares são recrutados<br />

(Abrahamsohn 2001; Russo 2001).<br />

A resposta imune compreende dois processos: a imunidade humoral, mediada por<br />

anticorpos, proteínas presentes no plasma e nas superfícies dos linfócitos que possuem<br />

especificidade com o antígeno; e a imunidade celular, mediada por células (Abrahamsohn<br />

2001) (Figura1). Tanto as células fagocitárias (fagócitos) quanto os componentes do sistema<br />

complemento, constituído por proteínas com atividade enzimática, são filogeneticamente<br />

mais antigos que os linfócitos (células de reconhecimento que dão início à etapa específica<br />

da resposta imune). Os fagócitos estão representados praticamente em toda a escala<br />

filogenética enquanto que os linfócitos só aparecem nos vertebrados, a partir de Agnatha.<br />

Da mesma forma, outros órgãos como o timo e o baço, assim como uma grande<br />

diversidade de moléculas da superfamília das imunoglobulinas (as moléculas-chave na<br />

imunologia) já aparecem a partir deste grupo de vertebrados (Marchalonis 1977).<br />

38


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

Figura 1: Esquema simplificado do dos mecanismos de defesa imunológica<br />

Fonte: http://www.afh.bio.br/imune/imune2.asp#propriedades<br />

1.1. O sistema imunológico nos diversos grupos<br />

1.1.1. Invertebrados<br />

Até a década de 70, considerava-se que invertebrados não possuíam sistema<br />

imunológico, isto este porque, segundo os estudos até aquele momento, nesses animais o<br />

sistema baseava-se apenas em fagocitose e detinham pouca especificidade. No entanto,<br />

esse paradigma foi quebrado quando estudos mostraram que nem todos os vertebrados<br />

possuem um sistema imunológico completo, ou seja, incluindo memória e reconhecimento<br />

com células-mediadas e reações imunes humorais. A partir disso, o sistema dos<br />

invertebrados, mesmo sendo, em complexidade, mais simples que a grande maioria dos<br />

vertebrados, passou a ser considerado.<br />

39


V Curso de Inverno<br />

Os invertebrados não secretam imunoglobulinas, mas hemaglutininas são<br />

encontradas em vários filos destes. Estas moléculas assemelham-se aos anticorpos dos<br />

vertebrados, uma vez que possuem um alto grau de especificidade, além de se ligarem a<br />

carboidratos específicos na superfície de células de maneira a formar receptores (Manning e<br />

Turner 1976). A imunidade célula-mediada específica surgiu muito cedo na evolução e é<br />

bem estabelecida nos invertebrados superiores. Apesar da grande diversidade de grupos, o<br />

padrão básico de resposta a um invasor e a injúria a um tecido nos invertebrados se<br />

mantém constante ao longo dos grupos desde amebas (Marchalonis 1977).<br />

1.1.2. Vertebrados<br />

O aparecimento e a evolução de um sistema de defesa altamente complexo e<br />

específico são evidentes nos vertebrados. O grupo dos Agnatha, primeiramente, possui os<br />

requerimentos funcionais básicos de um sistema imunológico: especificidade, memória e<br />

proliferação. Apesar disso, os organismos desse grupo não dispõem de um sistema linfóide<br />

tendo, por isso, limitações evidentes na resposta imune. Chondrichthyes e Osteichthyes já<br />

possuem um sistema imune bastante eficiente, com um timo definitivo e estrutura 2H-2L de<br />

imunoglobulina, possivelmente herdados de um ancestral Gnatostomata, além de um<br />

sistema linfóide funcional (Manning e Turner 1976).<br />

A passagem da água para a terra foi provavelmente a etapa mais importante na<br />

evolução dos vertebrados e envolveu profundas modificações no corpo dos indivíduos.<br />

Essas alterações podem ser percebidas no sistema imune dos anuros, onde o rim atua<br />

como um órgão linfóide, o esqueleto adquire adaptações provendo sítios para a medula<br />

óssea, a migração de células imunes dos vasos aos tecidos, torna-se mais eficiente, surgem<br />

grande diversidade de imunoglobulinas e os primeiros nódulos linfáticos.<br />

No grupo de animais ectotérmicos, justamente onde tem-se a maior quantidade de<br />

informações acerca da diversidade imunológica dos vertebrados. Comparados com muitos<br />

anfíbios, segundo dados disponíveis até o momento, alguns répteis mostram uma<br />

imunocompetência inferior e uma lenta diferenciação de órgãos linfóides. A organização<br />

desses órgãos é mais simples, em todos os grupos de répteis, quando comparada à<br />

observada em aves e mamíferos. Aves possuem um órgão linfóide primário, a “Bursa de<br />

Fabrício”, onde se diferenciam alguns anticorpos específicos. Neste grupo de animais e em<br />

mamíferos, a homeotermia proveu incremento na eficiência do sistema imune. Em<br />

mamíferos, a viviparidade, que envolve um complexo relacionamento materno-fetal,<br />

somado ao cuidado parental, permitem o estabelecimento populações celulares no sistema<br />

imune e isto favorece a heterogeneidade funcional, uma característica fundamental de<br />

mamíferos. Estes mecanismos permitem uma fina descriminação, especializações e<br />

refinamentos em mecanismos de feed-back que contribuem para a eficiência imunológica.<br />

Todas essas reações e interações ocorrem nos tecido linfóides. Nos mamíferos, os nódulos<br />

linfáticos são, em eficiência, uma inovação evolutiva, e são provenientes de órgãos<br />

40


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

rudimentares em outros vertebrados. Respostas de localização específica nas diferentes<br />

regiões dentro do sistema de nódulos linfáticos promovem reações discretas e bem<br />

controladas. Essa descrição do sistema imune torna evidente a progressão filogenética<br />

desse sistema e é de grande valor para os estudos de fisiologia comparada, podendo<br />

também ser utilizados em pesquisas conservacionistas (Manning &Turner 1976).<br />

2. Ambiente e Imunidade<br />

A influência do meio ambiente na saúde dos indivíduos deve ter sido observada a<br />

partir do momento em que se começou a pensar em doenças. Hipócrates em seus estudos<br />

sobre as causas dos estados doentios, já mencionava a importância do ambiente total<br />

nesses processos. Segundo dados da Wold Health Organization – WHO globalmente,<br />

estima-se que, 24% da sobrecarga doença (esperança de vida saudável perdidos) e 23%<br />

de todas as mortes (mortalidade prematura) foram atribuídos a fatores ambientais (Daszak<br />

et al. 2000; Prüss-Üstün & Corvalán 2006). Existe um senso comum de que fatores<br />

ambientais têm influência sobre o estado físico dos organismos. Todavia, são poucos os<br />

estudos que se aprofundam nessa temática, no sentido de investigar os mecanismos pelos<br />

quais os sinais ambientais ditam alterações fisiológicas que culminam em doenças.<br />

Devido ao histórico de epidemias que acometeram a população humana e estas<br />

terem sido apontadas atualmente como um importante fator de perda da biodiversidade, as<br />

“doenças infecciosas emergentes”, ou do inglês EIDs (Emerging Infectious Diseases) têm<br />

recebido atenção agora. Estas são definidas como doenças que: recentemente têm<br />

aumentado em incidência ou em extensão geográfica, circulam entre novas populações<br />

hospedeiras, foram descobertas recentemente ou envolvem novos patógenos. (Daszak<br />

2001) O aparecimento e evolução desses surtos de doenças devem-se a mudanças na<br />

ecologia do parasita, do hospedeiro, ou de ambos, resultado de fatores essencialmente<br />

antropogênicos. O impacto das mudanças ambientais humanas sobre as populações<br />

selvagens é claro e sem precedentes (Daszak et al. 2000).<br />

A expansão da população humana tem dirigido a emergência das doenças<br />

infecciosas mediante o aumento da densidade populacional, especialmente em áreas<br />

urbanas, e da invasão no habitat natural. O impacto sobre as populações selvagens<br />

certamente desequilibra relações ecológicas, como aquela patógeno-hopedeiro, promovida<br />

pela instalação e expansão da agricultura, introdução de espécies exóticas, destruição de<br />

habitat.<br />

41


V Curso de Inverno<br />

Tabela 1: Doenças infecciosas emergentes que envolvem humanos, animais domésticos e selvagens, suas<br />

posições geográficas e relação com o meio ambiente (Daszak et al. 2000).<br />

42


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

2.1.1. Mecanismos imunológicos em anfíbios<br />

Os mecanismos de resistência dos anfíbios aos patógenos envolvem o sistema<br />

imune inato bem como o sistema imune adaptativo. O sistema imune inato é aquele que<br />

promove proteção rápida e inespecífica. A primeira linha de defesa ocorre através da pele e<br />

do trato digestório, e é realizada por peptídeos antimicrobianos. Como todos os vertebrados,<br />

anfíbios também possuem células fagocíticas, macrófagos primários e neutrófilos que<br />

podem fagocitar diretamente um patógeno. Anfíbios compartilham com outros vertebrados<br />

um sistema complemento que pode matar diretamente o organismo invasor através de um<br />

complexo de ataque à membrana, e atua também em conjunto com anticorpos. Citotoxinas<br />

naturais produzidas por células “natural killers” (NK) também estão presentes, assim como<br />

em todos os vertebrados. O sistema imune adaptativo requer tempo para ser ativado,<br />

seguido da detecção de um antígeno. É altamente específico e promove a geração de<br />

memória celular. O sistema é composto de linfócitos T e B que expressam receptores de<br />

superfície celular e receptores imunoglobulinas (Ig). O Timo e o baço são órgãos linfóides<br />

central e periférico, respectivamente. Embora salamandras possuam a estrutura básica do<br />

sistema adaptativo imune, a resposta imunológica in vivo é tipicamente menos robusta que<br />

em anuros (Manning e Turner 1976; Carey et al. 1999).<br />

Dado que anfíbios possuem um aparato imunológico sofisticado, a mortalidade em<br />

massa desse grupo não pode ser atribuída simplesmente à possibilidade de mecanismos de<br />

defesa deficientes. Alguns fatores ambientais podem modular a resistência dos anfíbios aos<br />

patógenos:<br />

•Desenvolvimento: Durante a metamorfose, anfíbios anuros sofrem total reorganização de<br />

todos os sistemas fisiológicos, inclusive o sistema imune, sendo que mudanças<br />

decorrentes da metamorfose em urodelos são menos acentuadas. A imunocompetência<br />

completa não é alcançada até o momento após a metamorfose, pelo menos para as<br />

poucas espécies estudadas até o momento. Na ontogenia, a população de linfócitos<br />

expande durante o crescimento do girino e decresce acentuadamente em órgãos como o<br />

timo, o fígado e o baço durante o clímax da metamorfose. Quando a metamorfose é<br />

completada, a população de linfócitos expande novamente até alcançar os níveis da<br />

população do adulto, cerca de 4 a 8 meses. Linfócitos B também aumentam em duas<br />

ondas que são separadas pela metamorfose. Adicionalmente, o sistema imune é muito<br />

sensível à corticoesteróides, e estes têm uma alta produção durante a metamorfose, e a<br />

queda dos níveis dos parâmetros gerais durante esse período é atribuída à elevação dos<br />

níveis desse hormônio. A imunossupressão logo após e durante a metamorfose, torna os<br />

anfíbios susceptíveis às doenças. Alguns estudos afirmam que quando os girinos<br />

desenvolvem-se em condições de escassez de alimento eles metamorfoseiam tarde e em<br />

tamanho menor que o normal. Dessa forma, o sistema imune pode ser seriamente<br />

43


V Curso de Inverno<br />

comprometido. Deste modo, perturbação e destruição dos hábitats leva ao<br />

desenvolvimento e metamorfose em ambientes menos que o ótimo, isso poderia levar a<br />

uma perda de linfócitos maior que a normal e um concomitante aumento da<br />

susceptibilidade a doenças durante esse momento de transição (Rollins-Smith 1998).<br />

• Temperatura: Mudanças nas condições climáticas têm sido apontadas como um<br />

importante fator para o declínio das populações de anfíbios. Sabemos que o sistema<br />

imune em ectotérmicos é temperatura-dependente, por isso esse fator ambiental pode<br />

diretamente influenciar a susceptibilidade desse grupo às doenças infecciosas. Algumas<br />

taxas de componentes do sistema imune diminuem durante períodos de baixas<br />

temperaturas, o qual pode ser uma resposta adaptativa ao decréscimo do risco de<br />

adquirir uma infecção no inverno. Linfócitos e eosinófilos permanecem a níveis basais em<br />

baixas temperaturas, em anfíbios aclimatados, neutrófilos e fagócitos deprimem suas<br />

atividades inicialmente quando a temperatura cai, mas retornam aos níveis normais uma<br />

vez que o animal está aclimatado, sugerindo que esses parâmetros são temperaturadependente.<br />

O aumento da variabilidade das condições climáticas pode conduzir a<br />

períodos de imunossupressão mais longos ou mais freqüentes, o que tem implicações<br />

para a emergência das doenças e o potencial para as mudanças climáticas exacerbar o<br />

declínio dos anfíbios (Raffel et al. 2006; Marchalonis b 1977)<br />

• Pesticidas: Muitas substâncias, incluindo os pesticidas utilizados em agricultura,<br />

modulam a resposta imunológica podendo alterar tanto aspectos morfológicos quanto<br />

fisiológicos. Anfíbios expostos a pesticidas sofrem um decréscimo no número de células<br />

em órgãos linfóides, como o baço. O número de esplenócitos, por exemplo, é<br />

inversamente proporcional à quantidade do agente químico ao o indivíduo foi exposto,<br />

esse parâmetro indica, portanto, que mesmo a exposição prolongada a baixas<br />

concentrações, também têm efeito no sistema imune desses animais. Pesquisas<br />

mostram que rãs (Rana temporária) expostas a altas concentrações de inseticidas<br />

organofosforados possuíam baixos níveis de leucócitos no sangue, quando comparados<br />

a animais não expostos. Os mecanismos como ocorrem essas alterações ainda não são<br />

conhecidos; contudo, é possível que os contaminantes tenham um efeito citotóxico nas<br />

células hematopoéticas primordiais e/ou pode modificar a hematopoese. Esses<br />

contaminantes também modulam respostas-chave da imunidade, como a fagocitose, e<br />

também apresenta uma relação dose-resposta, ou seja, quanto mais alta a concentração,<br />

menor o número de fagócitos. Certos poluentes, por outro lado, têm a propriedade de<br />

hiper-estimular células imunes e conduzem, portanto, à reações de hipersensibilidade ou<br />

doenças auto-imunes, o que poderia induzir lesões em diferentes tecidos. Pesticidas<br />

também modulam a função-chave básica dos linfócitos, que reagem à estimulação<br />

antigênica, e estes adquirem certa incompetência de proliferar mesmo quando expostos a<br />

44


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

baixas concentrações de pesticidas. O estado de imunossupressão, decorrente da<br />

exposição aos pesticidas , leva portanto ao decréscimo da resistência a patógenos<br />

oportunistas (Vos et al. 1989; Christin et al. 2004).<br />

• Corticoesteróides: Nos anfíbios, a produção de hormônios corticoesteróides, pelo eixo<br />

hipotalâmico-pituitário-inter-renal (sistema neuro-endócrino), tem um efeito inibitório no<br />

sistema imunológico. Segundo alguns estudos, a exposição a esses hormônios reduz o<br />

tamanho do timo, em Rana perezi, devido à perda de linfócitos corticais, além da<br />

diminuição no número de linfócitos circundantes. A rejeição de tumores é diminuída por<br />

corticoesterona e aldosterona em Rana pipiens e o tratamento com corticoesteróides<br />

causa disseminação de doenças através da infecção desta espécie com o fungo<br />

Mycobacterium marinum. O efeito desses hormônios in vitro é evidente: inibição da<br />

proliferação de linfócitos, diminuição da viabilidade de esplenócitos e timócitos e indução<br />

de apoptose nos linfócitos. A observação dos corticoesteróides é importante no sentido<br />

de que fatores ambientais, como tóxicos químicos e radiação ultravioleta, considerados<br />

estressores, levam a uma ativação crônica do eixo neuro-endócrino e uma conseqüente<br />

liberação desequilibrada desses hormônios imunossupressores, favorecendo a<br />

susceptibilidade dos animais às doenças (Rollins-Smith 2001).<br />

2.2 Outros casos<br />

A diminuição da camada de ozônio resulta em um aumento na quantidade de<br />

radiação ultravioleta que alcança o solo, particularmente em altitudes elevadas. A exposição<br />

à radiação UV-B,portanto, pode exceder os níveis para os quais existem mecanismos de<br />

proteção imunológica. Mamíferos expostos à quantidades sub-letais dessa radiação podem<br />

ter a função imune suprimida, incluindo os humanos. Os efeitos no sistema imunológico são<br />

expressos imediatamente ou ao longo de anos. Ratos expostos a relativamente baixos<br />

níveis de UV-B, prejudicam a sua habilidade de rejeitar tumores e de detectar antígenos, o<br />

que leva a uma maior predisposição à infecções por fungos, bactérias, vírus e parasitas na<br />

pele (Carey et al. 1999).<br />

Estudos de laboratório com espécies de roedores, mostraram que o sistema<br />

imunológico pode ser afetado por um grande número de poluentes ambientais. Em<br />

conseqüência ao contato com esses químicos, as respostas imunes dependentes do timo<br />

são suprimidas e essa supressão é particularmente evidente durante o período perinatal, ou<br />

seja, durante o desenvolvimento do sistema imune (Vos et al. 1989).<br />

A maior preocupação quanto aos efeitos da contaminação por químicos tem sido<br />

focada nos ecossistemas aquáticos. Alterações em certos parâmetros imunológicos após a<br />

exposição à poluentes químicos tem sido demonstrada tanto em condições experimentais<br />

quanto no campo (Vos et al. 1989).<br />

45


V Curso de Inverno<br />

3. Considerações Finais<br />

Diante das condições atuais do ambiente terrestre e a desenfreada marcha pelo<br />

desenvolvimento, é urgente e necessário compreendermos de que forma a vida, em todas<br />

as suas formas, é afetada por esse processo. O sistema imunológico dos organismos é<br />

altamente reativo às mudanças externas e um importante mediador da integridade dos<br />

indivíduos, por isso, esforços no sentido de nos aprofundarmos nesse estudo fisiológico nos<br />

trarão, indubitavelmente, contribuições sem precedentes para a preservação da vida.<br />

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46


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

As Estratégias Comportamentais e Fisiológicas dos Animais<br />

Frente a Mudanças nas Condições Ambientais<br />

Lucas Francisco Ribeiro do Nascimento / Laura Haddad<br />

Laboratório de Tecidos Moles<br />

lribeiro_bio@yahoo.com.br<br />

Todo ser vivo necessita de um fornecimento contínuo de energia para realizar suas<br />

funções vitais. Nos vertebrados, o fornecimento de energia é garantido pela ingestão de<br />

alimento na forma de grandes moléculas, as quais são reduzidas a formas estruturalmente<br />

menores e mais simples no trato gastrintestinal, possibilitando seu transporte através de<br />

membranas celulares e, conseqüentemente, sua absorção e utilização nos processos<br />

metabólicos de conversão de energia.<br />

Toda a energia adquirida é geralmente usada nos processos metabólicos de<br />

manutenção, ou para crescimento e reprodução, ou perdida e eliminada, e esses<br />

componentes integram o orçamento energético (‘energy budget’) conforme a equação:<br />

Ein = Eperd + Eprod + Em,<br />

onde Ein é a energia ingerida na forma de alimento, Eperd é a soma da energia perdida, Eprod<br />

é a energia associada com a produção (crescimento e reprodução – produção de gametas)<br />

e Em representa a energia relacionada com o metabolismo de manutenção (Willmer et al.<br />

2000).<br />

A taxa de ingestão de alimentos varia com a massa corpórea e essa relação<br />

independe da dieta (Farlow 1976). Além disso, animais com baixas taxas metabólicas<br />

tendem a exibir menores taxas de ingestão, em contraposição a animais metabolicamente<br />

mais ativos. Outros fatores que influenciam a taxa de ingestão incluem os ciclos sazonais de<br />

crescimento, reprodução e acúmulo de estoques de gordura, os quais são intimamente<br />

relacionados a mudanças nas condições ambientais dados por variações no fotoperíodo,<br />

temperatura e disponibilidade de alimento. De acordo com o modelo apresentado por<br />

Speakman & Król (2005; figura 1), a taxa de ingestão alimentar e a transferência de energia<br />

nos animais, pode ser limitada centralmente pela capacidade do trato digestório de<br />

processar, assimilar e distribuir os nutrientes (A) ou perifericamente, pela capacidade dos<br />

tecidos de consumir a energia fornecida pelo trato digestório (B), pela capacidade de<br />

produção de calor (C) e ainda pela capacidade de excreção de produtos finais do<br />

metabolismo (D). Adicionalmente, a oferta de alimento no ambiente (E) representa um fator<br />

crítico, como evidenciam os vários exemplos de animais que apresentam longos períodos<br />

de inatividade e depressão metabólica sazonal em resposta à escassez de alimento. No<br />

conjunto, esses fatores atuam estabelecendo um ‘teto’ ou limite máximo da capacidade de<br />

transferência de energia nos animais, podendo agir diretamente ou, alternativamente,<br />

influenciar o investimento na captura e ingestão de alimento via sistema nervoso central.<br />

47


V Curso de Inverno<br />

Além disso, o cérebro pode também influenciar a taxa de ingestão devido a um sistema<br />

neuroendócrino que age independentemente do suprimento imediato de alimento.<br />

Figura 1 – Esquema do fluxo de energia em animais extraído de Speakman & Król (2005). As letras<br />

(A-E) e os triângulos indicam os possíveis pontos do sistema nos quais o fluxo pode ser limitado (ver<br />

explicações detalhadas no texto).<br />

O trato alimentar possui certa capacidade de estocagem, armazenando<br />

temporariamente o alimento ingerido. Adicionalmente, parte da energia proveniente dos<br />

nutrientes absorvidos e pode ser direcionada para dois tipos de estoques: estoques de<br />

curto-prazo, geralmente uma reserva de glicogênio no fígado e estoques de longo-prazo,<br />

geralmente lipídio depositado no tecido adiposo. Para o crescimento e reprodução, a<br />

energia poder ser retirada diretamente dos nutrientes ingeridos ou, excepcionalmente, da<br />

mobilização desses estoques energéticos no animal, além de ser usada nos processos<br />

celulares, termorregulação e contração muscular. Durante os processos metabólicos de<br />

conversão, parte da energia é perdida como calor ou eliminada como produto final de<br />

reações metabólicas como, por exemplo, compostos nitrogenados resultantes do<br />

catabolismo de proteínas. O restante pode ser eliminado na forma de compostos<br />

específicos, por exemplo, a perda de energia em secreções corpóreas. A limitação da<br />

48


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

capacidade funcional do trato digestório resulta numa ineficiência da utilização dos<br />

nutrientes, sendo a outra parte da energia ingerida perdida nas fezes.<br />

O custo energético associado com a ingestão, digestão, absorção e assimilação de<br />

nutrientes, comumente denominado ação dinâmica específica, resulta num aumento de<br />

30-40% do consumo de oxigênio basal ou de repouso. Em animais que se alimentam<br />

esporadicamente, como cobras boas e pítons, a ação dinâmica específica pode elevar a<br />

taxa metabólica a valores até 40 vezes maiores do que o observado na condição basal.<br />

Esse grande aumento resulta da regulação de processos que incluem um aumento da<br />

atividade de enzimas, transportadores e secreções gástricas e um rápido crescimento de<br />

órgãos que atrofiaram no jejum, como intestino, estômago, coração, fígado, pulmões e rins<br />

(Willmer et al. 2000). A atrofia desses órgãos no jejum, quando estão em desuso ou<br />

funcionando a taxas reduzidas, e a rápida recuperação de sua estrutura e capacidade<br />

funcional após a retomada da alimentação são exemplos notáveis de plasticidade fenotípica.<br />

O jejum prolongado ocorre naturalmente nos animais que se alimentam<br />

esporadicamente, em geral carnívoros restritos, ou quando algumas atividades competem<br />

com a alimentação ou forrageamento, como na reprodução de pingüins e focas ou durante o<br />

cuidado com os ovos e com as crias. Em outros casos, o jejum prolongado está associado a<br />

condições ambientais desfavoráveis, como o frio ou calor intenso, seca, hipóxia ou anóxia, e<br />

os animais exibem comportamentos compensatórios como a migração, em algumas<br />

espécies de aves e peixes, ou a dormência sazonal, em mamíferos hibernantes e anfíbios e<br />

répteis estivantes. Animais adaptados ao jejum exibem uma gama de respostas fisiológicas<br />

e comportamentais que incluem uma fase de preparação em antecipação ao fenômeno.<br />

Como um padrão geral, há formação de grandes reservas de água e nutrientes,<br />

principalmente lipídios, cuja contribuição para o período de jejum excede a de outros<br />

substratos. Durante o jejum, a perda evaporativa de água é minimizada por uma redução<br />

acentuada da ventilação e por barreiras químicas ou físicas no tegumento, como a secreção<br />

de muco ou a permanência em abrigos, os quais reduzem o grau de exposição da superfície<br />

corpórea ao ambiente. A geração de energia através do catabolismo de e proteínas é<br />

reduzida, e a redução da taxa metabólica basal é dada por uma diminuição das freqüências<br />

cardíaca e respiratória, da taxa de filtração renal e da atividade muscular (Storey 2002). Em<br />

contraposição, em animais migratórios, como certas aves, o jejum se dá sob condições<br />

extremas de exercício e está associado à formação de grandes reservas lipídicas e de<br />

proteínas, que são catabolizadas a taxas elevadas durante o período de vôo (McWilliams &<br />

Karasov 2001). Ambos os fenômenos envolvem ajustes fisiológicos semelhantes em<br />

resposta ao jejum, embora a dormência corresponda a uma versão em “câmara-lenta” e a<br />

migração ao modo “acelerado”. A pronunciada depressão metabólica que acompanha a<br />

dormência representa, portanto, uma alternativa que reduz a demanda energética,<br />

diminuindo o impacto das alterações do meio e prolongando o tempo de sobrevivência dos<br />

animais.<br />

49


V Curso de Inverno<br />

A sobrevivência dos animais que exibem dormência sazonal depende, em grande<br />

parte, de ajustes na estrutura e na função do trato gastrintestinal, em resposta a variações<br />

na demanda e suprimento energético. Tais ajustes podem ter sido favorecidos pela seleção<br />

natural, reduzindo o custo metabólico de manutenção no período em que o órgão encontrase<br />

em desuso. O intestino é o primeiro órgão a ser diretamente afetado por mudanças nas<br />

taxas de ingestão alimentar. Boa parte da energia ingerida é destinada à manutenção deste<br />

órgão, que apresenta um intenso metabolismo, dado principalmente pela atividade de<br />

transportadores e de síntese protéica, esta última para reposição de componentes celulares,<br />

que resulta em um elevado custo de manutenção do tecido, atingindo cerca de 20-30% do<br />

metabolismo basal em mamíferos (Tracy & Diamond 2005). Em mamíferos hibernantes se<br />

observa uma atrofia da musculatura do intestino e da camada mucosa durante a dormência,<br />

com diminuição pela metade do seu conteúdo protéico, causando um encurtamento da<br />

região das vilosidades. Embora as alterações observadas possam representar um potencial<br />

comprometimento da capacidade total de digestão e absorção do órgão, a arquitetura e a<br />

capacidade funcional do tecido por unidade de massa encontram-se bem preservadas ao<br />

final do período de dormência, inclusive se comparadas a de animais em plena atividade.<br />

Esta característica pode estar associada com a ocorrência de vários episódios de despertar<br />

durante o período total de dormência, típica de pequenos hibernantes, permitindo o<br />

reabastecimento de estoques celulares e a síntese de proteínas (Carey et al. 2003). Desse<br />

modo, apesar da atrofia, a preservação da capacidade funcional do tecido teria grande<br />

relevância na fase crítica que inicia na primavera, garantindo que o animal esteja apto a<br />

digerir e absorver nutrientes, ainda que parcialmente, logo após o despertar, quando os<br />

estoques corpóreos de energia encontram-se reduzidos e há um aumento do consumo de<br />

energia para o forrageamento e alimentação.<br />

Em contraste com mamíferos, a dormência sazonal em certos anfíbios e répteis é um<br />

processo contínuo ao longo de vários meses, não incluindo episódios de despertar, e a<br />

contribuição relativa do tecido intestinal para a economia energética na fase dormente pode<br />

ser maior que a observada em hibernantes típicos. Em lagartos teiú jovens, a depressão<br />

metabólica na dormência atinge 80% das taxas de repouso na fase de atividade (Souza et<br />

al. 2004) e é acompanhada de uma redução de 37% da massa do intestino médio. No<br />

retorno à atividade e retomada da alimentação, há um aumento de três vezes da massa total<br />

do órgão (Nascimento et al. 2007). Em sapos estivantes, a acentuada atrofia do intestino no<br />

período de dormência é seguida de uma recuperação total do órgão, em apenas 36 h após a<br />

realimentação, e ao término deste período o animal responde com um aumento de cinco<br />

vezes da massa intestinal (Cramp & Franklin 2005).<br />

A contribuição relativa de diferentes tecidos para a economia energética na<br />

depressão é variável. O intestino médio, o coração, o fígado e os rins perfazem apenas<br />

cerca de 1/8 da massa corpórea do rato, porém o custo energético de manutenção desses<br />

tecidos é cerca de 25% da taxa metabólica basal. Portanto, a atrofia e/ou redução da<br />

50


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

atividade destes órgãos na dormência sazonal resulta numa economia energética<br />

importante para os animais. Em contraste, o tecido muscular esquelético em condições de<br />

repouso consome energia a taxas muito reduzidas, porém, por ser o tecido mais abundante<br />

nos vertebrados, sua contribuição total para o metabolismo dos animais é também elevada e<br />

a diminuição da atividade contrátil em animais dormentes representa a principal fonte de<br />

economia energética no estado hipometabólico.<br />

A transição do estado ativo para o estado de dormência envolve uma depressão<br />

coordenada de ambos os processos de produção e de consumo de ATP, de forma a atingir<br />

um novo equilíbrio. A principal economia energética em diferentes grupos de animais é dada<br />

por uma acentuada diminuição das taxas de oxidação de substratos, de forma que as<br />

reservas internas tornam-se suficientes para a sobrevivência no jejum prolongado. Por outro<br />

lado, as taxas dos processos celulares que consomem energia encontram-se reduzidas,<br />

garantindo a manutenção do balanço energético no estado dormente e o pronto<br />

restabelecimento de funções vitais no despertar. A identidade dos processos celulares que<br />

constituem alvo da depressão e o grau de inibição de suas taxas têm sido objeto de intensa<br />

investigação. No rato, assim como em outros vertebrados, a atividade de síntese protéica e<br />

de transportadores de íons representa 48-66% do consumo total de ATP no estado basal ou<br />

de repouso (Figura 2) e estes processos constituem, portanto, importantes alvos de<br />

regulação no jejum e depressão metabólica.<br />

Os mecanismos envolvidos na regulação das taxas de processos celulares incluem<br />

expressão gênica diferencial de proteínas, alterações na taxa de síntese protéica por<br />

inibição da transcrição ou da etapa de tradução (RNAm ‘latente’), regulação do grau de<br />

fosforilação ou de defosforilação de proteínas, com conseqüente ativação ou inativação da<br />

molécula, aumento da meia-vida de proteínas por meio de uma diminuição da taxa de<br />

degradação das moléculas, redução do pH intra-celular com inibição da atividade de<br />

diversas enzimas, manutenção de gradientes iônicos com base na redução do vazamento<br />

de íons através das membranas (‘channel arrest’) e/ou de mudanças na composição lipídica<br />

da membrana mitocondrial levando a uma alteração do vazamento de prótons (Storey &<br />

Storey 2004). Estes mecanismos, no conjunto, promovem uma reorganização do<br />

metabolismo celular e uma inibição das taxas de funções vitais, permitindo a extensão do<br />

limite de tolerância dos animais ao jejum e a sua sobrevivência em condições desfavoráveis<br />

à alimentação.<br />

51


V Curso de Inverno<br />

Consumo de O2<br />

Metabolismo Basal<br />

Mitocondrial<br />

90%<br />

Oxidases<br />

10%<br />

ATP<br />

80%<br />

Vazamento de prótons<br />

20%<br />

Síntese<br />

protéica<br />

Na + K + ATPaseCa + ATPase<br />

19-28% 4-8%<br />

ActMio Uréia<br />

ATPase<br />

2-8% Gliconeo 3%<br />

7-10%<br />

mRNA, outros canais<br />

e bombas, etc.<br />

Figura 2- Esquema geral do consumo de oxigênio no metabolismo basal de ratos, dentro e fora da<br />

mitocôndria, e da proporção do consumo de ATP dada por diferentes processos do metabolismo<br />

celular (baseado em Rolfe & Brow 1997). Do oxigênio consumido pela mitocôndria, 80% é acoplado à<br />

síntese de ATP e 20% é perdido no vazamento de prótons através da membrana mitocondrial interna.<br />

As proporções representam a média do consumo de ATP em diferentes tecidos.<br />

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52


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

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Willmer P, Stone G, Johnston I (2000). Environmental Physiology of Animals. 1ª ed. Oxford: Blackwell<br />

Science Lt<br />

Revisado por Silvia Cristina Ribeiro de Souza<br />

53


V Curso de Inverno<br />

Fisiologia e Conservação das Caatingas<br />

Isabel Cristina Pereira<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

belcristina@gmail.com<br />

As caatingas formam um domínio morfoclimático exclusivo do Brasil (Ab’Saber 1974)<br />

ocupando uma área de aproximadamente 800.000 Km 2 , o correspondente a quase 10% do<br />

território nacional, caracterizado por índices pluviométricos baixos, ventos fortes e secos,<br />

além de temperaturas elevadas (Souza Reis 1976, Fernandes 1999), características típicas<br />

de um ambiente semi-árido, com longos períodos de estiagem. O nome Caatinga tem<br />

origem Tupi-Guarani e significa floresta branca, o qual descreve o aspecto do ambiente<br />

durante a estação seca (Peralta & Osuna 1952). Um traço marcante das caatingas é a perda<br />

parcial ou total de folhas durante a estação seca (figura 1). A vegetação é basicamente<br />

composta por cactáceas, bromeliáceas, euforbiáceas e leguminosas, encontradas<br />

praticamente em todo seu domínio. As obras do geógrafo Ab’Saber descrevem diferentes<br />

faces, rochas e solos com origens desiguais neste ambiente. Na sua grande maioria os<br />

solos são rasos e litólicos com afloramentos rochosos. Os solos deste domínio estão<br />

sofrendo processos intensos de desertificação ao longo dos anos, devido à substituição da<br />

vegetação natural por culturas, principalmente através de queimadas e mesmo sob essas<br />

condições apenas 2% do solo está protegido como unidade de conservação (Tabarelli et al.<br />

2000).<br />

Figura 1 – Aspecto da vegetação sem folhas durante a estação seca, em dezembro de 2006, três<br />

meses antes da primeira chuva da estação chuvosa.<br />

54


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

O'Connor e colaboradores da Universidade de Michigan mostraram dois estudos<br />

sobre o impacto que as alterações ambientais podem causar sobre répteis e anfíbios. Eles<br />

utilizaram modelos biofísicos para predizer a localização de fontes de água, alimentos e do<br />

animal no ambiente. Para isso, combinaram dados micrometeorológicos do ambiente que<br />

foram ligados pela massa e pela equação do balanço termal do organismo, com dados<br />

termais e fisiológicos dos animais. Eles mostraram que no lagarto Sceloperous merriami, do<br />

Texas (EUA) as mudanças climáticas podem influenciar diretamente no sucesso reprodutivo.<br />

Utilizando um extenso trabalho de campo, baseado no modelo de ciclagem de energia<br />

química e termal eles perceberam que o tempo de exposição do animal no ambiente para o<br />

forrageamento está diretamente ligado à previsão da temperatura corpórea do animal. Além<br />

disso, O'Conner e colaboradores estudaram o impacto das alterações de habitat na<br />

atividade e na dinâmica populacional de rãs Rana sylvatica. Neste estudo foi demonstrado<br />

que as rãs são ativas nos períodos chuvosos, mas sob condições de seca, procuram refúgio<br />

para evitar a desidratação excessiva. Dessa forma, esse trabalho sugere que mudanças<br />

ambientais bióticas ou abióticas podem resultar em estresse fisiológico, podendo alterar a<br />

taxa de mortalidade e a dinâmica de uma população (Tracy et al. 2006). Esses fatores<br />

poderiam de certa forma ocorrer durante o atual processo de transformação que é<br />

observado nas caatingas brasileiras e, consequentemente, modificando o cenário atual de<br />

distribuições de espécies nativas.<br />

A caatinga aparentemente pode ser vista como um ambiente inóspito para os<br />

anfíbios anuros. Contudo a anurofauna desta região é bem conhecida (figura 2), sendo<br />

encontradas pelo menos 48 espécies (Rodrigues 2003). Baseado nos ciclos anuais de seca<br />

e chuva, alguns autores têm sugerido que estas alterações sazonais determinam o modelo<br />

do período de atividade para a hepertofauna local, em particular para os anfíbios, que são<br />

estritamente dependentes das condições do ambiente (Abe 1995). Para ectotermos<br />

terrestres mudanças no ambiente e no perfil da temperatura corpórea podem alterar o<br />

balanço energético, devido a alterações no metabolismo energético e na digestão (Henen et<br />

al. 1998 e Somero 2002).<br />

Em certos grupos de animais a sobrevivência durante o período de estiagem está<br />

associada ao comportamento de estivação (Abe 1995, Storey & Storey 1990, Pinder et al.<br />

1992). Estivação pode ser entendida como um conjunto de estratégias adotadas para<br />

sobrevivência em condições áridas, mas esta também pode estar associada com a falta de<br />

alimentação e com altas temperaturas. Esta estratégia comportamental envolve processos<br />

bastante complexos que dependem de precisos ajustes metabólicos a fim de otimizar as<br />

funções do organismo durante os meses mais adversos. Essas mudanças incluem uma<br />

maior dependência do uso de lipídeos e uma baixa taxa de gluconeogênese de glicerol ou<br />

aminoácidos para manter o suplemento de glicose no organismo (Fuery et al. 1998).<br />

Particularmente em anfíbios, a estivação é também caracterizada por uma drástica redução<br />

na respiração cutânea com conseqüente redução da perda de água (Guppy & Withers 1999,<br />

55


V Curso de Inverno<br />

Abe 1995, Guppy et al. 1994, Hochachka & Guppy 1987).<br />

Figura 2 – Alguma das espécies de anfíbios encontradas nas Caatingas. As espécies acima<br />

representadas foram encontradas na região de Angicos/RN durante a estação chuvosa. (A)<br />

Pleurodema diplolistris, (B) Chaunus jimi, (C) Corynthomantis greeningi, (D) Proceratophys cristiceps,<br />

(E) Physalaemus e (F) Phyllomedusa nordestina.<br />

A estivação também é caracterizada pela redução da taxa metabólica, processo<br />

aparentemente desencadeado em resposta a diminuição da disponibilidade de recursos<br />

tróficos, hídricos ou a exposição à altas temperaturas que acompanham a seca, e parece<br />

contribuir para manutenção do balanço energético no organismo como um todo,<br />

promovendo sua sobrevivência durante esta fase (Pinder at al. 1992). Para certos grupos de<br />

animais, o hipometabolismo que acompanha a estivação é tipicamente caracterizado pela<br />

diminuição dos movimentos, da alimentação, dos batimentos cardíacos e da atividade<br />

56


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

cerebral, (Secor 2005, Storey & Storey 1990, Pinder et al. 1992), assim como parece estar<br />

diretamente associado a importantes modificações nos processos bioquímicos em diversos<br />

tecidos (Hochachka & Somero 1984). Um dos ajustes metabólicos mais visíveis está<br />

relacionado com o acúmulo prévio de reservas energéticas em adição à redução da taxa<br />

metabólica, o que parece sustentar não somente a fase depressiva, mas também a<br />

retomada da atividade durante a re-hidratação (Pinder et al. 1992, Storey & Storey 1990.<br />

No Brasil determinadas espécies de anuros que se mantêm em atividade durante os<br />

meses de estiagem, adotam estratégias alternativas para evitar a perda excessiva de água<br />

neste período. A rã Corythomantis greening, possui a pele da cabeça co-ossificada, esse<br />

animal pode se esconder em pequenos refúgios como fendas em árvores e utilizar sua<br />

cabeça como proteção, uma espécie de tampa, na entrada do esconderijo, o que lhe confere<br />

proteção e auxilia secundariamente na economia de água, ela não se enterra, mas fica entre<br />

fendas nas rochas em estado hipometabólico (Jared et al. 2004). Já os sapos Chaunus jimi<br />

mantém suas atividades mesmo durante a seca, fato que pode estar associado à camada<br />

de grânulos de cálcio (Toledo & Jared 1993), que aparentemente, só não estão presentes na<br />

região dorsal próxima à virilha, local por onde os animais obtêm água do ambiente. Além<br />

disso, estes animais usualmente procuram proteção em microhabitats úmidos e são ativos<br />

apenas à noite quando a temperatura corpórea e as perdas de água são diminuídas (Abe<br />

1995). Alguns outros sapos, como os da espécie Proceratophrys cristiceps, se enterram<br />

durante o período de seca a profundidades que podem atingir mais de 1 metro (Navas et al.<br />

2004); contudo, não se sabe se conhece até o momento a natureza metabólica de tal<br />

comportamento. O fato é que para o sucesso dessa estratégia algumas variáveis físicas no<br />

solo são importantes como a temperatura, a quantidade de água, a concentração de gases<br />

respiratórios e o tipo de solo (Pinder et al.1992). Além disso, os animais enterrados no solo<br />

podem passar por estados sazonais de hipóxia, com conseqüentes implicações<br />

metabólicas. Estes animais devem exibir ajustes comportamentais que favorecem o<br />

aumento na captação da água através da pele (uma vez que anfíbios não bebem água), o<br />

que leva ao aumento do volume da bexiga, habilidade esta desenvolvida para sobreviver em<br />

condições desfavoráveis, quase sempre associadas a formação de uma capa (casulo) para<br />

proteção contra perda de água.<br />

Do ponto de vista celular, alguns mecanismos podem ser identificados na transição<br />

do estado ativo para o hipometabólico em anuros. Rana temporaria, por exemplo, apresenta<br />

uma redução na atividade de enzimas do metabolismo energético no músculo esquelético,<br />

mostrando uma reorganização da produção energética durante a depressão metabólica (St-<br />

Pierre & Boutlier 2001). Já em Bufo paracnemis a diminuição da temperatura corpórea<br />

associada a uma série de respostas fisiológicas à hipóxia contribui para a manutenção da<br />

homeostase do organismo durante a seca ou quando há escassez de alimento (Bicego-<br />

Nahas et al. 2001). Adicionalmente, é reconhecida a capacidade dos anfíbios de tolerarem a<br />

desidratação, chegando estes a suportar uma taxa de até 30% de perda de água do corpo,<br />

57


V Curso de Inverno<br />

enquanto para mamíferos esta taxa chega, no máximo, a 12%. Para sapos do deserto que<br />

estivam, a taxa de desidratação pode chegar a 50%, como visto nos sapos do deserto do<br />

Arizona, que se alimentam por aproximadamente três meses e se enterram pelos outros<br />

nove meses do ano, período no qual eles precisam enfrentar altas taxas de desidratação.<br />

As mudanças ambientais podem afetar o desempenho fisiológico dos animais. O<br />

aquecimento global pode provocar uma mudança no seu desempenho. Ocorrendo o<br />

aumento na temperatura da Caatinga, e conseqüentemente uma diminuição na quantidade<br />

de água disponível, os animais precisarão passar mais tempo em um estado<br />

hipometabólico. Isto provocará uma maior demanda de reservas energéticas a serem<br />

adquiridas durante o período de chuva, todavia, o encurtamento deste período dificulta a<br />

estocagem dessas reservas.<br />

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Revisado por José Eduardo de Carvalho<br />

59


V Curso de Inverno<br />

Implicações Ecofisiológicas nos Mecanismos de Adaptação<br />

Celular a Estressores Ambientais<br />

Tiago Gabriel Correia<br />

Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos<br />

tigabriel@usp.br<br />

Os organismos aquáticos são constantemente afetados pelos fatores abióticos<br />

(físicos e químicos) do ecossistema ao qual pertencem, sendo assim, situações em que tais<br />

fatores tornam-se agentes estressores são inevitáveis. Diante deste quadro, quando os<br />

mecanismos fisiológicos para a manutenção da homeostase excedem sua capacidade<br />

reguladora, ocorre a manifestação de “respostas extremas” e estresse.<br />

A resposta celular ao estresse está relacionada à proteção do organismo contra<br />

danos provocados pela exposição a uma ampla variedade de potenciais agentes<br />

estressores, como por exemplo, disponibilidade de oxigênio, temperatura, luz ultravioleta,<br />

metais pesados e xenobióticos.<br />

As características estruturais e funcionais de um organismo, em geral, parecem ser<br />

especializadas para aumentar as chances de sucesso no ambiente em que se encontra.<br />

Durante a evolução, o metabolismo celular e conseqüentemente a estrutura e função dos<br />

componentes celulares se adaptaram às condições ambientais e celulares (Portner 2002).<br />

Organismos aeróbios utilizam o oxigênio para uma eficiente produção de energia sob<br />

a forma de ATP, mas durante os processos fisiológicos e metabólicos essenciais para as<br />

células ocorre o surgimento de moléculas altamente reativas chamadas de radicais livres, ou<br />

espécies reativas de oxigênio (ERO), por exemplo, o O2 - e OH - .<br />

O estresse oxidativo (EO) ocorre em circunstâncias nas quais os radicais livres<br />

causam danos às células. Esta situação se manifesta quando surge um desequilíbrio entre o<br />

aumento de radicais livres e as defesas antioxidantes, de maneira que os primeiros sejam<br />

predominantes. Um dos principais mecanismos de lesão nas células é a lipoperoxidação, ou<br />

seja, a oxidação da camada lipídica da membrana celular; além disso, o EO pode gerar<br />

danos as proteínas e ao DNA, provocando diversas alterações na função celular e no<br />

organismo como um todo.<br />

As ERO estão sempre sendo produzidas em pequenas quantidades durante o<br />

metabolismo aeróbio normal, cerca de 2-3%, e é importante destacar que todas as células<br />

apresentam mecanismos para defender-se contra estas moléculas, tais mecanismos de<br />

defesa celular são conhecidos como defesas antioxidantes (Gille & Sigler, 1995). As defesas<br />

antioxidantes podem ser enzimáticas, destacando-se as seguintes enzimas: Catalase (CT),<br />

Superoxido dismutase (SOD) e a Glutationa peroxidase (GPX); e em defesas não<br />

enzimáticas (vitamias A, C, E, β caroteno, entre outras) (Schneider & Oliveira 2004).<br />

Eventos de estresse oxidativo ocorrem quando a molécula de O2 recebe um elétron,<br />

dando origem ao ânion superóxido (O2 - ), que por sua vez, pode-se ligar a dois átomos de<br />

60


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

hidrogênio (H), dando origem ao peróxido de hidrogênio H2O2 (dismutação), esta reação é<br />

catalisada pela enzima SOD, enquanto que a CT e a GPX são as enzimas que eliminam as<br />

moléculas de H2O2, evitando dessa forma o aumento de radicais hidroxil OH - (YU 1994).<br />

A exposição a xenobióticos pode resultar na diminuição da capacidade do organismo<br />

em manter suas defesas antioxidantes em perfeito funcionamento, o que acarreta em<br />

estresse oxidativo (Sohal et al. 2002). Eventos desta natureza tem sido o cerne de muitos<br />

estudos toxicológicos com organismos aquáticos, pois efeitos podem ser observados nos<br />

processos reprodutivos de muitas espécies, tais como peixes e invertebrados marinhos, e<br />

conseqüentemente, perturbações sobre a estrutura populacional e trófica das comunidades<br />

aquáticas (Livingstone et al. 1992).<br />

Além das enzimas antioxidantes, as células possuem outros mecanismos de<br />

proteção à sua integridade contra estressores tanto naturais como antrópicos. Da mesma<br />

forma que as enzimas antioxidantes, o sistema enzimático P450, as proteínas de choque<br />

térmico (do inglês Heat Shock Proteins, ou HSPs) e o complexo MXR, podem ser utilizados<br />

como biomarcadores para uma ampla variedade de agentes estressores.<br />

O conjunto de proteínas conhecidas como MXR (mecanismo de resistência múltipla a<br />

xenobióticos), ou também conhecido como glicoproteína-P (Pgp), são proteínas de<br />

membrana que transportam ativamente xenobióticos e substâncias tóxicas para o meio<br />

extracelular e impedem que estas se acumulem no interior da célula (Endicott & Ling 1989).<br />

Estas proteínas têm sido encontradas desde microorganismos, a plantas e animais (Higgins<br />

1992); sua importância para os organismos aquáticos tem sido observada pelo seu potencial<br />

em proteger contra danos no núcleo e evitar efeitos negativos sobre a divisão celular<br />

durante o desenvolvimento embrionário (Toomey & Epel 1993). Estas proteínas são<br />

passíveis de ser induzidas por poluentes, o que permite sua utilização como biomarcador<br />

em programas de monitoramento ambiental.<br />

A nível celular, todos os organismos respondem ao estresse com o aumento na<br />

síntese de proteínas de baixo peso molecular, chamadas de proteínas de estresse (HSPs).<br />

Estas proteínas foram observadas pela primeira vez em células de Drosophila melanogaster<br />

expostas a altas temperaturas e ficaram conhecidas como proteínas de choque térmico.<br />

Funcionalmente, atuam como chaperonas e auxiliam a manter a estrutura de outras<br />

proteínas celulares, ajudando no enovelamento, dês-enovelamento e transporte, além de<br />

impedirem que proteínas malformadas se acumulem e possam ser nocivas.<br />

As HSPs (chaperonas) também estão envolvidas no transporte de proteínas para<br />

dentro de compartimentos da célula (organelas, núcleo) garantindo dessa forma que a<br />

conformação apropriada seja mantida (Cohler et al., 1996). O papel destas proteínas é<br />

fornecer proteção, e sua rápida expressão (síntese) está correlacionada a enfrentar eventos<br />

de estresse, por exemplo, térmico, como também de se recuperar deste tipo de estresse.<br />

(Portner 2001). As HSPs estão subdivididas de acordo com seu peso molecular:<br />

HSP90,HSP70, HSP58, HSP20-30 e 8-kDa.<br />

61


V Curso de Inverno<br />

Atualmente sabe-se, que uma ampla variedade de estressores pode induzir o<br />

aumento na síntese destas proteínas, mas além das HSPs, as metalotioneínas podem ser<br />

incluídas como proteínas cuja síntese aumenta na presença de contaminantes metálicos<br />

(Pedersen et al. 1997).<br />

A presença de xenobióticos impõe sobre as células a necessidade de se ativar<br />

mecanismos de desintoxicação, neste caso, as respostas biológicas dependem da<br />

conversão do xenobiótico em uma substância (metabólito) inofensiva, ou com menor<br />

toxicidade (biotransformação) sempre com a finalidade primordial de eliminação do<br />

metabólito resultante. Entretanto, nem sempre os xenobióticos tornam-se inativos, pois<br />

algumas vezes sua toxicidade se eleva (bioativação) podendo-se observar danos ao DNA<br />

(Franco & Franco 2003).<br />

As reações de biotransformação são catalisadas por enzimas distribuídas em todo<br />

organismo. Entre este grupo de enzimas, existem as enzimas microssomais, que se<br />

localizam predominantemente na superfície do retículo endoplasmático liso e constituem as<br />

monoxigenases de função mista, ou o sistema citocromo P450, que possui importantes<br />

funções metabólicas, além de ser aquele que primeiro apreende e inativa vários<br />

xenobióticos no organismo (Franco & Franco 2003).<br />

Os efeitos causados por poluentes e pelas mudanças ambientais afetam muitos<br />

ecossistemas terrestres e marinhos. Estes efeitos, quando persistentes, estendem-se além<br />

das conseqüências de estresse celular e acabam alcançando conseqüências fisiológicas e<br />

ecológicas muitas vezes irreversíveis. A análise de diferentes biomarcadores celulares,<br />

apresentados pelos organismos como resposta a agentes estressores, constitui um elo<br />

importante para a conservação das espécies neste período de profundas mudanças<br />

impostas pelo homem sobre toda a biosfera.<br />

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Revisado por Renata Guimarães Moreira<br />

63


V Curso de Inverno<br />

Efeito do pH em organismos aquáticos<br />

Marina Granado e Sá<br />

Laboratório de Fisiologia de Crustáceos<br />

marinagranado@usp.br<br />

A vida surgiu no planeta há mais ou menos 3,5 bilhões de anos. Desde então, o<br />

ambiente modifica a biosfera. Em função das condições de temperatura e pressão que<br />

passaram a ocorrer na Terra, houve um acúmulo de água em sua superfície, nos estados<br />

líquido e sólido, formando-se assim o ciclo hidrológico.<br />

A importância da água para a vida terrestre é inegável. Não há ser vivo sobre a face<br />

da Terra que possa prescindir de sua existência e sobreviver.<br />

Mesmo assim, outros<br />

aspectos desta preciosidade também podem representar sérios riscos à vida (CETESB).<br />

O desenvolvimento das cidades sem um correto planejamento ambiental resulta em<br />

prejuízos significativos para a sociedade. Uma das conseqüências do crescimento urbano<br />

foi o acréscimo da poluição doméstica e industrial, criando condições ambientais<br />

inadequadas e propiciando o desenvolvimento de doenças, poluição do ar e sonora,<br />

aumento da temperatura, oscilações de pH das águas e contaminação da água subterrânea,<br />

entre outros problemas.<br />

Atualmente, muitos fatores interferem nesse ciclo, comprometendo a qualidade das<br />

águas urbanas. O desenvolvimento e o crescimento das cidades geram o acréscimo da<br />

poluição doméstica e industrial, propiciando o aumento de sedimentos e material sólido,<br />

bem como a contaminação de mananciais e das águas subterrâneas.<br />

As águas residuais transportam uma quantidade apreciável de materiais poluentes<br />

que se não forem retirados podem prejudicar a qualidade das águas dos rios,<br />

comprometendo não só toda a fauna e flora destes meios, mas também, todas as utilizações<br />

que são dadas a estes meios, como por exemplo, a pesca, balneabilidade, navegação e<br />

geração de energia, dentre outros.<br />

O Brasil tem grande potencial para aqüicultura, principalmente por deter recursos<br />

hídricos abundantes, ictiofauna privilegiada e praticamente inexplorada. Também apresenta<br />

um clima favorável ao crescimento da maioria das espécies (Valenti 2000). A condição do<br />

meio em que os organismos vivem é de fundamental importância para que ocorra um bom<br />

desenvolvimento e sobrevivência de peixes cultivados, de modo que deve existir sempre<br />

uma preocupação com a qualidade da água nos tanques de criação e em ambiente aberto<br />

(Tavares 1994).<br />

No cultivo de peixes existem muitos fatores que alteram a qualidade da água, como a<br />

presença excessiva de fitoplâncton, plantas aquáticas e algas, as quais causam redução da<br />

concentração de oxigênio e aumento de CO2 e conseqüente redução de pH (Pavanelli et al<br />

2002). Sendo assim, é de grande importância o estudo da tolerância e sensibilidade dos<br />

animais aos diferentes pHs da água, assim como observar o desempenho dos peixes nestas<br />

condições.<br />

64


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

A sigla pH vem do latim “pondus hidrogenii”, significando peso do hidrogênio. A<br />

variação do pH (potencial hidrogênio iônico), definido como logaritmo decimal do inverso da<br />

concentração de íons livre de H + , comanda as inúmeras reações químicas das águas,<br />

caracterizando o grau de acidez ou de alcalinidade, ou seja, indicando as relações entre<br />

esses íons de H + com os íons de oxidrilos. Se houver equivalência entre eles, a água é<br />

caracterizada como neutra, mas se houver predominância de íons H + , é ácida e caso<br />

contrário, com o predomínio dos íons oxidrilos, a água é considerada alcalina.<br />

A variação de pH comanda reações químicas da água, caracterizando grau de acidez ou<br />

alcalinidade. Sabe-se que águas com pH inferior a 8.5 (não 7) contêm ácidos fracos e<br />

ácidos minerais fortes. Águas doces alternam-se com pH entre 4 e 8 e as estuarinas de 6 e<br />

8. O pH da água pura é 7 e varia no sentido contrário da temperatura (quanto maior a<br />

temperatura da água, menor pH). Os limites de pH para proteção da vida aquática variam<br />

entre 6 e 8, mas peixes e outros organismos aquáticos podem sobreviver a valores iguais ou<br />

menores que pH 5. Quando o pH se torna ácido, certas substâncias ou elementos metálicos<br />

tornam-se tóxicos, como o metilmercúrio, formado a partir do íon Hg e CH4, em pH restrito,<br />

entre 5 e 6, e logicamente na presença de certas matérias orgânicas.<br />

Por influir em diversos equilíbrios químicos que ocorrem naturalmente ou em<br />

processos unitários de tratamento de águas, o pH é um parâmetro importante em muitos<br />

estudos no campo do saneamento ambiental, já que possui efeito direto sobre o<br />

metabolismo e os processos fisiológicos de peixes e outros organismos aquáticos. A faixa<br />

de tolerância de pH para os peixes está compreendida entre 4 e 9, enquanto que o índice<br />

ideal é entre 6.5 e 8.0 (Wurts & Durborow 1992).<br />

Alterações no pH da água pode afetar o funcionamento branquial, o que prejudica o<br />

equilíbrio osmótico e a respiração. Valores extremos de pH prejudicam o crescimento e a<br />

reprodução dos animais, e até mesmo, podem causar mortalidade massiva dos sistemas<br />

aquáticos, principalmente nas fases iniciais de desenvolvimento (Kubitza 2003). Por outro<br />

lado, o pH também é importante porque afeta a toxicidade de vários poluentes comuns<br />

(como amônia) e metais pesados (como alumínio).<br />

Nas espécies nativas do Brasil pouco se sabe sobre a tolerância às variações na qualidade<br />

da água. O pacu, Piaractus mesopatamicus, encontrado na América do Sul, com<br />

distribuição entre a região Amazônica e bacia Paraná-Paraguai (Severi 1991) é uma espécie<br />

tolerante às variações nas características físico-químicas da água. Habita a bacia<br />

Amazônica e é encontrado em lagos e planícies aluviais que estão muitas vezes hipóxicos<br />

ou mesmo anóxicos. Estes ambientes também estão sujeitos a grandes variações no<br />

conteúdo de CO2/pH devido decomposição de consideráveis quantias de matéria orgânica<br />

em altas temperaturas (Rantin & Kalinin 1996). Segundo Florido (2002) tanto tambaqui<br />

(Colossoma macropomum) quanto o pacu apresentam adaptações morfo-fisiológicas para<br />

suportar águas ácidas, principalmente na época da seca.<br />

65


V Curso de Inverno<br />

Muitos trabalhos confirmam que os efeitos do pH da água em peixes depende da<br />

idade e dos estágios de desenvolvimento; até mesmo a curto prazo a variação do pH pode<br />

influenciar negativamente a população de peixes (Lloyd & Jordan 1964). A tolerância e a<br />

sensibilidade ao pH difere entre as espécies (Daye e Garside, 1997) carpas (Cyprymus<br />

carpio), por exemplo, em pH 8.0 apresentam 11% de mortalidade. Em pH 5.0 ocorrem<br />

mortalidade de 32%, diferente do que foi observado em alevinos de pacu. Com relação à<br />

sobrevivência em águas alcalinas, certas espécies sobrevivem, e inclusive se reproduze, em<br />

locais com pH próximo de 10.0 (Danulat & Selcuk 1992). Quando teleósteos são expostos à<br />

água alcalina, há imediata redução na excreção da amônia, de modo que sua concentração<br />

no plasma sofre aumento (Wilkie & Wood 1996). As brânquias também são as mais<br />

afetadas quando há eventual stress alcalino. Wilkie e Wood (1996), em experimentos com<br />

salmonideos, demonstraram que pH alcalino da água causa sérios distúrbios na excreção e<br />

regulação interna da amônia, balanço ácido-básico e regulação iônica.<br />

Dessa forma, as restrições de faixas de pH são estabelecidas para as diversas<br />

classes de águas naturais, tanto de acordo com a legislação federal (Resolução Conama,<br />

20/06/1986), como pela legislação do Estado de São Paulo (Decreto 8468/76). Os critérios<br />

de proteção à vida aquática fixam o pH entre 6 e 9.<br />

Nos ecossistemas formados nos tratamentos biológicos de esgotos, o pH é também<br />

uma condição que influi decisivamente no processo. Normalmente, a condição de pH que<br />

corresponde à formação de um ecossistema mais diversificado e a um tratamento mais<br />

estável é a de neutralidade, tanto em meios aeróbios como nos anaeróbios. Nos reatores<br />

anaeróbios, a acidificação do meio é acusada pelo decréscimo do pH do lodo, indicando<br />

situação de desequilíbrio. A produção de ácidos orgânicos voláteis pelas bactérias<br />

acidificadoras e a não utilização destes últimos pelas metanobactérias, é uma situação de<br />

desequilíbrio que pode ocorrer devido a diversas causas.<br />

O decréscimo no valor do pH que a princípio funciona como indicador de<br />

desequilíbrio, passa a ser causa se não for corrigido a tempo. É possível que alguns<br />

efluentes industriais possam ser tratados biologicamente em seus valores naturais de pH,<br />

por exemplo, em torno de 5,0. Nesta condição, o meio talvez não permita uma grande<br />

diversificação hidrobiológica, mas pode acontecer que os grupos mais resistentes, algumas<br />

bactérias e fungos, principalmente, tornem possível a manutenção de um tratamento<br />

eficiente e estável. Mas, em geral, procede-se à neutralização prévia do pH dos efluentes<br />

industriais antes de serem submetidos ao tratamento biológico.<br />

Nas estações de tratamento de águas, são várias as unidades cujo controle envolve<br />

as determinações de pH. A coagulação e a floculação que a água sofre inicialmente é um<br />

processo unitário dependente do pH; existe uma condição denominada “pH ótimo” de<br />

floculação que corresponde à situação em que as partículas coloidais apresentam menor<br />

quantidade de carga eletrostática superficial.<br />

66


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

A desinfecção pelo cloro é outro processo dependente do pH. Em meio ácido, a<br />

dissociação do ácido hipocloroso formando hipoclorito é menor, sendo o processo mais<br />

eficiente. A própria distribuição da água final é afetada pelo pH. Sabe-se que as águas<br />

ácidas são corrosivas, ao passo que as alcalinas são incrustantes. Por isso o pH da água<br />

final deve ser controlado, para que os carbonatos presentes sejam equilibrados e não ocorra<br />

nenhum dos dois efeitos indesejados mencionados. O pH é padrão de potabilidade,<br />

devendo as águas para abastecimento público apresentar valores entre 6,5 e 8,5, de acordo<br />

com a Portaria 1469 do Ministério da Saúde.<br />

No tratamento físico-químico de efluentes industriais muitos são os exemplos de<br />

reações dependentes do pH como por exemplo:a precipitação química de metais pesados<br />

ocorre em pH elevado juntamente coma oxidação química de cianeto e o arraste de amônia<br />

convertida à forma gasosa, já a redução de cromo hexavalente à forma trivalente ocorre em<br />

pH baixo; como também a oxidação química de fenóis ea quebra de emulsões oleosas<br />

mediante acidificação; etc. Desta forma, o pH é um parâmetro importante no controle dos<br />

processos físico-químicos de tratamento de efluentes industriais.<br />

Constitui-se também em padrão de emissão de esgotos e de efluentes líquidos<br />

industriais, tanto pela legislação federal quanto pela estadual. Na legislação do Estado de<br />

São Paulo, estabelece-se faixa de pH entre 5 e 9 para o lançamento direto nos corpos<br />

receptores (artigo 18 do Decreto 8486/76) e entre 6 e 10 para o lançamento na rede pública<br />

seguida de estação de tratamento de esgotos (artigo 19-A do Decreto 8486/76).<br />

Águas piscosas devem apresentar pH acima de 6, porém por volta de 9, iniciam-se<br />

os limites letais para várias espécies. Já as águas tidas como ácidas fazem com que peixes<br />

apresentem aumento da freqüência respiratória, sinal evidente da baixa disponibilidade de<br />

O2, selecionando e fazendo prevalecer espécies persistentes. Variações bruscas de pH<br />

ocasionam morte de larvas de camarão, girinos e alevinos. Em pH 8.3 se observa maior<br />

mortandade de girinos/rãs de até 97% do que em pH 7.2 (10%) e que em águas de pH<br />

menor que 4.2 anormalidades se desenvolver em girinos.<br />

Em sistemas aquáticos o pH varia ao longo do dia e nas diferentes camadas de<br />

liquido, prevalecendo nas superfícies valores elevados. Durante as primeiras horas do dia<br />

os valores de pH são menores, tornando-se mais elevados entre as horas de maior<br />

incidência de sol. Durante a noite o pH volta a declinar. O pH e por extensão a temperatura<br />

e oxigênio dissolvido (o oxigênio proveniente da atmosfera se dissolve nas águas naturais,<br />

devido a diferença de pressão parcial. Este mecanismo é regido pela Lei de Henry, que<br />

define a concentração de saturação de um gás na água, em função da temperatura) estão<br />

intimamente ligados a toxicidade da amônia, ou seja, em pH elevado uma grande<br />

porcentagem da amônia total se converte na forma mais tóxica (não ionizada).<br />

Em pH baixo, menos que 1% da amônia total esta sob a forma não ionizada (NH3);<br />

já com pH 8 cerca de 5 a 9% e, em pH 9 de 30 a 50% estando a 80-90% de amônia<br />

ionizada quando em pH 10. A amônia (NH4) se torna cada vez mais tóxica quanto mais alto<br />

67


V Curso de Inverno<br />

o pH, porém menos estável e mais solúvel. Já a amônia (NH3), (mais tóxica), embora se<br />

formando em baixa concentração, em pH mais baixo é facilmente volatilizável, mas aumenta<br />

sua toxicidade à medida que aumenta o pH (alcalino), podendo então tornar-se altamente<br />

tóxico.<br />

Figura 1: Índices de pH onde ocorre a morte de algumas espécies de peixes mais conhecidas<br />

e estudadas, de crustáceos e moluscos presentes na fauna brasileira.<br />

Figura
2<br />

Em níveis de pH muito altos ou baixos, as enzimas sofrem inativação devido às<br />

inúmeras interações entre as cargas dos aminoácidos de uma proteína, situação que altera<br />

enormemente a estrutura protéica, portanto, a correta alcalinização ou a habilidade de<br />

tamponar um sistema é extremamente importante no processo de oxidação do amoníaco<br />

formado em sistemas aquáticos.<br />

68


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

Figura 3: Escala de pH onde são pontuados alguns produtos de conhecimento público e<br />

concomitantemente demonstra os efeitos do pH nos organismos aquáticos, onde afeta principalmente<br />

a reprodução dos animais e culmina na morte desses animais.<br />

Peixes expostos à condições de alta alcalinidade (pH>9.5) sofrem severos distúrbios<br />

fisiológicos, incluindo alcalose do sangue, inibição do influxo de Na, desrregulação da<br />

excreção de amônia e redução da velocidade de natação (Wright & Wood 1985) e estes<br />

mesmos autores constataram que o peixe teleósteo Oreochromis alcalicus grahami pode<br />

estar bem adaptado em águas com pH 10, mesmo sendo uma situação atípica. Este peixe<br />

teleósteo é muito estudado em experimentos envolvendo pH, pois é uma espécie que<br />

apresenta alta sobrevivência em ambientes extremamente alcalinos e o estudo em pauta<br />

apresentou que este animal apresenta dificuldades fisiológicas quando habita ambientes de<br />

pH neutro (7.0 e de concentração total de CO2 menor que 1mmol l-1) (Wright et al 1990).<br />

Diversos autores classificam a capacidade de natação como um dos melhores indicadores<br />

de overall a natação, e dessa forma constataram que o peixe em estudo apresentou<br />

dificuldades de natação e redução de velocidade quando transferido para ambiente neutro.<br />

Além dessa redução, houve aumento de acidose metabólica e distúrbios iônicos e de<br />

volume dos fluidos do animal. Mesmo assim consideraram que o animal é capaz de<br />

sobreviver neste tipo de ambiente, mesmo não apresentando seu melhor desempenho.<br />

A acidificação dos fluidos é relacionada com a alteração das taxas de CO2 e de<br />

HCO3, fazendo com que a concentração de íons H seja ampliada em ate 1000 vezes e<br />

concomitantemente à esse aumento há um aumento dos níveis de cloreto. Quando os<br />

animais foram transferidos para um ambiente neutro houve inversão de todos os níveis dos<br />

íons citados anteriormente.<br />

69


V Curso de Inverno<br />

Dessa maneira os autores desenvolveram 2 hipóteses para o aumento do volume<br />

sanguíneo do animal e possivelmente para o volume do fluido extracelular: 1) os níveis das<br />

proteínas plasmáticas reduzem e 2) aparente bloated in águas neutras. As mudanças no<br />

status ácido-base do plasma e em sua composição iônica pode ter afetado as funções<br />

metabólicas dos animais já que essa espécie excreta nitrogênio como uréia (Randall et al<br />

1989) e quando exposto ao ambiente de pH 7.0 a excreção de uréia é completamente<br />

inibida, provavelmente pela inibição do ciclo ornitina-uréia onde há produção de uréia<br />

enquanto que a redução plasmática de HCO3 pode ser resultante da inibição da<br />

metabolismo hepático de uréia (Wood et al 1989; Randall et al 1989).<br />

Já em tilápia a excreção é predominantemente através da amônia, mas durante<br />

exposição alcalina, há aumento da excreção de uréia sem alteração da concentração de<br />

HCO3 plasmático, porém com aumento da concentração de amônia no plasma. Essa<br />

resposta é encontrada em alguns teleósteos amoniatélicos, os quais são capazes de<br />

aumentar ligeiramente a produção de uréia via uricólise em resposta aos elevados níveis de<br />

amônia no organismo do animal (Wood et al 1989; Randall et al 1989).<br />

Em relação à alteração do influxo de Na ainda é pouco estudado, porém o pH ótimo<br />

para tomada de Na em trutas varia de 7.0 a 8.0 e dessa forma há redução do fluxo quando<br />

os animais são expostos em águas ácidas ou alcalinas. Durante os experimentos os autores<br />

encontraram padrão similar na tilápia, porém a ordem de magnitude do influxo de Na é<br />

relativamente menor do que o encontrado nos teleósteos (Olson & Fromm 1971; Wright &<br />

Wood 1985; Randall & Wright 1986).<br />

Dessa maneira fica claro que com variações de pH que os organismos que habitam<br />

ambiente aquático (água doce, salobra ou marinha) sofrem ocorre uma cascata de reações<br />

fisiológicas que podem culminar na morte desses animais, uma vez que alterações durante<br />

curto intervalo de tempo são suportáveis pelos animais, já que muitos deles são<br />

reguladores; no entanto, quando estes organismos são submetidos à ambientes extremos<br />

ocorrer primeiramente uma regulação, porém com longos intervalos de contato com baixos<br />

ou altos pH´s ocorrem alterações que podem ou não ser permanentes e dessa maneira a<br />

seleção natural acaba atuando nas espécies expostas.<br />

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70


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

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Revisado por Flavia Pinheiro Zanotto<br />

71


V Curso de Inverno<br />

Biomarcadores e sua aplicação na avaliação da<br />

exposição a poluentes<br />

Amanda de Moraes Narcizo<br />

Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos<br />

amnarcizo@yahoo.com.br<br />

Considerando as conseqüências do processo de modernização, industrialização, e<br />

mudanças na agricultura nacional a partir da década de 1950, o aumento na emissão de<br />

poluentes na atmosfera, degradação do ambiente pela utilização de recursos naturais e<br />

espaço, e o aumento de novos produtos químicos disponibilizados para o controle de<br />

pragas, doenças, plantas daninhas e aumento de produtividade na agricultura, fez com que<br />

o ecossistema aquático fosse um dos mais afetados por estes processos, pois todos estes<br />

despejos chegam aos corpos d`água quer seja pelas chuvas, escoação ou lixiviação. Isso<br />

tudo associado à falta de tratamento de resíduos líquidos, leva a má qualidade da água,<br />

diminuição da diversidade biológica e proliferação excessiva de espécies indesejáveis<br />

(Amorim 2003; Jonsson e Castro 2005; Rossi <strong>2008</strong>).<br />

Diante deste quadro a sociedade moderna tem se preocupado com a<br />

sustentabilidade ambiental. O conceito de sustentabilidade, associado à necessidade de<br />

preservar os recursos ambientais, refere-se a um tipo de desenvolvimento social capaz de<br />

atender às necessidades da geração atual sem comprometer os recursos necessários para<br />

as gerações futuras. Assim, à medida que o ambiente é reconhecido como de extrema<br />

importância para a saúde da coletividade, o conceito de desenvolvimento sustentável se<br />

torna cada vez mais presente no contexto das decisões políticas de saúde ambiental<br />

(Jonsson e Castro 2005).<br />

A saúde ambiental tem como um de seus objetivos a prevenção dos danos à saúde,<br />

à vida e às populações (terrestres e aquáticas). Por isso, processos como o de<br />

monitoramento ambiental, utilizando-se bioindicadores e biomarcadores, propiciam a<br />

implantação de medidas de prevenção e controle, adequadas a cada ambiente e população,<br />

pois muitos destes biomarcadores podem detectar precocemente uma exposição de efeito<br />

adverso e risco a saúde (Amorim 2003).<br />

Desta forma serão apresentados conceitos e concepções que abrangem o uso de<br />

parâmetros biológicos com a finalidade de avaliar a exposição às substâncias químicas e<br />

estimar o risco das populações expostas.<br />

1. Bioindicadores e biomarcadores<br />

Bioindicadores constituem-se em organismos ou uma população de organismos que<br />

nos permitem inferir a qualidade do ambiente ou parte dele através de estudos de alterações<br />

fisiológicas, comportamentais ou de sobrevivência. Já o termo biomarcador é utilizado para<br />

as alterações que são perceptíveis em níveis inferiores de organização biológica, tais como<br />

em componentes bioquímicos ou estruturais celulares (Jonsson e Castro 2005).<br />

72


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

Segundo Amorim (2003) biomarcadores compreendem todas as substâncias ou seu<br />

produto de biotransformação ou qualquer alteração química precoce, que possa ser<br />

determinado em fluídos biológicos, como forma de avaliação da intensidade de exposição<br />

ou risco a saúde, sendo valiosos indicadores de disfunções orgânicas, alterações clínicas e<br />

toxicidade patológica.<br />

Existem alguns cuidados que devem ser tomados ao se escolher um biomarcador, e<br />

esses cuidados fazem parte do processo de validação do biomarcador, desta forma, é<br />

preciso estabelecer sua relação quantitativa e qualitativa com a exposição em função da<br />

substância química e objeto selecionado.<br />

Por isso é desejável que o biomarcador apresente as seguintes características:<br />

• Sua quantificação deve: refletir a interação (qualitativa ou quantitativa) do organismo<br />

com o agente químico (poluente); ter conhecida e apropriada sensibilidade e<br />

especificidade para a interação e ser reprodutível qualitativamente e<br />

quantitativamente.<br />

• Sua medição analítica tem que apresentar exatidão e precisão adequadas.<br />

• É necessário que esteja contido em um meio biológico acessível de análise,<br />

considerando os processos de manutenção da integridade da amostra entre a coleta<br />

e o procedimento analítico, e de preferência não ser invasivo.<br />

• É necessário que se tenha conhecimento dos valores normais do indicador em<br />

populações não expostas ao agente químico de interesse, levando em consideração<br />

as variações intra e inter individuais.<br />

Os biomarcadores podem ser utilizados para várias finalidades dependendo do<br />

objetivo que se tem no estudo e do tipo de exposição. Por exemplo, podem ser utilizados<br />

para avaliar a exposição detectando-se a quantidade absorvida (dose interna); avaliar o<br />

efeito das substâncias químicas, como um produto metabolito, ausência ou presença de um<br />

produto do processo metabólico; e avaliar a suscetibilidade individual; Em relação ao tipo de<br />

exposição apresentam a vantagem de poderem ser utilizados independentemente da forma<br />

de exposição, podendo ser através da dieta, por contato ou respiração (Amorim 2003).<br />

2. Tipos de biomarcadores<br />

Segundo a World Health Organization (1993) apud Amorim (2003), os biomarcadores<br />

podem ser classificados em três tipos independentemente do objetivo do trabalho e da<br />

aplicação do biomarcador:<br />

• Biomarcadores de Exposição: podem ser utilizados para confirmar e avaliar a<br />

exposição individual ou de um grupo a uma substância em particular,<br />

estabelecendo uma ligação entre a exposição externa e a quantificação da<br />

exposição interna.<br />

73


V Curso de Inverno<br />

• Biomarcadores de Efeito: podem ser utilizados para detectar as alterações de<br />

efeitos adversos ou detectar antecipadamente alterações de risco à saúde<br />

decorrentes da exposição e absorção da substância química. Dessa forma, a<br />

ligação dos biomarcadores entre exposição e efeitos contribui para a<br />

definição da relação dose-resposta.<br />

• Biomarcadores de Suscetibilidade: permitem elucidar o grau de resposta da<br />

exposição provocada nos indivíduos, dada a sua validação anteriormente<br />

A mesma classificação foi dada por Walker e Thompson (1991) quando afirmaram<br />

que os biomarcadores podem ser definidos como uma resposta aos poluentes ambientais<br />

que pode ser mensurada indicando a presença, o efeito, e em alguns casos, o grau de<br />

contaminação.<br />

Para os biomarcadores de exposição entende-se que a dose externa se refere à<br />

concentração do agente químico presente no ambiente em contato com o organismo e a<br />

dose interna corresponde ao nível do agente químico que esta biologicamente disponível.<br />

Assim, a distribuição da substância no organismo pode ser traçada através de vários níveis<br />

biológicos, como tecidos e células, até seu alvo definitivo, como mostra a figura 1.<br />

EXPOSIÇÃO EXTERNA (A)<br />

MEDIÇÃO DA DOSE INTERNA<br />

QUANTIDADE ABSORVIDA<br />

QUANTIDADE ALCANÇA O TE<strong>CI</strong>DO<br />

Quantidade Alcança Célula<br />

Quantidade Alcança Macromolécula<br />

Quantidade Alcança Sítio<br />

Crítico<br />

Dose<br />

BiologicamenteEfet<br />

iva (B)<br />

Figura 1: Distribuição das substâncias químicas de uma exposição em um organismo. Ligação com<br />

os efeitos aumenta em direção a (B) e relação com a exposição aumenta em direção a (A).<br />

(adaptado de Amorim, 2003).<br />

Biomarcadores de efeito são potencialmente as alterações bioquímicas que refletem<br />

a interação da substância química com os receptores biológicos, são muito utilizados para<br />

confirmação de diagnósticos clínicos e prevenção de doenças (Figura 2).<br />

74


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

A.Q.<br />

Exposição<br />

Dose<br />

Interna<br />

Dose<br />

Biologicamente<br />

Efetiva<br />

Efeito<br />

Biológico<br />

Precoce<br />

Alteração<br />

Estrutural<br />

Funcional<br />

Doença<br />

SUSCETIBILIDADE<br />

Figura 2: Diagrama esquemático dos processos de progressão a doenças por exposição a<br />

agentes químicos (A.Q.) indicando biomarcadores em pontos de prevenção e suscetibilidade<br />

entre as caixas azuis (adaptado de Amorim, 2003).<br />

Alguns pesquisadores classificam os biomarcadores como de exposição ou de efeito,<br />

apresentando cada um o mesmo conceito apresentado pelos autores anteriores, ou seja, um<br />

biomarcador de exposição permite detectar ou quantificar a presença de um xenobionte,<br />

seus metabólitos ou sua associação a componentes celulares ou moleculares do organismo.<br />

A atividade de enzimas antioxidantes e a concentração de metalotioneínas são exemplos<br />

deste tipo de biomarcador. Biomarcadores evidenciam algum efeito tóxico associado à<br />

exposição do organismo ao poluente, como por exemplo, a peroxidação de lipídios ou o<br />

dano de DNA (Domingos 2006; Rossi <strong>2008</strong>).<br />

Dentro das classificações apresentadas podem ser feitas subclassificações:<br />

• Como os biomarcadores bioquímicos: exemplo, atividade enzimática e que<br />

dependendo do órgão estudado pode ter nomes referentes ao mesmo como,<br />

biomarcadores de nefrotoxicidade, biomarcadores de hepatoxicidade,<br />

biomarcadores de neurotoxicidade, podendo ser classificados como de exposição<br />

ou de efeito dependendo do fator de avaliação.<br />

• Biomarcador genético: exemplo, ensaio de micronúcleo.<br />

Considerados biomarcadores de efeito.<br />

• Biomarcador morfológico: exemplo, histopatologia.<br />

Considerado biomarcador de exposição (Amorim 2003; Rossi <strong>2008</strong>).<br />

3. Exemplos de biomarcadores<br />

A alteração da atividade metabólica de um composto em um organismo e/ou em uma<br />

célula se dá por sua transformação metabólica. O metabolismo inclui vários e diferentes<br />

sistemas enzimáticos que atuam em diversos tipos de substratos. Muitas das enzimas que<br />

compõem estes sistemas têm em comum a função de converter estruturas tóxicas para<br />

menos tóxicas, e converter químicos lipofílicos em estruturas hidrofílicas, que são mais<br />

rapidamente excretadas.<br />

O metabolismo envolve dois tipos de reações bioquímicas conhecidas como<br />

catabólicas e anabólicas. Reações catabólicas envolvem os processos de oxidação,<br />

redução e hidrólise, sendo estes produtos freqüentemente mais reativos e, portanto algumas<br />

vezes mais tóxicos ou carcinogênicos que a substância original, enquanto as reações<br />

anabólicas envolvem conjugação que geram produtos inativos embora haja exceções (Rossi<br />

<strong>2008</strong>).<br />

75


V Curso de Inverno<br />

3.1. Biomarcadores Bioquímicos<br />

3.1.1. Glutationa S-transferase<br />

A enzima Glutationa S-transferase (GST) é uma enzima que tem função em reações<br />

anabólicas sendo responsável por conjugar componentes eletrofílicos ou componentes<br />

vindos do processo de catabolismo como a glutationa reduzida (GSH) (Van Der Oost et al.<br />

2002).<br />

A GSH é formada pelos aminoácidos glicina, cisteína e glutamato, e atua como cofator<br />

para a GST, devido a este fato a atividade da GST está indiretamente associada ao<br />

estresse oxidativo, pois a utilização deste co-fator também tem relação com a degradação<br />

do peróxido de hidrogênio (H2O2) através da atuação da enzima Glutationa peroxidase<br />

(GPx).<br />

Portanto, a GST pode ser utilizada como biomarcador para taxas anabólicas e pela<br />

sua relação indireta com os processos de estresse oxidativo exige outros biomarcadores<br />

para este fim (Van Der Oost et al. 2002; Rossi, <strong>2008</strong>).<br />

3.1.2. Catalase<br />

A catalase é uma enzima intracelular, encontrada no peroxissomo, e tem a função de<br />

remover o peróxido de hidrogênio (H2O2), metabolizando-o em oxigênio (O2) e água (H2O) e<br />

por isso, é considerada um importante biomarcador (Van Der Oost et al. 2002).<br />

O peróxido de hidrogênio é uma espécie reativa de oxigênio (ERO), que assim como<br />

os radicais livres são formados durante o metabolismo oxidativo e de xenobiontes, no<br />

entanto, sob condições normais nosso organismo possui enzimas antioxidantes capazes de<br />

reparar 99% dos danos causados pela oxidação. Quando há um desequilíbrio entre a<br />

produção das espécies reativas de oxigênio e sua retirada pelo sistema de defesa<br />

antioxidante, permitindo um excesso das ERO, ocorre então, um processo denominado<br />

estresse oxidativo (Rossi <strong>2008</strong>).<br />

O estresse oxidativo é uma condição celular ou fisiológica de elevada concentração<br />

de ERO que causa danos às estruturas celulares, inativações de enzimas, peroxidação<br />

lipídica (LPO), danos de DNA, até a morte celular (Vancini et al. 2005).<br />

Muitos contaminantes ambientais (ou seus metabólitos) têm sido relatados por<br />

causar estresse oxidativo, portanto, a detecção da atividade de enzimas antioxidantes e a<br />

quantificação de componentes não enzimáticos são biomarcadores adequados para estas<br />

situações sobre os efeitos da oxidação e suas respostas adaptativas (Van Der Oost et al.<br />

2002).<br />

3.1.3. Acetilcolinesterase<br />

Existem dois tipos de colinesterases (ChE), as acetilcolinesterases (AChE) que são<br />

as de alta afinidade pela acetilcolina e as butirilcolinesterases (BChE) aquelas de baixa<br />

afinidade pela acetilcolina (Walker e Thompson 1991; Sturm et al. 2000).<br />

76


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

As ChE são importantes nas funções neurais, tendo as AChEs função na<br />

desativação da acetilcolina na fenda sináptica, evitando o estímulo contínuo do neurônio, o<br />

que é vital para o funcionamento normal do sistema sensorial e motor. Em peixes somente<br />

AChE foi encontrada no cérebro, enquanto no músculo ambas são encontradas. A AChE é<br />

um biomarcador muito utilizado para diagnosticar a exposição a tóxicos anticolinesterásicos<br />

em peixes (Payne et al. 1996; Sturm et al. 2000; Rossi <strong>2008</strong>).<br />

3.1.4. Vitelogenina em peixes<br />

A vitelogenina (Vg) é uma lipoglicofosfoproteína, produzida no fígado sob a ação do<br />

hormônio estradiol, é essencial para formação de oócitos e para o desenvolvimento do<br />

embrião.<br />

O estradiol é produzido nos ovários de fêmeas sob a ação do hormônio folículo<br />

estimulante (FSH) (Baldisserotto 2002), por isso, em condições normais do ambiente<br />

somente as fêmeas apresentam Vg, entretanto, machos e animais imaturos sexualmente<br />

possuem toda a maquinaria genética para sintetizar a Vg, desta forma a detecção da Vg<br />

neste grupo de animais é comumente utilizada como biomarcador de esteróides<br />

xenobióticos.<br />

3.1.5. Micronúcleo Písceo<br />

Micronúcleos são caracterizados pela condensação de fragmentos cromossômicos<br />

acêntricos ou por cromossomos inteiros que não foram incluídos no núcleo principal durante<br />

a anáfase. Assim, o teste para a avaliação do micronúcleo é uma ferramenta qualitativa<br />

importante nos estudos da genética toxicológica, pois evidencia danos no DNA e quebra<br />

cromossômica, sendo muito utilizados como um sensível método para examinar a exposição<br />

de peixes a agentes genotóxicos (Al-Sabti 1991; Rossi <strong>2008</strong>).<br />

3.2. Histologia de Brânquias<br />

Através da análise morfológica e de efeitos em estruturas celulares e tecidual é<br />

possível identificar o potencial tóxico de um contaminante sobre um organismo. Uma análise<br />

histológica pode revelar a sensibilidade do organismo em relação ao agente químico, o<br />

tempo de exposição, quais os órgãos mais afetados, além de permitir a diferenciação de<br />

lesões causadas por doenças daquelas causadas por outros fatores ambientais como a<br />

exposição a poluentes (Domingos 2006; Rossi <strong>2008</strong>).<br />

Sendo assim, a histologia de brânquias é comumente utilizada como um importante<br />

biomarcador em peixes, já que essas estruturas estão em contato direto e constante com a<br />

água do meio, por desempenhar a função de respiração. Para a realização das trocas<br />

gasosas há a exposição de um sistema de capilares à água, o que torna o tecido branquial<br />

extremamente vulnerável em relação ao meio ambiente, como partículas de sedimentos,<br />

parasitas e xenobióticos (Rossi <strong>2008</strong>).<br />

77


V Curso de Inverno<br />

Referências Bibliográficas<br />

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Revisado por Renata Guimarães Moreira<br />

78


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

Hormônios esteróides e disruptores endócrinos<br />

Juliane Suzuki Amaral<br />

Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos<br />

jusuzuki@usp.br<br />

Os hormônios esteróides são pequenas moléculas derivadas do colesterol<br />

universalmente encontradas em cordados e artrópodes. Em ambos os filos, os esteróides<br />

são requerimentos absolutos para o desenvolvimento, manutenção da homeostase e<br />

reprodução (Young et al. 2005).<br />

Em vertebrados adultos, três tipos de hormônios esteróides que afetam a reprodução<br />

(os estrógenos, andrógenos e progestágenos) são produzidos em momentos apropriados<br />

em células especializadas na produção dos mesmos, nas gônadas e no córtex adrenal de<br />

ambos os sexos. Estas células expressam uma série de enzimas esteroidogênicas que<br />

modificam o colesterol em seus esteróides derivados. Os esteróides sexuais, assim como os<br />

outros hormônios esteróides, ligam-se a receptores intracelulares e modificam a expressão<br />

de genes específicos.<br />

Os esteróides sexuais agem diretamente no desenvolvimento de células<br />

germinativas e nas glândulas acessórios e órgãos, assim como atua na modificação do<br />

comportamento, para assegurar que a reprodução ocorra. Embora muitos esteróides sejam<br />

quimicamente idênticos na maioria das classes de vertebrados, seu papel pode diferir em<br />

funções especializadas.<br />

1. Controle Endócrino da Reprodução em Vertebrados<br />

O controle endócrino da reprodução nos vertebrados responde ao estímulo sensorial<br />

de várias partes do corpo que agem sobre o eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, culminando<br />

com a síntese dos esteróides gonadais.<br />

Nos mamíferos, a produção e secreção dos esteróides gonadais tanto em machos<br />

quanto em fêmeas são promovidas pelo hormônio folículo estimulante (FSH) e pelo<br />

hormônio luteinizante (LH) que são sintetizados na hipófise anterior ou adenohipófise. De<br />

uma forma geral o controle da reprodução poderia ser sintetizado da seguinte forma: nas<br />

fêmeas adultas, estímulos sensoriais captados por diversas partes do corpo estimulam o<br />

hipotálamo a produzir o hormônio liberador de gonadotropinas (GnRH). Este por sua vez<br />

estimula a adenohipófise a secretar o hormônio folículo estimulante (FSH). O FSH chega<br />

aos ovários, promovendo a síntese de 17β-estradiol, convertendo o colesterol à<br />

testosterona, que é transportada à camada granulosa, onde é aromatizada a 17β-estradiol<br />

pela enzima aromatase, também sob influência do FSH. Os altos níveis de 17β-estradiol,<br />

característico do período que antecede a ovulação, ativa o hipotálamo e a adenohipófise a<br />

produzir o hormônio luteinizante (LH). O FSH acelera a maturação dos folículos em<br />

desenvolvimento onde apenas um folículo completa sua maturação e, sob influência do LH,<br />

79


V Curso de Inverno<br />

se rompe da superfície do ovário, liberando o ovo. O folículo rompido transforma-se num<br />

tecido endócrino temporário, o corpo lúteo, que secreta estrógeno e progesterona. A<br />

progesterona estimula a secreção do líquido endometrial, preparando-o para a implantação<br />

de um ovo fertilizado. Na ausência de fertilização e implantação do ovo, o corpo lúteo<br />

degenera-se e a secreção de estrógenos e progesterona diminui precipitando a<br />

menstruação. Se o ovo fertilizado for implantado no endométrio, a placenta em<br />

desenvolvimento começa a produzir gonadotropina coriônica, cuja ação é similar ao LH, que<br />

induz novo crescimento do corpo lúteo ativo, de modo que a secreção de estrógeno e<br />

progesterona continua. O FSH e LH hipofisário não são secretados novamente até o parto<br />

(Randall et al. 2000).<br />

Em peixes, o controle endócrino do ciclo reprodutivo em fêmeas é modulado por<br />

fatores ambientais que agem sobre o hipotálamo, conduzindo à secreção de GnRH, e sobre<br />

a hipófise, resultando na produção e liberação de GtHs (gonadotropinas) na corrente<br />

sanguínea. Estas, por sua vez, chegam aos ovários, promovendo a síntese dos esteróides<br />

gonadais (Peter & Yu 1997). As funções dos esteróides gonadais são diferenciadas quando<br />

comparado aos mamíferos e serão discutidas a seguir.<br />

Em peixes imaturos, os hormônios gonadais geralmente estimulam a diferenciação<br />

sexual e nos maduros, estimulam a gametogênese e a desova ou espermiação<br />

(Baldisserotto 2002).<br />

O 17β-estradiol age no fígado, estimulando a síntese de vitelogenina, lipoproteína<br />

que promove crescimento no oócito e incorporação de vitelo. A entrada de vitelogenina no<br />

oócito ocorre por micropinocitose e é também dependente da presença de FSH.<br />

Um aumento nos níveis plasmáticos de 17β-estradiol e testosterona ocorre na fase<br />

de vitelogênese. Estes níveis elevados induzem a produção de LH (Kobayashi et al.1989). O<br />

LH estimula a teca do folículo a produzir 17α-hidroxiprogesterona, que é transportada à<br />

camada granulosa e convertida a 17α-20β dihidroxiprogesterona conhecido como o<br />

hormônio indutor da maturação final e da ovulação na maioria dos teleósteos.<br />

Em machos adultos, o controle da síntese de esteróides é semelhante ao das<br />

fêmeas. FSH e LH estimulam a esteroidogênese testicular e espermatogênese, sendo os<br />

andrógenos testosterona e 11-ceto-testosterona produzidos pelas células de Leydig e<br />

células de Sertoli nos testículos. Ambas gonadotropinas estimulam além da produção de<br />

andrógenos, os progestágenos, principalmente a 17α-20β-dihidroxiprogesterona, sendo esta<br />

última produzida em maior quantidade pela ação da LH (Cyr & Eales 1996).<br />

2. Esteroidogênese e Principais Enzimas Envolvidas<br />

Todos os esteróides de vertebrados são sintetizados a partir do colesterol, uma<br />

molécula de 27 carbonos. O colesterol é sintetizado a partir do acetato (acetil CoA)<br />

produzido pela glicólise ou via oxidação dos ácidos graxos.<br />

80


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

A síntese do núcleo esteróide a partir do acetato é chamada esteroidogênese e<br />

envolve uma série de reações catalíticas enzimáticas. O colesterol sintetizado do acetato<br />

pode ser usado diretamente na biossíntese de vários hormônios esteróides, mas não pode<br />

ser degradado de novo em acetato. A maioria do colesterol é sintetizada no fígado e é<br />

liberado no sangue como lipoproteínas. Córtex adrenal, ovários e testículos também podem<br />

sintetizar colesterol, mas utilizam preferencialmente complexos lipoprotéicos absorvidos pelo<br />

intestino ou sintetizados no fígado como fonte de colesterol (Norris 1997).<br />

Para a produção das diferentes classes de esteróides gonadais, o colesterol passa<br />

por subseqüentes conversões pelas três enzimas pertencente à superfamília do citocromo<br />

P450. A primeira enzima, citocromo P450scc (P450 side-chain cleavage) está localizada na<br />

membrana mitocondrial interna e converte o colesterol em pregnenolona. A produção de<br />

pregnenolona pela P450scc é limitada à disponibilidade do colesterol. Uma proteína<br />

transportadora é necessária para transportar o colesterol através da membrana mitocondrial<br />

onde se encontra a enzima P450scc. Em mamíferos, essa proteína foi isolada pela primeira<br />

vez em 1994 por Clark et al. (1994) e foi chamada de proteína regulatória esteroidogênica<br />

aguda ou StAR (Young et al. 2005).<br />

O transporte do colesterol para a membrana mitocondrial é um pré-requisito para<br />

esteroidogênese gonadal e adrenal para a produção do esteróide basal, a pregnenolona. A<br />

pregnenolona por sua vez, serve como substrato para a enzima citocromo P450 17-<br />

hydroxylase (P450C17). A P450C17 possui duas atividades enzimáticas: catalisa a hidroxilação<br />

da pregnenolona para 17α-hidroxipregnenolona e a subsequente remoção de dois resíduos<br />

de carbono, originando o andrógeno dehidroepiandrosterone (com uma dupla ligação entre<br />

o carbono 5 e 6) ou androstenediona (com uma dupla ligação entre o carbono 4 e 5) (Young<br />

et al. 2005).<br />

Pregnene-, androstene-, e estrene-derivativos podem ser modificados mais adiante<br />

em outros esteróides por uma série de hidroxilases, redutases, oxiredutases e isomerases.<br />

As enzimas 3β-hidroxiesteróide desidrogenase (3βHSD) e 17β-hidroxiesteróide<br />

desidrogenase (17βHSD) merecem atenção por promover importantes oxiredutases na<br />

síntese de esteróides bioativos (Young et al. 2005).<br />

Em vertebrados mamíferos, a testosterona é o hormônio efetivo nas respostas<br />

reprodutivas em machos enquanto que 17β-estradiol, um subproduto da testosterona<br />

convertida pela enzima P450 aromatase (P450arom), é o hormônio efetivo em fêmeas. A<br />

progesterona é um produto intermediário na síntese de testosterona e 17β-estradiol e<br />

também possui ação efetiva em fêmeas na fase lútea do ciclo ovariano.<br />

Em fêmeas de peixes, a enzima 20β-hidroxiesteróide desidrogenase (20βHSD) leva<br />

à formação de 17α-hidroxiprogesterona para 17α20β-dihidroxy-4-pregnen-3-one (17α20βP),<br />

o esteróide indutor da maturação (MIS). Esse é o hormônio efetivo da maturação final dos<br />

oócitos e ovulação em peixes. Gônadas de machos e de algumas fêmeas de teleósteos<br />

81


V Curso de Inverno<br />

também produzem um único e potente andrógeno chamado 11-cetotestosterona (11-KT)<br />

sendo este efetivo na espermatogênese. A síntese desse composto é feita pela enzima<br />

citocromo P450 11β-hidroxilase (11β-HSD) a partir da testosterona (Young et al. 2005).<br />

3. Mecanismos de Ação dos Esteróides<br />

Esteróides podem passar através de membranas celulares e interagir com<br />

receptores intracelulares. Estes receptores geralmente estão no citosol de células alvo para<br />

corticosteróides e no núcleo para estrógenos, andrógenos e progestágenos. O modelo<br />

original da ação dos hormônios esteróides foi proposto por Elwood Jensen em 1970.<br />

Embora o modelo precise de uma revisão considerada, as características básicas são ainda<br />

válidas (Norris 1997).<br />

Estrógenos e andrógenos são capazes de produzir efeitos celulares de mecanismos<br />

similares. Uma vez que os esteróides entram em suas células alvo, eles difundem-se para o<br />

núcleo onde se ligam a receptores específicos. Uma vez ligado ao receptor, conduz fatores<br />

de transcrição, ligando-se em elementos específicos de resposta hormonal (hormoneresponsive<br />

elements HREs) ou em sítios no DNA e inicia uma nova síntese de RNAm.<br />

Uma vez que o receptor é ocupado, ele é fosforilado formando um dímero antes de se ligar<br />

ao HRE associado com a região promotora do gene. Uma segunda fosforilação ocorre<br />

depois de se ligar ao DNA. A síntese resultante de novas proteínas pelas células alvo traz<br />

eventos clássicos associados com a ação desses hormônios (Norris 1997).<br />

4. Disruptores Endócrinos<br />

As substâncias que poluem os ecossistemas e de alguma forma alteram o sistema<br />

endócrino dos animais são conhecidos como Endocrine Disrupting Chemicals<br />

(substâncias disruptoras ou desreguladoras endócrinas).<br />

Os termos estrógenos ambientais, disruptores endócrinos, moduladores endócrinos,<br />

hormônios ambientais, xenoestrógenos, fitoestrógenos, também servem para descrever<br />

sintéticos químicos e componentes de plantas e animais naturais que podem afetar o<br />

sistema endócrino (mensageiros bioquímicos ou sistema de comunicação das glândulas,<br />

hormônios e receptores celulares que controlam o funcionamento interno do corpo) de<br />

vários organismos. Muitos dos efeitos causados por essas substâncias têm sido associados<br />

com o desenvolvimento, reprodução e outros problemas de saúde ao longo da vida dos<br />

animais (Toppari et al. 1996).<br />

As águas continentais encontram-se impactadas por uma grande variedade de<br />

poluentes cujas fontes principais são os efluentes líquidos de origem doméstica e industrial<br />

que muitas vezes não recebem o tratamento adequado. A enorme diversidade e<br />

complexidade destes poluentes resultam em efeitos biológicos diversos. Tais efeitos e<br />

conseqüências estão relacionados com a composição química de cada poluente despejado<br />

no ambiente aquático e da interação entre ambos (Zagatto & Bertoletti 2006).<br />

82


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

As vastas categorias químicas dos poluentes aquáticos se expressam de maneiras<br />

diferentes dependendo do tipo de ambiente (dulcícola, marinho, estuarino), e além disso, os<br />

efluentes aquáticos contêm mais de um contaminante, que pode resultar em interações<br />

toxicológicas com possíveis efeitos sinérgicos, antagônicos, de potenciação ou de adição<br />

(Mozeto & Zagato 2006).<br />

O exato modelo de ação de todos os disruptores endócrinos não é bem<br />

compreendido, mas sabe-se que esses componentes podem alterar as funções hormonais<br />

em diferentes níveis:<br />

1) Mimetizando total ou parcialmente os hormônios naturais pela ligação aos receptores ou<br />

influenciando padrões de sinalização celular.<br />

2) Bloqueando, impedindo e alterando a ligação dos hormônios em seus receptores ou<br />

influenciando padrões de sinalização celular.<br />

3) Alterando a produção e a quebra de hormônios naturais.<br />

4) Modificando a produção e função de receptores hormonais.<br />

Os disruptores endócrinos são no mínimo parcialmente responsáveis por disfunções<br />

reprodutivas e desenvolvimento das populações selvagens, e ambos vertebrados e<br />

invertebrados são suscetíveis à ação dos disruptores endócrinos. Em peixes, esses incluem<br />

mudanças hormonais (esteróides e hormônios da tireóide), desenvolvimento gonadal<br />

anormal, baixa viabilidade dos gametas, alterações em algumas atividades enzimáticas<br />

(aromatase) e concentrações de proteínas (vitelogenina, proteínas da zona radiata).<br />

Disrupções na reprodução de peixes podem ser ocasionadas pelo estrógeno<br />

ambiental por promover uma grande síntese de receptores de estrógenos (ER). O gene para<br />

a produção de ER está presente nos machos, mas geralmente não são estimulados devido<br />

à quase completa ausência do estradiol endógeno. A síntese de ambas as moléculas como<br />

a vitelogenina e proteína da zona radiata, exclusivas em fêmeas na fase reprodutiva, foram<br />

detectadas em machos expostos aos xenoestrógenos, assim como também foi notada uma<br />

redução no crescimento testicular. Essas substâncias não têm função em machos, e as<br />

conseqüências diretas da síntese de vitelogenina e proteína da zona radiata podem<br />

promover redução de cálcio na escama e esqueleto, hipertrofia do fígado e dano no rim<br />

(Goksǿyr et al. 2003). Eles também representam uma substancial perda de energia para os<br />

peixes machos, afetando o desempenho reprodutivo. Em fêmeas, o efeito da exposição aos<br />

xenoestrógenos pode ser menos sério, embora haja relatos de maturação prematura em<br />

linguados (Solea solea), que pode ter ocorrido em decorrência da exposição ao estrógeno<br />

com a produção inapropriada de gonadotropinas, causando desenvolvimento precoce do<br />

ovário (Goksǿyr et al. 2003).<br />

Estrógenos e seus análogos sintéticos são capazes de agir como agonistas<br />

completos dos ER, e essas substâncias podem ser ainda mais potentes do que os<br />

hormônios naturais, mas o estrogênio ambiental contaminante é somente agonista parcial e<br />

são centenas a dez mil vezes menos potente do que os hormônios naturais. Isso é devido<br />

83


V Curso de Inverno<br />

ao fato de que se assemelham parcialmente com a estrutura tridimensional dos estrógenos<br />

verdadeiros e então se encaixa imperfeitamente ao receptor. Poucas moléculas mimetizante<br />

de estrógenos realmente engatilham a cascata dos efeitos estrogênicos, na qual<br />

normalmente resulta da exposição estrogênica e então os efeitos globais são alterados.<br />

Entretanto, contaminantes ambientais antiestrogênicos podem agir como<br />

antagonistas fracos nos ER, se ligando irreversivelmente, bloqueando a ação natural dos<br />

agonistas estrogênicos, enfraquecendo a ação do hormônio.<br />

Duas formas diferentes de ER têm sido identificadas em mamíferos e possivelmente<br />

mais formas ocorrem em outras espécies de peixes. Um ER testicular possui maior<br />

afinidade do que o ER do fígado para estrógenos e xenoestrógenos, mostrando que tecidos<br />

diferentes podem então ter diferente suscetibilidade à disrupção endócrina.<br />

Os possíveis efeitos dos disruptores endócrinos em alguns vertebrados marinhos,<br />

como os predadores de topo de cadeia trópica, representam uma preocupação séria,<br />

principalmente em áreas como o Mar Mediterrâneo, caracterizado pelo alto impacto de<br />

contaminantes e troca limitada de água. Neste ambiente peculiar, os predadores de topo de<br />

cadeia trófica, como peixes pelágicos e mamíferos marinhos tendem a acumular grandes<br />

quantidades de contaminantes organoclorados e metais pesados. Os níveis desses<br />

compostos no golfinho riscado (Stenella coeruleoalba) são da ordem de magnitude de 1-2<br />

maior do que nos golfinhos da mesma espécie do Atlântico e do Pacífico. Isso demonstra<br />

que espécies importantes para o ecossistema aquático como os predadores de topo estão<br />

potencialmente “em risco” devido aos disruptores endócrinos contaminantes (Goksǿyr et al.<br />

2003).<br />

Referências Bibliográficas<br />

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Cyr D G & Eales J G (1996). Interrelationships between thyroidal and reproductive endocrine system<br />

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Mozeto AA & Zagatto PA (2006). Introdução de agentes químicos no ambiente. Em: Ecotoxicologia<br />

Aquática: Princípios e Aplicações, eds Zagato PA & Bertoletti E (Rima, São Carlos) pp 15-38.<br />

Norris D O (1997). Vertebrate Endocrinology. Academic Press, Inc. San Diego, USA.<br />

Peter R E & Yu K L (1997). Neuroendocrine regulation of ovulation in fishes: basics applied aspects.<br />

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Randall D; Burggren W; French K (2000). Eckert Fisiologia Animal: mecanismos e Adaptações.<br />

Guanabara Koogan. 4° edição. Rio de Janeiro.<br />

84


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

Toppari J; Larsen JC.; Christiansen P; Giwercman A; Grandjean P; Guillette LJ Jr; Jégou B; Jensen<br />

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xenoestrogens. Em: Effects of pollution on fishes, eds Lawrence AJ & Hemingway KL (Blackwell<br />

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Sherwood N (World Scientific Publishing Co. Pte. Ltda. 1° ed. Singapore) pp 155-223.<br />

Zagato AP & Bertoletti E (2006). Ecotoxicologia Aquática: Princípios e Aplicações. São Carlos. Rima.<br />

Revisado por Renata Guimarães Moreira<br />

85


V Curso de Inverno<br />

Efeitos do represamento sobre a fisiologia de organismos aquáticos<br />

com ênfase na reprodução de peixes teleósteos.<br />

Renato Massaaki Honji<br />

Laboratório de Metabolismo e Reprodução de Organismos Aquáticos<br />

honjijp@usp.br<br />

A Terra possui em torno de 510x10 6 Km 2 de superfície terrestre, dos quais 310x10 6<br />

Km 2 são cobertos pelos oceanos, além disso, uma pequena fração dessa superfície (se<br />

comparado com os oceanos) é coberta por rios, lagos, calota e gelo polar. Com base nesses<br />

dados, aproximadamente 71% da superfície da Terra são cobertos por água e, neste<br />

sentido, o ambiente aquático oferece assim mais espaço habitável se comparado com o<br />

ambiente terrestre (Moyle & Cech 2003).<br />

Quando nos referimos aos habitantes encontrados no ambiente aquático, lembramos<br />

rapidamente dos teleósteos (peixes ósseos). Os peixes em geral são os representantes<br />

mais numerosos e diversos entre os vertebrados, contando com aproximadamente 50%<br />

deste grupo (Figura 1a). São conhecidas cerca de 28000 espécies viventes de peixes que<br />

ocupam os mais diversos ambientes aquáticos, ocorrendo desde as altas altitudes até as<br />

fossas submarinas dos oceanos. Em relação à sua distribuição, 58% são marinhos, 41%<br />

são dulciaqüícolas e 1% vivem entre esses dois ambientes, ou seja, essas espécies<br />

realizam migrações entre o ambiente marinho e o ambiente de água doce (Figura 1b). Além<br />

da importância como fonte alternativa de alimento, os peixes também constituem uma rica<br />

fonte de material biológico que podem ser utilizados como modelos para entender os<br />

controles dos processos biológicos (Wooton 1990; Nelson 1994; King 1995; Blázquez et al.<br />

1998; Moyle & Cech 2003).<br />

Desta maneira, com esse grande número de espécies existentes, a constantes<br />

descobertas de novas espécies e a distribuição mundial, esse sucesso do grupo é atribuído<br />

a uma série de adaptações fisiológicas, anatômicas, morfológicas, comportamentais entre<br />

outras características relacionadas aos processos de respiração, nutrição, osmorregulação,<br />

flutuação, percepção sensorial e reprodução (Hoar 1969; Wooton 1990; Vazzoler 1996;<br />

Moyle & Cech 2003; Zavala-Camin 2004). Em relação à reprodução, os peixes são ótimos<br />

exemplos da complexidade reprodutiva, com as diferentes formas anatômicas observadas<br />

nas gônadas entre as espécies; as diferentes formas de liberação dos gametas para a<br />

fertilização externa (como por exemplo, a desova total ou a desova parcelada);<br />

desenvolvimento de diferentes órgãos especializados para a fertilização interna (gonopódio,<br />

por exemplo); as diferentes formas de cuidado com a prole (guardadores e não guardadores<br />

de ovos e larvas); além das diferentes formas de construções de ninhos e a migração<br />

reprodutiva, seja na forma de “piracema” ou daquelas longas migrações entre os mares e os<br />

rios e vice-versa, que são acompanhadas por grandes alterações osmóticas e metabólicas<br />

86


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

(Wooton 1990; Vazzoler 1996; Hochachka & Somero 2002; Moyle & Cech 2003; Zavala-<br />

Camin 2004).<br />

Figura 1: (A) Representação esquemática da diversidade de espécies de vertebrados existentes.<br />

Detalhe da porcentagem de espécies de peixes (em torno de 50%). (B) Representação<br />

esquemática da distribuição de peixes considerando-se os diferentes tipos de ambiente (marinho e<br />

dulciaqüícola). Espécies diádromas, são animais que migram entre o ambiente marinho e<br />

dulciaqüícola (em torno de 1%). Adaptado de: Wooton, 1990; Nelson, 1994; Moyle & Cech, 2003.<br />

No Brasil, grande parte dos peixes dulciaqüícolas de valor comercial são<br />

representadas pelas espécies migradoras (reofílicas), ou seja, são peixes que durante um<br />

determinado período (que pode variar entre as espécies), realizam migrações ao longo do<br />

rio e vencem obstáculos naturais (corredeiras e cachoeiras), para se reproduzir (Lucas &<br />

Baras 2001; Baldisserotto & Gomes 2005). A migração é necessária para o desenvolvimento<br />

das gônadas (ovários e testículos), maturação dos gametas e posterior desova, e o sucesso<br />

reprodutivo em espécies migradoras fica prejudicado quando estes animais são impedidos<br />

de migrar. Esse problema ocorre freqüentemente, em decorrência de bloqueios no percurso<br />

natural dos rios (reservatórios) ou no confinamento em viveiros de cultivo.<br />

Apesar da indiscutível importância desses reservatórios, também são incontestáveis<br />

os problemas associados a estas interrupções no curso natural dos rios. Os reservatórios<br />

são, por outro lado, recentes e suas comunidades mostram notáveis alterações estruturais<br />

em relação às que lhes deram origem, ou seja, as de um sistema fluvial com história<br />

evolutiva distinta. Verifica-se durante o processo de colonização a depleção de algumas<br />

populações, para as quais novas condições são restritivas, e a explosão de outras, que têm<br />

no novo ambiente condições favoráveis, geralmente transitórias, para manifestar o seu<br />

potencial de proliferação. Entre as espécies de peixes, a depleção populacional afeta<br />

principalmente as de maior porte, geralmente de hábito migratório, alta longevidade e baixo<br />

87


V Curso de Inverno<br />

potencial reprodutivo. Já a proliferação massiva é constatada entre as espécies de pequeno<br />

porte, sedentárias, com alto potencial reprodutivo e baixa longevidade (r-estrategistas), para<br />

as quais a disponibilidade alimentar é elevada (Agostinho et al. 1999; Agostinho & Gomes<br />

2005).<br />

No sentido de minimizar os impactos causados pelos reservatórios, a aqüicultura<br />

mundial demonstra-se como uma fonte alternativa de produção de alimento devido ao<br />

crescimento populacional descontrolado, obrigando o homem a procurar recursos<br />

alimentares alternativos para sanar os problemas relacionados à fome. Em 2004, a<br />

produção total da aqüicultura, incluindo peixes, crustáceos e plantas aquáticas foi estimada<br />

em 30 milhões de toneladas, sendo que, 51% dessa produção total é representada pela<br />

maricultura, 43% pela produção dulciaqüícola e 6% são representados pela produção<br />

estuarina. Levando em consideração toda essa produção mundial, o principal grupo utilizado<br />

na aqüicultura é formado pelos peixes (Borghetti et al. 2003; FAO 2006).<br />

Ainda que, portador do maior número de espécies ícticas do mundo, a produção<br />

aqüícola brasileira está baseada principalmente no cultivo de espécies exóticas, como por<br />

exemplo, carpas, tilápias e trutas, sendo as espécies nativas produzidas em menor escala.<br />

Além da produção de alimentos, a aqüicultura brasileira possui grande importância<br />

na preservação das espécies ameaçadas de extinção, devido ao cultivo dessas espécies em<br />

cativeiro e posteriormente, na instalação de programas de repovoamento em áreas<br />

impactadas. Ao analisar a Lista Nacional das Espécies de Animais Ameaçadas de Extinção,<br />

pode-se constatar a presença de várias espécies de peixes em situações críticas, sendo que<br />

uma inversão nesse quadro só é possível com base em programas adequados de<br />

repovoamento, que só podem atingir algum sucesso quando as técnicas de reprodução e<br />

produção são dominadas. Adicionalmente, sabe-se que o sucesso no cultivo de uma<br />

espécie só é obtido com o conhecimento da biologia dessa espécie e, em especial da<br />

biologia reprodutiva.<br />

A reprodução em peixes, apesar de ser modulada por fatores ambientais, como por<br />

exemplo, a temperatura, o fotoperíodo nas espécies de clima temperado e possivelmente a<br />

temperatura e as chuvas nas espécies de clima tropical, é controlada endogenamente por<br />

um sistema endócrino, principalmente pelo eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, que sintetiza<br />

e libera gonadotropinas, esteróides gonadais e hormônios moduladores do processo<br />

reprodutivo entre outras substâncias (Weltzien et al. 2004; Kawauchi & Sower 2006). Esse<br />

processo ocorre naturalmente com o desenvolvimento das gônadas, maturação, liberação e<br />

fertilização dos gametas, sendo que em geral, em peixes, a desova e a fertilização ocorrem<br />

no ambiente externo. Os ovos fertilizados originam embriões e posteriormente larvas, que<br />

crescem e se tornam adultos, reiniciando o ciclo.<br />

Neste contexto, todo o controle endócrino deve ser alterado de alguma forma,<br />

quando espécies migradoras são transferidas para o cativeiro, em operações de cultivo,<br />

pois, neste ambiente confinado, os peixes reofílicos (peixes de piracema) não conseguem<br />

88


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

eliminar os seus gametas de forma natural. Neste caso, intervenções hormonais exógenas<br />

em determinados níveis do eixo hipotálamo-hipófise-gônadas são necessárias para dar<br />

continuidade ao processo de maturação gonadal. Assim, demonstra-se a importância de<br />

estudar o controle fisiológico do eixo-hipotálamo-hipófise-gônadas nas espécies nativas,<br />

ainda pouco investigadas.<br />

1. Fisiologia da reprodução em peixes (eixo hipotálamo-hipófise-gônadas)<br />

Em geral, a fisiologia da reprodução em peixes pode ser sintetizada da seguinte<br />

forma (Nagahama 1994; Peter & Yu 1997; Blázquez et al. 1998; Weltzien et al. 2004;<br />

Lethimonier et al. 2004; Guilgur et al. 2006; Honji 2007; Honji et al. <strong>2008</strong>): a partir do<br />

momento em que a idade e o peso mínimo são atingidos para o início da reprodução,<br />

alterações ambientais como o fotoperíodo, a temperatura e, possivelmente as chuvas, são<br />

captadas através dos olhos, pineal, narinas e receptores cutâneos, que as convertem em<br />

sinais eletroquímicos e, são transmitidos via neurônios sensoriais até o hipotálamo. Os<br />

fatores ambientais citados estimulam o hipotálamo a sintetizar e liberar o hormônio liberador<br />

de gonadotropinas (GnRH), que estimula as células gonadotrópicas na hipófise a sintetizar e<br />

liberar o hormônio folículo estimulante (FSH), que via corrente sangüínea chega às camadas<br />

foliculares dos oócitos em desenvolvimento e na camada teca, converte o colesterol em<br />

testosterona. Esta é transportada à camada granulosa, na qual é aromatizada a 17βestradiol<br />

pela enzima aromatase, também sob influência do FSH. O 17β-estradiol age no<br />

fígado (via corrente sangüínea), estimulando a síntese da glicolipofosfoproteína<br />

(vitelogenina) que, também via corrente sangüínea, é “seqüestrada” pelo oócito por<br />

micropinocitose (processo dependente de FSH), promovendo o crescimento do oócito e<br />

incorporação de vitelo.<br />

A detecção da vitelogenina, como precursora do vitelo protéico tem sido<br />

intensamente pesquisada nas últimas décadas, desde a síntese de 17β-estradiol como<br />

produto de ação no fígado até estudos com enfoques ambientais, como por exemplo, os<br />

disruptores endócrinos que são compostos que podem afetar o sistema endócrino e assim<br />

toda a fisiologia reprodutiva. Os machos de teleósteos também possuem o gene para<br />

vitelogenina, entretanto, o mesmo não é expresso devido ao baixo nível de estradiol<br />

circulante, podendo ser expresso em raras situações, como por exemplo, na exposição dos<br />

indivíduos aos poluentes com ação estrogênica (Moncaut et al. 2003).<br />

Na fase de vitelogênese, que é um processo pelo qual o citoplasma do oócito<br />

acumula substâncias de reservas para posterior utilização pela larva, ocorre um aumento<br />

nos níveis plasmáticos de 17β-estradiol e testosterona e esse aumento inibe a síntese de<br />

FSH (feed back negativo) e juntamente com a ação do GnRH estimulam a secreção<br />

hipofisária do hormônio luteinizante (LH) nas fases finais dessa vitelogênese. O LH estimula<br />

a camada teca do folículo a produzir 17α-hidroxiprogesterona, que é transportada à camada<br />

89


V Curso de Inverno<br />

granulosa e convertida a 17α,20β-dihidroxy-4-pregnen-3-one ou 17α,20β-21-trihidroxy-4-<br />

pregnen-3-one pela enzima 20α-hidroxiesteróide-desidrogenase, dependendo da espécie<br />

considerada (Nagahama 1994; Mylonas et al. 1997; Peter & Yu 1997; Blázquez et al. 1998).<br />

O hormônio 17α-20β-dihidroxy-4-pregnen-3-one é conhecido como o hormônio indutor da<br />

maturação final e da ovulação (MIS) na maioria dos peixes.<br />

Nos machos, o controle da síntese de esteróides é semelhante ao das fêmeas. FSH<br />

e LH estimulam a esteroidogênese testicular e espermatogênese, sendo os andrógenos,<br />

testosterona e 11-cetotestosterona produzidos pelas células de Leydig no tecido intersticial<br />

dos testículos, sendo, esses hormônios gonadais os mais importantes no desenvolvimento<br />

do testículo e das características sexuais secundárias nos machos (Grier 1980; Pudney<br />

1995; Cyr & Eales 1996; Haider 2004; Parenti & Grier 2004).<br />

A Figura 2 apresenta um resumo funcional do eixo hipotálamo-hipófise-gônadas na<br />

reprodução de peixes teleósteos.<br />

De uma forma geral, apesar do eixo hipotálamo-hipófise-gônadas ser responsável<br />

pelo controle endócrino da reprodução em peixes, como visto anteriormente, o<br />

conhecimento da fisiologia deste eixo para as espécies nativas ainda é bastante escasso.<br />

Os mecanismos fisiológicos que levam ao bloqueio da reprodução em peixes reofílicos<br />

(peixes de piracema) quando estes são impedidos de migrar, por exemplo, quando ocorre à<br />

construção de barragens ou quando são transferidos para o cativeiro em operações de<br />

cultivo, ainda não são bem compreendidos. Zohar & Mylonas, (2001) sintetizam três tipos de<br />

disfunção endócrina observadas na reprodução de espécies de peixes migradoras. O<br />

primeiro problema e o mais severo ocorre em enguias (Anguilla anguilla), nas quais a<br />

vitelogênese e a espermatogênese falham completamente quando os reprodutores são<br />

mantidos em cativeiro. A segunda disfunção é a ausência da maturação final nos oócitos e o<br />

último problema é a falha na desova ao final do ciclo reprodutivo. Para as espécies<br />

nacionais a disfunção que ocorre normalmente é a ausência da maturação final dos oócitos<br />

(migração da vesícula germinativa) e o seu motivo ainda não está claro.<br />

Neste contexto, considerando-se que as espécies de peixes de piracema, quando<br />

são impedidas de migrar, apresentam um bloqueio na reprodução, fica evidente, que a<br />

construção de reservatórios nos rios brasileiros causa grandes impactos no ciclo de vida dos<br />

peixes reofílicos, principalmente nos aspectos relacionados à fisiologia reprodutiva. Este<br />

bloqueio, como mencionado anteriormente, também é observado nas espécies de peixes de<br />

piracema quando transferidas para o cativeiro (piscicultura) em operações de cultivo. Assim,<br />

nesta obra é apresentado de modo sucinto e discutido de forma preliminar o conhecimento<br />

disponível acerca do estado de arte da fisiologia da reprodução de peixes, impactos a que<br />

algumas espécies estão sujeitas pelos represamentos e a importância dos estudos de<br />

fisiologia da conservação na preservação de espécies ameaçadas. Pretende-se ainda, com<br />

esta obra, fornecer subsídios às discussões sobre o tema, sem a pretensão de fazê-lo de<br />

90


Fisiologia, Conservação e Meio Ambiente<br />

modo completo, visto que a maioria das informações disponíveis tem caráter disperso e<br />

provisório.<br />

Referências Bibliográficas<br />

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Dissertação de Mestrado. Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo.<br />

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91


V Curso de Inverno<br />

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Revisado por Renata Guimarães Moreira e Maria Inês Borella<br />

92


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Capítulo 3<br />

Termodinâmica e<br />

Complexidade em Sistemas<br />

Biológicos<br />

Autores:<br />

Breno Teixeira Santos<br />

José Eduardo Natali<br />

Fernando Marques<br />

Vitor Hugo Rodrigues<br />

93


V Curso de Inverno<br />

94


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Algumas Definições:<br />

Breno Santos<br />

Laboratório de Fisiologia Teórica<br />

Antes de começarmos nossa discussão sobre termodinâmica e complexidade em<br />

sistemas biológicos precisamos, primeiramente, estabelecer duas definições: a definição de<br />

complexidade e a definição de sistema, começando pela segunda delas. Vamos observar<br />

definições de sistema advindas de mundos (aparentemente!) muito distintos.<br />

“A system is a combination of components that act together and perform a certain objective.<br />

A system is not limited to physical ones. The concept of the system can be applied to<br />

abstract, dynamic phenomena such as those encountered in economics. The word system<br />

should, therefore, be interpreted to imply physical, biological, economics, and the like,<br />

systems.”<br />

Ogata, K., Modern Control Engineering<br />

“... system is defined as a unit by the relations between its components which realize the<br />

system as a whole, and its properties as a unity are determined by the way this unity is<br />

defined, and not by the particular properties of its components.”<br />

Varela, F. G., Maturana, H. R. e Uribe, R., Autopoiesis: The Organization of Living Systems,<br />

Its Characterization and a Model<br />

Podemos perceber então, que as ciências exatas e as ciências biológicas possuem<br />

um denominador comum a respeito da definição do termo sistema; é um conjunto de partes<br />

as quais estabelecem relações entre si. Se podemos reduzi-lo à soma de suas partes<br />

constituintes, ou se apresenta as chamadas propriedades emergentes, isso é discussão<br />

para outra hora e local!<br />

E quanto à complexidade? O senso comum chama de simples os sistemas que,<br />

aparentemente, possuem um ou poucos objetos e ações constituintes. Imagine um mol de<br />

um gás às CNTP, em equilíbrio, encerrado em uma caixa de 1cm³. Isso é um sistema<br />

simples ou complexo? Muitos diriam que é um sistema simples, pois não percebemos<br />

nenhuma atividade coordenada ou forma de dinâmica, esse sistema “não faz nada” nem “vai<br />

para lugar algum”. Porém perceba que estamos falando de, nessas condições, 6,023 x 10²³<br />

moléculas de gás, comportando-se individualmente (dado que a interação entre elas ocorre<br />

em escalas de angstroms), ou seja, estamos falando do que Boltzmann chamou de caos<br />

95


V Curso de Inverno<br />

molecular. Complexo ou não? Observemos o seguinte trecho escrito pelo físico Murray Gell-<br />

Mann (grifos meus):<br />

“As measures of something like complexity for an entity in the real world, all such quantities<br />

are to some extent context-dependent or even subjective. They depend on the coarse<br />

graining (level of detail) of the description of the entity, on the previous knowledge and<br />

understanding of the world that is assumed, on the language employed, on the coding<br />

method used for conversion from that language into a string of bits, and on the particular<br />

ideal computer chosen as a standard.”<br />

Gell-Mann, M., What is Complexity?<br />

O que Gell-Mann quer nos dizer é que uma medida de complexidade está<br />

intimamente conectada a idéias sobre informação. Na teoria da informação proposta por<br />

Shannon, uma seqüência de bits aleatória é a que possui a maior quantidade de informação.<br />

Ouvir o chiado (“random sequence”) de um rádio mal sintonizado lhe traz alguma<br />

informação? Não. Porém o chiado começar ou parar sim. Vejamos o que diz Russel<br />

Standish:<br />

“Random sequences have maximum complexity, as by definition a random sequence can<br />

have no generating algorithm shorter than simply listing the sequence. ..., this contradicts the<br />

notion that random sequences should contain no information.”<br />

Standish, R. K., On Complexity and Emergence.<br />

No capítulo intitulado Informação, será apresentado o conceito de Informação<br />

Pragmática, que está ligado ao fato de que, se algo é informativo, é informativo para alguma<br />

entidade e deve, portanto, causar mudanças de estado nessa entidade.<br />

A imensa maioria dos sistemas complexos se apresentará na forma de sistemas nãolineares<br />

e muitos desses serão ainda, sistemas com memória, ou seja, o passado (os<br />

valores de suas variáveis em instantes anteriores ao presente), interfere no estado atual do<br />

mesmo. O modelo teórico utilizado para descrever o sistema deverá levar isso em conta<br />

além de outras duas características, se o sistema é de tempo contínuo ou discreto e a<br />

parâmetros concentrados ou distribuídos. Vejamos o que Steven Strogatz nos diz a respeito:<br />

“... a linear system is precisely equal to the sum of the parts. But many things in nature don’t<br />

act this way. Whenever parts of a system interfere, or cooperate, or compete, there are<br />

nonlinear interactions going on. Most of every day life is nonlinear, and the principle of<br />

superposition fails spectacularly.”<br />

Strogatz, S. H., Nonlinear Dynamics and Chaos.<br />

96


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Dessa maneira, se estamos interessados em modelar matematicamente sistemas<br />

biológicos, teremos que estar preparados para lidar com fenômenos não lineares como, por<br />

exemplo, saturações e crescimentos ou decaimentos exponenciais, para citar dois<br />

extremamente simples! No mesmo livro, Strogatz apresenta a tabela, figura 1, abaixo.<br />

Observe que os modelos de sistemas biológicos mais simples se inserem em sistemas<br />

lineares com muitas variáveis ou sistemas não lineares com duas variáveis sendo que, a<br />

imensa maioria de fenômenos, reside após a fronteira dos sistemas não lineares com muitas<br />

variáveis!<br />

Ruído, Caos e Fractais<br />

Toda a medida realizada em um sistema está sujeita à presença de ruído, seja ele<br />

ruído térmico (inerente às oscilações térmicas dos elétrons que compõem a matéria) do<br />

próprio sistema, ou dos instrumentos de medida ou, ainda, o ruído de quantização quando<br />

digitalizamos dados ao passá-los para um microcomputador. Portanto, como é possível<br />

discernir entre ruído e comportamento caótico? Essa é uma pergunta bastante complicada<br />

e, ainda hoje, se procuram métodos para responder essa questão de maneira definitiva, se é<br />

que isso será possível (ao menos no que tange a medidas experimentais). Todo ruído<br />

térmico, também chamado ruído branco ou ruído Gaussiano, é definido através de uma<br />

distribuição normal de probabilidades mas muitas séries temporais caóticas também o são.<br />

O aparecimento de caos na dinâmica de um sistema está vinculado a:<br />

- imprevisibilidade: o conhecimento do estado do sistema durante um tempo arbitrariamente<br />

longo não permite predizer, de maneira imediata, sua evolução posterior.<br />

- espectro contínuo de freqüências: a energia do sistema está igualmente distribuída ao<br />

longo de diferentes freqüências. Essa característica indica comportamento aperiódico.<br />

- invariância de escala: não importa a escala em que se observe o fenômeno (pense nisso<br />

como um zoom) a estrutura hierárquica do mesmo apresenta características de autosimilaridade.<br />

- estacionariedade: grosso modo, embora aperiodicamente, os padrões tendem a repetição.<br />

Todas essas características estão associadas ao que chamamos de dependência<br />

sensitiva às condições iniciais (D<strong>CI</strong>). O caos determinístico é essencialmente devido à D<strong>CI</strong>.<br />

Essa dependência resulta das não-linearidades presentes no sistema, as quais amplificam<br />

exponencialmente pequenas diferenças nas condições iniciais do sistema. Isso foi<br />

97


V Curso de Inverno<br />

observado por Edward Norton Lorenz, matemático e meteorologista que, quando<br />

trabalhando com previsão do tempo no exército norte americano durante a II Grande<br />

Guerra, observou que o resultado dos cálculos de seu modelo de movimentação do ar na<br />

atmosfera eram sempre diferentes a cada vez que ele os computava em seu computador<br />

analógico (sim, analógico!!!). O problema era que a impressão de seus resultados estava<br />

limitada a uma determinada quantidade de casas decimais e quando ele utilizava esses<br />

dados truncados para uma nova computação (ou seja, usava-os como novas condições<br />

inicias, levemente diferentes das anteriores devido ao truncamento) o resultado era<br />

absurdamente diferente. Isso ficou então conhecido como efeito borboleta, e a figura 2, o<br />

atrator de Lorenz, ganhou o mundo.<br />

Figura 1: Onde os sistemas biológicos se inserem, retirado de [Strogatz, 1994].<br />

Temos então ainda um novo conceito a ser esclarecido, o conceito de atrator.<br />

Imagine que uma bolinha será colocada na superfície apresentada na figura 3. Dependendo<br />

da posição inicial da bolinha e se a mesma foi apenas colocada ou foi impulsionada em<br />

alguma direção, ninguém duvidaria que a bolinha, em algum momento, irá parar dentro de<br />

algum dos poços da figura. Após ela parar seu movimento dentro de algum desses poços,<br />

ela nunca mais sairá de lá a menos que lhe seja cedida energia de alguma forma. Pois bem,<br />

os fundos dos poços são o que chamamos de atratores. Se algo estiver próximo o suficiente<br />

desse atrator e se esperarmos o tempo necessário, esse algo irá se dirigir ao atrator.<br />

98


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Figura 2: O atrator de Lorenz.<br />

Figura 3: Poços de potencial são atratores pontuais.<br />

Mas isso é bem diferente do que podemos observar na figura 2, isso porque o atrator<br />

apresentado lá é de outro tipo, chamado atrator estranho. Perceba que, embora o sistema<br />

não evolua para um determinado ponto, ele está confinado em um determinado volume e no<br />

caso de um sistema dissipativo (ou seja, um sistema no qual a energia interna do mesmo vai<br />

sendo perdida através de alguma ineficiência do processo), esse volume se tornará cada<br />

vez menor. Para que exista uma D<strong>CI</strong> é necessário um atrator estranho e, sistemas<br />

determinísticos que apresentam evolução temporal que conduz assintoticamente a atratores<br />

99


V Curso de Inverno<br />

estranhos, apresentam dinâmica caótica. Os fundos dos poços, tendo em mente o espaço<br />

euclidiano tridimensional representado (X, Y e Z ou largura, altura e profundidade), são na<br />

verdade pontos (mais matematicamente, uma tríade (x, y, z)), portanto possuem dimensão<br />

menor (um ponto tem dimensão 0) do que a do espaço no qual estão incluídos. Um atrator<br />

sempre terá dimensão menor do que a do espaço que o contém, caso contrário ele seria o<br />

próprio espaço e, portanto, poderíamos “passear” livremente sem necessariamente<br />

convergir para nenhum lugar restrito do mesmo. Observando novamente o atrator de Lorenz<br />

e sem nenhum rigor matemático, percebemos que esse atrator é “maior do que um ponto,<br />

maior do que uma reta, mas menor do que uma superfície”. Estamos nos aproximando do<br />

conceito de fractal, ou melhor, dimensão fractal. Vamos a um exemplo mais simples, porém<br />

altamente elucidativo. Observe a figura 4 que mostra geometricamente a maneira de se<br />

construir um conjunto de Cantor. Para termos um conjunto de Cantor tome a barra inicial e<br />

divida-a em três partes iguais. Agora jogue fora o terço central e repita o mesmo processo<br />

para os dois terços restantes e assim por diante.<br />

Figura 4: O conjunto de Cantor.<br />

Para n muito grandes, teremos uma nuvem de pontos que possui dimensão maior do<br />

que a de um único ponto, porém, obviamente, menor do que a de uma reta, ou seja, o<br />

conjunto de Cantor tem dimensão maior que 0 e menor do que 1! Utilizando processos que<br />

não iremos descrever aqui (para maiores detalhes consulte nas bibliografias sugeridas o<br />

assunto: algoritmos de contagem de caixas – box counting algorithms), calculamos que a<br />

dimensão do conjunto de Cantor é 0,63! Estamos lidando com entidades que possuem<br />

dimensão não inteira e, para tanto, Benoît Mandelbrot cunhou o termo fractal que vem do<br />

latim fractus que significa quebrado, fraturado. Agora, com uma definição um pouco<br />

melhorada do que vem a ser uma dimensão fractal, podemos dizer que atratores estranho<br />

possuem dimensão fractal, como o atrator de Lorenz.<br />

Na figura 6 temos um outro famoso fractal, o conjunto de Mandelbrot. Observe, nas<br />

miniaturas, que mostram zooms cada vez maiores, que a invariância de escala é marcante.<br />

100


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Existem diversos exemplos de dimensão fractal na biologia, a ramificação dendrítica neural,<br />

a superfície pulmonar, a ramificação arterial, a superfície interna das cristas mitocondriais,<br />

microvilosidades intestinais e acoplamento entre osciladores (disparo de neurônios ou canto<br />

de animais, por exemplo).<br />

Biologia e Sistemas Complexos<br />

Sistemas biológicos são inerentemente complexos, pois, mesmo o mais simples<br />

deles, possui um grande número de partes constituintes cujas interações levam a<br />

comportamentos coletivos complicados. Esse conjunto de interações e a existência de uma<br />

hierarquia funcional e estrutural tornam os sistemas biológicos não-lineares. Quando um<br />

sistema é reconhecidamente não-linear não podemos, por exemplo, utilizar o princípio de<br />

superposição para estudá-lo. Esse princípio rege que, sendo o sistema linear, é possível<br />

estudar as respostas de cada parte e combiná-las de forma a obter sua resposta, ou seja,<br />

sua dinâmica evolucionária global. Portanto, a esperança de Newton e seus<br />

contemporâneos em serem capazes de prever a dinâmica de qualquer sistema, dado o<br />

conjunto completo de suas condições iniciais e de todas as interações entre as partes, foi<br />

inútil. Isso foi percebido pelos cientistas dos séculos XVII e XVIII ao se depararem com a<br />

impossibilidade de criar uma descrição analítica para o problema do movimento de três<br />

corpos sob interação da lei da atração gravitacional (sim, apenas 3!).<br />

No século XIX, Boltzmann e seus contemporâneos obtiveram resultados que<br />

demonstravam que era possível prever o comportamento médio de um sistema que fosse<br />

constituído por partículas idênticas com fraca interação entre si. Nasciam as leis da<br />

Termodinâmica, baseadas nas descrições estatísticas das partes microscópicas do sistema.<br />

Mas nem os princípios aplicáveis aos sistemas lineares, nem as leis da Termodinâmica, são<br />

capazes de descrever de maneira completa os sistemas complexos, principalmente nos<br />

quais as interações não são fracas.<br />

Antes que possamos partir para uma tentativa de clarificar de que forma podemos<br />

então estudar um sistema complexo, já que aparentemente nada visto até aqui se presta a<br />

isso, precisamos de dois conceitos bem estabelecidos, calor e entropia (detalhes mais<br />

formais serão vistos nos próximos capítulos). Vamos tentar definir esses dois termos de<br />

forma termodinâmica e intuitiva. Quando dizemos “estou morrendo de calor” não estamos<br />

utilizando o termo “calor” como definido pelos físicos. Calor é o processo espontâneo de<br />

transferência de energia térmica entre dois corpos de temperaturas diferentes e ocorre<br />

sempre do corpo mais quente para o corpo mais frio. Benjamin Thompson, enquanto<br />

ocupava a superintendência de broqueamento de canhões, nas oficinas do arsenal militar<br />

em Munique, percebeu que trabalho mecânico e calor eram ambos formas de transferência<br />

de energia. Lembre que trabalho mecânico se calcula como o produto entre uma força e o<br />

deslocamento sofrido pelo corpo. Devido ao atrito entre a ferramenta de corte e o cobre do<br />

101


V Curso de Inverno<br />

corpo dos canhões; trabalho mecânico, tem-se o aumento de temperatura do cobre<br />

(perceba que se transmitiu energia, sem transferência de calor). As aparas metálicas então,<br />

com temperaturas elevadas, eram capazes de iniciar o processo de ebulição da água (agora<br />

temos calor transferindo energia térmica das aparas, mais quentes, para a água, mais fria).<br />

Figura 6: Detalhes do conjunto de Mandelbrot.<br />

Entropia, S, foi definida inicialmente por Rudolph Clausius e sua variação, dS, pode<br />

ser calculada, pra um processo reversível, como a variação de calor, dQ (calor transferido<br />

ou recebido) dividido pela temperatura T, do sistema durante essa transferência de calor.<br />

Portanto, se tivermos uma variação de entropia nula, isso significa que cessou o processo<br />

de transferência de energia térmica, ou seja, lembrando do que Thompson observou,<br />

102


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

cessou nossa capacidade de realizar trabalho. Assim, podemos encarar a entropia de um<br />

sistema como uma medida de sua capacidade de realizar trabalho.<br />

Munidos desses novos conceitos podemos ver que evolução temporal em física, está<br />

ligada à aproximação do equilíbrio térmico, ou seja, a incapacidade de realizar trabalho e,<br />

portanto, a eliminação de não-uniformidades nas variáveis macroscópicas que caracterizam<br />

o sistema. Porém, biologicamente falando, evolução está associada a aumento de<br />

complexidade, organização e especialização. Nas últimas décadas tem-se recorridos às<br />

teorias de auto-organização para explicar a dinâmica dos sistemas complexos. Essas<br />

teorias mostram que para um dado valor crítico de um parâmetro de ordem, valor esse que<br />

pode ser atingido devido às flutuações aleatórias internas ao sistema, amplificam-se<br />

interações entre partes que disparam um processo auto-organizante. Ou seja, o sistema<br />

será auto-organizante se for capaz de adquirir espontaneamente uma estrutura de natureza<br />

funcional, temporal e/ou espacial, demonstrada pelo surgimento de uma coerência de longo<br />

alcance entre as variáveis do sistema. Um exemplo de estruturas auto-organizantes são<br />

micelas, como a camada bi-lipídica da membrana celular e os lipossomos. Existem, então,<br />

sistemas capazes de operar de forma a não evoluírem da maneira como prevê a<br />

termodinâmica clássica, são sistemas regidos pela termodinâmica fora de equilíbrio, um<br />

ramo da ciência bastante desenvolvido por Ilya Prigogine. O fato é que as leis da<br />

termodinâmica garantem que a entropia total do universo está sempre aumentando e,<br />

portanto, utilizando todo o universo como o nosso sistema o mesmo tende a tornar-se<br />

homogêneo. Como então explicar a existência dessas “ilhas de ordem”? Um sistema só<br />

pode diminuir ou manter estável sua entropia às custas de aumentar a entropia do meio<br />

externo. Só conseguimos nos manter vivos graças a degradação dos alimentos que<br />

ingerimos, ou seja, nossa organização em detrimento do aumento de entropia do pé de<br />

alface, do boi, do refrigerante, que agora não passam de um aglomerado de moléculas.<br />

Conclusões:<br />

Apesar de superficial, essa pequena introdução ao mundo dos sistemas complexos<br />

mostrou a enorme aplicabilidade dessa teoria para o estudo dos sistemas biológicos que<br />

são, na sua maioria absoluta, sistemas regidos por dinâmicas não lineares. Durante a<br />

evolução temporal desses sistemas podemos passar por dinâmicas caóticas, sincronização,<br />

“edge of chaos”, ou seja, estudar esses sistemas com as técnicas aplicadas a sistemas<br />

lineares e, muitas vezes admitindo-os no equilíbrio (ou muito próximos deles) pode nos levar<br />

a conclusões nebulosas sobre o seu funcionamento. Cada vez mais estamos observando<br />

que a biologia não pode mais evoluir sem unir forças com outros ramos do conhecimento<br />

como matemática, física e engenharia o que pode, no futuro, culminar em teorias gerais da<br />

biologia.<br />

103


V Curso de Inverno<br />

Para saber mais:<br />

Fiedler-Ferrara, N. e Prado, C. P. C. 1994. Caos – Uma Introdução. Edgard Blucher.<br />

Gell-Mann, M. 1995. What is Complexity? In: Complexity, vol. 1, no. 1. John Wiley and Sons.<br />

Glass, L. e Mackey, M. C. 1997. Dos Relógios ao Caos: Os Ritmos da Vida. Edusp.<br />

Monteiro, L. H. A. e Piqueira, J. R. C. O que Orienta a Evolução Biológica. In: Ítala Maria D'Ottaviano;<br />

Maria Eunice Quilicci Gonzales. (Org.). Auto-organização: estudos multidisciplinares. 1 ed.<br />

Campinas: Editora da UNICAMP, 2000<br />

Monteiro, L. H. A. 2006. Sistemas Dinâmicos. 2ª edição. Editora Livraria da Física.<br />

Ogata, K. 2001. Modern Control Engineering. 4ª edição. Pearson.<br />

Prigogine, I. 2002. As Leis do Caos. Editora Unesp.<br />

Serway, R. A. e Jewett, J. W. Princípios de Física: Movimento Ondulatório e Termodinâmica - Vol. 2.<br />

LTC.<br />

Standish, R. K. On Complexity and Emergence. http://parallel.hpc.unsw.edu.au/rks<br />

Strogatz, S. H. 1994. Nonlinear Dynamics and Chaos: With Applications in Physics, Biology,<br />

Chemistry, and Engineering (Studies in Nonlinearity). Addison Wesley.<br />

Varela, F. G., Maturana, H. R. e Uribe, R. 1974. Autopoiesis: The Organization of Living Systems, Its<br />

Characterization and a Model. Biosystems, 5, 187-196.<br />

Belas Figuras com Dimensões Fractais:<br />

http://local.wasp.uwa.edu.au/~pbourke/fractals/<br />

http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_fractals_by_Hausdorff_dimension<br />

Revisado por José Guilherme de Souza Chauí Matos Berlinck<br />

104


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Primeira Lei da Termodinâmica<br />

José Eduardo Natali<br />

Laboratório de Fisiologia Teórica<br />

O surgimento da termodinâmica está ligado ao crescimento das cidades e a<br />

descoberta do “novo continente” nos séculos XV e XVI. Esses acontecimentos provocaram<br />

uma grande expansão do comércio de mercadorias, o qual não conseguia mais ser suprido<br />

apenas pelo trabalho artesanal. Nesse contexto, surgiu a máquina a vapor, desenvolvida por<br />

Watt entre 1765 e 1769, que permitia transformar a energia química do combustível em<br />

energia térmica, e essa, em trabalho mecânico; revolucionando assim os meios de produção<br />

e transporte. A termodinâmica surgiu da necessidade de entender o funcionamento das<br />

maquinas térmicas, e suas duas leis foram fundamentais nesse entendimento (Brush, 1966<br />

apud Monteiro & Piqueira, 2000).<br />

A primeira lei da termodinâmica foi sugerida independentemente por vários cientistas<br />

entre 1842 e 1847, mas o crédito é normalmente atribuído a Joule e Mayer (Brush, 1983<br />

apud Monteiro & Piqueira, 2000). Podemos entender melhor sua formulação a partir de um<br />

exemplo simples. Se levarmos em conta que temos um sistema genérico (um gás contido<br />

em uma caixa com um pistão), ele pode trocar calor (Q) ou trabalho (W) com seu entorno<br />

(Figura 1). Podemos imaginar que a troca de calor ocorrerá se o gás estiver em uma<br />

temperatura maior que o ambiente, perdendo parte dessa grandeza física para o ambiente;<br />

por sua vez se o gás for capaz de levantar o pistão ele estará realizando trabalho no meio<br />

externo (lembrando que nos dois casos o contrário também é possível). Historicamente o<br />

trabalho era medido em unidades mecânicas (força x metro ou joule) e o calor em unidades<br />

térmicas (caloria).<br />

W<br />

Sistema<br />

Q<br />

Figura 1 – Exemplo de um sistema com trocas de calor e trabalho.<br />

A primeira lei da termodinâmica surgiu a partir da observação de que existia uma<br />

proporcionalidade entre a troca de calor e o trabalho realizado, ou seja, no nosso sistema<br />

hipotético, se aquecêssemos o gás deveríamos ter uma ascensão proporcional do pistão.<br />

105


V Curso de Inverno<br />

Atualmente, sabemos que tanto o trabalho quanto o calor são medidas de troca de energia<br />

do sistema, e que aquela proporcionalidade é na verdade uma igualdade.<br />

Além de calor e trabalho, existem outras formas de energia (E), cuja unidade no<br />

Sistema Internacional de Unidades é joule (J), associadas às mudanças de estado que<br />

também estão contidas na primeira lei da termodinâmica. Isso pode ser evidenciado pois,<br />

caso não existisse o pistão no exemplo acima, uma transferência de energia térmica para o<br />

sistema iria contra a conservação de energia imposta pela primeira Lei. O que ocorre nesse<br />

caso é uma mudança de estado do sistema associada às mudanças em outras formas de<br />

energia como: a energia cinética (EC), a energia potencial (EP) e energia interna (U) uma<br />

forma de energia do sistema que não está associada a um sistema de coordenadas. Essa<br />

diferença quer dizer que temos algumas energias associadas com a posição do sistema (EC<br />

e EP), e outras que são totalmente independentes (U). Existem ainda outras formas de<br />

energia, como elétrica ou química, que não levaremos em conta para facilitar o<br />

entendimento.<br />

Temos então que:<br />

(1)<br />

Sendo que:<br />

Para m=massa,<br />

=velocidade, g = gravidade e Z=distância em relação a um plano<br />

de referência. Aqui fica clara a dependência dessas duas energias de um sistema de<br />

coordenadas, já que energia potencial depende da altura, e a cinética da velocidade, e<br />

consequentemente da posição. Por exemplo, para calcularmos a energia cinética de um<br />

carro, devemos saber sua velocidade em relação a uma referencial, o mesmo acontece para<br />

calcularmos a energia potencial, devemos saber a altura em relação a um plano de<br />

referência. Por outro lado, para sabermos a energia térmica (temperatura) de um corpo não<br />

precisamos de nenhuma informação em relação a sua posição, ou seja, não importa onde<br />

ele está.<br />

Assim podemos reescrever a primeira lei da termodinâmica para uma mudança de<br />

estado da seguinte maneira:<br />

(2)<br />

106


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Verbalmente, essa equação estabelece que energia pode cruzar a fronteira de um<br />

sistema na forma de calor e trabalho, e que a transferência líquida de energia será igual a<br />

variação líquida da energia do sistema, que ocorre por mudanças na energia cinética,<br />

potencial e interna. Podemos tirar dessa formulação que a quantidade total de energia é<br />

sempre conservada, o que ocorre é a transição entre suas diversas formas.<br />

Enquanto as reais implicações da segunda lei da termodinâmica em sistemas<br />

biológicos ainda são um pouco obscuras e motivo de estudo, a contribuição da primeira lei é<br />

natural. No ponto em que estamos, ninguém mais acredita que a energia que utilizamos<br />

p a r a<br />

d e s e m p e n h a r<br />

n o s s a s<br />

atividades vitais<br />

surja espontaneamente do nada. Sabemos que o trabalho necessário para realizarmos<br />

atividades físicas, a energia térmica dos endotérmicos ou ainda a energia associada à<br />

movimentação do líquido no sistema circulatório são provenientes da energia interna de<br />

moléculas orgânicas que os animais ingerem. Todas essas são transições entre formas de<br />

energia que obedecem à conservação de energia.<br />

O exemplo do sistema circulatório é bem interessante para analisarmos outra<br />

formulação da primeira lei, quando analisamos um trecho de uma artéria com influxo e saída<br />

de sangue, passamos a ter outro problema, nesse caso temos a entrada e saída de matéria<br />

(e energia associada a ela) na região que estamos estudando (Figura 2). Chamamos esse<br />

tipo de situação, que permite a entrada e saída de massa, de volume de controle.<br />

Entrada<br />

Q<br />

W<br />

Q<br />

W<br />

Saída<br />

We<br />

Ue<br />

ECe<br />

EPe<br />

Ws<br />

Us<br />

ECs<br />

EPs<br />

generalizado.<br />

Figura 2 – Balanço das energias que entram e saem de um segmento de artéria<br />

Nesse caso, continuamos a ter troca de trabalho e calor na fronteira do volume<br />

analisado, porém passamos a ter uma entrada e saída de matéria, que por sua vez traz e<br />

leva consigo energia (cinética, potencial, interna e trabalho).<br />

107


V Curso de Inverno<br />

A potencia associada a esse escoamento (a notação de um ponto em cima do<br />

parâmetro, indica estamos interessados na variação do trabalho no tempo) pode ser definido<br />

como uma força multiplicada por um deslocamento:<br />

Se multiplicarmos por<br />

ficamos com:<br />

Como<br />

e<br />

Temos que:<br />

Sendo<br />

, ou seja, estamos observando o trabalho por unidade de massa, ficamos com:<br />

(4)<br />

Ou seja, a potencia associado ao escoamento pode ser calculado pela multiplicação<br />

da pressão pelo fluxo de líquido, por unidade de massa. Se considerarmos agora as outras<br />

formas de energia envolvida temos que a energia total associada ao escoamento, por<br />

unidade de massa, é dada por:<br />

(5)<br />

Nesse momento é importante definir uma outra propriedade termodinâmica. Quando<br />

analisamos tipos específicos de processos muitas vezes combinações de propriedades<br />

aparecem recorrentemente, isso faz com que seja interessante nomear uma nova<br />

propriedade que facilite o entendimento do assunto, sem deixar de apresentar as<br />

características originais. No caso de processos que envolvem fluxos em volumes de<br />

controle, frequentemente lidamos com a soma (como visto na equação 5), tornandose<br />

conveniente definir uma nova propriedade, dependente da massa, chamada entalpia (h):<br />

108


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

(6)<br />

Juntando a equação (5) com a (6) temos que:<br />

(7)<br />

Agora que sabemos a energia associada ao escoamento, podemos definir a primeira<br />

lei da termodinâmica para volumes de controle. Para isso, sabemos que ela varia com o<br />

calor e trabalho trocado (equação (3)), e também com a energia associada ao fluxo que<br />

entra e sai (equação (7)). Temos assim que:<br />

(8)<br />

Sendo que o sobrescrito “v.c.” se refere á volume de controle, “e” a energias<br />

associadas a entrada de matéria e “s” a energias associadas a saída de matéria. Essa forma<br />

da primeira lei define que a variação da energia é dada pelo taxa líquida de transferência de<br />

calor, pela taxa líquida da realização de trabalho e aos fluxos de energia nas fronteiras do<br />

volume de controle.<br />

A grande questão que fica é qual a contribuição disso para o sistema circulatório. O<br />

ponto é que isso tudo é o sistema circulatório, ou pelo menos o cerne do que o faz funcionar.<br />

O sangue só circula porque temos no coração uma grande bomba, que coloca entalpia no<br />

sistema, levando a uma diferença de energias que possibilita o movimento. Movimento esse,<br />

que só é contínuo porque a conservação de energia permite que o trabalho seja<br />

Energia<br />

armazenado na parede das grandes artérias na sístole, para depois ser devolvido ao<br />

Máquina<br />

Trabalho<br />

sistema circulatório na diástole. Associado a isso tudo temos a transformação dessa energia<br />

em energia cinética, o que implica no movimento do sangue e de todos seus constituintes.<br />

Fonte É importante de Quenteenfatizar que, apesar desses exemplos mais pontuais, a primeira lei<br />

está presente em todos os processos que envolvem energia, desde reações químicas até<br />

Energia<br />

movimentos musculares, sendo o seu entendimento formal<br />

Perdida<br />

fundamental para<br />

compreendermos a segunda lei da termodinâmica e suas conseqüências na biologia.<br />

Para saber mais:<br />

Brush, S.G. 1966. Kinetic theory. Pergamon Press.<br />

Brush, S.G. 1983. Statistical physics and the atomic theory of matter. Princeton University Press.<br />

109


V Curso de Inverno<br />

Van Wylen, G. J., Sonntag, R. E. & Borgnakke, C. 2003. Fundamentos da Termodinâmica. Editora<br />

Edgard Blücher ltda. São Paulo. 577 páginas<br />

Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano, I.M.L &<br />

Gonzáles, M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />

Pressão<br />

A<br />

Qa<br />

D<br />

W<br />

B<br />

Ta<br />

Qb<br />

C<br />

Tb<br />

Volume<br />

Revisado por José Guilherme de Souza Chauí Matos Berlinck<br />

110


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Segunda Lei da Termodinâmica<br />

José Eduardo Natali, Fernando Marques e<br />

Vitor Hugo Rodrigues<br />

Laboratório de Fisiologia Teórica<br />

Todos nós utilizamos carro, ônibus ou qualquer outro meio de transporte que<br />

necessita, obrigatoriamente, de um combustível (seja ele fóssil ou não) para que se<br />

locomova. Todos nós sabemos que o motor dos meios de transporte aquece. Por que será?<br />

As bases da segunda lei da termodinâmica foram desenvolvidas pelo físico francês<br />

Sadi Carnot em 1824, antes da primeira lei (BRUSH, 1976, 1983 apud MONTEIRO &<br />

PIQUEIRA, 2000). Carnot, fascinado pelo impacto das máquinas na Inglaterra e também<br />

interessado em aumentar o rendimento das máquinas térmicas (como os motores de nossos<br />

meios de transporte, por exemplo), publicou a monografia “Reflexões sobre a força motriz do<br />

fogo e sobre as máquinas que desenvolvem essa força”, na qual mostra que o contato entre<br />

corpos de temperaturas diferentes gerava um fluxo de energia (calor) que deixava de ser<br />

utilizada para executar trabalho mecânico.<br />

Em outras palavras, ele notou que parte da energia fornecida pelos combustíveis aos<br />

nossos meios de transporte, por exemplo, é perdida sob a forma de energia térmica em vez<br />

de ser transformada em movimento pura e simplesmente, porque há uma diferença de<br />

temperatura entre o motor e o meio externo (ar, água) que o circunda (Figura 1) [lembre-se<br />

que dU (energia interna) = dQ (calor) - dW (trabalho)]. Além disso, Carnot mostra que é<br />

fundamental que uma parte da energia seja perdida, pois só assim a máquina pode<br />

continuar a realizar trabalho.<br />

Figura 1. A queima do combustível fornece energia (fonte quente). A energia é utilizada pela máquina<br />

na geração de trabalho. Contudo, parte é perdida para o meio externo, que possui uma temperatura<br />

menor que a da máquina.<br />

111


V Curso de Inverno<br />

Podemos começar a entender esse fenômeno estudando o ciclo de Carnot (Figura<br />

2). Neste ciclo, estão representados quatro pontos com diferentes parâmetros que os<br />

descrevem (pressão, volume e temperatura): A, B, C e D. A mudança de cada um dos<br />

pontos (ou estados) para outro ocorre espontaneamente, sendo assim isoentrópico, porém<br />

para o ciclo ser completo é necessário que a magnitude da transferência de energia Qa seja<br />

igual à Qb. Isso em um sistema isolado (na mesma escala de do ciclo de Carnot) implica na<br />

transferência de energia de um corpo mais frio para um corpo mais quente. Isto torna esse<br />

ciclo impossível, pois sabemos que só há fluxo de calor de um corpo mais quente (T<br />

maior) para um mais frio (T menor), e nunca o contrário (FEYNMAN et al,1970), o que<br />

torna a condução de calor um processo irreversível (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000).<br />

Dizemos que um processo é irreversível quando a probabilidade de que ele aconteça é tão<br />

baixa que sua ocorrência chega a ser considerada impossível (HOPF, 1988 apud<br />

MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000).<br />

1. Figura 2 - Ciclo de Carnot. Note que Ta>Tb e que as curvas Ta e Tb são isotermas, assim as<br />

transições A->B e C->D ocorrem à temperatura constante e B->C e D->A são transições<br />

adiabáticas (sem troca de energia com o meio). Todas as expansões e contrações do clico de<br />

Carnot são reversíveis, neste modelo a entropia aumenta e diminui, porém em uma<br />

transformação de A->B->C->D->A, a variação de entropia é igual zero (isoentrópica).<br />

Lembre-se que o trabalho útil é dado pela área hachurada da figura.<br />

Este ciclo foi criado por Carnot como modelo de uma máquina que minimizaria o tão<br />

famigerado problema da perda de energia sob a forma de calor, mas, infelizmente, não é<br />

possível construí-la (não até agora, pelo menos).<br />

A segunda lei da termodinâmica está associada exatamente a essa perda de<br />

energia. Porém, para melhor entendermos o que está por trás da segunda lei, uma<br />

formalização maior é necessária.<br />

Clausius deu à segunda lei seu formato mais famoso ao introduzir uma função de<br />

estado denominada entropia (representada por S), a qual era, segundo ele, uma medida de<br />

capacidade de mudança de um sistema: em um sistema isolado, a quantidade de energia é<br />

112


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

constante, contudo a quantidade de energia capaz de ser transformada em trabalho pode se<br />

alterar (tendendo a diminuir) com o passar do tempo (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000).<br />

Desta maneira, sempre que passamos de um estado de equilíbrio a outro (as transições do<br />

ciclo de Carnot, por exemplo), temos um aumento de entropia.<br />

Em sistemas isolados, ou seja, nos que não apresentam troca de calor com o meio,<br />

a entropia varia da seguinte forma:<br />

em processos reversíveis, não há variação (∆S=0);<br />

em processos irreversíveis, a entropia sempre aumenta (∆S>0).<br />

Em sistemas não isolados operando de maneira reversível a variação de entropia é<br />

dada por:<br />

,<br />

sendo dS a variação de entropia, ∂Q, a quantidade de calor transferida para o sistema e T,<br />

sua temperatura absoluta.<br />

Lembra da irreversibilidade da troca de calor? Se pensarmos que o mesmo calor que<br />

sai de um corpo com temperatura Ta é TRANFERIDO por outro corpo de temperatura Tb, ao<br />

olharmos bem a equação acima podemos notar que ∆S>0, fato típico de processos<br />

irreversíveis.<br />

Sendo assim, podemos concluir que ∆S (variação de entropia) está ligada à variação<br />

de calor em dada temperatura em cada um dos corpos do sistema:<br />

EM princípio, a definição de entropia de Clausius pode parecer estranha, mas esta<br />

entropia é a mesma que talvez você conheça de outra forma ou com outra representação,<br />

como as apresentadas a seguir.<br />

A maneira mais comum de se definir entropia é como sendo uma medida de (des)<br />

organização: quanto maior a entropia, menor a organização do sistema. Neste caso,<br />

assumimos que os sistemas caminham todos espontaneamente para um estado de maior<br />

“bagunça”, haja visto que a entropia sempre tende a aumentar (Figura 3).<br />

Entretanto, isto não se reflete em exatamente todos os sistemas existentes. Um<br />

exemplo bem interessante é o de uma solução supersaturada do sal tiossulfato de sódio<br />

que, espontaneamente, forma cristais bastante organizados espacialmente (MONTEIRO &<br />

PIQUEIRA, 2000), o que implica que seu estado de maior entropia é o de maior<br />

organização.<br />

Dessa forma, fica mais claro pensarmos que o aumento da entropia está relacionado<br />

a uma maior desordem estatística, mas não necessariamente a uma desorganização<br />

113


V Curso de Inverno<br />

(WICKEN, 1978). A importância estatística da segunda lei da termodinâmica será abordada<br />

mais para frente.<br />

Figura 3 – Em (a), temos moléculas com disposição “ordenada”. Se isso ocorreu em um determinado<br />

momento, o mais provável é que, em tempos futuros, a disposição seja mais “desordenada”, como<br />

em (b). Isto significa, portanto, que os processos naturais em sistemas isolados tendem para uma<br />

entropia maior. (Fonte: http://www.mspc.eng.br/termo/termod0120.shtml)<br />

Um outro modo de definir entropia é a entropia molecular ou estatística, que foi<br />

desenvolvida por Boltzmann. Aqui, entropia é considerada uma medida de energia dispersa<br />

entre microestados acessíveis, ou seja, é uma medida de uma combinação particular de<br />

moléculas distribuídas entre níveis de uma dada quantidade de energia (KOZLIAK, 2004).<br />

Microestados são estados do sistema no qual a localização e o momento de cada<br />

molécula e átomo são especificados em grande detalhe (KOZLIAK, 2004), e o número de<br />

microestados possíveis está diretamente, mas não apenas, relacionado às alterações na<br />

temperatura (assim como a entropia de Clausius também está).<br />

Boltzmann demonstrou que a entropia de Clausius pode ser escrita relacionando os<br />

W modos em que um microestado poderia gerar um macroestado (o estado macroscópico<br />

formado pelos microestados). Nessa visão estatística, quanto maior a quantidade de<br />

microestados acessíveis, maior o número de possibilidades em que o sistema pode se<br />

arranjar e, conseqüentemente, maior a entropia:<br />

S = kB ln W ,<br />

sendo S entropia, kB, a constante de Boltzmann, de valor pré-definido, e W, o número de<br />

microestados acessíveis.<br />

Porém podemos ter esta formulação em termos de probabilidade, onde se<br />

considerarmos que a energia total do sistema (E), foi dividida entre as partículas que o<br />

constituem. Se tivermos N partículas no sistema, existem muitas maneiras de distribuir a<br />

energia total E entre as N partículas, onde cada uma dessas maneiras é específica de cada<br />

microestado (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000).<br />

114


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Então, expressando entropia de uma maneira probabilística, o sistema tem uma<br />

probabilidade pi de estar num instante qualquer em qualquer um dos W os microestados,<br />

onde ∑ipi=1, para isso, temos que:<br />

S = -kB ∑i pi ln pi<br />

(PIQUEIRA & MONTEIRO, 2000).<br />

A grande contribuição da definição estatística da entropia é fazer a ligação entre os<br />

estados macroscópicos com os microscópicos. É importante ressaltar que, apesar de agora<br />

podermos calcular a entropia sem estar necessariamente associada A fluxos de calor e<br />

energia, as duas formulações são essencialmente a mesma coisa, e os conceitos<br />

inicialmente definidos continuam valendo. Sendo assim, pensar a entropia nesta abordagem<br />

molecular pode ser uma forma mais fácil (e correta) de entender o conceito.<br />

Entropia e os sistemas vivos:<br />

“Seres vivos são sistemas termodinâmicos fora do equilíbrio”. Esta frase talvez cause<br />

certo impacto ao ser lida, no entanto o quanto ela pode ter de verdade? Se considerarmos<br />

entropia como o grau de organização apresentado por um sistema, então, realmente, ela faz<br />

sentido. Seres vivos mantêm organização interna, à custa de criar desordem no meio<br />

externo, ou seja, operam em baixos níveis de entropia, mas aumentam a entropia presente<br />

no ambiente. Isso, lógico, se tomarmos entropia como o grau de desorganização do sistema<br />

observado.<br />

Isso foi proposto por Schroedinger em 1944 (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000), no<br />

entanto Ilya Prigogine leva estas idéias mais a fundo. Em seus trabalhos com sistemas<br />

abertos (sistemas abertos são aqueles que trocam massa e energia com o ambiente), ele<br />

propõe que as mudanças de entropia nestes sistemas podem ser decompostas em uma<br />

medida de entropia que o sistema troca com o meio e uma medida de entropia de processos<br />

irreversíveis internos do sistema (e.g.: reações químicas). Nesse balanço de forças entre as<br />

entropias, é possível para este sistema atingir um estado onde sua entropia é menor que a<br />

do início sem infringir a segunda lei (PRIGOGINE, 1955, 1980; PRIGOGINE, 1972 a, 1972<br />

b, apud MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000)<br />

Esse balanço entre entropias está associado a manter entropia interna baixa ao<br />

custo de uma geração de entropia alta no meio. Por exemplo, quando o sistema troca<br />

matéria com o ambiente (por exemplo, ingestão de alimento), ocorre uma variação de<br />

entropia. O sistema consegue compensar essa variação e assim manter uma entropia baixa<br />

aumentando a entropia externa (e. g. dissipação de energia térmica).<br />

Manter uma entropia interna baixa também é importante se lembrarmos que um<br />

aumento na entropia acarreta em uma menor capacidade de realizar trabalho. Assim,<br />

115


V Curso de Inverno<br />

podemos definir que uma menor geração de entropia está relacionada à diminuição da<br />

destruição de “energia útil” num sistema (BEJAN, 2002), o que parece ser altamente<br />

adaptativo.<br />

Alguns acreditam que como a segunda lei da termodinâmica é a única lei física que<br />

indica a direção temporal na qual um sistema evolui, a evolução biológica é uma<br />

conseqüência direta desta lei (MONTEIRO & PIQUEIRA, 2000), o que nos remete à frase<br />

que inicia esta sessão. Por mais que se tente pensar evolução num sentido não finalista, ela<br />

parece ter uma direção no tempo. Isto pode estar ligado à segunda lei, e também a todos os<br />

fenômenos citados acima. A vida, arrumando uma “solução” para problemas que o ambiente<br />

impõe a ela, mas sem entrar em equilíbrio com o mesmo, porque afinal, se ela entrasse<br />

neste estado, ela provavelmente não existiria.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Bejan, A. 2002. Fundamentals of exergy analysis, entropy generation minimization, and the generation<br />

of flow architecture. International Journal of Energy Research 26: 545-565.<br />

Brush, S.G. 1976. The kind of motion we call heat. Elsevier Science Publishers. (vol. 2) apud<br />

Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano,<br />

I.M.L & Gonzáles, M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />

Brush, S.G. 1983. Statistical physics and the atomic theory of matter. Princeton University Press. apud<br />

Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano,<br />

I.M.L & Gonzáles, M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />

Feynman, R.P.; Leighton, R.B.; Sands, M. 1970. The laws of Thermodynamics. In Feynman, R.P.;<br />

Leighton, R.B.; Sands, M. The Feynman Lectures on Physics – volume 1. p. 44-1 – 44-13.<br />

Addison Wesley Longman.<br />

Hopf, F.A. 1988. Entropy and evolution: sorting through the confusion. In Weber, B.H. et al. (eds)<br />

Entropy, information and evolution. p. 236-274. The MIT Press. apud Monteiro, L.H.A. &<br />

Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano, I.M.L & Gonzáles,<br />

M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />

Kozliak, E.I. 2004. Introduction of entrropy via the Boltzmann distribution in undergraduate Physical<br />

Chemistry: a molecular approach. J. Chem. Educ. 81 (11): 1595-1598.<br />

Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. 2000. O que orienta a evolução biológica? In D´Ottaviano, I.M.L &<br />

Gonzáles, M.E.Q. (orgs). Auto-organização. Coleção CLE30, Campinas.<br />

Prigogine, I. 1950. Introduction to thermodynamics of irreversible processes. John Wiley & Sons.<br />

Prigogine, I. 1972a. Thermodynamics of evolution I. Phys. Today, v. 25, n. 11, p.23-28.<br />

Prigogine, I. 1972b. Thermodynamics of evolution II. Phys. Today, v. 25, n. 12, p.38-44.<br />

Prigogine, I. 1980. From being to becoming. W.H.Freeman.<br />

Wicken, J. 1978. Information Transformations in Molecular Evolution. J. Theo. Biol. 72, 191-204.<br />

Revisado por José Guilherme de Souza Chauí Matos Berlinck<br />

116


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

Informação<br />

Vitor Hugo Rodrigues<br />

Laboratório de Fisiologia Teórica<br />

Esta é uma palavra utilizada em muitos contextos, comumente citada em diversos<br />

meios, e que assume, no geral, uma gama de significados, como por exemplo, “Conjunto de<br />

conhecimentos sobre alguém ou alguma coisa, conhecimentos obtidos por alguém, fato ou<br />

acontecimento que é levado ao conhecimento de alguém ou de um público através de<br />

palavras, sons ou imagens, elemento de conhecimento susceptível de ser transmitido e<br />

conservado graças a um suporte e um código”, ou “informação vem do latim informationem,<br />

("delinear, conceber idéia"), ou seja, dar forma ou moldar na mente, como em educação,<br />

instrução ou treinamento”, ou ainda “aquilo que reduz incerteza”.<br />

Essa palavra descreve fenômenos que são comuns a diversos tipos de sistemas, não<br />

somente a nós, humanos, pois o processo de comunicação se dá em diversos níveis que<br />

vão de células a populações inteiras, passando, inclusive, por sistemas inanimados. Frente<br />

à definição de informação dada, podemos ver que, na verdade, nos processos de<br />

comunicação, há transmissão de informação: se obtemos conhecimento sobre algo, alguém,<br />

ou algum fato, isto ocorre porque fomos comunicados de alguma forma.<br />

Quando observamos algo, procuramos de alguma forma, reduzir a incerteza que<br />

temos sobre aquilo que observamos, e, para isso, tentamos obter o máximo de informação<br />

sobre o objeto (aqui definido em senso amplo). Por exemplo, quando se está em uma festa<br />

e uma pessoa nos chama a atenção, podemos, de pronto, tomar duas posturas:<br />

De alguma forma tentar nos aproximar e nos apresentar para iniciar uma<br />

conversa.<br />

Ou não ir conversar com a pessoa, observá-la a noite inteira, e nos remoer<br />

em algum canto, torcendo para ela vir falar conosco (o que não vai<br />

acontecer, a não ser que você seja o Giannechinni).<br />

Supondo que a primeira opção tenha sido escolhida, e, a abordagem tenha sido feita<br />

(seja lá de que forma for), o diálogo (que pode virar um monólogo dependendo da reação da<br />

outra pessoa) certamente vai envolver perguntas como “Você vem sempre aqui?”, “Qual é<br />

seu nome?”, entre outras. Tudo isso sempre observando o comportamento da pessoa com<br />

quem se fala, para obter o máximo de informação possível, e assim, reduzir algumas<br />

incertezas as quais, por ventura, possam surgir, como “Será que ela vai sequer falar<br />

comigo?” ou “Vou sair sozinho desta festa hoje?”.<br />

Então, do exemplo, podemos dizer que o ambiente fornece parte das mensagens<br />

(reação, aparência, ou se a pessoa está acompanhada), assim como a própria conversa<br />

(informações relevantes (ou não!), como nome, idade, o que gosta, etc.).<br />

117


V Curso de Inverno<br />

Um pouquinho de história<br />

A história da Teoria da Informação remonta aos idos de 1928, quando Ralph Hartley,<br />

no artigo “Transmission of information”, apresenta uma formula para a quantificação de<br />

informação, o qual ressalta que o fator importante nesse processo é a habilidade do receptor<br />

em selecionar símbolos em um dado vocabulário. Então, tendo W símbolos disponíveis, a<br />

quantidade de informação H em uma dada seleção é H = logW. Hartley estava interessado<br />

em comparar a capacidade de transmissão de diversos sistemas elétricos de<br />

telecomunicação.<br />

Durante a segunda Guerra Mundial, Claude Shannon trabalhava com criptografia e<br />

sistemas de controle e automação no Bell Lab, nos Estados Unidos. Com o fim da guerra, e<br />

com muitas idéias advindas de seu trabalho com criptografia, Shannon desenvolveu a<br />

importante e controversa (ao menos na sua aplicabilidade em biologia) teoria da informação<br />

em 1948, com a publicação de um artigo, A Methematical Theory of Communication<br />

(Shannon,1948). Esse artigo foi publicado em forma de tese em 1949, com uma pequena<br />

alteração no titulo (a qual, sinceramente, faz toda a diferença), para The Mathematical<br />

Theory of Communication (Shannon & Weaver, 1949).<br />

Tá, chega de enrolação e fala logo da Teoria<br />

Shannon, logo no começo de seu artigo, inicia sua linha de raciocínio dizendo que o<br />

principal problema da comunicação é reproduzir num ponto exatamente ou da maneira mais<br />

próxima possível, uma mensagem que foi selecionada e enviada de outro ponto, e que a<br />

verdadeira mensagem é uma que é escolhida de um conjunto de mensagens possíveis.<br />

Então, o sistema tem que operar sobre qualquer seleção possível, e não com a que vai<br />

realmente ser escolhida uma vez que essa é desconhecida no momento anterior à<br />

mensagem ser enviada, ou seja, não é possível prever qual é a mensagem que será<br />

transmitida. Isso só será conhecido no momento da recepção (Shannon, 1948).<br />

A partir disso, vemos que, para Shannon, comunicação é um processo probabilístico,<br />

e que para problemas de engenharia (com os quais ele estava preocupado), o significado e<br />

veracidade das mensagens não importavam. Portanto, a teoria da informação está<br />

relacionada com a redução da incerteza do receptor, pois a mensagem tem uma<br />

probabilidade de fazer com que o receptor mude de estado, depois da transmissão da<br />

mensagem, narrando algum evento.<br />

Imagine, então, um sistema como o da figura 1, onde se tem uma fonte de<br />

informação que produz uma mensagem, ou seqüência de mensagens, as quais serão<br />

transmitidas pelo... Adivinha só? Se estiver olhando a figura e falou transmissor, acertou.<br />

Esse transmissor enviará um sinal para o receptor, por um canal, que nada mais é do que o<br />

meio pelo qual essa mensagem é enviada (sejam letras que se concatenam formando<br />

palavras, ou variação de voltagem, ou traços e pontos de código Morse, etc.). O receptor<br />

tem o papel de receber (porque isso me soa redundante?), e reconstruir a mensagem<br />

118


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

enviada, e, por fim, existe o destino que é quem deve receber a mensagem (seja uma<br />

pessoa ou coisa).<br />

Então, imagine um evento que você gostaria muito que acontecesse; como ganhar<br />

na loteria e passar o resto da vida deitado numa rede tomando seu drinque favorito. Para<br />

você saber se ganhou ou não, alguém precisa comunicá-lo, e, para isso, é necessária uma<br />

mensagem. Imagine que H é uma medida de informação e pi é a probabilidade de<br />

ocorrência de um evento dentre vários possíveis (quantidade de números acertada) e h é a<br />

informação recebida pela transmissão de uma mensagem informando um dos possíveis<br />

eventos ocorridos (por exemplo, você acertou todos os números), temos que h= - log pi.<br />

Então, a medida informação H, que é uma somatória da quantidade de informação de todos<br />

os h, ou na forma matemática, vale H=<br />

, sendo que H é chamado de entropia<br />

informacional.<br />

Re-analisando tudo isso a partir do exemplo acima, podemos ver que existiu um<br />

transmissor de informação (Caixa Econômica Federal, que é quem faz os sorteios), por um<br />

meio (transmitiu o sorteio pela TV ou rádio, ou publicou o resultado no jornal). Então o<br />

receptor (seus olhos ou ouvidos, ou os dois) recebeu a mensagem, e seu cérebro atento,<br />

que é o destino (ou destinatário) da mensagem, é quem vai processar a mensagem enviada<br />

e comparar com os números contidos no seu bilhete. Aí, a glória celestial vai preencher seu<br />

coração, ou a frustração do “droga, perdi de novo” vai amargurá-lo, mais uma vez.<br />

Sendo assim, se quiséssemos medir a quantidade de informação presente na<br />

transmissão deste evento:<br />

Tomaríamos a probabilidade de cada evento que no exemplo seria não<br />

acertar nenhum número (p0), acertar um (p1), dois (p2), três (p3), quatro (p4),<br />

cinco (p5) ou o bilhete irradiar uma imensa quantidade de felicidade<br />

mostrando que você acertou os seis números (p6, sem querer ser estraga<br />

prazeres, essa é irrisória).<br />

Então, multiplicaríamos, as probabilidades, pelos logaritmos das<br />

respectivas probabilidades (h0= p0 log (p0); h1=p1log(p1); e assim por<br />

diante).<br />

E somaríamos todos os h. Fácil, não?<br />

Teríamos, portanto, uma medida da informação contida na transmissão deste evento,<br />

segundo a teoria de Shannon. Isso, realmente, pode parecer um tanto esquisito, pois se ele<br />

partiu do pressuposto de que comunicação é um evento probabilístico, fica fácil ver o porquê<br />

de usar a probabilidade de cada evento, mas porque usar o logaritmo da probabilidade????<br />

Shannon explica:<br />

<br />

Alguns parâmetros em engenharia como tempo, comprimento de onda,<br />

variam linearmente com o logaritmo do numero de possibilidades. Por<br />

119


V Curso de Inverno<br />

<br />

<br />

exemplo, dobrando o tempo de uma série temporal, eleva-se ao quadrado o<br />

numero de mensagens possíveis, ou dobra-se o logaritmo dessas<br />

possibilidades num logaritmo de base 2.<br />

É próximo do que intuitivamente se chamaria de medida apropriada, pois se<br />

costuma comparar coisas por comparações lineares. Por exemplo, dois<br />

DVD’s tem o dobro de capacidade de armazenar informação do que um<br />

único DVD (nota: no exemplo de Shannon, foi usado cartão furado. Observe<br />

o quanto os meios de armazenamento de informação, e o tamanho dos<br />

computadores mudou de lá pra cá).<br />

É matematicamente mais apropriado, pois facilita algumas operações.<br />

Entropia...palavra recorrente...<br />

Se olhadas mais de perto, as funções de Boltzmann e de Shannon são bem<br />

parecidas, este, aliás, foi um motivo pelo qual a fórmula de Shannon citada acima foi<br />

batizada de “Entropia”. As principais diferenças são as constantes de proporcionalidade e as<br />

bases logarítmicas, que, ainda assim, não trazem diferenças significativas às duas formas.<br />

Acredita-se que a entropia de Shannon tira a definição de entropia do âmbito<br />

termodinâmico, e trás mais perto de referenciais de distribuições de probabilidade no geral.<br />

Uma das idéias associadas à noção de entropia é a da quantidade de energia distribuída<br />

pelos microestados ocupados pelo sistema, quanto mais homogênea é a distribuição (ou<br />

seja, a energia das partículas que compõem o sistema é igualmente distribuída entre os<br />

microestados do sistema) e a generalização de Shannon, pode ser encarada como a<br />

organização de um sinal ou série temporal qualquer. Quanto maior a Entropia Informacional<br />

contida naquele sinal, maior a “desorganização” do sinal como, por exemplo, ruído branco<br />

(que pode ser estática de rádio, ou da TV, que é um sinal que tem sua energia igualmente<br />

distribuída por todas as freqüências). Ou seja, mesmo tendo origens diferentes, a Entropia<br />

de Shannon dá um sentido um pouco mais geral ao conceito de Entropia.<br />

Além disso, a entropia termodinâmica pode se relacionar com a entropia<br />

informacional, já que a quantidade de microestados possíveis pode ser limitada por um<br />

acréscimo de informação ao observador. Esse é o principio de neguentropia da informação<br />

de Briollouin que leva em conta que nesse processo a entropia e a informação são<br />

intercambiáveis.<br />

Acho que entendi, mas o que isso tem a ver com Biologia?<br />

Alguns pesquisadores tentaram se utilizar da entropia informacional de Shannon para<br />

quantificar informação biológica. Considerando que informação é uma propriedade<br />

importante dos seres vivos, pois desde alguns dos menores níveis de organização (células,<br />

tecidos) envolve comunicação, ou transmissão de informação por moléculas (DNA no<br />

120


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

processo de transcrição e replicação por exemplo), uma medida como essa permitiria<br />

quantificar o nível de organização ou complexidade de um organismo.<br />

No entanto, alguns pesquisadores faziam criticas severas ao uso desta teoria em<br />

biologia evolutiva. Primeiro que, para o cálculo desta complexidade, as unidades de<br />

informação são arbitrárias, sendo que diferentes quantidades de informação serão obtidas<br />

dependendo do que se chama de unidade de informação. Um zigoto seria menos complexo<br />

que o Homem, pelo simples fato dele ser menor. Em segundo, quando se utilizam, por<br />

exemplo, proteínas constituintes como unidades de informação, calcula-se que a informação<br />

contida em um homem é de 5.10 25 bits. No entanto, outra critica curiosa e bem apropriada é<br />

que isto não pode ser levado em conta pelo fato de que tanto um homogeneizado de<br />

homem quanto um homem inteiro teriam a mesma quantidade de informação. Contudo, de<br />

todos os arranjos moleculares possíveis entre as moléculas que formam o Homem, apenas<br />

alguns podem formar um Homem vivo.<br />

Outra crítica que se coloca é a de que não se pode utilizar a teoria de Shannon, na<br />

qual se tem emissor, receptor e decodificador, para moléculas como o DNA, pois aqueles<br />

componentes não são aparentes em um sistema químico e, portanto, estes processos não<br />

carregam informação. Alem disso, a Teoria de Shannon não se preocupa com a veracidade<br />

ou com o significado da informação e, em sistemas biológicos, a qualidade da informação é<br />

tão importante quanto a quantidade de informação.<br />

Se há críticas por um lado, há, por outro, interesse na Teoria de Shannon. Segundo<br />

Maynard-Smith, se é possível transmitir informação por ondas elétricas, sonoras ou por<br />

eletricidade, por que não seria possível transmitir informação por meios químicos? Para ele,<br />

um dos grandes ganhos da teoria de Shannon é que a mesma informação pode ser<br />

transmitida por diferentes carreadores físicos. Engenheiros não usaram carreadores<br />

químicos justamente pela dificuldade de colocar ou tirar informação de meios químicos, uma<br />

dificuldade que segundo ele, os sistemas vivos conseguiram superar. É realmente difícil ver<br />

todos os elementos da teoria de Shannon no modelo de transcrição do DNA para RNA e da<br />

tradução deste RNAm para proteína. Se pensarmos na comunicação entre duas pessoas<br />

por código Morse, por exemplo, podemos identificar todos os elementos da figura 1, pois<br />

uma pessoa é a fonte da informação, existe o aparelho onde a mensagem será “digitada”,<br />

que é o transmissor, existe o meio de transmissão (eletricidade através de fios e cabos),<br />

existe o receptor, e o decodificador do código, que é o operador da maquina que recebe a<br />

mensagem. No entanto, é difícil imaginar uma decodificação de mensagem do RNAm para<br />

proteína, uma vez que o código não foi codificado por uma proteína para RNAm.<br />

Porém, nesse caso, Maynard Smith se utiliza de uma analogia que se estende por<br />

parte do artigo, que é da comunicação por código Morse. Neste caso, o codificador não é a<br />

maquininha que produz o sinal do código, e sim, a pessoa que converte significado em um<br />

encadeamento de fonemas, e que depois é convertido em código Morse. Já no exemplo do<br />

aparato celular de transcrição/tradução gênica, é a seleção natural. Por quê? Pelo simples<br />

121


V Curso de Inverno<br />

fato de que foi por seleção natural que selecionaram as seqüências de bases, dentre muitas<br />

seqüências possíveis, que originariam proteínas funcionais e constituintes dos sistemas<br />

vivos, por meio do canal de transmissão de informação descrito pela teoria de Shannon.<br />

Como ele diz em seu artigo: “Onde um engenheiro vê design, um biólogo vê seleção<br />

natural!”.<br />

Maaaasss... como nem tudo são flores, existem alguns pontos em que a teoria da<br />

Informação realmente peca quando aplicada em biologia. Warren Weaver, que trabalhou<br />

com Shannon no artigo em que se apresenta a teoria, diz que se pode medir a efetividade<br />

num processo de comunicação observando três preceitos básicos:<br />

1. O quão acuradamente os símbolos que codificam a mensagem podem ser<br />

transmitidos (o problema técnico).<br />

2. O quão precisamente os símbolos transmitidos transportam o significado desejado<br />

(o problema de significado).<br />

3. A efetividade da mensagem recebida na mudança de estado do receptor.<br />

E a teoria da Informação está apenas preocupada com o preceito 1, e em biologia,<br />

os outros dois preceitos são muito importantes, também. Então, baseado na teoria de<br />

Shannon, e focando no preceito 3, Weinberger, em 2002 propôs uma medida chamada<br />

informação pragmática, com o intuito de “medir” evolução. Na verdade, a informação<br />

pragmática vai medir a capacidade que uma mensagem tem de fazer com que o receptor<br />

mude de estado (e com isso quero dizer que se o sistema estava operando de uma<br />

determinada forma, vai passar, após a recepção da mensagem, a operar em outra; por<br />

exemplo, se você estiver parado, e seus olhos virem no relógio de que você está atrasado<br />

para a prova, seu coração disparará, e suas pernas se moverão loucamente... percebeu a<br />

mudança de estado?). Se imaginarmos um conjunto M de mensagens m, que chega a um<br />

receptor que por sua vez está ligado a um “tomador de decisão”, que enviará uma<br />

alternativa a um efetor. Esse efetor tinha um conjunto de possíveis “saídas” oi, cada uma<br />

com uma probabilidade q(oi) antes da mensagem atingir o receptor (maiores detalhes na<br />

figura 2). Até aí, nenhuma novidade. A grande novidade desse modelo é que quando o<br />

receptor capta a mensagem, as probabilidades q(oi) são revistas e as probabilidades de<br />

uma determinada “saída” se torna p(oi). Ou seja, imagine a festa do começo do capítulo, e<br />

imagine que aquela pessoa que te despertou o interesse está momentaneamente sozinha<br />

em algum canto, e deu uma olhadela sexy e uma piscadela marota pra você. Com essa<br />

mensagem, as probabilidades de uma possível postura que você pode tomar (como por<br />

exemplo, ir até a pessoa, ou ir até a pessoa com um drinque, ou ir até a pessoa chegando<br />

pelas costas; por que convenhamos, a probabilidade q(não chegar na pessoa), é quase nula<br />

nesse caso), no entanto, numa segunda observada que você dá nessa pessoa, você se<br />

depara com ela um pouco distraída, e ela enfia o dedo no nariz. Bem, depois dessa outra<br />

mensagem, as probabilidades vão ser revistas, e a probabilidade de você se aproximar se<br />

torna menor, e a de você não se aproximar, maiores.<br />

122


Termodinâmica e Complexidade em Sistemas Biológicos<br />

A informação pragmática torna-se uma medida, então, onde o contexto, e a<br />

semântica são relevantes, e então é uma medida que pode ser muito mais útil para ser<br />

usada em processos biológicos, apesar de algumas dificuldades, como por exemplo,<br />

determinar os conjuntos de ações possíveis, de mensagens possíveis e suas<br />

probabilidades.<br />

Fonte de<br />

informação<br />

Transmissor<br />

sinal<br />

recept<br />

or<br />

desti<br />

no<br />

Figura 1: Diagrama esquemático simplificado de um sistema de informação, com seus componentes<br />

(adaptado de Shannon, 1948).<br />

Teoria da Informação tem sido (mas não amplamente) usada em neurofisiologia, e<br />

em alguns estudos de comunicação de sapos e golfinhos para caracterização sonora dos<br />

cantos emitidos por estes animais (para maiores detalhes ver Suggs & Simmons, 2005 e<br />

Mcgowan, 1999). E pode ser uma base para projetos que tentem ver processamento no<br />

sistema nervoso central de algum animal, a partir de eventos de comunicação (como cantos,<br />

para animais que cantam). Por isso, apesar das limitações a Teoria da Informação de<br />

Shannon, ela abre precedentes para se pensar em transmissão de informação em<br />

processos de comunicação. Shannon, relembrando, se focou em problemas de<br />

comunicação na engenharia, e obviamente não se pode transpor diretamente esse tipo de<br />

teoria para a biologia. Mas tentativas de adaptação, como a de Weinberger com a<br />

Informação Pragmatica, são muito bem-vindas, pois tentar entender e quantificar<br />

comunicação e informação em processos biológico pode trazer grandes ganhos no<br />

entendimento desses sistemas malucos que são os sistemas vivos.<br />

Figura 2: Diagrama esquemático simplificado dos componentes que aparecem na informação<br />

pragmatica, (adaptado de Weinberger, 2002).<br />

123


V Curso de Inverno<br />

Nossa, que confusão!<br />

É, a coisa é realmente confusa. E provavelmente essa confusão ainda perdure na<br />

cabeça das pessoas por muito tempo. Mas, mesmo assim, algumas coisas bem legais estão<br />

surgindo da Teoria de Sannon. A própria informação pragmática é uma tentativa de<br />

quantificar informação, derivada da teoria de Shannon, mas que tenta estabelecer uma<br />

aplicabilidade para questões evolutivas.<br />

Para saber mais (plagiando uma famosa revista):<br />

Shannon, C.E. (1948). A Mathematical theory of communication. The Bell Sys. Tech. J.<br />

27:379-423,623-656.<br />

Monteiro, L.H.A. & Piqueira, J.R.C. (2000). O que orienta a evolução biológica? In. Auto-organização,<br />

D´Ottaviano I.M.L & Gonzáles, M.E.Q. Coleção CLE30, Campinas.<br />

Smith, M.J. (2000). The concept of information in biology. Phylosophy of Science, 67, 177-194.<br />

McCowan,B; Hanser, S.F; Doyle, L. R. (1999). Quantitative tools for comparing animal communication<br />

systems: Information theory applied to bottlenose dolphin whistle repertoires. Anim. Behav.<br />

57:409-419.<br />

Suggs, D & Simmons, A (2005). Information theory analysis of patterns of modulation in the<br />

advertisement call of the male bullfrog, Rana catesbeiana. J. Acoust. Soc. Am.<br />

117:2330-2337.<br />

http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_information_theory<br />

http://pt.wikipedia.org/wiki/Informa%C3%A7%C3%A3o#Etimologia<br />

Revisado por José Guilherme de Souza Chauí Matos Berlinck<br />

124


Cronobiologia<br />

Capítulo 4<br />

Cronobiologia<br />

Autores:<br />

Erika Cecon<br />

Gisele Akemi Oda<br />

Sanseray da Silveira Cruz-Machado<br />

Marco Antônio Pires Camilo Lapa<br />

Eduardo Koji Tamura<br />

Daiane Gil Franco<br />

Saulo Henrique Pires de Oliveira<br />

125


126<br />

V Curso de Inverno


Cronobiologia<br />

Introdução à Cronobiologia<br />

Gisele Akemi Oda<br />

Laboratório de Cronobiologia<br />

gaoda@ib.usp.br<br />

A Cronobiologia é o estudo da organização temporal dos seres vivos. Essa<br />

organização manifesta-se na ocorrência de ritmos biológicos em processos fisiológicos e<br />

comportamentais, desde seres unicelulares a pluricelulares, apresentando periodicidades<br />

que vão de milissegundos a anos.<br />

Ritmos biológicos com periodicidades iguais aos de ciclos ambientais são bastante<br />

evidentes: ritmos de vigília-sono, em humanos, têm períodos de 24 horas. Ritmos de<br />

hibernação e de migração têm períodos anuais. A reprodução e as atividades de muitos<br />

animais marinhos estão diretamente relacionadas com os ciclos lunares.<br />

A adaptação de um organismo, em seu aspecto temporal, está relacionada com a<br />

programação da melhor hora do dia, melhor estação do ano, melhor fase da maré, para<br />

realizar determinada atividade. Essa adaptação implica em um encadeamento de processos<br />

fisiológicos, os quais se organizam internamente, resultando em um organismo que<br />

expressa comportamentos e funções nos intervalos de tempo mais convenientes. A<br />

importância e a eficiência desse ajuste verificam-se em uma ampla diversidade de<br />

processos como a busca por alimento, interação predador-presa, sobrevivência a estações<br />

adversas, migração, reprodução, etc.<br />

Os ritmos circadianos são aqueles que apresentam períodos em torno de 24 horas<br />

e são os mais estudados na Cronobiologia. Acreditou-se, por muito tempo, que os ritmos<br />

circadianos decorriam apenas de uma resposta direta do organismo aos fatores ambientais<br />

cíclicos, como a temperatura e as alternâncias de claro e escuro. A persistência dos ritmos<br />

sob condições ambientais constantes controladas em laboratório explicitou o caráter<br />

endógeno dos mesmos, ou seja, a existência de osciladores circadianos nas diversas<br />

espécies. Sob condições constantes, o oscilador entra em ”livre-curso”, apresentando seu<br />

período natural (τ “tau”) que é sempre ligeiramente diferente de 24 horas. Fatores<br />

ambientais cíclicos podem sincronizar os ritmos biológicos, sendo chamados de<br />

“zeitgebers”. A natureza dos zeitgebers é bastante variada e dependente para cada<br />

espécie: ciclo de claro/escuro, ciclo de temperatura, ciclo de som, ciclo de disponibilidade<br />

alimentar, ciclos de estímulos sociais (Moore-Ede et al., 1982).<br />

O sentido de se ter um relógio endógeno, auto-sustentado, ao invés de apenas um<br />

simples mecanismo de resposta direta ao ciclo ambiental, está na necessidade do<br />

organismo de se preparar fisiologicamente, com antecipação, para uma determinada<br />

127


V Curso de Inverno<br />

atividade no ambiente terrestre essencialmente cíclico. Os desafios ambientais enfrentados<br />

pelos seres vivos recorrem com períodos regulares e são, portanto, previsíveis,<br />

possibilitando uma antecipação. Em muitos casos, essa necessidade torna-se bastante<br />

evidente: animais hibernadores e migradores precisam ir acumulando peso para estarem<br />

com reservas suficientes no momento ideal de se recolherem, ou de começarem uma longa<br />

viagem, respectivamente. Animais que vivem sob a areia e que precisam migrar<br />

continuamente de acordo com as marés não podem se confundir com as flutuações típicas<br />

do mar: relógios endógenos também protegem o organismo de distúrbios ambientais<br />

menores (Enright, 1970).<br />

O sistema circadiano é constituído, basicamente, de três componentes principais (fig.<br />

1):<br />

1-oscilador circadiano;<br />

2-aferências: vias de percepção e condução da informação do zeitgeber para o<br />

oscilador;<br />

3-eferências: vias de transmissão da informação temporal do oscilador para o<br />

organismo.<br />

Figura 1: Principais componentes do sistema circadiano<br />

A Identificação Anatômica do Oscilador Circadiano<br />

A identificação anatômica do oscilador circadiano, em vertebrados, iniciou-se nos<br />

anos 60 com os experimentos de Curt Richter, o qual lesionou diversos órgãos, verificando o<br />

efeito da lesão no ritmo de atividade locomotora de ratos. A lesão do hipotálamo gerou<br />

arritmicidade, indicando provável alojamento do oscilador nesta região do cérebro. Por outro<br />

lado, em 1976, Michael Menaker demonstrava arritmicidade resultante de extirpação da<br />

glândula pineal em pardais, com a retomada da ritmicidade na atividade após transplante de<br />

tecidos desta mesma glândula.<br />

A arritmicidade resultante de uma lesão não é um indicativo final de que a estrutura<br />

lesionada consista no oscilador circadiano! Lembremo-nos da estrutura do sistema<br />

circadiano: ele é constituído de aferências, oscilador e eferências. Notem que a<br />

arritmicidade pode ser provocada tanto na lesão do oscilador como de eferências. Como<br />

128


Cronobiologia<br />

distinguir estas duas possibilidades? Precisava-se, dessa forma, de critérios melhores para<br />

se acessar o oscilador através deste tipo de experimento.<br />

Para que uma estrutura possa ser definitivamente considerada como oscilador<br />

circadiano, ela deve obedecer a certos critérios (Moore-Ede et al.1982):<br />

- a oscilação deve persistir “in vitro”, ou seja, quando isolada de suas aferências e<br />

eferências;<br />

- quando transplantada, deve transferir os padrões de sua oscilação – período e fase<br />

– para o novo organismo.<br />

Em 1979, Zimmermann e Menaker demonstraram que a glândula pineal é o oscilador<br />

circadiano dos pardais, transplantando pineais entre indivíduos mantidos em condições de<br />

claro/escuro deslocados de 12h. Após o transplante, cada indivíduo passou a expressar<br />

atividade de acordo com a fase determinada pelo doador.<br />

Em 1972, os núcleos supraquiasmáticos (NSQ), localizados no hipotálamo, foram<br />

indicados como as prováveis estruturas que alojavam o oscilador circadiano, em ratos.<br />

Tendo dado prosseguimento aos experimentos de Richter, Stephan e Zucker identificaram<br />

essas estruturas no ponto final de lesões sucessivas do hipotálamo. Moore chegou à<br />

mesma estrutura por um outro caminho: através da marcação radioativa dos nervos que<br />

saíam da retina, em uma rota nervosa distinta daquela responsável pela visão, o trato retinohipotalâmico,<br />

o qual desemboca nos NSQs. Faltava, ainda, provar que os NSQs eram os<br />

osciladores circadianos utilizando aqueles critérios apresentados acima.<br />

Os NSQs são constituídos por dois conglomerados de células nervosas, designados<br />

NSQ direito e NSQ esquerdo. Nos ratos, foi estimado que cada NSQ contém,<br />

aproximadamente, 10.000 neurônios agregados em um volume de apenas 0.05 mm 3<br />

(Guldner, 1976).<br />

Em 1979, Inouye e Kawamura conseguiram isolar os NSQs “in vivo”, cortando todas<br />

as ligações neurais entre os NSQs e o restante do hipotálamo, construindo o que eles<br />

descreveram como “ilha hipotalâmica”. Nesse experimento, eles demonstraram a existência<br />

de ritmos circadianos na atividade elétrica detectada por eletrodos localizados na região<br />

hipotalâmica externa e interna aos NSQs antes do isolamento neural. Após este isolamento,<br />

a ritmicidade era evidenciada somente nos potenciais medidos pelos eletrodos internos,<br />

ficando a região externa arrítmica.<br />

A demonstração mais dramática dos NSQs como principais osciladores circadianos<br />

foi feita com o transplante de NSQs de hamsters “tau-mutantes” (que apresentam mutação<br />

no período circadiano, τ ≈ 20h) em hamsters selvagens (τ ≈ 24h). Os animais lesionados,<br />

que haviam ficado arrítmicos, passaram a apresentar ritmos de atividade-repouso com o<br />

período do doador mutante (Ralph et al, 1990)!!!<br />

A idéia de que os organismos possuem um único oscilador ou relógio circadiano<br />

anatomicamente definido permeou os primeiros passos da história da identificação dessas<br />

estruturas em espécies pertencentes aos diversos grupos vertebrados. Os NSQs, em<br />

129


V Curso de Inverno<br />

roedores, e a glândula pineal em aves e répteis, eram os grandes representantes desses<br />

osciladores únicos, em vertebrados. Posteriormente, a retina veio se juntar como uma<br />

terceira estrutura produtora de oscilações auto-sustentadas circadianas (Besharse & Iuvone,<br />

1983) (Tosini & Menaker, 1996). Estudos posteriores acabaram por indicar que o<br />

acoplamento entre essas três estruturas resulta no eixo central do sistema circadiano de<br />

vertebrados. Este acoplamento é variável entre espécies, podendo cada espécie incorporar<br />

uma, duas ou todas essas estruturas em seu eixo central circadiano (Menaker, 1982).<br />

A incorporação de cada uma dessas estruturas no eixo central varia enormemente<br />

quando se estudam espécies filogeneticamente próximas. Nas aves, por exemplo, o estudo<br />

comparativo do efeito da pinealectomia em diversas espécies levava a resultados pouco<br />

convergentes. A pinealectomia causava arritmicidade em certas espécies passeriformes,<br />

modificava o padrão da atividade locomotora em outros (estorninho) e, finalmente, não<br />

alterava este ritmo em outros (galos e codornas). O ritmo circadiano de produção de<br />

melatonina em culturas de pinealócitos correspondentes às pineais dos três grupos era<br />

igualmente robusto, indicando mesma capacidade oscilatória mas diferenças na<br />

incorporação desta glândula no eixo central do sistema circadiano (Takahashi et al., 1980).<br />

Em répteis, a variabilidade na incorporação de cada estrutura é ainda mais dramática, uma<br />

vez que ocorrem divergências mesmo entre espécies de mesmos gêneros (Underwood,<br />

1977).<br />

Neste quadro aparentemente caótico, é notório o fato de que todos os mamíferos<br />

apresentam os NSQs como osciladores centrais únicos, além de apresentarem uma<br />

glândula pineal incapaz de sustentar oscilação quando isolada de suas aferências. A<br />

glândula pineal assume o papel de eferência dos NSQs em mamíferos. A retina, por sua<br />

vez, assume papel de aferência aos NSQs, sendo que os mamíferos constituem o único<br />

grupo animal que apresenta fotorrecepção centralizada, exclusivamente retiniana. A única<br />

outra espécie conhecida que apresenta exatamente esta mesma estrutura do sistema<br />

circadiano (fotorrecepção exclusivamente retiniana, pineal não oscilatória e oscilador único<br />

provavelmente no hipotálamo) são as feiticeiras (ciclóstomas como as lampréias)<br />

localizadas no outro extremo da árvore filogenética dos vertebrados. Existem muitas<br />

especulações interessantes sobre o porquê dessa estruturação unificada entre mamíferos e<br />

diferenciada do restante dos vertebrados e uma das proposições deste fato curioso traz à<br />

luz a conexão entre a “história fótica” vivenciada por cada espécie ao longo da evolução e<br />

esta estruturação. Dentro dessa proposição, argumenta-se que os mamíferos evoluíram de<br />

um grupo ancestral comum noturno. Essa hipótese ficou conhecida como a do “gargalo<br />

noturno” (Menaker & Tosini, 1996; Menaker et al., 1997). Semelhanças na história fótica<br />

seriam mais determinantes do que a proximidade filogenética entre espécies na<br />

estruturação do sistema circadiano, como exemplificado pelas semelhanças observadas<br />

entre os mamíferos e a feiticeira.<br />

130


Cronobiologia<br />

***<br />

Os componentes do sistema circadiano de mamíferos estão associados às vias<br />

aferentes e eferentes dos NSQs. A informação temporal do ciclo de claro-escuro chega à<br />

retina e é enviada aos NSQs através do trato retino-hipotalâmico, que é distinto do trato<br />

visual primário (Moore & Lenn, 1972) e do trato geniculo-hipotalâmico, que é originado do<br />

folheto intergeniculado (Harrington & Rusak, 1986). Além deles, existem aferências da rafe<br />

dorsal e de outras áreas adjacentes do hipotálamo. As eferências dos NSQs são os outros<br />

núcleos do hipotálamo e outras áreas do sistema nervoso central, incluindo a glândula<br />

pineal e a pituitária (referências em Golombek et al, 1997 e Moore-Ede, 1982). Essas<br />

conexões indicam que os NSQs estão fornecendo informação temporal para a maioria dos<br />

sistemas de controle do organismo.<br />

Qual é, no entanto, a variável correspondente ao oscilador circadiano, nos NSQs?<br />

Uma vez que os NSQs são um conglomerado de neurônios, o primeiro candidato à variável<br />

de oscilador era a atividade elétrica, avaliada pela freqüência de disparos dos potenciais de<br />

ação dos neurônios. Esta idéia era motivada também pelo fato das outras estruturas<br />

oscilatórias (pineal e retina, bem como os olhos de insetos e moluscos (Block & Wallace,<br />

1982), identificados como osciladores nos invertebrados) também terem natureza neuronal.<br />

O experimento realizado pelo grupo de Bill Schwartz, em 1987, discutido em aula,<br />

demonstrou que os potenciais de ação globais dos neurônios dos NSQs constituem as<br />

aferências e eferências do oscilador, permanecendo a identificação final deste elusivo.<br />

Mais tarde, ficou demonstrado que neurônios individuais dos NSQs apresentam<br />

oscilações circadianas na atividade elétrica (Welsh et al., 1995), sendo que estas oscilações<br />

têm períodos correspondentes aos determinados pelas mutações nos períodos das<br />

atividades locomotoras, em roedores mutantes (Herzog et al., 1998). Chegara-se ao nível<br />

celular dos NSQs e o notório fato de que organismos unicelulares apresentavam “sistemas”<br />

circadianos, desde procariotos, indicava que a variável oscilatória, possivelmente comum<br />

desde procariotos a vertebrados com estruturas anatômicas definidas para o relógio, deveria<br />

estar no nível subcelular!<br />

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131


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Revisado por Gisele Akemi Oda e Regina Pekelmann Markus<br />

132


Cronobiologia<br />

Bases Moleculares do Relógio e Osciladores Periféricos<br />

Erika Cecon<br />

Laboratório de Cronofarmacologia<br />

erika.cecon@usp.br<br />

Com a constatação de que uma extensa variedade de funções biológicas exibe uma<br />

periodicidade que persiste mesmo quando o organismo é transferido para um local com<br />

condições ambientais constantes, iniciou-se uma incessante busca pela identificação do<br />

relógio endógeno e pela compreensão de seu funcionamento.<br />

Conforme visto anteriormente, o sistema circadiano apresenta-se organizado na<br />

seguinte estrutura: vias aferentes, oscilador central e vias eferentes. Nos mamíferos, cinco<br />

órgãos são fundamentais para a regulação circadiana de fenômenos fisiológicos e<br />

comportamentais, sendo eles: 1) retina fotossensível, 2) trato retino-hipotalâmico, 3) núcleos<br />

supraquiasmáticos (NSQ), 4) glândula pineal e 5) osciladores periféricos.<br />

A informação luminosa percebida por estruturas fotossensíveis da retina é<br />

transmitida aos NSQs através do trato retino-hipotalâmico. Este trato é composto pelos<br />

axônios de neurônios provenientes do nervo óptico, no quiasma óptico, que projetam-se<br />

sobre os NSQs na porção anterior do hipotálamo, sendo o glutamato o principal<br />

neurotransmissor envolvido na sinalização fótica. Os NSQs, por sua vez, enviam sinais à<br />

glândula pineal e aos demais órgãos osciladores periféricos, ajustando-os. Sob o controle<br />

dos NSQs, a pineal produz ritmicamente o hormônio melatonina que, atuando como um<br />

efetor neuroendócrino, sinaliza a presença da fase de escuro a todo o organismo. É possível<br />

que esse hormônio exerça também um feedback (retro-alimentação) sobre o próprio SCN<br />

auxiliando no ajuste fino do relógio central (Pando & Sassone-Corsi, 2001).<br />

Além desta via, outro grupo de neurônios do trato retino-hipotalâmico projetam seus<br />

axônios sobre o folheto intermediogenicular (IGL) que, por sua vez, conecta-se aos NSQs<br />

pelo trato genicular-hipotalâmico, cujas principais inervações apresentam GABA (ácido γ-<br />

aminobutírico), neuropeptídeo Y e encefalina como neurotransmissores (Moore & Card,<br />

1994). O envolvimento desta via no sistema circadiano foi demonstrado por experimentos<br />

nos quais a estimulação de IGL ou infusão de neuropeptídeo Y foi capaz de alterar a fase<br />

dos ritmos circadianos, atrasando ou adiantando-os. O mesmo efeito também foi<br />

demonstrado para GABA e, in vitro, sua presença é capaz de sincronizar os disparos de<br />

neurônios em cultura (Liu & Reppert, 2000).<br />

Outra via de aferência aos NSQs é a mediada pelos núcleos serotonérgicos da rafe.<br />

Assim como o IGL, esta via está relacionada a mudanças de fase induzida por fatores nãofóticos<br />

como, por exemplo, uma resposta a alterações comportamentais (Damiola et al.,<br />

133


V Curso de Inverno<br />

2000 e Stokkan et al., 2001). Todas essas vias de aferência aos NSQs estão representadas<br />

na figura 1 abaixo.<br />

Figura 1: Ajustes diretos e indiretos do núcleo supraquiasmático (SCN ou NSQ) de mamíferos<br />

roedores. A luz estimula fotorreceptores retinianos, que transmitem o sinal fótico através do trato<br />

retino-hipotalâmico (RHT) diretamente ao SCN ou por vias alternativas como a do folheto<br />

intergenicular (IGL) e do núcleo da rafe (RN). A glândula pineal (PG), que é diretamente regulada<br />

pelos SCN, exerce um feedback influenciando a sincronização dos SCN (Pando & Sassone-Corsi,<br />

2001).<br />

Desde meados da década de 60, apesar do pouco conhecimento existente a<br />

respeito do controle dos ritmos biológicos, já era postulado que os metazoas deveriam<br />

apresentar um relógio central responsável pelo controle de diversos relógios subsidiários,<br />

uma vez em que são organismos altamente complexos (Ehret & Trucco, 1967).<br />

Nessa mesma época já era também hipotetizado que os mecanismos básicos da<br />

maquinaria do relógio seriam encontrados a nível celular, pois a presença de ritmos<br />

circadianos já havia sido descrita nos mais diversos táxons, de vertebrados a organismos<br />

unicelulares como Euglena e Paramecium e, inclusive, em neurônios isolados (Strumwasser,<br />

1965).<br />

A partir deste ponto, novas discussões foram iniciadas a respeito de qual<br />

compartimento celular (núcleo ou citoplasma) exerceria o papel de relógio central. Muitos<br />

experimentos com organismos anucleados apontavam para a hipótese de que o citoplasma<br />

seria a porção celular essencial para a manutenção dos ritmos circadianos. Somente após a<br />

realização de experimentos com actiomicina-D, um inibidor de transcrição gênica, que o<br />

núcleo voltou a receber sua devida atenção.<br />

Agora restava a dúvida: por onde começar a busca pelo relógio biológico dentro do<br />

núcleo celular? Uma das respostas teve a seguinte lógica: considerando que a expressão de<br />

um ritmo requer um sistema integrado, mutações em genes responsáveis pelo<br />

134


Cronobiologia<br />

desenvolvimento e funcionamento do sistema como um todo irão levar à manifestação de<br />

ritmos anormais. E assim iniciaram-se os numerosos experimentos com a mosca-da-fruta<br />

Drosophila melanogaster, com a qual era possível obter os mais variáveis mutantes.<br />

Um dos primeiros trabalhos selecionou três mutantes de Drosófila para estudar os<br />

ritmos de eclosão e de locomoção. Um dos mutantes era arrítmico, outro exibia um período<br />

de 19h e o terceiro tinha período de 28h em relação ao ritmo de eclosão das pupas,<br />

conforme demonstram os gráficos da figura 2.<br />

Figura 2: Ritmo de eclosão em livre-curso (escuro<br />

constante) de Drosófilas ritmicamente normais (A) ou mutantes (B-D), previamente mantidas em ciclo<br />

claro-escuro 12:12, T=20º (Konopka & Benzer, 1971).<br />

O ritmo de locomoção também se encontra alterado nesses mesmos mutantes (fig.<br />

3), confirmando a ausência da expressão do relógio circadiano. Este trabalho de 1971 foi<br />

importante por ter demonstrado a base genética de ritmos circadianos, comprovando<br />

inclusive que os genes mutados, responsáveis pelos fenótipos com alterações nos ritmos,<br />

estavam ligados ao cromossomo X (Konopka & Benzer, 1971).<br />

Em 1994, foi identificado um gene cuja mutação altera dramaticamente a expressão<br />

de ritmos circadianos em camundongos, afetando o período do ritmo quando em livre-curso<br />

e a persistência dos ritmos em condição de escuro constante. (Vitaterna et al., 1994). Esse<br />

gene foi nomeado de Clock (por Circadian Locomotor Output Cycles Kaput) e seu<br />

mapeamento completo foi realizado em 1997 (King et al.).<br />

Atualmente, o relógio central molecular de mamíferos é composto por oito proteínas:<br />

PERIOD1, PERIOD2, PERIOD3, CLOCK, BMAL1, CRYPTOCHROME1,<br />

CRYPTOCHROME2 E CASEÍNA KINASE Iε (Pando & Sassone-Corsi, 2001).<br />

135


V Curso de Inverno<br />

Figura 3: Ritmo de atividade locomotora (barras escuras) em Drosófilas ritmicamente normais (A) ou<br />

mutantes (B-D), T=25ºC (Konopka & Benzer, 1971).<br />

As proteínas CLOCK e BMAL1 são tidas como fatores de transcrição positivos, pois<br />

induzem a transcrição gênica de cry1, cry2, per1 e per2 cujas proteínas resultantes, por sua<br />

vez, atuam como repressores da transcrição gênica. PER e CRY formam heterodímeros e,<br />

quando atingem determinada concentração, interagem com o heterodímero formado por<br />

CLOCK e BMAL, evitando então que esses últimos ativem mais transcrição gênica. Como<br />

conseqüência, os níveis de RNAm e de proteína de PER e CRY vão decrescendo até o<br />

ponto e que tornam-se insuficientes para reprimir a atividade de CLOCK/BMAL, reiniciando<br />

um novo ciclo. CLOCK/BMAL também regulam a transcrição do receptor nuclear órfão REV-<br />

ERBα, que por sua vez inibe a transcrição de clock e bmal, levando a uma expressão<br />

rítmica e anti-fásica desses fatores. Modificações pós-traducionais, como a atividade de<br />

fosforilação da caseína kinase (CK Iε), parecem ser importantes também para a regulação<br />

rítmica desses diferentes fatores, já que sua ausência gera fenótipos com ritmos circadianos<br />

alterados (Gachon et al., 2004). Um modelo simplificado dessas alças de feedback<br />

encontra-se na figura 4 abaixo.<br />

Apesar dos grandes avanços obtidos na compreensão do funcionamento da<br />

maquinaria do relógio biológico, ainda restam muitas dúvidas a respeito da conexão entre o<br />

relógio central (NSQ) e os relógios periféricos localizados em muitos (senão em todos)<br />

órgãos e tecidos animais.<br />

Os genes de relógio descobertos nos neurônios do NSQ foram posteriormente<br />

identificados em praticamente todas as demais células dos organismos, mas por estarem<br />

tão distante da principal via de aferência sincronizadora (retiniana), sabia-se que o<br />

mecanismo oscilatório apresentado na periferia deveria divergir daquele encontrado nos<br />

NSQs. De fato, toda oscilação rítmica descrita em tecidos periféricos foi atribuída a um<br />

controle neural proveniente do relógio central, sem o qual as oscilações desapareceriam.<br />

136


Cronobiologia<br />

Figura 4: Modelo simplificado das alças de feedback responsáveis pela expressão rítmica dos genes<br />

do relógio no oscilador circadiano de mamíferos (Gachon et al., 2004).<br />

O mecanismo geral de integração do sistema circadiano em mamíferos seria então o<br />

seguinte (figura 5): o relógio central (NSQ) é ‘resetado’ a cada dia através da informação<br />

fótica proveniente da retina, sincronizando sua ritmicidade endógena ao ciclo claro-escuro<br />

ambiental. Uma vez sincronizados, os NSQs enviam a todo o organismo sinais neuronais e<br />

humorais que controlam, principalmente, a secreção rítmica de hormônios importantes na<br />

regulação de processos fisiológicos rítmicos. Como exemplo, podemos citar os<br />

glicocorticóides produzidos pela glândula adrenal, que estão intimamente relacionados com<br />

a marcação da fase de atividade do animal, ou então a melatonina, hormônio relacionado<br />

com a marcação da fase de escuro. Indo um pouco mais além, a fase de atividade limita<br />

outros ritmos, como a janela temporal em que ocorre a tomada de alimento ou a caça,<br />

mantendo-os também sincronizados. Por outro lado, a sensação de fome e a alimentação<br />

em si são fortes zeitgebers para a grande maioria dos relógios periféricos, propiciando pistas<br />

temporais provavelmente através dos níveis de glicose plasmática, dos hormônios<br />

relacionados aos processos digestivos ou mesmo pelas vias neurais provenientes do NSQ,<br />

mas que não envolvem o trato retino-hipotalâmico (figura 1, para revisão). Essas pistas<br />

137


V Curso de Inverno<br />

temporais são capazes de arrastar os ritmos nesses relógios, sem que o relógio central seja<br />

alterado (Damiola et al., 2000 e Stokkan et al., 2001). Os ritmos de alimentação e de<br />

atividade / repouso também são capazes de influenciar a temperatura corporal, apesar de<br />

esta ser majoritariamente controlada pelo NSQ. Por sua vez, a temperatura corporal<br />

constitui outro forte zeitgeber para os relógios periféricos.<br />

Até pouco tempo atrás, pensava-se que os relógios periféricos perdiam sua<br />

capacidade oscilatória após alguns ciclos quando isolados do organismo, já que não<br />

estariam mais sob o controle do oscilador central, enquanto que este apresentava uma<br />

ritmicidade auto-sustentada. Isto de fato foi comprovado por diversos estudos, em que<br />

cultura de células neuronais provenientes dos núcleos supraquiasmáticos ainda mantinham<br />

disparos rítmicos, enquanto que órgãos periféricos deixavam de exibir qualquer ritmicidade<br />

quando os NSQs eram lesionados. Justamente por este motivo que os osciladores<br />

periféricos são muitas vezes referenciados como osciladores servos (slave oscillators) em<br />

oposição ao oscilador central (master pacemaker).<br />

Figura 5: Mecanismos de ajuste de fase dos osciladores circadianos central e periféricos em<br />

roedores de hábito noturno (para maiores explicações, vide texto. Retirado de Schibler & Sassone-<br />

Corsi, 2002)<br />

138


Cronobiologia<br />

Neste contexto, foi uma surpresa a descoberta de que uma cultura de células<br />

imortalizadas de fibroblastos de ratos passava a expressar os genes do relógio ritmicamente<br />

após entrar em contato com altas concentrações de soro (Balsalobre et al., 1998).<br />

Posteriormente, essa suspeita de uma ritmicidade intrínseca foi definitivamente comprovada<br />

por experimentos utilizando um gene-repórter para acompanhamento da transcrição do<br />

gene per, que indicaram que sua ritmicidade era mantida por mais de 20 ciclos em diversos<br />

tecidos periféricos isolados (Yoo et al., 2004), como podemos observar na figura 6. Tais<br />

resultados apontam para um papel mais pontual dos NSQ. Assim, quando ausente, cada<br />

tecido ou mesmo cada célula estaria livre para expressar sua ritmicidade própria, com um<br />

período também próprio, que são capazes de persistir embora de forma totalmente<br />

independente, seja em relação a outros órgãos, seja em relação a outros indivíduos. A<br />

função do relógio central seria então de sincronizar todos esses relógios de modo que<br />

entrem em fase uns com os outros e possibilitem a perfeita sincronização do meio interno ao<br />

meio externo. Este conceito encontra-se esquematizado na figura 7 a seguir.<br />

Figura 6: Análise da expressão circadiana do gene per2 ligado ao gene-repórter luciferase (cuja<br />

bioluminescência foi medida e compõe o eixo y) em diferentes órgãos explantados imediatamente<br />

antes do apagar das luzes (SCN = núcleo supraquiasmático; kidney = rim; RCA = área<br />

retroquiasmática; liver = fígado; lung = pulmão; pituitary = glândula pituitária ou hipófise; tail = cauda),<br />

retirado de Yoo et al., 2004.<br />

139


V Curso de Inverno<br />

Apesar dos grandes avanços na área, os mecanismos exatos de funcionamento da<br />

maquinaria do relógio biológico, ou dos relógios biológicos, ainda estão longe de serem<br />

totalmente compreendidos. A perspectiva é de que, cada vez mais, novos genes e novos<br />

fatores de transcrição envolvidos neste processo sejam descobertos, compondo um cenário<br />

ainda mais complexo de alças de feedback e de interações nos mais diversos níveis, desde<br />

o núcleo celular até o nível sistêmico.<br />

A presença de um oscilador interno capaz de perceber as alterações cíclicas<br />

ambientais e transmiti-las ao resto do corpo de forma a organizar os diferentes osciladores,<br />

é funcionalmente importante para garantir o sucesso adaptativo dos organismos. É<br />

compreensível então que toda essa complexidade de mecanismos para que o organismo<br />

sincronize-se ao meio externo tenha sido altamente conservada e selecionada no processo<br />

evolutivo, garantindo-lhe a importante capacidade de antecipação aos fenômenos cíclicos<br />

ambientais.<br />

Figura 7: Sincronização do sistema temporizador de mamíferos. A) O relógio central, sincronizado<br />

pela informação fótica, atua como um maestro orquestrando todos os demais osciladores<br />

(periféricos). B) Na ausência do relógio central, os periféricos continuam oscilando mas as fases não<br />

são mais sincronizadas entre si, resultando em animais comportamentalmente arrítmicos. (Retirado<br />

de Gachon et al., 2004)<br />

140


Cronobiologia<br />

Referências Bibliográficas<br />

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Revisado por Gisele Akemi Oda e Regina Pekelmann Markus<br />

141


V Curso de Inverno<br />

Ajuste do Relógio Biológico: Aferências da<br />

Retina à Glândula Pineal<br />

Sanseray da Silveira Cruz-Machado<br />

Laboratório de Cronofarmacologia<br />

sanseray@usp.br<br />

O organismo vivo multicelular precisa atuar de forma integrada e sincronizada. A<br />

comunicação entre diferentes órgãos e sistemas pode ser feita de forma rápida e<br />

direcionada, como ocorre com as informações que transitam através da rede neural, ou de<br />

forma mais difusa e integradora, como ocorre com o sistema endócrino. Nos dois casos os<br />

sistemas transmitem a informação em tempo real e os órgãos-alvo vão reagir conforme o<br />

estado em que se encontram no momento em que recebem o estímulo (Markus et al, 2003,<br />

2007).<br />

Considerando os ciclos naturais aos quais somos submetidos, o organismo precisa<br />

estar preparado para o amanhecer e para todas as demais fases das 24 horas do dia<br />

(aproximadamente 12 horas de claro e 12 horas de escuro) para poder responder de forma<br />

apropriada aos desafios que surgem. Para reconhecer estas variações no fotoperíodo, os<br />

seres vivos necessitam de sensores que percebam a variação temporal de luz e também de<br />

mecanismos que, através de sinais humorais e neurais, vão informar o estado de iluminação<br />

ambiental ao organismo. Além disso, há necessidade de um relógio endógeno que marque o<br />

tempo de forma independente de qualquer variação ambiental e que este seja sincronizado<br />

por ciclos ambientais regulares, adequando os sinais eferentes a cada momento.<br />

A principal variação ambiental percebida pelo organismo é a alternância claro-escuro.<br />

Todos os vertebrados utilizam células fotorreceptoras especializadas para perceber as<br />

variações luminosas no ambiente e sincronizar-se (figura 1). Entretanto, mamíferos e<br />

vertebrados não-mamíferos fazem isso de forma diferente.<br />

Os vertebrados não-mamíferos utilizam fotorreceptores circadianos especializados,<br />

localizados na pineal e na retina. Tais células respondem à luz que penetra pela pele, crânio<br />

e pelo tecido cerebral, gerando sinais que agem diretamente no relógio biológico central.<br />

Nestes animais, os olhos não são necessários para a sincronização ao ciclo claro-escuro,<br />

embora quando presentes proporcionem aumento na sincronização dos ciclos (Menaker,<br />

2003).<br />

Já os mamíferos têm fotorrecepção exclusivamente retiniana e usam fotorreceptores<br />

especializados situados na retina para perceber as variações de luz no ambiente (figura 2A).<br />

Acreditou-se, por muito tempo, que os cones e bastonetes, que são fotorreceptores visuais<br />

clássicos da retina, constituíssem também os principais fotorreceptores para transmissão da<br />

informação do claro/escuro ambiental para o relógio biológico (figura 2B). Eles são capazes<br />

142


Cronobiologia<br />

de traduzir uma onda luminosa em um sinal químico e com isso gerar um potencial elétrico<br />

no nervo óptico (Tessier-Lavigne, 2000). Estes fotorreceptores, quando seletivamente<br />

eliminados em experimentos com ratos e camundongos sem que houvesse dano adicional à<br />

retina, não causam alteração na sincronização circadiana, demonstrando que um outro<br />

receptor poderia estar envolvido no envio de informações ambientais para ajustar o relógio<br />

biológico central (Menaker, 2003).<br />

Figura 1 – Células Fotorreceptoras especializadas da retina: Cones e bastonetes são divididos em:<br />

segmento externo (responsável pela fototransdução), segmento interno (onde se encontra a<br />

maquinaria biossintética da célula) e o terminal simpático (que faz sinapse com outros neurônios)<br />

(Adaptado de Baldo & Hamassaki-Britto, 1999).<br />

De fato, recentemente foi demonstrada a existência da melanopsina, um<br />

fotopigmento presente nas células ganglionares da retina, o qual faz parte de uma<br />

superfamília de receptores acoplados à proteína G, altamente sensíveis à luz. A<br />

melanopsina é expressa na retina em todas as classes de vertebrados examinadas até o<br />

momento, sendo vista desde peixes até mamíferos. O padrão de expressão de melanopsina<br />

difere entre as classes de vertebrados, mas sua presença em células ganglionares da retina<br />

é constante. Nos mamíferos, essas são as únicas células que expressam melanopsina<br />

(Panda et al, 2002). Tais células ganglionares projetam axônios diretamente para os núcleos<br />

supraquiasmáticos (NSQ) através do trato retino-hipotalâmico. Assim, nos mamíferos, a<br />

retina além de enviar informações visuais para o córtex para formar a visão via cones e<br />

bastonetes, envia informações sobre a iluminação ambiental para áreas não-visuais, como o<br />

143


V Curso de Inverno<br />

NSQ, via células ganglionares, cones e bastonetes para promover a sincronização do<br />

relógio biológico central às variações ambientais do fotoperíodo (Panda et al., 2002, rev.<br />

Simonneaux & Ribelayga, 2003).<br />

Figura 2 – Fotorrecepção na retina: (A) A luz atravessa várias estruturas antes de chegar à retina<br />

propriamente dita. À direita (quadro) na região da fóvea, estão localizados alguns tipos celulares da<br />

retina. (B) Esquema simplificado que mostra os principais tipos celulares da retina: fotorreceptores<br />

(cones e bastonetes), células bipolares, células amácrinas, células horizontais e células ganglionares.<br />

(Adaptado de Baldo & Hamassaki-Britto, 1999).<br />

Este conceito funcional dos olhos realizando o papel de detecção de luz para<br />

adequar o comportamento e as respostas fisiológicas é diferente da visão e emergiu<br />

144


Cronobiologia<br />

recentemente. Além disso, saber que a via retino-hipotalâmica opera de forma independente<br />

da visão ainda nos permite explicar porque muitos sujeitos que são cegos totais, sem<br />

nenhuma percepção luminosa de forma consciente, são capazes de ajustar o relógio<br />

biológico ao ciclo claro-escuro ambiental (Foster, 1998; Markus et al, 2003).<br />

A pineal (Epiphysis Cerebri) é uma singular e pequena glândula conhecida há mais<br />

de 2000 anos e descrita fundamentalmente como um órgão rudimentar até cerca de 50 anos<br />

atrás. Foi após o isolamento de uma substância ativa, realizada por Aaron Lerner em 1958,<br />

que esta situação mudou.<br />

Basicamente, a glândula pineal está localizada na linha média encefálica, projetandose<br />

no teto diencefálico, normalmente conectada por uma ou mais hastes. A glândula<br />

pertence ao grupo dos órgãos circunventriculares, que derivam de células ependimárias e<br />

que se encontram situados fora da barreira hematoencefálica e em comunicação com o<br />

sistema ventricular.<br />

A pineal apresenta uma grande variabilidade entre as espécies. Em peixes e anfíbios<br />

ela contém células fotorreceptoras semelhantes às células da retina, enquanto que em<br />

mamíferos é tipicamente endócrina e não possui fotorreceptores desenvolvidos (figura 3A).<br />

Didaticamente, os tipos celulares encontrados na glândula de animais adultos são<br />

geralmente classificados em células parenquimais e células intersticiais. A primeira classe<br />

de células é composta por pinealócitos (figura 3B) que apresentam características de um<br />

paraneurônio, ou seja, um neurônio com propriedade de produzir substâncias (no caso da<br />

pineal, produção de melatonina). Já as células intersticiais, também denominadas de células<br />

de suporte, são compostas por células da glia, principalmente astrócitos e microglia (Erlich &<br />

Apuzzo, 1985; Tricoire et al, 2002).<br />

Nos mamíferos, a pineal faz parte, exclusivamente, da via eferente do sistema<br />

circadiano. Como já abordado anteriormente, as informações da variação ambiental de<br />

luminosidade chegam ao NSQ para ajustá-lo. A informação temporal gerada pelo relógio<br />

biológico central (NSQ) chega a todo organismo principalmente através de uma via neural<br />

que atinge a glândula pineal, estimulando-a a produzir melatonina que, ao ser liberada na<br />

circulação, informa a presença do escuro às células do organismo. A lesão no NSQ não<br />

abole a produção de melatonina pela glândula pineal, entretanto, dessincroniza o ritmo<br />

diário da síntese deste hormônio (Simonneaux & Ribelayga, 2003).<br />

A via neural referida anteriormente é formada pelo núcleo paraventricular (PVN) e a<br />

coluna intermédio-lateral da medula espinhal, que levam estímulos do NSQ ao gânglio<br />

cervical superior (gânglio simpático) que, por sua vez, inerva diretamente a glândula pineal<br />

(figura 4) (Maronde & Stehle, 2007).<br />

Os pinealócitos captam o aminoácido triptofano (Trp) da circulação de forma<br />

constante ao longo das 24 horas. O triptofano é convertido em 5-hidroxitriptofano (5-HTP),<br />

que por fim é convertido em serotonina (5-HT) (Simonneaux & Ribelayga, 2003).<br />

145


V Curso de Inverno<br />

Figura 3 – Evolução filogenética dos pinealócitos e sua estrutura microscópica: (A) Em peixes,<br />

anfíbios, répteis e aves, as células da pineal atuam como células fotorreceptoras ou células<br />

fotorreceptoras rudimentares, enquanto em mamíferos, as células da pineal são caracterizadas como<br />

pinealócitos, as quais apresentam característica secretora. (B) Desenho ilustrativo da organização<br />

microscópica da glândula pineal, onde pinealócitos estão envoltos por células interticiais. (Adaptado<br />

de Nelson, 1995).<br />

A inervação da glândula pineal é feita por fibras simpáticas originárias do gânglio<br />

cervical superior. Na glândula, os axônios simpáticos interagem com pinealócitos e, através<br />

da liberação de noradrenalina, controlam a síntese de melatonina (Simonneaux & Ribelayga,<br />

2003). Além deste neurotransmissor, estes neurônios simpáticos também liberam ATP<br />

concomitantemente, que atua como um co-transmissor nesta sinalização simpática (Mortani-<br />

Barbosa et al., 2000).<br />

A formação do hormônio melatonina (figura 5) é limitada pela presença da enzima<br />

AA-NAT (aril-alquilamina N-acetiltransferase), restrita à fase de escuro. Com a noradrenalina<br />

sendo liberada na fase de escuro pelas fibras simpáticas, adrenoceptores β1 são ativados,<br />

acionando a via de transdução de sinal do segundo mensageiro AMP cíclico – PKA (proteína<br />

kinase dependente de AMPc), que culmina na indução da transcrição do gene desta enzima.<br />

A enzima AA-NAT é responsável por catalisar a conversão de serotonina em N-<br />

146


Cronobiologia<br />

acetilserotonina (NAS) que, por ação da enzima HIOMT (hidroxi-indol-O metiltransferase),<br />

converterá NAS em melatonina. O ATP, por sua vez, ativa receptores purinérgicos do subtipo<br />

P2Y1, iniciando uma cascata de sinalização que envolve um aumento de cálcio intracelular,<br />

resultando em uma potenciação sobre o efeito noradrenérgico na produção noturna de<br />

melatonina (Ferreira et al., 1994; Ferreira & Markus, 2001).<br />

Figura 4 – Via clássica de aferência da retina à glândula pineal: Aferências da retina chegam ao NSQ<br />

pela trato retino-hipotalâmico. Do NSQ, as informações fotoperiódicas seguem via PVN e descendem<br />

pela medula espinhal através da coluna intermédio-lateral cujo neurônio faz sinapse com neurônios<br />

do gânglio cervical superior, o qual emite projeções diretas à glândula pineal, liberando noradrenalina<br />

durante o escuro, estimulando a síntese do hormônio melatonina. (Adaptado de Bloom & Fawcett,<br />

1994).<br />

É importante ressaltar que, no caso de roedores, a presença de luz bloqueia a<br />

transcrição do gene da AA-NAT e, por isso, a síntese de melatonina ocorre apenas no<br />

escuro. Como NAS e melatonina têm alto coeficiente de partição óleo/água, elas são<br />

rapidamente transferidas para a corrente sanguínea e líquor, e exercem as mais variadas<br />

funções nos mais diversos tipos celulares (Minneman & Wurtman, 1976; Tricoire et al, 2002;<br />

Simonneaux & Ribelayga, 2003).<br />

147


V Curso de Inverno<br />

Figura 5 – Síntese de Melatonina: (A) Triptofano é captado da circulação e metabolizado em 5-<br />

hidroxitriptofano (5-HTP) na mitocôndria da pineal por ação da enzima TRIPTOFANO HIDROXILASE.<br />

Em seguida, 5-HTP é convertido em serotonina no citoplasma da pineal por um aminoácido aromático<br />

descarboxilase; esta via está ativada continuamente ao longo do dia. Somente na fase de escuro há<br />

liberação de noradrenalina pelas terminações simpáticas, iniciando a transcrição gênica da AA-NAT,<br />

enzima limitante para a síntese de melatonina, que converterá serotonina em NAS, que será<br />

convertida em melatonina por ação da enzima HIOMT. (B) Gráfico demonstrando o ritmo de produção<br />

de melatonina que ocorre durante o escuro (Adaptado de Bloom & Fawcett, 1994; Simonneaux &<br />

Ribelayga, 2003).<br />

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149


V Curso de Inverno<br />

Eferências do Sistema Circadiano - Melatonina,<br />

o hormônio do escuro<br />

Marco Antonio Pires Camilo Lapa<br />

marco_lapa_bio@yahoo.com.br<br />

Eduardo Koji Tamura<br />

ektamura@yahoo.com.br<br />

Laboratório de Cronofarmacologia<br />

Melatonina como eferência do sistema de temporização<br />

A melatonina é o hormônio produzido pela glândula pineal, conhecido como<br />

hormônio marcador do escuro. Esta indolamina derivada da serotonina foi primeiramente<br />

descrita por Lerner e colaboradores (1958) como a substância produzida pela glândula<br />

pineal durante o escuro que promovia a mudança da cor da pele de anfíbios.<br />

Como já visto, sua via biossintética é sincronizada ao ciclo claro-escuro ambiental.<br />

Nos mamíferos, a informação luminosa é percebida pelos fotorreceptores retinianos,<br />

transmitida aos núcleos supraquiasmáticos (NSQs) e ao núcleo paraventricular<br />

hipotalâmico, que se conecta então aos gânglios cervicais superiores. Na fase de escuro, as<br />

fibras simpáticas pós-ganglionares liberam noradrenalina, que ativa receptores β-<br />

adrenérgicos presentes na glândula pineal, estimulando então a produção de melatonina<br />

(figura 1).<br />

Figura 1: Via biossintética da melatonina, controlada pelo ciclo claro/escuro. Á esquerda, a presença<br />

de luz inibe esta via, enquanto que na fase de escuro (à direita), ela é estimulada. NSQ – núcleo<br />

supraquiasmático; GCS – gânglio cervical superior.<br />

A síntese de melatonina inicia-se com a captura do aminoácido triptofano a partir da<br />

circulação, que é convertido em 5-hidroxitriptofano e em serotonina. Esta, por sua vez, é<br />

acetilada a N-acetilserotonina (NAS) em uma reação dependente da enzima aril-alquilamina-<br />

150


Cronobiologia<br />

N-acetiltransferase (AA-NAT), cuja expressão gênica varia ao longo do dia. Por fim, a NAS é<br />

metilada pela enzima hidroxindol-O-metiltransferase (HIOMT), formando a melatonina (figura<br />

2).<br />

Figura 2: Representação da via metabólica pela qual o aminoácido triptofano é convertido em<br />

melatonina. As enzimas que convertem o triptofano em serotonina, a triptofano hidroxilase 1 e a 5-<br />

hidroxitriptofano descarboxilase, possuem uma ampla distribuição no organismo, sendo a produção<br />

de serotonina muito maior nos tecidos neurais. As duas enzimas que convertem serotonina em<br />

melatonina possuem uma distribuição mais limitada. Retirado e adaptado de Reiter et al. (2000).<br />

Na fase de escuro, a atividade da enzima AA-NAT está aumentada em até 100 vezes<br />

em relação à fase de claro (fig. 3). Este aumento, no caso de mamíferos roedores, é devido<br />

ao aumento da transcrição gênica dessa enzima decorrente da sinalização intracelular<br />

iniciada pela ativação de receptores β-adrenérgicos. Já em ungulados e humanos, o que<br />

garante a presença rítmica desta enzima é o controle de sua degradação por proteassomas,<br />

sendo então sintetizada continuamente, porém, com menor degradação durante a fase de<br />

escuro (Stehle et al., 2001).<br />

A melatonina com função eferente, ou seja, sinalizadora para o organismo da fase de<br />

escuro ambiental do dia e do fotoperíodo do ano, é produzida principalmente pela glândula<br />

pineal. Dentre os vertebrados, existem alguns munidos de estruturas capazes de perceber e<br />

sinalizar as condições de claro e escuro ambiental, como a retina e a própria glândula<br />

pineal. Em alguns casos, a melatonina produzida na retina pode fazer a sincronização por si<br />

só, sem a interferência da pineal ou do NSQ. E na ausência da retina, certas espécies<br />

151


V Curso de Inverno<br />

conseguem sincronizar seus ritmos circadianos apenas através do NSQ ou da pineal<br />

(Chabot & Menaker, 1992).<br />

Figura 3: Regulação da via biossintética de melatonina pela presença rítmica da enzima AA-NAT. Em<br />

roedores, a ausência de luz estimula a transcrição gênica desta enzima, resultando na síntese de N-<br />

acetilserotonina (NAS), precursor imediato da melatonina<br />

Para a determinação dessa atividade sincronizadora proveniente da pineal foram<br />

feitos experimentos por Gwinner e Benzinger (1978) em que estorninhos (Sturnus vulgaris)<br />

foram pinealectomizados e tratados com injeção constante de melatonina, causando um<br />

processo de atividade contínua. Em outro grupo de aves enucleados e também<br />

pinealectomizadas, foram aplicadas doses diárias de melatonina somente na fase de<br />

escuro, e estes animais sincronizaram normalmente. Estes experimentos realçam o papel<br />

eferente da melatonina, sendo ela capaz de sincronizar o organismo na ausência de<br />

aferência e de oscilador. Seguindo este mesmo raciocínio, doses diárias de melatonina são<br />

utilizadas na sincronização de cegos totais humanos (Lockley et al., 2000).<br />

No entanto, em algumas aves, como pombos e codornas, (aquelas em que a retina<br />

constitui um oscilador circadiano), a própria melatonina produzida pela retina circula por todo<br />

o organismo, sincronizando o ritmo de atividade locomotora nesses animais (Foà &<br />

Menaker, 1988).<br />

Em mamíferos, a melatonina atua de diferentes formas na regulação da reprodução,<br />

dependendo da espécie. O que eles têm em comum é o fato de utilizarem a informação<br />

sazonal endógena, através da duração da liberação de melatonina para que a reprodução e<br />

o nascimento da prole ocorram nos momentos mais favoráveis.<br />

Isso é mais perceptível em mamíferos que habitam locais com grandes variações<br />

climáticas, que tendem a reproduzir em épocas em que o clima, por exemplo, favoreça a<br />

obtenção de alimentos e que a temperatura não seja prejudicial para o crescimento da prole.<br />

152


Cronobiologia<br />

Considerando estas afirmações, era de se esperar que, dependendo da duração da<br />

gestação, os animais de diferentes espécies deveriam ser férteis em épocas sazonais<br />

diferentes.<br />

Experimentos realizados em Hamster Siberiano, que apresentam um período<br />

gestacional curto, demonstraram que, conforme a duração da fase de claro aumenta, estes<br />

animais se tornam férteis. Animais de longo período de gestação, como os carneiros, se<br />

tornam férteis em épocas do ano em que os dias são mais curtos. Tanto os carneiros quanto<br />

os hamsters, quando pinealectomizados, perdem estas características, voltando a<br />

apresentá-las após administração diária de melatonina por um tempo correspondente à<br />

duração do escuro no período fértil.<br />

Além dos mamíferos, a melatonina é um importante sinalizador para o estado<br />

reprodutivo também em peixes e aves, atuando sobre a atividade locomotora em peixes,<br />

aves e répteis, e sobre a regulação da temperatura corporal desses dois últimos grupos. No<br />

entanto, a maioria dos estudos com melatonina é realizada em mamíferos e, atualmente,<br />

sabe-se que este hormônio exerce inúmeras ações, tanto centrais como periféricas (figura<br />

4).<br />

Figura 4: Melatonina atua principalmente como um sincronizador endógeno, mas também pode atuar<br />

em outros sistemas como, por exemplo, na imunidade, pressão sanguínea, etc (Claustrat et al.,<br />

2005).<br />

As Múltiplas Funções da Melatonina<br />

Além da glândula pineal, a melatonina pode ser produzida também por outros<br />

órgãos, embora a sua expressão rítmica com função sinalizadora da fase de escuro se<br />

aplique somente à melatonina proveniente da pineal ou da retina, como já mencionado.<br />

Segundo Reiter e colaboradores (2007), a melatonina pode ser produzida pela retina,<br />

corpo ciliar, glândula Harderiana, cérebro, timo, epitélio respiratório, medula óssea, trato<br />

digestório, ovário, testículo, placenta, leucócitos e pele. Além disso, melatonina foi<br />

encontrada em altas concentrações na bile de vários mamíferos, incluindo o homem. Essas<br />

153


V Curso de Inverno<br />

concentrações chegam a ser de duas a três vezes maiores do que as concentrações da<br />

melatonina noturna no sangue, porém, sua origem ainda é desconhecida.<br />

Apesar de a melatonina extra-pineal não contribuir para a ritmicidade plasmática<br />

deste hormônio, pode contribuir para diversos efeitos parácrinos e/ou autócrinos, permitindo<br />

a efetuação de ações que exigem altas concentrações de melatonina. De fato, a<br />

concentração noturna máxima de melatonina no plasma em mamíferos está na faixa de pM<br />

– nM e ações dependentes da produção extra-pineal são observadas em concentrações<br />

maiores, na faixa de µM – mM. Dentre os efeitos parácrinos, podemos citar a melatonina<br />

produzida pela retina, que participa do processo de adaptação para a visão noturna, ou<br />

então a melatonina produzida por células imunocompetentes, que pode atuar sobre<br />

processos inflamatórios ou exercer atividade antibiótica (Tekbas et al, 2007).<br />

A melatonina pode atuar de diversas formas: ativando receptores específicos<br />

localizados na membrana de diversos tipos celulares ou então interagindo diretamente com<br />

alvos intracelulares, já que se trata de uma molécula lipofílica com alta capacidade de<br />

entrada nas células. Com relação ao primeiro caso, sabe-se que a melatonina se liga com<br />

alta afinidade (pM a nM) a receptores clássicos de membrana (MT1, MT2 e Mel1c) que<br />

pertencem à família de receptores de sete domínios transmembrânicos acoplados à proteína<br />

G.<br />

Os receptores MT1 e MT2 podem ser encontrados em mamíferos, anfíbios, peixes e<br />

aves, enquanto o receptor Mel1c pode ser encontrado em todas estas classes, com exceção<br />

dos mamíferos. Os mecanismos de ação destes receptores são dependentes do local em<br />

que se encontram, apresentando uma grande variedade de mecanismos descritos (figura 5).<br />

A ligação da melatonina a receptores intracelulares tem sido sugerida em alguns<br />

modelos como, por exemplo, células mononucleares do sangue periférico. De maneira geral,<br />

acredita-se que exista um “sítio receptor” (MT3) para a melatonina, muito provavelmente<br />

constituído pela enzima quinona redutase II, que atue como um receptor intracelular (figura<br />

6).<br />

154


Cronobiologia<br />

Figura 5: Cascatas de sinalização que podem ser promovidas pela ativação de receptores de<br />

melatonina (Masana e Dubocovich, 2001).<br />

Figura 6: Mecanismos de ação da melatonina. (Boutin et al., 2005).<br />

Um dos principais mecanismos de ação da melatonina observados em baixas<br />

concentrações é a capacidade de ligação à calmodulina, ligação esta de alta afinidade,<br />

sugerindo uma relevância fisiológica. Considerando que a calmodulina participa da maioria<br />

dos eventos intracelulares em vertebrados superiores, além de possuir capacidade de<br />

ligação e regulação de uma grande diversidade de proteínas-alvos, incluindo enzimas,<br />

canais iônicos, receptores e proteínas do citoesqueleto, a interação melatonina-calmodulina<br />

pode interferir em diversas modificações de funções celulares.<br />

Devido à existência de tantos mecanismos de ação, não é de se estranhar que uma<br />

grande diversidade de efeitos seja atribuída a este hormônio, conforme esquematizado na<br />

figura 7.<br />

Um dos efeitos mais conhecidos e bem estudados de altas concentrações de<br />

melatonina é a capacidade de atuar como antioxidante. Os radicais livres possuem alta<br />

reatividade, o que leva à oxidação de moléculas estruturais e essenciais para a atividade<br />

celular. Outro mecanismo de ação que pode resultar neste efeito é o aumento da atividade<br />

155


V Curso de Inverno<br />

de enzimas antioxidantes (Chang HM et al., <strong>2008</strong>; Kędziora-Kornatowska et al., <strong>2008</strong>).<br />

Várias ações da melatonina são atribuídas a esta capacidade antioxidativa. Como exemplo,<br />

indivíduos da espécie Drosophila melanogaster vivem por aproximadamente 60 dias e a<br />

administração de melatonina juntamente com o alimento promove um aumento no tempo de<br />

vida de aproximadamente 20 dias. Estes efeitos são atribuídos à prevenção da formação de<br />

radicais livres.<br />

Figura 7: Esquema descrevendo diversas ações da melatonina (Hardeland et al., 2006).<br />

A melatonina também atua sobre processos fisiopatológicos no organismo como, por<br />

exemplo, sobre o processo inflamatório, no qual modula o ritmo circadiano observado na<br />

espessura das patas de camundongos cronicamente inflamados por injeção de Bacillus<br />

Calmette-Guerin. Foi observado um ritmo onde o edema era maior na fase de claro do que<br />

na de escuro e deixava de existir em animais pinealectomizados, voltando após a<br />

suplementação de melatonina (dose fisiológica) na fase de escuro (Lopes et al., 1997). Em<br />

modelo de inflamação aguda, Cuzzocrea e colaboradores (1999) demonstraram que a<br />

inflamação aguda induzida por carragenina aumenta o exsudato pleural e a mobilização<br />

leucocitária em ratos mantidos por 24 horas em luz constante durante uma semana, sendo<br />

que a reposição exógena de melatonina inibe esse aumento. Essa hipótese de que a<br />

melatonina seria capaz de interferir em processo inflamatório foi corroborada por Lotufo e<br />

colaboradores (2001) em experimentos que demonstram uma inibição da interação<br />

156


Cronobiologia<br />

neutrófilo-endotélio pela melatonina, processo necessário para que ocorra a migração de<br />

neutrófilos para o tecido lesionado (figura 8).<br />

Figura 8: Após um estímulo lesivo, os leucócitos que trafegam na região central do vaso sofrem uma<br />

marginalização e interagem com as células endoteliais num processo denominado rolamento,<br />

desencadeado através de moléculas de adesão principalmente da classe das selectinas. Já as<br />

integrinas promovem uma maior interação com as células endoteliais resultando na mudança<br />

conformacional das células que transmigram para o local do estímulo.<br />

Um dos mecanismos pelos quais a melatonina exerce seus efeitos é a modulação do<br />

tônus vascular, onde atua de maneira dependente do modelo em estudo. Na ausência da<br />

camada interna (células endoteliais), a melatonina atua sobre as células musculares lisas da<br />

artéria caudal de ratos através de dois receptores distintos que desencadeiam efeitos<br />

antagônicos: o subtipo MT1 promove a potencialização da vasoconstrição, enquanto o<br />

subtipo MT2 promove a vasodilatação.<br />

Experimentos realizados por Pontes e colaboradores (2006) demonstraram a<br />

modulação recíproca entre a glândula pineal e o sistema imune. Foi observado que mães<br />

que estavam com mastite (um processo inflamatório não infeccioso) tinham os níveis de<br />

melatonina noturnos no colostro muito inferiores ao nível de mães saudáveis, indicando uma<br />

inibição da produção de melatonina da pineal concomitantemente ao processo inflamatório.<br />

Em um artigo de 2007, Markus e colaboradores caracterizaram o eixo imune-pineal ao<br />

observar que a melatonina noturna produzida pela glândula pineal, e que era encontrada no<br />

colostro e no leite, caía à zero com o aumento da citocina TNF-α na circulação de mães que<br />

realizaram partos por cesariana. Glândulas tratadas in vitro com esta mesma citocina<br />

também tiveram sua produção de melatonina inibida (Fernandes et al., 2006).<br />

Atualmente, a melatonina tem sido muito investigada em humanos, onde não possui<br />

funções diretas na modulação da reprodução mas é muito conhecida por contribuir em<br />

processos relacionados ao sono, a temperatura corporal e também em enfermidades como<br />

Jet lag, depressão sazonal e câncer.<br />

157


V Curso de Inverno<br />

Devido a esta grande diversidade de mecanismos de ações que ocorrem de acordo<br />

com a concentração e com o local de ação, a melatonina tem sido amplamente estudada<br />

por diversos grupos e nos mais diferentes sistemas. Apesar dos vários efeitos fisiológicos e<br />

fisiopatológicos já demonstrados e bem estabelecidos por toda a literatura, muitos destes<br />

efeitos não estão elucidados, abrindo um grande campo de estudo com esta importante<br />

molécula encontrada nos mais diversos organismos.<br />

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Revisado por Gisele Akemi Oda e Regina Pekelmann Markus<br />

159


V Curso de Inverno<br />

Aspectos Evolutivos da Melatonina<br />

Daiane Gil Franco<br />

Laboratório de Cronofarmacologia<br />

daianegfranco@yahoo.com.br<br />

A melatonina é uma indolamina bastante conservada entre os organismos, assim<br />

como sua biossíntese. Por ter sido descoberta na glândula pineal de um bovino, por muito<br />

tempo se acreditou que a melatonina era um hormônio exclusivo de mamíferos. Hoje<br />

sabemos que esta molécula não só está presente em outros organismos, como também sua<br />

definição como hormônio não atende a todas as funções por ela desempenhadas. Neste<br />

capítulo, vamos dar um enfoque evolutivo dos possíveis papéis da melatonina nos diferentes<br />

táxons.<br />

Além dos vertebrados, já foi identificada a presença de melatonina em bactérias,<br />

protozoários, macroalgas, plantas vasculares, fungos e invertebrados (Hardeland &<br />

Poeggler, 2003), incluindo gastrópodes, crustáceos e insetos (Vivien-Roels & Pévet, 1993).<br />

Por outro lado, existem poucas ou nenhuma evidência da presença da melatonina em<br />

briófitas, pteridófitas, esponjas, anelídeos, quelicerados e equinodermos (Hardeland &<br />

Poeggler, 2003). Em cada um dos grupos onde a melatonina já foi descrita, ela está<br />

envolvida em diferentes processos tornando difícil a tarefa de classificá-la funcionalmente.<br />

Como já vimos anteriormente, a via predominante da síntese de melatonina, que<br />

ocorre na glândula pineal de mamíferos e em muitos outros organismos, se inicia pela<br />

conversão do aminoácido triptofano em 5-hidroxitriptofano (5-HTP), o qual é então<br />

convertido em serotonina (5-HT). A 5-HT é então acetilada pela enzima arilalquilamina-Nacetiltransferase<br />

(AA-NAT) formando a N-acetilserotonina (NAS). Por fim, esta última é<br />

metilada pela enzima hidroxindol-O-metiltransferase (HIOMT) dando origem à melatonina.<br />

Além dessa, a pineal pode recorrer a outras vias que terão como produto final a 5-<br />

metoxitriptamina (5-MTP), ou ácido acético 5-metoxindol (5-MIAA) ou ainda 5-metoxitriptofol<br />

(5-ML) (Simonneuax & Ribelayga, 2003). Em outros organismos, como veremos adiante, a<br />

via de biossíntese da melatonina pode sofrer alterações.<br />

A melatonina é considerada um hormônio por desempenhar papéis típicos<br />

dessa classe de substâncias. Os hormônios são definidos classicamente como mensageiros<br />

químicos que são sintetizados por um órgão endócrino e liberados na circulação para atuar<br />

em tecidos localizados em outras áreas do organismo através de receptores. A melatonina<br />

cumpre com todos esses parâmetros, participando, portanto, dessa classificação.<br />

Entretanto, muitas características da melatonina a tornam diferente dos hormônios, como<br />

veremos ao longo do texto.<br />

160


Cronobiologia<br />

É necessário deixar claro que, para cada grupo citado a seguir, a melatonina<br />

desempenha dezenas de funções diferentes e, neste texto, abordaremos apenas algumas<br />

delas que são mais interessantes ou mais descritas na literatura.<br />

Organismos unicelulares<br />

Para entendermos a função primordial da melatonina é necessário olharmos para os<br />

organismos mais primitivos, ou seja, os unicelulares.<br />

A primeira descrição da presença de melatonina em um organismo fora do reino<br />

animal se deu em um dinoflagelado bioluminescente, Gonyaulax polyedrum (Poeggler et al.,<br />

1991). Esse organismo produz uma grande quantidade de melatonina, muitas vezes<br />

superior à encontrada na glândula pineal de mamíferos, e de forma rítmica semelhante à<br />

encontrada nos vertebrados, ou seja, com um pico de produção na fase escura.<br />

Nestes organismos a simulação de um dia de inverno (fotofase curta e temperatura<br />

baixa) é capaz de induzir o encistamento. A interrupção da escuridão por 2 horas de luz<br />

previne a formação do cisto, mesmo quando a duração da fase clara continua menor que a<br />

duração da fase escura (dia curto). Quando é dado um fotoperíodo que não induz o<br />

encistamento, a incubação com melatonina e seu metabólito 5-MTP é capaz de promover a<br />

formação do cisto. Isso mostra que essas indolaminas podem ser mediadoras do escuro<br />

nesses organismos (Balzer & Hardeland, 1991). Nas espécies de dinoflagelados a<br />

melatonina é desacetilada para formar 5-MTP, sendo esta, talvez, um agonista mais<br />

importante do que a melatonina no processo de estimulação da bioluminescência e do<br />

encistamento (Hardeland et al., 1996). O pico de melatonina e da 5-MTP se dão em<br />

momentos diferentes da fase escura. A primeira ocorre no início enquanto que a segunda<br />

ocorre na segunda metade da escotofase (fase de escuro do ciclo claro/escuro).<br />

O metabolismo da melatonina nesses organismos pode se dar pela via enzimática<br />

pela qual serão formados os compostos metilados ou por reações não-enzimáticas com<br />

radicais livres (ex: radicais catiônicos fotoxidantes) levando à formação de N1-acetil-N2-<br />

formil-5-metoxiquinuramina (AFMK) (Hardeland et al., 1996). De acordo com essa segunda<br />

via, a melatonina parece ter uma grande importância na proteção do organismo reduzindo<br />

os radicais livres diretamente, sem necessitar da ativação de enzimas antioxidantes (Antolín<br />

et al., 1997).<br />

É possível, portanto, determinar pelo menos duas funções da melatonina nesses<br />

organismos: uma ação fototransdutora e uma ação antioxidante. Essas duas funções<br />

podem, na verdade, estar essencialmente interligadas. Por ser altamente degradada pela<br />

luz na presença de catalisadores intracelulares, a melatonina só aparece em grandes<br />

concentrações na fase escura. Nessa fase, a melatonina vai reagir com substâncias<br />

resultantes da fotoxidação, atuando como antioxidante. Desta forma, muitos organismos<br />

devem ter desenvolvido mecanismos que utilizavam essa molécula como mediadora do<br />

escuro<br />

161


V Curso de Inverno<br />

Plantas<br />

A determinação de melatonina em plantas requer um cuidado maior. Diferentemente<br />

dos animais, as plantas possuem uma grande quantidade de indolaminas e outras<br />

substâncias que possuem estrutura e peso molecular semelhantes ao da melatonina,<br />

dificultando o trabalho de identificação das moléculas. Dentre essas substâncias estão, por<br />

exemplo, as auxinas (IAA, ácido acético-3-indol), que têm uma estrutura molecular muito<br />

próxima da melatonina, pois também possuem um grupo indol (figura 1). As técnicas<br />

utilizadas para identificação se baseiam no peso molecular e na reatividade com anticorpos<br />

(HPLC - high performance liquid chromatography e radioimunoensaio, respectivamente). Até<br />

o momento já foi identificada a presença da melatonina em algas e angiospermas (mono e<br />

dicotiledôneas) (Cassone & Nateson, 1997).<br />

Figura 1: Melatonina e outros importantes hormônios de plantas. (A) Melatonina (B) Auxina (C)<br />

Giberelina A1 (D) Citocinina cis-Zeatina (Cassone & Nateson, 1997).<br />

Pouco se sabe sobre a via biossintética de melatonina nos vegetais. Um trabalho de<br />

Murch e colaboradores (2000) mostrou que esta via pode ser parecida com a dos<br />

vertebrados, tendo formação de serotonina como precursora da melatonina. Além disso, a<br />

função da melatonina nas plantas também é motivo de discussão.<br />

Ainda não existe na literatura um resultado satisfatório que indique o papel da<br />

melatonina sobre um ritmo circadiano ou anual das plantas. A floração é bastante estudada<br />

mas, até o momento, apenas na planta de dia-curto (florescem no solstício de inverno),<br />

Chenopodium rubrum, a melatonina influenciou na resposta fotoperiódica de floração (Kolár<br />

et al., 2003). Em outras espécies, de dia longo ou curto, o tratamento com melatonina (100<br />

ou 500 µM) bloqueou a floração (Van Tassel, 1997; Wolf et al., 2001). Em comparação com<br />

o que se sabe sobre os efeitos da melatonina em animais, são feitas especulações sobre<br />

seus efeitos nas plantas como antioxidante (Hardeland & Poeggeler, 2003), antiapoptótica<br />

(Jou et al., 2004) e como antagonista da calmodulina e do citoesqueleto (Benítez-King &<br />

Antón-Tay, 1993). O efeito antioxidante é de grande interesse, pois são encontradas grandes<br />

quantidades de melatonina em sementes e frutas (Balzer & Hardeland, 1996).<br />

Alguns autores acreditam que, nas plantas, a melatonina possa ter uma ação<br />

exclusiva e semelhante à do hormônio auxina. Estas são estruturalmente parecidas, como<br />

dito anteriormente (figura 1), porém existem poucas evidências de que a melatonina possa<br />

atuar da mesma forma que a auxina. Em um estudo de cultura de secções de caule, a<br />

auxina foi capaz de induzir fortemente a formação de raízes, já a melatonina teve pouca<br />

influência (Murch et al., 2001). Acredita-se que a melatonina possa ser convertida em auxina<br />

ou em um agonista desse hormônio.<br />

Uma última hipótese de qual seria a finalidade da presença de melatonina em<br />

plantas é o seu papel ecológico. A ingestão de plantas pode elevar os níveis dessa<br />

indolamina no organismo (Reiter et al., 2001) agindo como um metabólito secundário, assim<br />

162


Cronobiologia<br />

como muitos alcalóides e, portanto, pode desempenhar o papel de sinalizadora para alguns<br />

herbívoros. Um exemplo é o de que doses farmacológicas de melatonina diminuem a<br />

fertilidade em Drosophila melanogaster (Finocchiaro et al., 1988). Desta forma, a planta se<br />

torna menos atraente para o inseto quando possui melatonina ou um precursor desta, como<br />

a triptamina. Curiosamente, uma grande concentração de melatonina tem sido encontrada<br />

em plantas medicinais usadas milenarmente (Tanacetum parthenium, Hypericum<br />

perforatum, Scutellaria baicalensis).<br />

Insetos<br />

Entre os insetos, a mosca da fruta é a mais estudada em relação a melatonina. A<br />

Drosophila melanogaster possui um padrão diferente em relação à maioria dos organismos<br />

estudados quanto à expressão rítmica de melatonina, ou seja, há uma maior liberação<br />

dessa indolamina na fase clara em relação à fase escura (Hintermann et al., 1996).<br />

A enzima chave no processo de biossíntese da melatonina em mamíferos é a AA-NAT,<br />

cuja expressão e atividade são maiores à noite. Já em D. melanogaster, foi clonada uma<br />

enzima que converte 5-HT em NAS, chamada de AA-NAT2. Esta possui uma atividade<br />

diurna predominante (Hintermann et al., 1996). Avaliando a seqüência dessas enzimas em<br />

um estudo de cladística se propôs que a biossíntese da melatonina em Drosophila, e<br />

possivelmente em outros artrópodes, tenha uma relação homoplástica (convergência) com a<br />

via encontrada em vertebrados (Cassone & Natesan, 1997). Isso quer dizer que a via de<br />

biossíntese da melatonina deve ter surgido mais de uma vez na escala evolutiva.<br />

Na Drosophila, a AANAT2 é expressa em todo o sistema nervoso e intestino sendo<br />

importante para a neurotransmissão, esclerotização da cutícula e talvez para o ritmo de<br />

expressão da melatonina, regulando fenômenos fotoperiódicos (Hintermann et al., 1996).<br />

Não se sabe ao certo qual o real papel da melatonina nessa mosca, mas o estudo de<br />

Bonilla e colaboradores (2002) indica que a ingestão de melatonina adicionada ao meio<br />

nutritivo de larvas prolongam a longevidade e aumentam a resistência a mudanças na<br />

temperatura ambiental e ao estresse oxidativo provocado por paraquato (substância tóxica,<br />

cáustica e irritante usada como herbicida).<br />

A grande maioria dos trabalhos com melatonina em invertebrados se restringe à<br />

Drosophila por ser esta o modelo biológico desse grupo de animais. Porém, melatonina já foi<br />

estudada em outros insetos como abelhas, baratas, moscas, gafanhotos, entre outros. Em<br />

grande parte desses insetos, foi demonstrado que a concentração de melatonina varia<br />

ritmicamente com um pico que coincide com a fase noturna e está envolvida com o controle<br />

circadiano do ritmo de eclosão (Meyer-Rochow & Vakkuri, 2002). Assim, a mosca da fruta<br />

parece ser uma exceção no mundo dos insetos.<br />

Peixes<br />

A glândula pineal de peixes é fotossensível e gera melatonina circulante de forma<br />

rítmica de acordo com um determinado fotoperíodo. A retina também produz melatonina sob<br />

163


V Curso de Inverno<br />

essas condições, a qual age de forma parácrina. Assim como em mamíferos, a<br />

concentração dessa indolamina é maior durante a fase escura (Iigo et al., 1994). A<br />

pinealectomia pode alterar o ritmo de atividade e alimentação gerando até mesmo padrões<br />

arrítmicos. Estes dados suportam a idéia de que, nos peixes, a pineal e sua eferência<br />

(melatonina) atuam como um relógio circadiano. Os peixes possuem um sistema<br />

multioscilatório que depende da glândula pineal, da retina e do núcleo supraquiasmático.<br />

Este é um padrão que veremos entre todos os vertebrados não-mamíferos (Falcón, 1999). O<br />

acoplamento diferente entre esses osciladores gera os padrões rítmicos diferentes entre as<br />

espécies, ou seja, dá origem às espécies diurnas, noturnas e outras que possuem um ritmo<br />

bimodal.<br />

Os estudos do papel da glândula pineal em peixes iniciaram há 40 anos. Através<br />

destes estudos fica claro que esta glândula está envolvida em inúmeras funções<br />

comportamentais e fisiológicas que<br />

possuem padrões rítmicos diários<br />

ou anuais. Entre essas funções,<br />

podemos citar: a atividade<br />

locomotora (incluindo a migração<br />

vertical), a procura por alimento, a<br />

preferência por temperaturas<br />

adequadas, osmorregulação,<br />

pigmentação da pele, reprodução e<br />

crescimento. O papel da melatonina<br />

na reprodução dos peixes teleósteos é o mais estudado, embora a grande variabilidade dos<br />

resultados obtidos entre indivíduos de espécies diferentes, ou até na mesma espécie,<br />

considerando sexo, condições de iluminação ou fase reprodutiva diferentes, gerem muitas<br />

controvérsias (Ekström & Meissl, 1997; Mayer, 1997).<br />

Um estudo interessante sobre memória indica que em um peixe (Zebrafish) a<br />

melatonina suprime a formação da memória noturna. Como este peixe é diurno, o<br />

aprendizado de uma tarefa operacional ocorre melhor de dia do que de noite. O tratamento<br />

durante o dia com melatonina resulta em uma má formação da memória semelhante ao que<br />

acontece à noite. Já a pinealectomia promove uma melhora no aprendizado em animais<br />

mantidos em escuro constante (Rawashdeh et al., 2007).<br />

Anfíbios<br />

A primeira evidência de que a glândula pineal produzia uma substância biologicamente<br />

ativa partiu de um trabalho de McCord e Allen, em 1917, no qual extrato da glândula de boi<br />

foi usado em pele de um anfíbio, evidenciando a capacidade de uma substância, que mais<br />

tarde foi denominada melatonina, em alterar a pigmentação através da movimentação de<br />

grânulos contendo melanina (melanossomas) no interior dos melanóforos dermais.<br />

164


Cronobiologia<br />

Assim como em peixes, a glândula pineal de anfíbios é frontal e fotossensível. No<br />

entanto, na fase adulta, esses animais possuem um conteúdo de melatonina maior na retina<br />

do que na glândula pineal, sugerindo que a retina seja a principal produtora dessa<br />

indolamina em anfíbios (Delgado & Vivien-Roels, 1989). Ainda são necessários novos<br />

estudos para determinar a origem de melatonina plasmática em anfíbios anuros.<br />

Um papel interessante que a melatonina pode desenvolver nesse grupo de animais<br />

está relacionado à metamorfose. A transformação do girino em adulto é um processo que<br />

pode ser afetado pela temperatura ambiental e pelo fotoperíodo e é induzido pelo aumento<br />

gradual dos hormônios da tireóide. Apesar de sabermos que a melatonina tem uma ação<br />

inibitória sobre a tireóide, os trabalhos que relacionam metamorfose e a indolamina são<br />

contraditórios. Alguns indicam que o tratamento com melatonina acelera o processo, outros<br />

que retarda, enquanto alguns citam que não há efeito algum (Wright, 2002). Estas<br />

inconsistências podem refletir diferentes metodologias e concentrações usadas pelos<br />

pesquisadores. A concentração de melatonina é crucial na determinação da resposta obtida.<br />

Répteis e Aves<br />

Existem evidências, tanto in vitro quanto in vivo, de que a glândula pineal de aves e<br />

répteis seja o próprio oscilador circadiano. Nesses animais, a glândula se localiza na porção<br />

frontal do encéfalo e é fotossensível. Quando a glândula é colocada em cultura<br />

isoladamente, ela mantém a produção de melatonina com um ritmo circadiano por vários<br />

ciclos (Tosini et al., 2001). Em cobras é possível que a luz influencie a glândula pineal<br />

indiretamente através da retina e do sistema nervoso simpático (Firth et al., 2006), dando<br />

subsídio à idéia de que nesses animais, a glândula pineal não seja um oscilador circadiano.<br />

Contudo, apesar disso, existem evidências de que a pineal faça parte de um sistema<br />

multioscilatório, assim como nos demais vertebrados não-mamíferos (Mendonça et al.,<br />

1996).<br />

Em lagartos, a retirada da glândula pineal leva à perda do ritmo circadiano de<br />

atividade locomotora e quando se faz injeção de melatonina em momentos certos, a<br />

atividade é ressincronizada. Esses dados indicam que, nesses organismos, o ritmo de<br />

melatonina pode estar diretamente relacionado à sincronização de outros ritmos circadianos<br />

(Underwood & Harless, 1985; Underwood, 1992).<br />

O ritmo de melatonina é perdido em lagartos da espécie Tiliqua rugosa expostos tanto<br />

ao escuro quanto ao claro constante e também a temperaturas constantes relativamente<br />

baixas (23-24 o C). Esses dados indicam que o ritmo de melatonina para essa espécie não é<br />

circadiano. Este resultado é tão surpreendente que o próprio autor justifica que talvez seu<br />

ensaio não tenha permitido detectar a expressão do ritmo de melatonina em livre-curso<br />

(Bruce et al., 2006).<br />

Em aves, a produção rítmica de melatonina está ligada à sincronização fisiológica e<br />

comportamental, como a reprodução, alimentação e migração. Muitos trabalhos sugerem<br />

165


V Curso de Inverno<br />

que a melatonina pode influenciar na reprodução das aves atuando através do eixo<br />

hipotálamo-hipófise-gônada. Codornas apresentam dimorfismo sexual em relação à<br />

distribuição de receptores de melatonina (alta densidade em machos e baixa em fêmeas),<br />

no núcleo telencefálico, na via visual, e na área preóptica. Esses dados sugerem um papel<br />

diferencial para esse hormônio na modulação da percepção visual, na produção<br />

gonadotrófica e no comportamento sexual sazonal dos machos e fêmeas de codornas (Aste<br />

et al., 2001; Bentley, 2001).<br />

Mamíferos<br />

Os mamíferos constituem a classe de animais mais estudada em todos os aspectos da<br />

melatonina, ou seja, síntese, locais de produção e funções. É interessante notar que nesse<br />

grupo a pineal sofre uma internalização no encéfalo e não é mais fotorreceptiva. O controle<br />

da produção de melatonina é dependente de luz, mas de uma forma indireta. A informação<br />

fótica chega através do trato retino-hipotalâmico, passando pelo núcleo supraquiasmático.<br />

Este desenvolve o papel de relógio biológico central nesses animais.<br />

Nesse capítulo não vamos nos ater em descrever a melatonina e suas funções nos<br />

mamíferos, pois isso já foi feito em outros capítulos.<br />

Conclusão<br />

Como vimos ao longo do texto, tanto a estrutura molecular quanto a biossíntese da<br />

melatonina são bastante conservadas entre os organismos. Apesar disso, não devemos<br />

esperar que ela desempenhe as mesmas funções em grupos tão distantes<br />

filogeneticamente, pelo menos em termos de sinalização.<br />

A relação com o escuro é seu aspecto mais notável. Na grande maioria dos<br />

organismos a síntese de melatonina ocorre preferencialmente à noite, com diferentes<br />

padrões de regulação. Entretanto, muitos organismos apresentam uma inversão de fase da<br />

produção dessa indolamina, como é o exemplo das Drosophilas. Em outros organismos não<br />

foi detectado um ritmo de síntese: o fungo Saccharomyces cerevisiae apresenta altas<br />

concentrações de melatonina independente da fase. Este organismo possui uma enzima<br />

NAS capaz de trocar o N- e C- terminal da molécula de melatonina tornando-a insensível à<br />

luz (Ganguly et al., 2001).<br />

Este exemplo da Saccharomyces mostra que a melatonina não está necessariamente<br />

relacionada com a transdução fotoperiódica. Muitas outras funções têm sido atribuídas a<br />

esta molécula como: regulação da atividade de algumas enzimas, influência na organização<br />

do citoesqueleto e ação antioxidante. A proteção contra os danos causados pelos radicais<br />

livres tem sido relacionada como a função mais primitiva da melatonina, principalmente<br />

porque esta função aparece em todos os grupos filogenéticos, desde bactéria até humanos.<br />

Desta forma, a função de transdução do escuro aparece secundariamente. Os tecidos e<br />

órgãos dos organismos que possuíam receptores de melatonina eram capazes de<br />

166


Cronobiologia<br />

interpretar a hora do dia através das concentrações de melatonina presente, dando-lhes<br />

uma vantagem adaptacional (Cassone & Natesan, 1997).<br />

Por fim, após tudo o que foi dito, podemos concluir que a melatonina não é apenas um<br />

hormônio. A relação da melatonina com os organismos vai muito além dessa classificação:<br />

ela não é só produzida por uma glândula, está presente em organismos unicelulares, atua<br />

diretamente em alvos intracelulares (sem mediação de receptores) e pode ser considerada<br />

uma vitamina antioxidante, pois também é adquirida através da dieta alimentar.<br />

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Revisado por Gisele Akemi Oda e Regina Pekelmann Markus<br />

168


Cronobiologia<br />

Sincronização na Infecção pela Malária<br />

Saulo Henrique Pires de Oliveira<br />

Laboratório de Fisiologia Celular do Plasmodium<br />

sauloho@ig.com.br<br />

A malária é uma doença parasitária predominante em países tropicais e<br />

representa um dos maiores problemas de saúde pública da atualidade. A cada ano, a<br />

malária causa cerca de 1 a 3 milhões de mortes, na maior parte crianças e idosos, e existe<br />

aproximadamente meio bilhão de casos clínicos registrados somente de malária falciparum<br />

(Snow et al.,2005). O combate à doença é mediado por uso de inseticidas, redes de dormir<br />

e através do uso de antimaláricos. Entretanto, devido a doença atingir majoritariamente<br />

regiões pobres e devido ao aumento do número de parasitas resistentes aos poucos<br />

fármacos disponíveis, estima-se que o número de mortes por malária apenas aumente<br />

(OMS).<br />

Os agentes causadores da malária são protozoários apicomplexos do gênero<br />

Plasmodium. Em humanos, a malária é causada por quatro espécies: P. vivax, P. malariae,<br />

P. ovale e P. falciparum, sendo que o último é responsável pela maioria dos casos fatais da<br />

doença. Esses parasitas apresentam um padrão em seu ciclo de vida, comum a todas as<br />

suas espécies. O ciclo se divide em uma fase assexuada, que ocorre no hospedeiro<br />

vertebrado (hospedeiro intermediário) e uma fase sexuada que ocorre no mosquito do<br />

gênero Anopheles sp (hospedeiro definitivo) (Mitchell e Bannister, 1988). Na figura 1<br />

apresentamos um esquema deste ciclo de vida do Plasmodium.<br />

Quando um indivíduo portador da doença é picado por uma fêmea do mosquito, ocorre<br />

a ingestão dos gametócitos presentes na circulação sangüinea do hospedeiro intermediário<br />

(Jacobs-Lorena, 2003). No estômago do inseto são liberados os gametas masculinos e<br />

femininos do parasita. Acontece então a reprodução sexuada e os gametas se fundem<br />

formando o oocineto. Esse zigoto se aloja na parede do estômago do inseto, sofrendo uma<br />

divisão meiótica e formando o oocisto. Em seguida, através de muitas divisões mitóticas,<br />

formam-se esporozoítos. Os esporozoítos migram para a glândula salivar do inseto, onde<br />

podem ser transmitidos ao hospedeiro vertebrado durante a hematofagia.<br />

A próxima etapa é assexuada e ocorrerá no hospedeiro vertebrado. No homem, essa<br />

etapa assexuada se divide em duas fases. A primeira ocorre no fígado e é chamada de fase<br />

exoeritrocítica (também chamada de fase hepática). A segunda ocorre no interior dos<br />

eritrócitos e na corrente sanguínea, chamada de fase intraeritrocítica.<br />

169


V Curso de Inverno<br />

Figura 1: Ciclo de vida do Plasmodium<br />

(http://www.ib.usp.br/~beraldo/Trabalho/mosquito.jpg)<br />

Durante a hematofagia, depositam-se na derme esporozoítos do parasita. Ocorre<br />

então uma movimentação aleatória desses protozoários até que algum vaso seja alcançado,<br />

permitindo assim a entrada no fluxo sanguíneo. Uma vez na corrente sanguínea, serão<br />

levados para o fígado (Amino et al., 2006) onde invadirão hepatócitos e se multiplicarão<br />

170


Cronobiologia<br />

assexuadamente e assintomaticamente durante um período que dura de 6 a 15 dias. Ao<br />

final da fase hepática ocorre uma diferenciação dos parasitas em merozoítas que, após a<br />

ruptura dos hepatócitos, irão invadir as células vermelhas dando início à fase eritrocítica.<br />

Para ganhar acesso aos eritrócitos, os merozoítas hepáticos precisam alcançar os<br />

vasos sanguíneos presentes no fígado (sinusóides) sem serem notados pelo sistema imune.<br />

Mostrou-se que os parasitas Plasmodium berghei induzem a morte do hepatócito, seguido<br />

pelo acoplamento de vesículas do protozoário (merosomos) ao lúmen dos sinusóides.<br />

Simultaneamente, o invasor inibe a produção de fosfatidilserina, diminuindo as chances de<br />

que sua presença seja notada pelo grande número de macrófagos presentes no lúmen dos<br />

sinusóides, chamados de células de Kupffer (Sturm et al.,2006). No entanto, os<br />

mecanismos utilizados pelos parasitas para penetrarem nos vasos sangüíneos do fígado e<br />

invadirem os eritrócitos sem serem notados pelo sistema imune ainda não foram totalmente<br />

esclarecidos.<br />

Dado o início da fase eritrocítica, os merozoítas iniciam um ciclo com formas bem<br />

definidas, conhecidas como anel, trofozoíto e esquizonte. A duração deste ciclo geralmente<br />

é um múltiplo de 24 horas. Ao final desse ciclo ocorre a formação de novos merozoítas.<br />

Acontece em seguida a ruptura das hemácias, liberando na corrente sangüínea os<br />

novos merozoítas que irão invadir outras hemácias, reiniciando o ciclo. A multiplicação e o<br />

ciclo nem sempre ocorrem, dado que alguns merozoítas, ao invadirem novas hemácias,<br />

desenvolvem-se em gametócitos que serão, eventualmente, ingeridos pelo mosquito<br />

transmissor (Bannister e Mitchell, 2003).<br />

Em todas as espécies do parasita (como em P. falciparum, por exemplo) a fase<br />

eritrocítica ocorre de maneira altamente sincronizada. É extremamente intrigante como<br />

todos os parasitas espalhados por um organismo mais complexo conseguem atuar de<br />

maneira concomitante, amadurecendo, reproduzindo-se, rompendo as hemácias e sendo<br />

todos lançados na corrente sangüínea com um grau de sincronia tão alto. Um ciclo de vida<br />

tão bem modulado que, nas cerca de 150 espécies de plasmódio, todas apresentam uma<br />

periodicidade multi-circadiana.<br />

O plasmódio faz uso de estratégias arrojadas para conquistar a sincronia dentro do<br />

hospedeiro. Para melhor compreender estes mecanismos, torna-se necessário mencionar<br />

que essa sincronia é extremamente importante para a sobrevivência do parasita aos<br />

ataques do sistema imune do organismo infectado. Desse modo, faz sentido hipotetizar que<br />

o protozoário utilizaria a própria maquinaria de manutenção e percepção do ciclo claroescuro<br />

do hospedeiro como uma defesa, garantindo assim sua sobrevivência.<br />

Vários experimentos envolvendo inversão do ciclo claro-escuro dos hospedeiros, bem<br />

como envolvendo a remoção da glândula pineal indicaram que esta sincronia realmente<br />

estaria ligada com o ritmo circadiano do organismo parasitado. Isso se deve ao fato de que<br />

nos hospedeiros cujo ciclo claro-escuro foi invertido, a esquizogônia ocorria por volta do<br />

meio-dia ao invés de ocorrer à meia-noite. Naqueles hospedeiros cujas pineais haviam sido<br />

171


V Curso de Inverno<br />

removidas surgia uma quebra na sincronia entre os estágios de anel, trofozoíta e esquizonte<br />

(Garcia et al.,2001).<br />

Nosso laboratório reportou, para a espécie P. chabaudi, que essa sincronia deve ser<br />

mediada pelos segundos mensageiros cálcio e AMPc, pois estes têm a concentração<br />

elevada no interior do parasita, na presença do hormônio melatonina (Hotta et al., 2000;<br />

Beraldo et al., 2005). Além da melatonina, foi reportado ainda para P. chabaudi que outros<br />

derivados do triptofano, i.e. N-acetil-serotonina, serotonina e triptamina, também são<br />

capazes de mobilizar cálcio dos estoques intracelulares modulando assim o ciclo celular do<br />

parasita (Beraldo e Garcia, 2005). Para melhor compreender essa via de sinalização, é<br />

necessária uma compreensão básica dos mecanismos de homeostase e sinalização por<br />

cálcio em eucariotos.<br />

O cálcio é um segundo mensageiro intrinsicamente ligado a uma gama de processos<br />

intracelulares de sinalização como, por exemplo, a modulação da atividade de proteases, a<br />

indução de necrose ou apoptose, a regulação do desenvolvimento embrionário, entre outros<br />

dos quais merece destaque a modulação do ciclo celular de eucariotos.<br />

Apesar de ser extremamente importante para células eucarióticas, esse segundo<br />

mensageiro em altas concentrações citosólicas é deveras tóxico, podendo causar danos<br />

celulares severos ou até mesmo necrose ou apoptose. Dessa maneira, faz-se necessário<br />

para qualquer célula eucariótica que os níveis de cálcio sejam devidamente controlados,<br />

permitindo assim que a sinalização ocorra sem causar danos (Berridge et al. , 2003). Esse<br />

processo de controle é chamado de homeostase.<br />

O próprio termo homeostase já indica que existe um equilíbrio dinâmico de cálcio<br />

dentro das células. Devido a sua toxicidade, o segundo mensageiro é estocado em<br />

compartimentos internos, ou seja, organelas capazes de estocar cálcio. Dentre essas<br />

organelas destacam-se o retículo endoplasmático, a mitocôndria e compartimentos ácidos.<br />

A sinalização ocorre através de influxos de cálcio no citosol, sendo que um rápido aumento<br />

da concentração citosólica do íon é capaz de ativar os diversos processos de sinalização<br />

mediados por ele.<br />

Após esse aumento, o cálcio é rapidamente reestocado nas organelas ou liberado<br />

para o meio extracelular, recuperando a homeostase. Um mero aumento de cálcio por<br />

tempo prolongado já é suficiente para causar danos severos à célula.<br />

O conceito de equilíbrio dinâmico implica que o cálcio está em constante movimento<br />

dentro da célula, ou seja, existe um fluxo contínuo do íon para dentro e fora de organelas e<br />

para o meio extracelular, sempre preservando a homeostase. Para isso, a célula emprega<br />

diversos mecanismos como canais de cálcio presentes na membrana plasmática (PMCA,<br />

SOCs, VOCs, etc...), trocadores no compartimento ácido, ATPases presentes no retículo<br />

(SERCA), entre outros, para perpetuar esse fluxo e controlar sua homeostase.<br />

A célula também faz uso de diversas cascatas enzimáticas para modular a liberação<br />

de cálcio das organelas. Essas cascatas enzimáticas funcionam como acionadores (triggers)<br />

172


Cronobiologia<br />

para um sinal que será amplificado, perpetuado, e regulado (feedback) pelo próprio<br />

segundo mensageiro, em processos extremamente dinâmicos.<br />

O plasmódio, por ser uma célula eucariótica, é altamente dependente da sinalização<br />

mediada por cálcio. Especialmente durante sua fase eritrocítica, o parasita regula sua<br />

concentração intracelular de Ca 2+ (Garcia et al., 1996, Varotti et al., 2003; Gazarini, 2004).<br />

Um breve aumento na concentração citosólica de Ca 2+ , particularmente durante essa fase,<br />

pode ativar eventos de sinalização celular (Gazarini et al., 2003). Apesar da descoberta e<br />

identificação de diversos transportadores de cálcio no parasita, incluindo Ca 2+ -ATPases, sua<br />

distribuição de Ca 2+ livre intracelular bem como os mecanismos de homeostase do cálcio<br />

ainda não são completamente entendidos.<br />

O citoplasma do parasita mantêm uma concentração baixa de Ca 2+ livre (por volta de<br />

100 nM), semelhante às outras células eucarióticas. No entanto, a presença de baixas<br />

concentrações de Ca 2+ no meio extracelular é fatal para o protozoário, ou seja, o plasmódio,<br />

como qualquer outra célula eucariótica, necessita de altas concentrações de Ca 2+ no meio<br />

externo. Mas em sua fase intraeritrócitica, o plasmódio invade e se desenvolve dentro do<br />

eritrócito, uma célula eucariótica, que por sua vez apresenta concentrações muito baixas de<br />

cálcio em seu citosol. Como seria possível a sobrevivência do plasmódio em um meio tão<br />

inóspito?<br />

O parasita desenvolveu uma estratégia muito interessante para garantir sua<br />

sobrevivência no interior do eritrócito. No começo da fase eritrocítica, através de uma<br />

invaginação da membrana, o parasita penetra na célula do hospedeiro e cria um novo<br />

domínio dentro do eritrócito (chamado de vacúolo parasitóforo ou VP) através do uso da<br />

própria membrana que foi invaginada durante a invasão. Durante a invaginação, essa<br />

membrana é invertida, permitindo que o parasita seqüestre algumas das bombas de cálcio<br />

que estavam presentes nesse fragmento de membrana. Essas bombas fazem com que o<br />

cálcio seja bombeado do citosol do eritrócito para dentro do VP (tendo em vista que a<br />

membrana foi invertida), mantendo a alta concentração de Ca 2+ extracelular necessária para<br />

a sobrevivência do protozoário. (Gazarini et al., 2003). Assim, o parasita sobrevive em meio<br />

extracelular rico em cálcio embora se desenvolva dentro do eritrócito.<br />

As organelas intracelulares que servem como estoques de cálcio no Plasmodium são<br />

o retículo endoplasmático, a mitocôndria (Gazarini e Garcia, 2004) e compartimentos ácidos<br />

(Garcia et al, 1998). Existem evidências de que esses compartimentos ácidos são os<br />

vacúolos digestivos, onde ocorre a digestão da hemoglobina e o acúmulo de uma gama de<br />

drogas antimaláricas tais como a cloroquina.<br />

Os mecanismos de ação da maioria dos antimaláricos ainda são desconhecidos. As<br />

poucas evidências existentes indicam que o sítio de ação desses antimaláricos é o<br />

ácidocalcissoma (o compartimento ácido), dado que foi observado que essas drogas se<br />

acumulam nessa organela. Existe um modelo que hipoteticamente explica porque haveria<br />

esse acúmulo. Esse modelo é chamado de “Efeito Base Fraca”.<br />

173


V Curso de Inverno<br />

O modelo “Efeito Base Fraca” consiste basicamente no fato de que a maioria dos<br />

antimaláricos são bases fracas dipróticas. Ao entrarem no compartimento ácido, essas<br />

bases fracas protonam devido a mudança drástica de pH. Uma vez protonadas, essas<br />

bases fracas ficam presas (“trapped”) dentro da organela, dado que o próton recém<br />

adquirido confere carga a essas moléculas, impedindo assim sua livre passagem pela<br />

membrana fosfolipídica.<br />

No entanto, não se sabe ao certo qual a ação desses antimaláricos dentro do<br />

compartimento ácido. A hipótese mais aceita é a de que esses antimaláricos seriam<br />

responsáveis pela inibição da formação de um polímero chamado hemozoína, proveniente<br />

da digestão completa da hemoglobina. Esse polímero é formado por componentes tóxicos<br />

para o parasita (derivados do grupo heme). Ao inibir a síntese do polímero, os antimaláricos<br />

supostamente causariam o acúmulo desses intermediários tóxicos levando assim à morte do<br />

parasita (Hänscheid et al, 2007).<br />

Apesar dessa hipótese ser largamente aceita, existem diversos dados que corroboram<br />

contra esse modelo, indicando que não há relação clara entre a inibição da hemozoína e a<br />

eficiência de um antimalárico. Além disso, a toxicidade desses intermediários é altamente<br />

questionável. Será que essas moléculas seriam realmente capazes de matar o parasita?<br />

Recentemente, foi reportado (Gazarini et al, 2007) que a droga cloroquina é capaz de<br />

quebrar a homeostasia de cálcio em P. chabaudi. Interessantemente, mostrou-se que, em<br />

parasitas permeabilizados, a cloroquina é capaz de promover a liberação de cálcio de<br />

estoques internos (Passos e Garcia, 1998). A quebra de homeostasia de cálcio poderia<br />

causar danos aos parasitas bem como uma quebra na sua sincronia, apresentando-se como<br />

uma forte hipótese para explicar os mecanismos envolvidos na ação dos antimaláricos.<br />

Qual seria então a relação desse segundo mensageiro com o alto grau de sincronia<br />

obtido pelo plasmódio dentro do hospedeiro? Inicialmente, a resposta fisiológica promovida<br />

pela melatonina, hormônio-chave para a modulação do ciclo claro-escuro, bem como de<br />

outros derivados de triptofano, é um aumento na concentração de cálcio citosólica.<br />

A liberação de cálcio a partir da adição de melatonina ocasiona um aumento de AMPc<br />

no parasita, ativando a enzima PKA. Esta via pode representar um papel relevante na<br />

diferenciação dos parasitas. Além disso, este processo também seria capaz de induzir uma<br />

nova liberação de cálcio do retículo endoplasmático, mantendo desta forma um looping de<br />

sinalização (Beraldo et al, 2005).<br />

Através do uso de diversos inibidores de cascatas enzimáticas, foi possível identificar<br />

que o aumento inicial de cálcio estava relacionado à via de sinalização mediada por IP-3,<br />

uma vez que, na presença de inibidores específicos dessa cascata enzimática, a melatonina<br />

e os derivados de triptofano induziam um aumento citosólico significativamente menor. Isso<br />

não foi observado para outras vias de sinalização como, por exemplo, na via mediada por<br />

receptores de rianodina.<br />

174


Cronobiologia<br />

A via clássica modulada por IP-3 ativa a liberação de cálcio pelo retículo<br />

endoplasmático (nosso laboratório reportou que o IP-3 também ativa a liberação de cálcio<br />

do compartimento ácido para Plasmodium chabaudi). Geralmente, essa via se faz através<br />

de um sinal na membrana captado por um receptor transmembrânico. Esse receptor<br />

induziria a ativação da fosfolipase C (PLC) através da ação da proteína G. A PLC, por sua<br />

vez, clivaria o fosfatidilinositol-bifosfato presente no citosol em inositol-trifosfato (IP3). O IP3<br />

atua nos receptores-IP3 presentes na membrana do retículo, promovendo assim a liberação<br />

de cálcio.<br />

Entretanto, esse processo não ocorre conforme o modelo clássico no plasmódio. Os<br />

mecanismos por trás da captação do sinal na membrana, bem como por trás da ativação da<br />

PLC, ainda não estão bem elucidados. Isso ocorre devido a ausência da proteína G no<br />

parasita. Dessa forma, torna-se necessário encontrar e caracterizar o receptor sensível à<br />

melatonina (e a outros derivados de triptofano) presente na membrana do plasmódio, de<br />

modo a elucidar a via de sinalização.<br />

Através de técnicas de bioinformática, fazendo uso de análise e comparação de<br />

seqüências, foram obtidos dados sobre proteínas putativas semelhantes a receptores<br />

serpentina (serpentine receptor-like putative proteins) em P. falciparum. Essas proteínas<br />

putativas podem representar os receptores de membrana envolvidos no processo de<br />

sinalização por melatonina e derivados de triptofano (Madeira et al, <strong>2008</strong>).<br />

Abordagens de biologia molecular tais como microarray e tempo real forneceram<br />

novas evidências que corroboram para a existência desses supostos receptores, tornando<br />

essas proteínas putativas fortes candidatos a sítio de ação dos derivados de triptofano como<br />

acionadores das eventuais cascatas enzimáticas obtidas como resposta fisiológica.<br />

Além de intrigante, a maneira pela qual o plasmódio obtém sua sincronização é<br />

extremamente complexa, envolvendo o emprego da maquinaria de percepção do ciclo claroescuro<br />

do hospedeiro para uma modulação de seu ciclo de vida. Fazendo uso de cascatas<br />

enzimáticas e da sinalização pelos segundos mensageiros cálcio e AMPc, o parasita obtém<br />

um alto nível de sincronização, sendo mais um magnífico exemplo do poder da pressão<br />

evolutiva. A caracterização completa dessas vias, bem como a compreensão do real papel<br />

dos antimaláricos como desestabilizadores da homeostase de cálcio, são mais do que<br />

necessários para prover novas ferramentas para combater a malária e contribuir para<br />

reverter o número crescente de mortes pela doença.<br />

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Revisado por Gisele Akemi Oda e Célia Regina da Silva Garcia<br />

176


Neurofisiopatologia<br />

Capítulo 5<br />

Neurofisiopatologia<br />

Autores:<br />

Andreas Betz<br />

Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa<br />

João Paulo de Pontes Matsumoto<br />

Karen Lisneiva Farizatto<br />

Leandro Cortoni Calia<br />

Merari de Fátima Ramires Ferrari<br />

Regiane Xavier de Moraes<br />

Sérgio Marinho da Silva<br />

195


V Curso de Inverno<br />

Neurofisiopatologia<br />

Merari de Fátima Ramires Ferrari<br />

Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />

mfrf@yahoo.com<br />

Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa<br />

Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />

O funcionamento do sistema nervoso central (SNC) é fascinante e misterioso tanto<br />

para os mais leigos quanto para os estudiosos do assunto. O SNC é composto por células<br />

neuronais e gliais que interagem entre si para seu correto funcionamento, estas células são<br />

morfológica e fisiologicamente diferentes, mas complementares. Com os avanços na<br />

tecnologia está sendo possível desvendar os mistérios do SNC através dos estudos destes<br />

tipos celulares e de sua relação com comportamentos e funções vegetativas.<br />

Os comportamentos e as funções vegetativas são regulados por grupamentos<br />

celulares distribuídos por todo o encéfalo. Dependendo da região onde estes núcleos se<br />

encontram, a função será predominantemente vegetativa, comportamental ou mista. A<br />

posição anatômica ou mesmo a presença ou ausência de determinado grupamento celular<br />

varia de acordo com a classe animal, por isso a neuroanatomia comparada nos dá dicas<br />

sobre os possíveis papéis dos diversos núcleos encefálicos para a manutenção do equilíbrio<br />

fisiológico do organismo (Lent, 2001).<br />

Uma das principais funções do SNC é fazer com que o organismo responda<br />

coerentemente aos estímulos do meio ambiente, seja através de ajustes vegetativos ou<br />

através de comportamentos. Um ajuste bastante importante é o da pressão arterial, que ao<br />

ser danificado pode desencadear a hipertensão.<br />

O SNC pode sofrer outros transtornos como a neurodegeneração, por exemplo, e<br />

enquanto não há cura para este tipo de doença, diversos profissionais desenvolvem<br />

abordagens terapêuticas para a reabilitação dos indivíduos acometidos pela<br />

neurodegeneração.<br />

Drogas psicoativas como os opióides, o álcool, a nicotina, dentre diversas outras que<br />

interagem sobre núcleos específicos do SNC geram sensações prazerosas, alucinações,<br />

depressão, etc. Algumas destas drogas agem no circuito de reforço o que desencadeia<br />

comportamento de busca freqüente pelo entorpecente podendo caracterizar o vício.<br />

Este capítulo irá abordar brevemente a neurofisiologia e o estado patológico do<br />

sistema nervoso central.<br />

1. Introdução ao Sistema Nervoso<br />

O Sistema Nervoso é dividido funcionalmente em Somático e Visceral. O Sistema<br />

Nervoso Somático pode ser aferente ou eferente, enquanto o Visceral pode ser aferente,<br />

196


Neurofisiopatologia<br />

eferente simpático e eferente parassimpático. O Sistema Nervoso também é dividido em<br />

Periférico e Central, como mostra a figura 1:<br />

Figura 1: Divisão funcional do Sistema Nervoso<br />

O sistema Nervoso Somático relaciona o organismo com o ambiente. A parte<br />

aferente leva impulsos dos receptores periféricos aos centros nervosos. O componente<br />

eferente leva a informação dos centros nervosos aos músculos estriados esqueléticos,<br />

gerando movimentos. Por sua vez, o componente Visceral, através da parte aferente, leva<br />

informações das vísceras para áreas específicas do Sistema Nervoso, e a eferente<br />

transmite impulsos gerados em centros nervosos até as vísceras (Figura 2) (Bear et al,<br />

2002; Machado, 2000).<br />

Os nervos unem o Sistema Nervoso Central aos órgãos. Quando a união é feita com o<br />

encéfalo, chamamos nervos cranianos; se a ligação é feita com a medula, chamamos<br />

nervos espinais. Gânglios são células nervosas agrupadas, localizadas nas proximidades do<br />

Sistema Nervoso Central, ou próximo/dentro das paredes das vísceras. Muitas fibras têm<br />

origem em neurônios ganglionares. Os nervos espinais são originados em neurônios<br />

medulares ou ganglionares. Podem ser sensitivos (gânglios das raízes dorsais) ou motores<br />

(raízes ventrais). Já os nervos cranianos são originados em núcleos encefálicos ou em<br />

gânglios próximos do crânio (Machado, 2000). O Sistema Nervoso Central possui<br />

envoltórios chamados meninges que o nutrem, e protegem do meio externo além de garantir<br />

meio ótimo para o funcionamento neural.<br />

Na análise macroscópica do Sistema Nervoso pode-se reconhecer dois tipos de áreas:<br />

a chamada substância branca, com maior concentração de fibras nervosas envoltas por<br />

gordura e proteína (mielina) e a substância cinzenta que possui maior concentração de<br />

fibras nervosas sem envoltório gorduroso.<br />

No córtex cerebral e cerebelar a substância cinzenta é exterior à branca. Em outras<br />

regiões é o oposto.<br />

197


V Curso de Inverno<br />

Figura 2: Representação do Sistema Nervoso Somático.<br />

Figura 6: Segmento da medula espinal. Fontes: http://pt.wikipedia.org/wiki/<br />

Nervos_raquidianos e http://thalamus.wustl.edu/course/spinal.html<br />

2. Unidades estruturais e funcionais do Sistema Nervoso.<br />

2.1. Neurônios<br />

O neurônio produz e veicula sinais capazes de codificar tudo o que sentimos dentro e<br />

fora do organismo e tudo o que pensamos. Operam em grandes conjuntos (circuitos) nos<br />

quais cada neurônio faz uma coisa e todos realizam juntos uma função.<br />

As informações aferentes saem por axônios e vão para outras células do circuito<br />

neural. Por isso, o axônio tem modificações que se ligam aos dendritos de outros neurônios.<br />

Os axônios de neurônios semelhantes por vezes se juntam em tratos ou feixes no Sistema<br />

198


Neurofisiopatologia<br />

Nervoso Central ou nervos no Sistema Nervoso Periférico.<br />

Cada neurônio possui vários prolongamentos que recebem informações, mas apenas<br />

um que as manda. Sua membrana plasmática é especializada em produzir e propagar<br />

impulsos elétricos. Possui diferentes tipos de canais iônicos (macromoléculas embutidas na<br />

membrana, capazes de filtrar seletivamente a passagem de íons para dentro e para fora da<br />

célula) (Figura 7).<br />

Figura 7:Representação de um neurônio. Fonte:www.geocities.com/malaghini/neuron2.gif<br />

Durante um potencial de repouso, o interior da célula tem carga elétrica negativa em<br />

relação ao meio extracelular e esta diferença é mantida pelo fluxo constante de íons (Figura<br />

8). Quando ocorre inversão da polaridade da membrana, através da abertura de canais de<br />

sódio, seguida pela abertura dos canais de potássio, que se propaga ao longo do axônio,<br />

temos um potencial de ação – sinal elétrico utilizado como unidade de informação (Kandel et<br />

al, 2003).<br />

Os neurônios são formados pelo soma, axônios e dendritos. O soma é formado por<br />

citoplasma e membrana citoplasmática. O citoplasma possui meio denso (citosol) e<br />

proteínas que formam o citoesqueleto. O Citoesqueleto mantém a forma, permite a<br />

mobilidade de neurônios jovens durante o desenvolvimento; emite e retrai prolongamentos<br />

neuronais e transporta moléculas sinalizadoras, nutrientes, fatores tróficos e vesículas<br />

membranosas. É formado por três estruturas principais: microtúbulos (tubulina e MAP),<br />

neurofilamentos (diferentes proteínas enroladas em trança) e microfilamentos (actina)<br />

responsáveis pelos movimentos celulares.<br />

Como possuem intensa atividade protéica, o retículo endoplasmático rugoso é bem<br />

pronunciado nos neurônios. O DNA nuclear de neurônios adultos fica disperso no núcleo e<br />

não se agrupa. No núcleo ocorre a síntese do RNAm, que forma réplicas do DNA para a<br />

199


V Curso de Inverno<br />

síntese de proteínas. O RNAm sai do núcleo para o citoplasma e se junta aos ribossomos.<br />

Alguns desses ribossomos se ligam à superfície externa do retículo endoplasmático rugoso<br />

enquanto outros se associam ao RNAm. Essa união entre RNAm e ribossomo é chamada<br />

polissomo, e é onde ocorre a síntese de proteínas.<br />

Algumas proteínas sintetizadas voltam ao núcleo, algumas ficam no citosol e outras<br />

são armazenadas no retículo endoplasmático rugoso para posterior transporte. Do retículo<br />

endoplasmático rugoso saem pequenas vesículas que depois se fundem com o aparelho de<br />

Golgi que emite, por sua vez, vesículas transportadas pelos microtúbulos dos axônios e dos<br />

dendritos. Tanto o retículo endoplasmático rugoso quanto o aparelho de Golgi contêm<br />

enzimas que regulam a síntese de neurotransmissão pelos próprios neurotransmissores e<br />

também por componentes da membrana plasmática. Do Golgi também saem pequenas<br />

organelas citoplasmáticas (os lisossomos) com enzimas capazes de decompor moléculas já<br />

utilizadas pela célula em unidades menores para serem usadas na síntese de novas<br />

moléculas.<br />

No soma também estão a mitocôndria, que realiza a fixação do oxigênio e a síntese<br />

de ATP, e o peroxissomo – organela que contém proteção contra o peróxido, subproduto<br />

altamente oxidante que resulta da degradação molecular.<br />

Os dendritos que saem do soma formam, por vezes, algo semelhante a uma árvore<br />

em torno do soma; aumentam a superfície da célula, possibilitando maior contato entre<br />

neurônios. Alguns tipos de neurônios ainda emitem espinhas dos ramos dendríticos. Essas<br />

espinhas são pequenas projeções com esférula na extremidade, onde se formam contatos<br />

sinápticos. Além de aumentarem a superfície celular, têm importância funcional, pois<br />

constituem microcompartimentos privilegiados, nos quais se concentram íons e pequenas<br />

moléculas que influenciam na transmissão de informações entre neurônios. O padrão de<br />

espinhas de um neurônio se modifica dinamicamente com a aprendizagem e com certas<br />

doenças mentais, o que nos permite supor que elas desempenham papel importante nas<br />

funções neurais (Santibañez, 2000).<br />

Nos dendritos estão presentes praticamente todas as substâncias do soma em<br />

ramos mais finos desaparecem ou diminuem o retículo endoplasmático rugoso, aparelho de<br />

Golgi e os microtúbulos do citoesqueleto.<br />

O axônio sai do soma através do cone de implantação, região muito excitável na qual<br />

aparece o impulso nervoso, conduzido pelo axônio. As diferentes partes da célula estão em<br />

constante comunicação: existe um fluxo contínuo de moléculas e organelas através do<br />

citoplasma, que pode ser do soma em direção às extremidades do axônio (anterógrado) ou<br />

das extremidades para o soma (retrógrado).<br />

Muitos axônios são revestidos por uma cobertura isolante feita de lipídios e<br />

proteínas, chamada bainha de mielina. No Sistema Nervoso Central, a bainha de mielina é<br />

produzida pelos oligodendrócitos e no Sistema Nervoso Periférico pelas células de<br />

Schwann. Nos axônios de neurônios do Sistema Nervoso Central existem proteínas que<br />

200


Neurofisiopatologia<br />

bloqueiam o crescimento regenerativo após lesões; o que explica a regeneração de axônios<br />

periféricos, mas não de axônios centrais (Figura 9).<br />

Figura 9: Estrutura do nervo. Fonte: http://www.esec-lousa.rcts.pt/sist_nervoso.htm<br />

Cada axônio pode se ramificar em sua extremidade distal, e cada ramificação pode<br />

ter múltiplos botões sinápticos que se ligam ao soma, ao dendrito ou ao axônio de outros<br />

neurônios, formando as sinapses.<br />

2.2. Células gliais<br />

As glias são células não neuronais com diferentes funções, que garantem a infraestrutura<br />

necessária para o funcionamento dos neurônios. Suas funções incluem alimentar o<br />

neurônio, lidar com sinais químicos que orientam o crescimento e a migração dos neurônios<br />

durante o desenvolvimento, fazer a comunicação entre neurônios na vida adulta; absorver<br />

substâncias dos meios vizinhos e transformá-las em substâncias úteis; isolar a membrana<br />

dos axônios; têm função de defesa, reconhecimento de condições patológicas, além de<br />

outras. Estão divididas em dois grandes grupos, macroglias e microglias. As macroglias são<br />

formadas por astrócitos e oligodendrócitos, que têm mesma origem embrionária que os<br />

neurônios (ectoderme). As microglias são formadas por microgliócitos ramificados e<br />

amebóides, e têm origem embrionária mesodérmica. (Figura 11).<br />

Os astrócitos têm prolongamentos ramificados, ocupam espaços interneuronais,<br />

envolvem sinapses e nós de Ranvier, formam envoltório em capilares sangüíneos do<br />

sistema nervoso e revestem internamente as cavidades intracerebrais e meninges.<br />

Morfologicamente, os astrócitos são diferentes na substância branca e na cinzenta, mas até<br />

então suas funções não foram diferenciadas de forma significativa. São marcados pela<br />

presença de GFAP (proteína ácida fibrilar glial), uma proteína que forma o citoesqueleto,<br />

expressa exclusivamente por astrócitos, identificada por anticorpos monoclonais<br />

fluorescentes ou coloridos.<br />

Seus prolongamentos envolvem as sinapses do Sistema Nervoso Central, e<br />

possuem receptores de membrana para certos neurotransmissores, como GABA (ácido<br />

gama-aminobutírico) e glutamato, transformando-os em glutamina, a qual é transportada<br />

para os neurônios e permite a ressíntese das duas substâncias e controla o excesso de<br />

201


V Curso de Inverno<br />

neurotransmissores nas sinapses.<br />

Figura 11: Células gliais. Fonte: http://www.uff.br/fisiovet/imagens/sistema_nervoso_6.JPG<br />

Nos nós de Ranvier, onde ocorrem potenciais de ação, os pedículos dos astrócitos<br />

participam do restabelecimento do gradiente eletroquímico normal, pois possuem grande<br />

quantidade de canais de K + e proteínas transportadoras de íons (Kandel et al, 2003).<br />

As paredes dos capilares cerebrais também são revestidas por ramificações<br />

astrocísticas, que originam a barreira hematoencefálica, importante mecanismo protetor do<br />

Sistema Nervoso Central (Barbosa et al, 2003).<br />

Quando ocorrem lesões no tecido nervoso, os astrócitos se proliferam e se deslocam<br />

para as proximidades da lesão, formando uma cicatriz glial, que seria equivalente ao<br />

processo inflamatório de outros tecidos. Como produzem fatores tróficos e apresentam<br />

antígenos, os astrócitos desempenham dois papéis importantes para o local lesado: os<br />

fatores tróficos contribuem para a sobrevida dos neurônios atingidos enquanto que os<br />

antígenos provocam ação defensiva dos linfócitos T (Douglas, 2000).<br />

Os oligodendrócitos possuem menos prolongamentos que os astrócitos e são<br />

divididos em satélites e fasciculares. Os primeiros ficam próximos dos corpos celulares e os<br />

fasciculares entre os axônios do Sistema Nervoso Central, cujos prolongamentos se<br />

enrolam nos axônios para formar a bainha de mielina, elemento isolante que permite maior<br />

velocidade de condução do impulso nervoso. Esta mielina do Sistema Nervoso Central<br />

contém moléculas protéicas que bloqueiam a regeneração axônica, diferentemente da<br />

202


Neurofisiopatologia<br />

mielina de axônios periféricos, produzida por células de Schwann, que permite recuperação<br />

após lesões pela ausência deste componente bloqueador.<br />

Os microgliócitos ramificados possuem corpo pequeno, alongado e com poucos<br />

prolongamentos; em sua forma original, não se proliferam nem atuam em processos<br />

patológicos. Já os microgliócitos amebóides, que também possuem corpo pequeno e<br />

poucos prolongamentos, têm atividade fagocítica e se proliferam bastante na presença de<br />

agressões e traumas do Sistema Nervoso Central. Se houver necessidade, monócitos<br />

sangüíneos podem entrar no tecido nervoso e se transformar em microgliócitos amebóides,<br />

assim como microgliócitos ramificados podem ser ativados, se proliferar e assumir forma<br />

amebóide.<br />

2.3. Transmissão de informações<br />

A transmissão de informações entre neurônios acontece através de sinapses, que<br />

podem ser elétricas ou químicas. As sinapses elétricas existem principalmente em neurônios<br />

imaturos e gliócitos adultos, e sua estrutura é denominada junção comunicante, uma região<br />

na qual duas células se aproximam e suas membranas ficam separadas por um espaço<br />

muito pequeno (cerca de 3 nm). Nesta região, as membranas possuem canais iônicos<br />

especiais, formados por subunidades protéicas idênticas e capazes de se acoplarem<br />

quimicamente para formar poros que permitem a passagem de íons e pequenas moléculas,<br />

de uma célula para outra. É uma transmissão muito rápida, pois não utiliza intermediários<br />

químicos. As informações transmitidas por sinapses elétricas não são modificadas entre<br />

uma célula e outra, e geralmente passam nos dois sentidos (entram e saem), embora<br />

existam as junções retificadoras – que permitem a passagem da corrente elétrica em<br />

apenas uma direção.<br />

As sinapses químicas existem entre neurônios adjacentes de uma região<br />

especializada, permitindo o contato por contigüidade. A estrutura é conhecida como fenda<br />

sináptica e é bem maior que as junções comunicantes (cerca de 20nm). O espaço entre<br />

uma membrana e outra é preenchido por matriz protéica adesiva que favorece a fixação e a<br />

difusão de moléculas entre elas. A região sináptica da primeira célula é chamada elemento<br />

pré-sináptico e é igualmente um terminal axônico. O elemento pós-sináptico, região<br />

sináptica da segunda célula, é geralmente um dendrito (Figura 13).<br />

O terminal pré-sináptico tem como característica mais marcante a presença de<br />

vesículas que se aglomeram nas proximidades da membrana, e de grânulos secretores,<br />

esferas maiores com material elétron-denso, além de zonas de ativação. O potencial de<br />

ação chega ao axônio pré-sináptico e causa liberação de substâncias na fenda sináptica.<br />

Esta substância, armazenada nas vesículas, é o neurotransmissor, que se difunde até a<br />

membrana pós-sináptica e gera novamente um potencial de ação. Estas conversões de<br />

informação permitem que exista modificação durante o trajeto. Quem realiza estas<br />

modificações são os neuromoduladores, presentes em quase todas as sinapses.<br />

203


V Curso de Inverno<br />

Figura 13: Sinapse. Fonte: www.ucs.br/ccet/defq/naeq/material_didatico/<br />

textos_interativos_37/sinapse.jpg<br />

Portanto, os neurotransmissores são produzidos pelo neurônio, armazenados em<br />

vesículas e liberados no espaço extracelular. Transmitem informações entre neurônios e<br />

células próximas. Os neuromoduladores são produzidos pelo neurônio, atuam na sinapse,<br />

modificando a ação de neurotransmissores.<br />

As sinapses podem ser excitatórias ou inibitórias. As excitatórias despolarizam,<br />

enquanto as inibitórias hiperpolarizam o terminal pós-sináptico. Os elementos pré e póssinápticos<br />

das sinapses inibitórias têm membrana de mesma espessura, e as vesículas<br />

liberadas são achatadas, enquanto as sinapses excitatórias possuem elementos com<br />

diferentes espessuras de membrana (membrana pós-sináptica mais espessa) e liberam<br />

vesículas esféricas (Bear et al, 2002; Kandel et al, 2003; Lent, 2001).<br />

Devemos lembrar que cada célula pode fazer milhares de sinapses. Assim, o<br />

resultado final de uma informação depende da interação dos potenciais de ação locais de<br />

todas essas sinapses, conhecida como integração sináptica.<br />

As informações são passadas entre os neurônios através de poros ou canais na<br />

membrana, que permitem a passagem seletiva de íons, gerando sinais elétricos. Canais<br />

iônicos são glicoproteínas, proteínas de membrana incrustadas na bicamada lipídica, com<br />

capacidade de deixar passar íons de modo seletivo, de forma continuada ou em resposta a<br />

estímulos elétricos, mecânicos ou químicos.<br />

-canais abertos: deixam passar íons continuamente;<br />

-canais controlados por comportas: só abrem em resposta a estímulos específicos.<br />

Podem ser:<br />

a) dependentes de voltagem: abertos por alteração da voltagem da membrana;<br />

b) dependentes de ligantes: abertos por substâncias específicas, como<br />

neurotransmissores, neuropeptídeos e hormônios;<br />

204


Neurofisiopatologia<br />

c) dependentes de energia mecânica que incida diretamente sobre a membrana.<br />

Alguns canais iônicos têm três estados funcionais: repouso (está fechado mas pode<br />

ser aberto), ativo (está aberto e permite fluxo iônico) e refratário (está fechado e não pode<br />

ser ativado). Existem interações específicas entre os íons e radicais da parede dos canais,<br />

que funcionam como filtro molecular, permitindo a passagem de uma espécie iônica em<br />

cada tipo de canal. As diferenças de concentração iônica (elétrica e química) existentes<br />

entre os meios intra e extracelular fornecem energia potencial para o movimento dos íons do<br />

local de maior concentração para o de menor.<br />

Os canais de passagem livre são muito mais simples que os controlados. As<br />

proteínas possuem a propriedade de assumir conformações espaciais diferentes, chamada<br />

alosteria. Dependendo da conformação, não permitem a passagem de íons pela membrana.<br />

Porém, na presença de estímulos específicos, suas subunidades protéicas se modificam,<br />

permitindo a passagem iônica. Nos canais dependentes de voltagem, alterações no<br />

potencial elétrico da membrana podem causar mudança da estrutura. Em canais<br />

dependentes de ligantes, ocorre reação química não permanente entre um ligante<br />

(neurotransmissor, por exemplo) e a parte extracelular da proteína de membrana. Por fim,<br />

nos canais mecânicos, um estiramento da membrana causa abertura das comportas<br />

(Kandel et al, 2003).<br />

Os neurotransmissores podem ser aminas, aminoácidos e purinas, sendo que alguns<br />

aminoácidos podem atuar como neuromoduladores. Já os neuromoduladores podem ser<br />

gases e peptídeos, sendo que alguns peptídeos podem atuar como neurotransmissores.<br />

Cada neurotransmissor é formado por uma substância específica em um local<br />

específico, e o conhecimento de sua síntese é de grande importância para os psiquiatras e<br />

neurologistas, pois algumas doenças atingem diretamente este processo, como o<br />

parkinsonismo e alguns tipos de depressão.<br />

O potencial de ação, quando chega ao terminal sináptico, alcança zonas ativas,<br />

regiões ricas em canais de Ca 2+ voltagem-dependentes. O potencial de ação provoca<br />

abertura dos canais de Ca 2+ , e este passa em grande quantidade para o interior do terminal,<br />

aumentando a concentração intracelular deste íon. A quantidade aumentada de Ca 2+ no<br />

interior do terminal sináptico faz com que as vesículas sinápticas ancorem nas zonas ativas,<br />

liberando seu conteúdo na fenda sináptica através de exocitose. O neurotransmissor age no<br />

receptor específico, situado na membrana pós-sináptica e gera potencial de ação.<br />

Existem dois tipos de receptores sinápticos: metabotrópicos e ionotrópicos (Figura<br />

13.). Os ionotrópicos são os canais iônicos dependentes de ligantes, e são mais rápidos. Os<br />

receptores metabotrópicos estão ligados à proteína G ou à ação enzimática intracelular do<br />

próprio receptor. Como não são canais iônicos, a transmissão é mais lenta e indireta, feita<br />

por reações químicas intracelulares, iniciadas pela proteína G, que ativa proteínas efetoras<br />

que geralmente são canais iônicos. Estes canais, ao se abrirem, permitem que ocorra um<br />

205


V Curso de Inverno<br />

potencial de ação. Além disso, a proteína G pode atuar em proteínas de membrana que<br />

produzem mensageiros químicos (segundos mensageiros). Esses mensageiros podem agir<br />

em locais distantes da membrana ou no interior da célula pós-sináptica, desencadeando<br />

cascatas enzimáticas, aumentando o tempo que um potencial de ação leva para ser gerado,<br />

ou apenas modificando o metabolismo e função neuronais, sem desencadear um potencial<br />

de ação. Quando ocorrem modificações, mas não necessariamente é desencadeado um<br />

potencial de ação, dizemos que houve neuromodulação. Chamamos co-transmissão quando<br />

dois neurotransmissores são utilizados na mesma sinapse e co-ativação quando dois<br />

receptores diferentes são ativados.<br />

O fim da transmissão sináptica ocorre fundamentalmente através de dois<br />

mecanismos: a recaptação e a degradação enzimática do neurotransmissor. A recaptação é<br />

feita pelas proteínas transportadoras específicas da membrana do terminal pré-sináptico ou<br />

por astrócitos. É um mecanismo influenciado por drogas de vários tipos como cocaína,<br />

alguns antidepressivos e anticonvulsivantes. A degradação enzimática ocorre em sinapses<br />

colinérgicas e peptidérgicas. O neurotransmissor é quebrado e suas partes se difundem no<br />

meio extracelular ou são recaptadas para o interior do terminal e utilizadas na síntese de<br />

novas moléculas.<br />

3. Neurotransmissores<br />

3.1. Glutamato<br />

O glutamato, um aminoácido, é sintetizado pelo cérebro a partir de glicose e outros<br />

nutrientes e é o principal neurotransmissor excitatório do cérebro. Quantidades muito<br />

pequenas de glutamato podem desencadear potenciais de ação. Existem três tipos de<br />

receptores de glutamato: AMPA, NMDA e Kainato (Figura 13).<br />

3.2. GABA<br />

É sintetizado a partir da descarboxilação do glutamato, catalizada pela glutamato<br />

descarboxilase, presente em muitas terminações do cérebro, assim como as células B, do<br />

pâncreas. Os neurônios que secretam GABA são chamados de GABAérgicos. É o principal<br />

neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central.<br />

3.3. Acetilcolina<br />

É o neurotransmissor utilizado pelos neurônios que inervam os músculos, resultando<br />

em contração. Junto com a noradrenalina, a acetilcolina é o principal neurotransmissor do<br />

sistema nervoso simpático. É provável, apesar de não estar ainda muito claro, que sua<br />

função no cérebro tenha ligação com a aprendizagem e a vigília.<br />

Sua síntese depende da enzima colina acetiltransferase, que é sintetizada no soma e<br />

transportada até o terminal axonal. Para certas doenças, caracterizadas por deficiência na<br />

transmissão sináptica de acetilcolina, suplementos de colina são administrados na dieta,<br />

206


Neurofisiopatologia<br />

objetivando aumentar os níveis encefálicos do neurotransmissor.<br />

3.4. Catecolaminas<br />

São formadas a partir do aminoácido tirosina e possuem estrutura química<br />

denominada catecol. Neurônios catecolaminérgicos são encontrados em regiões do sistema<br />

nervoso envolvidas na regulação do movimento, humor, atenção e funções viscerais. São<br />

neurônios que contêm a enzima tirosina hidroxilase, que cataliza o primeiro passo da<br />

síntese das catecolaminas: converte a tirosina em dopa, que será convertida em dopamina<br />

pela enzima dopa descarboxilase. A dopa descarboxilase existe em grande quantidade nos<br />

neurônios catecolaminérgicos, e a quantidade de dopamina sintetizada depende da<br />

quantidade de dopa disponível (Figura 18).<br />

Uma vez dentro dos terminais axonais, as catecolaminas podem ser novamente<br />

transportadas para as vesículas e serem reutilizadas ou ser degradadas pela enzima<br />

monoaminoxidase (MAO) da membrana externa da mitocôndria.<br />

Figura 18: Síntese de catecolaminas. Fonte: www.sistemanervoso.com<br />

3.4.1. Dopamina<br />

Os corpos celulares dos neurônios que utilizam a dopamina estão principalmente na<br />

substância negra e na área tegmental ventral.<br />

3.4.2. Noradrenalina<br />

Presente no sistema nervoso simpático e no cérebro. A maioria dos neurônios<br />

noradrenérgicos tem seu corpo celular no locus coeruleus (tronco cerebral).<br />

Neurônios que utilizam noradrenalina como neurotransmissor contêm, além<br />

de tirosina hidroxilase e dopa descarboxilase, a enzima dopamina β-hidroxilase, conversora<br />

de dopamina em noradrenalina.<br />

207


V Curso de Inverno<br />

3.4.3. Adrenalina<br />

Neurônios adrenérgicos contêm a enzima feniletanolamina N-metil-transferase, que<br />

converte noradrenalina em adrenalina. Além de servir como neurotransmissor no encéfalo, a<br />

adrenalina é liberada pela glândula adrenal para a circulação sangüínea, e atua em<br />

receptores no corpo todo, produzindo resposta visceral coordenada.<br />

3.5. Serotonina<br />

Em humanos, a serotonina tem sido associada à depressão, ansiedade,<br />

comportamento agressivo, obesidade e outros distúrbios de alimentação, enxaqueca,<br />

disfunção sexual e dor crônica. É derivada do aminoácido triptofano. Neurônios<br />

serotonérgicos existem em menor quantidade.<br />

3.6. Fatores de crescimento<br />

São peptídeos que transmitem sinais para os neurônios via receptor de tirosina<br />

quinase. Podem ser produzidos por células gliais ou pelos próprios neurônios. Participam do<br />

desenvolvimento, divisão e crescimento neuronal e ajudam a prevenir a morte da célula. As<br />

neurotrofinas são fatores de crescimento que apóiam a diferenciação e sobrevivência de<br />

conjuntos específicos de neurônios. Entre elas estão: o fator de crescimento nervoso (NGF),<br />

o fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF) e as neurotrofinas 3 e 4/5. Todas podem ser<br />

liberadas de qualquer lugar no cérebro.<br />

4. Gênese e diferenciação<br />

Toda célula ectodérmica tem potencial para se transformar em neurônio, a chamada<br />

neuralização. O ectoderma tem proteínas que bloqueiam o desenvolvimento neural<br />

(proteínas morfogenéticas – BMPs – subgrupo dos fatores tróficos transformantes – TGFs).<br />

Quando um neurônio pára de se dividir, torna - se um “neurônio juvenil” e migra se<br />

arrastando através de prolongamentos lançados pela membrana (Figura 20).<br />

A notocorda produz proteína que se difunde no sentido dorsal pelo tubo neural,<br />

reconhecida pelas células juvenis que emitem sinais intracelulares capazes de modificar a<br />

expressão gênica. O sinal varia com a concentração desta proteína – perto da “fonte” (mais<br />

ventral) as células do tubo neural se transformam em motoneurônios. Mais distante, as<br />

células se transformam em interneurônios e reconhecem diferentes BPMs, e podem se<br />

transformar em diferentes tipos de neurônios, de acordo com o tipo de BMP.<br />

Fatores indutores e morfogenéticos mesodérmicos atuam no SNC embrionário<br />

ativando genes homeóticos distintos em diferentes lugares, que sintetizarão proteínas<br />

responsáveis pela diferenciação celular, permitindo o aparecimento de diferentes núcleos.<br />

Durante a migração, o neurônio juvenil pode emitir um axônio que cresce numa certa<br />

direção (célula alvo) e estabelece contatos especializados. O axônio surge como um<br />

prolongamento do corpo celular, forma um cone de crescimento na extremidade, com actina<br />

208


Neurofisiopatologia<br />

(proteína contrátil), e lança projeções capazes de reconhecer pistas químicas e também de<br />

se locomover. Uma função das pistas é polimerizar o citoesqueleto do cone, alongando o<br />

axônio ou formando ramos colaterais (Bear et al, 2002).<br />

Figura 20: Diferenciação celular. Fonte: www.educacaopublica.rj.gov.br<br />

Uma mesma molécula pode atuar de diferentes formas em axônios, dependendo do<br />

receptor da membrana do cone. Várias substâncias atuam na diferenciação neural:<br />

lamininas, fibronectina e proteoglicanos são inibidores de crescimento axônico; moléculas<br />

de adesão celular direcionam o crescimento do cone, como por exemplo as caderinas<br />

(glicoproteínas que dependem da concentração intracelular de cálcio, reconhecidas por<br />

outras caderinas do cone de crescimento) e imunoglobulinas, reconhecidas hemofílica ou<br />

heterofilicamente pelos cones de crescimento.<br />

Vários neurônios são formados no embrião, mas o número de células que<br />

permanecem vivas após o nascimento é determinado pela quantidade de tecido alvo.<br />

Existem fatores neurotróficos que garantem a sobrevivência dos neurônios juvenis. Fatores<br />

tróficos são produzidos pelo alvo e captados pelas células com as quais fazem contato<br />

sináptico, e atuam sobre o DNA bloqueando o processo de apoptose (várias células têm a<br />

mesma direção alvo; as que conseguem estabilizar sinapses recebem quantidade suficiente<br />

de fator neurotrófico e sobrevivem. As outras morrem) (Bear et al, 2002; Lent, 2001; Kandel<br />

et al, 2003).<br />

Referências Bibliográficas<br />

Bear M, Connors B, Paradiso M. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre:<br />

Artmed, 2002.<br />

Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe, 2000.<br />

209


V Curso de Inverno<br />

Greve JMD, Amatuzzi MM. Medicina de reabilitação aplicada à ortopedia e traumatologia. São Paulo:<br />

Roca, 1999.<br />

Guyton AC. Fisiologia humana e o mecanismo das doenças. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,<br />

1989.<br />

Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da neurociência. São Paulo: Manole, 2003.<br />

Lent R. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências. São Paulo: Atheneu,<br />

2001.<br />

Leonard BE. Fundamentos em psicofarmacologia. Rio de Janeiro: Revinter, 2006.<br />

Lundy-Eckman L. Neurociência: fundamentos para a reabilitação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.<br />

Machado A. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu, 2000.<br />

Pliszka S. Neurociência para o clínico de saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2004.<br />

Santibañez G. Fisiologia dos estados emóticos in Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe,<br />

2000.<br />

Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />

210


Neurofisiopatologia<br />

Biologia molecular e celular aplicadas à neurofisiologia<br />

Merari de Fátima Ramires Ferrari<br />

Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />

mfrf@yahoo.com<br />

No início do século XVII o pesquisador inglês Robert Hook descreveu o que chamou<br />

de “célula”. Muito embora o que Hook tivesse observado não fosse uma célula como a<br />

conhecemos hoje, seu achado deu base para a evolução da pesquisa celular. Schleiden e<br />

Schwann, em 1839, propuseram a teoria celular que tinha como princípio o fato de a célula<br />

ser a unidade básica de constituição dos organismos. A descoberta dos experimentos<br />

genéticos de Mendel, em 1900, e a elucidação da molécula de DNA por Watson e Crick<br />

(1953) tornaram possível desvendar do código genético e evidenciar sua importância nas<br />

respostas e reações do organismo em relação ao meio.<br />

A partir destas descobertas e anseios pela busca de respostas mais específicas<br />

quanto ao funcionamento da célula, que de modo geral geram a resposta final do<br />

organismo, houve o desenvolvimento da série de experimentos que culminou com o que<br />

conhecemos hoje como biologia celular e molecular.<br />

O Sistema Nervoso Central (SNC) apresenta grande fascínio devido aos mistérios<br />

que a ele, ainda hoje, são atribuídos. É realidade que o SNC ainda não é completamente<br />

entendido, mas a biologia celular e a molecular podem nos auxiliar a entender a<br />

neurofisiologia. O SNC é composto por células gliais e neuronais que interagem entre si e<br />

comandam o funcionamento encefálico, e possuem características distintas, o que será<br />

discutido rapidamente.<br />

Os neurônios antigamente eram reconhecidos como principais células do Sistema<br />

Nervoso. No entanto, esta visão vem se modificando à medida que se conhecem melhor as<br />

demais células que compõem o SNC. Atualmente tem-se que todas as células do SNC são<br />

igualmente importantes para seu correto funcionamento. Os neurônios são, de longe, as<br />

células mais estudadas, pois o interesse por seu estudo vem anteriormente ao das células<br />

gliais (desde Santiago Ramón y Cajal em 1888). Os neurônios são células eletricamente<br />

excitáveis responsáveis pela transmissão da informação em cadeia, integração do estímulo<br />

e elaboração da resposta. As células gliais compreendem a maioria das células presentes<br />

no sistema nervoso e dividem-se em 5 categorias: astrócitos, oligodendrócitos, microglia,<br />

células de Schwann e células ependimárias.<br />

Complementando o explicitado na seção inicial deste capítulo, os astrócitos, antes<br />

designados como meras células de sustentação do sistema nervoso central, hoje são<br />

reconhecidos como sendo os grandes colaboradores dos neurônios no que diz respeito à<br />

neurotransmissão. Estas células participam da síntese e metabolismo de diversos<br />

neurotransmissores como é o caso, por exemplo, do glutamato. Além disso, os astrócitos<br />

211


V Curso de Inverno<br />

são os grandes responsáveis pela barreira hemato-encefálica, pois envolvem vasos<br />

sanguíneos com seus prolongamentos e permitem a entrada seletiva de moléculas do<br />

sangue para o Sistema Nervoso Central.<br />

Os oligodendrócitos e as células de Schwann são responsáveis pela formação da<br />

bainha de mielina, que envolve os axônios neuronais do encéfalo e coluna espinal, e dos<br />

nervos periféricos, respectivamente, a fim de aumentar a velocidade da transmissão elétrica<br />

dos neurônios.<br />

A microglia possui papel importante na manutenção da estabilidade imunológica do<br />

Sistema Nervoso Central. Estas células migram do sangue para o SNC durante os primeiros<br />

estágios do desenvolvimento encefálico e estão envolvidas em uma série de doenças<br />

neurodegenerativas como, por exemplo, a Esclerose Lateral Amiotrófica.<br />

As células ependimárias localizam-se principalmente na borda dos ventrículos<br />

encefálicos e do canal central, na medula espinal. São células ciliadas que parecem ter<br />

função de células-tronco podendo originar outras células gliais e neurônios, especificamente<br />

em casos de danos celulares.<br />

A Figura 1.1 exemplifica os diversos tipos celulares encontrados no SNC, assim como<br />

a relação entre elas.<br />

Figura 1.1: Demonstração da morfologia, localização e interação entre os neurônios e os<br />

diferentes tipos de células gliais no sistema nervoso central (retirado de http://<br />

academic.kellogg.cc.mi.us/herbrandsonc/bio20 1_McKinley/Nervous%20System.htm).<br />

212


Neurofisiopatologia<br />

Figura 1.2: Esquema da síntese e degradação do glutamato ilustrando a<br />

compartimentalização do sistema. Glu: glutamato; Gln: glutamina; NH3: grupo amina.<br />

Modificado de Daikhin e Yudkoff (2000).<br />

FIGURA 1.3: Esquema do sistema renina-angiotensina no sistema nervoso central. A<br />

explicação detalhada encontra-se no texto. As interrogações indicam incerteza sobre a<br />

etapa. Abreviaturas: AOGEN: angiotensinogênio; ANG: angiotensina; AT1R: receptor tipo 1<br />

de angiotensina II; ECA: enzima conversora de angiotensina, Mas: receptor de angiotensina<br />

1-7. Baseado em Lavoie e Sigmund (2003), McKinley e colaboradores (2003), Santos e<br />

colaboradores (2003) e Warner e colaboradores (2004).<br />

213


V Curso de Inverno<br />

Com o advento da biologia molecular, tornou-se mais fácil o entendimento da<br />

contribuição dos diferentes tipos celulares nas situações de normalidade e patologia. É<br />

através deste conjunto de ferramentas da biologia molecular que os passos de determinada<br />

cadeia de eventos podem ser desvendados, para então interferir especificamente no ponto<br />

de interesse e, com isso, alterar a resposta final. Entre as técnicas mais conhecidas e<br />

avançadas em biologia molecular, encontram-se a hibridização in situ, o western blotting, o<br />

PCR (reação em cadeia de polimerase), a terapia gênica, microarrays, e RNA de<br />

interferência aplicados à neurofisiologia.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Daikhin Y, Yudkoff M. (2000) Compartmentation of brain glutamate metabolism in neurons<br />

and glia. J Nutr, 130:1026S-31S.<br />

Färber K, Kettenmann H. (2005) Physiology of microglial cells. Brain Research Reviews,<br />

48:133-143.<br />

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Walther S, Pinheiro SV, Lopes MT, Bader M, Mendes EP, Lemos VS,<br />

Campagnole-Santos MJ, Schultheiss HP, Speth R, Walther T. (2003)<br />

Angiotensin- (1-7) is an endogenous ligand for the G protein-coupled receptor<br />

Mas. Proc Natl Acad Sci USA, 100:8258-63.<br />

Sargsyan SA, Monk PN, Shaw PJ. (2005) Microglia as potential contributors to motor<br />

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(1996) Multipotent CNS Stem Cells Are Present in the Adult Mammalian Spinal Cord<br />

and Ventricular Neuroaxis. J. Neurosci., 16(23):7599–7609.<br />

Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />

214


Neurofisiopatologia<br />

Neuroanatomia básica comparada<br />

Karen Lisneiva Farizatto<br />

karenfarizatto@yahoo.com.br<br />

Sérgio Marinho da Silva<br />

sr.gari@gmail.com<br />

Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />

Desenvolvimento do Sistema Nervoso<br />

O tubo neural consiste em um longo tubo com um canal central, composto<br />

basicamente por neurônios e células gliais. Durante o desenvolvimento embrionário, este<br />

canal (canal do epêndima) é cercado por três tipos de tecidos, denominados camadas<br />

ependimária (canal do epêndima), do manto e marginal (que envolve externamente o tubo<br />

neural).<br />

No final do estágio embrionário, no momento em que surge o tecido que originará o<br />

sistema nervoso, a região ventral do canal espinal começa a se diferenciar, sendo possível<br />

notar o espessamento de três regiões: o prosencéfalo, o mesencéfalo e o rombencéfalo<br />

(Figura 2.2).<br />

A primeira região espessada da coluna espinal, o prosencéfalo, dará origem ao<br />

telencéfalo – o cérebro propriamente dito – e ao diencéfalo – região que engloba o tálamo,<br />

hipotálamo, glândula pineal, e outras estruturas.<br />

A segunda região espessada, o mesencéfalo – encéfalo médio –, continuará<br />

indiferenciada e igualmente denominada.<br />

A terceira região espessada, rombencéfalo, se diferenciará em metencéfalo - parte<br />

que se transformará em cerebelo - e mielencéfalo, que se tornará o bulbo encefálico (Bear<br />

et al, 2002).<br />

Como o encéfalo está organizado?<br />

Podemos classificar as estruturas que revestem o encéfalo de fora para dentro da<br />

seguinte forma; crânio (proteção mecânica), meninges: dura-máter (camada mais externa),<br />

aracnóide (camada média), e a pia-máter (mais interna). Entre a aracnóide e a pia-máter há<br />

o líquido cerebroespinal, que nutre o encéfalo, além de fornecer proteção mecânica.<br />

O encéfalo corresponde ao telencéfalo (cérebro), diencéfalo, cerebelo, e tronco<br />

encefálico, que se divide em: bulbo (situado caudalmente), mesencéfalo (situado<br />

cranialmente) e ponte (situada entre ambos) (Figura 2.3).<br />

O telencéfalo ou cérebro é dividido em dois hemisférios, bastante desenvolvidos nos<br />

mamíferos, nos quais situam-se as sedes da memória e dos nervos (sensitivos e motores).<br />

O líquido cerebroespinal circula no Sistema Nervoso Central através de canais e<br />

reservatórios (os ventrículos). Ao todo, são dois ventrículos laterais, o terceiro e o quarto<br />

ventrículos, localizados no encéfalo e tronco encefálico.<br />

215


V Curso de Inverno<br />

A camada externa do cérebro é conhecida como córtex, formada pela substância<br />

cinzenta. O nome córtex, que significa casca em latim, lhe foi dado por sua aparência<br />

rugosa e também pelo fato de recobrir a maior parte do restante do cérebro.<br />

Figura 2.2: Estruturas do encéfalo durante a embriogênese. 1- Prosencéfalo, 2-<br />

mesencéfalo, 3- robencéfalo, 4 – futura medula espinal, 5- Diencéfalo, 6- Telencéfalo, 7-<br />

Mielencéfalo (futuro bulbo), 8- Medula Espinal, 9- Hemisfério cerebral, 10- Lóbulo Olfatório,<br />

11- Nervo Óptico, 12- Cerebelo, 13- Metencéfalo. Fonte:www.afh.bio.br.<br />

O córtex de cada hemisfério é dividido em quatro lobos, denominados a partir dos<br />

ossos cranianos localizados acima deles. O lobo temporal está localizado nas partes<br />

laterais do crânio, é relacionado primariamente com o sentido de audição, possibilitando o<br />

reconhecimento de tons específicos e intensidade do som. O lobo frontal, que se localiza<br />

na frente do encéfalo, abaixo do osso frontal do crânio, é responsável pela elaboração do<br />

pensamento, planejamento, programação de necessidades individuais e emoção e controle<br />

motor. O lobo parietal, localizado dorsalmente, atrás do lobo frontal, é responsável pela<br />

sensação de dor, tato, gustação, temperatura, pressão. Também está relacionado com a<br />

lógica matemática. O lobo occipital, localizado na região da nuca, é responsável pelo<br />

processamento da informação visual (Figura 2.4).<br />

Em meio a substância branca, sob o telencéfalo, há grupos de corpos celulares<br />

neuronais que formam os núcleos da base, relacionados com o controle do movimento.<br />

216


Neurofisiopatologia<br />

Figura 2.3: Divisões do encéfalo humano em corte sagital. Fonte:www.afh.bio.br.<br />

Figura 2.4: Divisão anatômica do encéfalo. Fonte: www.afh.bio.br<br />

O córtex aumenta de tamanho ao longo da filogenia, alcançando seu tamanho máximo<br />

nos mamíferos. Nos mamíferos, este é o principal centro de integração de aferências ao<br />

sistema nervoso. Nos demais vertebrados, os núcleos da base são os principais centros<br />

integradores. Além disso, nos demais vertebrados o controle da visão não se dá<br />

principalmente pelo córtex, como nos mamíferos. Este ocorre no mesencéfalo, na região do<br />

teto.<br />

O diencéfalo localiza-se sob o telencéfalo. Nele encontramos importantes estruturas,<br />

como o hipotálamo - constituído por substância cinzenta - o principal centro integrador das<br />

atividades dos órgãos viscerais, sendo um dos principais responsáveis pela homeostase<br />

217


V Curso de Inverno<br />

corporal. Ele faz ligação entre o sistema nervoso e o sistema endócrino, atuando na<br />

ativação de diversas glândulas. É o hipotálamo que controla a temperatura corporal, regula<br />

o apetite, o balanço de água no corpo e o sono, além de estar envolvido na emoção e no<br />

comportamento sexual. Tem amplas conexões com as demais áreas do prosencéfalo e com<br />

o mesencéfalo. Aceita-se que o hipotálamo desempenhe, ainda, papel nas emoções:<br />

especificamente as partes laterais parecem envolvidas com o prazer e a raiva, enquanto a<br />

porção mediana parece mais ligada à aversão, ao desprazer e à tendência ao riso<br />

(gargalhada) incontrolável. De modo geral, contudo, a participação do hipotálamo é menor<br />

na gênese (“criação”) do que na expressão (manifestações sintomáticas) dos estados<br />

emocionais.<br />

Todas as mensagens sensoriais, com exceção das provenientes dos receptores do<br />

olfato, passam pelo tálamo antes de atingir o córtex cerebral. Esta é uma região de<br />

substância cinzenta localizada entre o tronco encefálico e o cérebro. O tálamo atua como<br />

estação retransmissora de impulsos nervosos para o córtex cerebral. Ele é responsável pela<br />

condução dos impulsos às regiões apropriadas do cérebro onde devem ser processados. O<br />

tálamo também está relacionado com alterações no comportamento emocional que<br />

decorrem, não só da própria atividade, mas também de conexões com outras estruturas do<br />

sistema límbico (que regula as emoções).<br />

Situado atrás do cérebro está o cerebelo (Figura 2.5), que é primariamente um centro<br />

para o controle dos movimentos iniciados pelo córtex motor (possui extensivas conexões<br />

com o cérebro e a medula espinal). Como o cérebro, também está dividido em dois<br />

hemisférios. Porém, ao contrário dos hemisférios cerebrais – que controlam o lado inverso<br />

do corpo (contralateral) – os hemisférios cerebelares estão relacionados aos movimentos do<br />

mesmo lado do corpo (ipsilateral).<br />

O cerebelo recebe informações do córtex motor e dos núcleos da base sobre todos os<br />

estímulos enviados aos músculos. A partir das informações do córtex motor sobre os<br />

movimentos musculares pretendidos e de informações proprioceptivas - que recebe<br />

diretamente do corpo (articulações, músculos, áreas de pressão do corpo, aparelho<br />

vestibular e olhos) – o cerebelo avalia o movimento realmente executado. Após a<br />

comparação entre desempenho e aquilo que se teve em vista realizar, estímulos corretivos<br />

são enviados de volta ao córtex para que o desempenho real seja igual ao pretendido.<br />

Dessa forma, o cerebelo relaciona-se com os ajustes dos movimentos, equilíbrio, postura e<br />

tônus muscular a cada instante.<br />

O cerebelo tem seu tamanho e forma relacionados não só com a classe, mas também<br />

com o hábito de vida do animal. Este é relativamente mais desenvolvido nas espécies com<br />

maior movimentação espacial, como peixes. O cerebelo em aves e mamíferos encontra seu<br />

tamanho máximo e o maior número de sulcos e giros (Guyton et al, 1996).<br />

O tronco encefálico (Figura 2.6) interpõe-se entre a medula e o diencéfalo, situando-se<br />

ventralmente ao cerebelo. Possui três funções gerais; (1) receber informações sensitivas de<br />

218


Neurofisiopatologia<br />

estruturas cranianas e controla os músculos da cabeça; (2) contém circuitos nervosos que<br />

transmitem informações da medula espinal até outras regiões encefálicas e, em direção<br />

contrária, do encéfalo para a medula espinhal; (3) regular a atenção, função esta que é<br />

mediada pela formação reticular. Além destas 3 funções gerais, as várias divisões do tronco<br />

encefálico desempenham funções motoras e sensitivas específicas.<br />

Na constituição do tronco encefálico entram corpos de neurônios que se agrupam em<br />

núcleos e fibras nervosas. Muitos dos núcleos do tronco encefálico recebem ou emitem<br />

fibras nervosas que participam da constituição dos nervos cranianos, que emergem<br />

diretamente do encéfalo.<br />

Figura 2.5: Estruturas do cerebelo. Fonte: www.afh.bio.br<br />

Medula espinal<br />

A medula espinal é uma estrutura de formato cilíndrico, ocupando a maior parte do<br />

canal vertebral. Em corte transversal, observa-se uma região interna mais escura, em<br />

formato de H. Esta é a região denominada substância cinzenta. A região em sua volta, mais<br />

clara, é denominada substância branca. A substância cinzenta é originária do canal do<br />

manto e de células da camada ependimária, enquanto as células da substância branca são<br />

originárias da camada marginal.<br />

A substância cinzenta é formada por neurônios amielínicos encontrando-se nela<br />

principalmente corpos celulares de neurônios, seus dendritos e células gliais. Já a<br />

substância branca é formada por células mielinizadas e é onde encontramos os axônios em<br />

conjunto formando tratos.<br />

219


V Curso de Inverno<br />

Figura 2.6: Estruturas do tronco encefálico. Fonte: www.afh.bio.br<br />

Na região dorsal da substância cinzenta, nos chamados cornos dorsais, encontramos<br />

neurônios principalmente sensoriais – aferentes, encaminham o estímulo ao encéfalo -<br />

enquanto nos cornos ventrais encontramos neurônios principalmente motores – eferentes,<br />

encaminham o estímulo ao órgão efetor.<br />

Na região dorsal da substância branca, os tratos que existem correm em direção ao<br />

encéfalo, enquanto na região ventral os tratos correm em direção ao corpo. Já a região<br />

lateral possui tratos em direção aos dois sentidos.<br />

Na medula espinal, os corpos celulares das células nervosas agrupam-se nas colunas<br />

cinzentas dorsais e ventrais, que são contínuas por toda sua extensão. No encéfalo, ao<br />

contrário, os corpos celulares funcionalmente relacionados aglomeram-se na superfície do<br />

cérebro e cerebelo onde formam o córtex desses órgãos ou juntam-se em massas<br />

descontínuas no interior do encéfalo. Um conjunto desse tipo é denominado núcleo, mas<br />

também pode receber o nome de centro ou corpo (Carlson, 2000)..<br />

Sistema nervoso autônomo<br />

O Sistema Nervoso Central está conectado ao resto do corpo por meio de fibras<br />

nervosas. Estas fibras se conectam aos receptores sensoriais, a órgãos internos e<br />

músculos. Todas essas fibras nervosas que irradiam do encéfalo e da medula espinal são<br />

denominadas Sistema Nervoso Periférico.<br />

Dentro do Sistema Nervoso (Figura 2.7), temos o Sistema Nervoso Autônomo. Este<br />

é a parte relacionada ao controle da vida vegetativa, ou seja, controla funções como a<br />

respiração, circulação do sangue, controle de temperatura e digestão. No entanto, ele não<br />

se restringe a isto. Ele é o principal responsável pelo controle automático do corpo frente às<br />

220


Neurofisiopatologia<br />

diversidades do ambiente. Dessa maneira, pode-se perceber que o organismo possui um<br />

mecanismo que permite ajustes corporais mantendo assim o equilíbrio do corpo, também<br />

chamado homeostase. Apesar de se chamar Sistema Nervoso Autônomo ele não é<br />

independente do restante do Sistema Nervoso.<br />

Sabe-se que o Sistema Nervoso Autônomo é constituído por um conjunto de neurônios<br />

que se encontram na medula e no tronco encefálico. Estes, através de gânglios periféricos,<br />

coordenam a atividade da musculatura lisa, da musculatura cardíaca e de inúmeras<br />

glândulas exócrinas. O Sistema Nervoso Autônomo divide-se em Simpático e<br />

Parassimpático. Os neurônios pré-ganglionares do sistema Simpático emergem dos<br />

segmentos toracolombares (da região do tórax e logo abaixo), ao passo que os do sistema<br />

parassimpático emergem dos segmentos encefálicos e sacrais (da região da cabeça e logo<br />

acima dos glúteos) (Kandel et al, 2000).<br />

Características do sistema nervoso por classes:<br />

O encéfalo dos peixes varia muito, devido ao grande número de gêneros de peixes<br />

existentes.<br />

O encéfalo dos anfíbios é notavelmente não especializado. O corpo estriado é<br />

pequeno e os lobos ópticos apresentam dimensões pequenas a moderadas. O cerebelo<br />

ainda é rudimentar.<br />

O encéfalo dos répteis é estreito, alongado e quase reto. Os bulbos olfativos tendem a<br />

ser menores que os dos peixes. Os tratos olfativos são longos e o cerebelo é grande em<br />

função da expansão.<br />

O encéfalo das aves são relativamente grandes, uniformes e peculiares. Os bulbos e<br />

tratos olfativos são, de modo geral, menores do que nos outros vertebrados. O hemisfério<br />

cerebral das aves é superado em tamanho apenas pelo de alguns mamíferos, devido ao<br />

enorme desenvolvimento do corpo estriado com seu neocórtex. Os nervos, tratos e<br />

quiasmas ópticos são grandes. Nas aves e mamíferos, o cerebelo é muito volumoso,<br />

lobulado e convoluto, formando giros e sulcos. As porções superficiais do córtex são<br />

delgadas e a substância cinzenta tornou-se externa. Nas aves, o cerebelo é maior do que<br />

nos outros vertebrados, salvo alguns mamíferos.<br />

Nos mamíferos, os bulbos e tractos olfativos variam de imensos a muito pequenos.<br />

Embora menor que nos répteis e aves, o corpo estriado é bem desenvolvido. O amplo<br />

neocórtex representa a característica dos mamíferos, dominando o encéfalo estruturalmente<br />

e funcionalmente. Estes são lisos em mamíferos pequenos e convolutos na maioria dos de<br />

grande porte. Uma nova comissura, corpo caloso, liga os hemisférios (Hildebrand, 1995).<br />

A cobertura dorsal do mesencéfalo, denominada teto, é o local onde encontramos em<br />

todos os vertebrados, exceto nos mamíferos, o centro primário de percepção da visão. Nos<br />

mamíferos, a percepção visual é migrada, em grande parte, para o cérebro, apesar do teto<br />

do mesencéfalo ainda ser funcional na visão.<br />

221


V Curso de Inverno<br />

Referências Bibliográficas<br />

Bear MF, Connors BW, Paradiso MA. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. 2ª ed. Porto<br />

Alegre: ArtMed, 2002.<br />

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Guyton AC. Hall JE. Tratado de fisiologia médica. 9º ed. Guanabara, Rio de Janeiro, 1996.<br />

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Lent R. Cem Bilhões de Neurônios. Rio de Janeiro, Atheneu, 2001.<br />

Machado A. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu. 363p, 1993.<br />

www.afh.bio.br<br />

Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />

222


Neurofisiopatologia<br />

Controle neural da pressão arterial e hipertensão<br />

João Paulo de Pontes Matsumoto<br />

jpaulo.fisio@yahoo.com.br<br />

Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />

A manutenção dos níveis pressóricos dentro de uma faixa de normalidade depende de<br />

variações do débito cardíaco ou da resistência periférica ou de ambos. Diferentes<br />

mecanismos de controle estão envolvidos não só na manutenção como na variação da<br />

pressão arterial (PA), regulando o calibre e a reatividade vascular, a distribuição de fluido<br />

dentro e fora dos vasos e o débito cardíaco. O estudo dos mecanismos de controle da PA<br />

tem indicado grande número de substâncias e sistemas fisiológicos que interagem de<br />

maneira complexa para garantir a PA em níveis adequados nas mais diversas situações.<br />

Desta forma, a dinâmica da PA é efetuada por mecanismos neuro-humorais que<br />

corrigem prontamente os desvios dos níveis basais da PA, para mais ou para menos<br />

(Michelini, 2007). Sendo assim, estes mecanismos reguladores da PA agem como em um<br />

arco-reflexo: envolve receptores, aferências, centro de integração, eferências e efetores<br />

cardiovasculares, além das alças hormonais (id).<br />

Entre os componentes que controlam a PA, os mecanorreceptores ou barorreceptores<br />

são os principais responsáveis pela regulação momentânea da PA. Localizados na crossa<br />

da aorta e no seio carotídeo (Figura 3.1), são constituídos por terminações nervosas livres<br />

situadas na adventícea, próximas à borda média – adventicial, que são extensamente<br />

ramificadas e apresentam varicosidades e convoluções a espaços irregulares (Krauhs,<br />

1979; Chapleau et al., 2001), (Figura 3.2). Mecanorreceptores são sensíveis a distensão ou<br />

deformação da parede vascular, deformações estas que são geradas pela passagem do<br />

pulso de pressão. Os barorreceptores transduzem esse sinal mecânico em sinal elétrico<br />

através de canais iônicos sensíveis a deformações, pertencentes à família das degerinas/<br />

canais epiteliais de Na+ (DEG/EnaC) e presentes nos terminais nervosos. Estes, durante a<br />

sístole, permitem o influxo de Na + e Ca ++ que despolarizam os terminais na proporção direta<br />

da deformação, ou seja, quanto maior a deformação, maior o influxo de íons, maior a<br />

despolarização e vice-versa (Figura 3.2c). Esses sinais são transmitidos ao longo das fibras<br />

aferentes mielinizadas e não-mielinizadas.<br />

As fibras barorreceptoras aórticas (Nervo Depressor Aórtico ou de Cyon) caminham<br />

pelo nervo vago, enquanto as carotídeas (Nervo Sinusal ou de Hering) incorporam-se ao<br />

nervo glossofaríngeo. Há diferenças interespécies quanto à distribuição anatômica do nervo<br />

depressor aórtico, como exemplos no cão onde a região cervical é praticamente inseparável<br />

do tronco vagal (que contém, igualmente, o simpático cervical) ou no coelho em que este<br />

nervo corre isoladamente.<br />

223


V Curso de Inverno<br />

Figura 3.1: A- barorreceptores no seio carotídeo / B- barorreceptores no arco aórtico<br />

Modificado de Boron & Boulpaep, 2007.<br />

Na pressão basal, o nível de descarga dos mecanorreceptores é intermediário entre as<br />

situações extremas (limiar e saturação); a atividade aferente é intermitente e sincrônica com<br />

a expansão da aorta verificada durante o período sistólico (Irigoyen et al., 2005) e a<br />

deformação diastólica não é suficiente para gerar uma descarga de potenciais de ação. O<br />

nível de atividade das fibras aferentes carotídeas e aórticas é, portanto, função direta das<br />

variações instantâneas da deformação e tensão vasculares induzidas pela PA. As<br />

informações sobre os níveis de PA, fornecidas pela frequência de descarga dos receptores,<br />

são conduzidas ao bulbo, ou mais especificamente ao núcleo do trato solitário (NTS)<br />

(Dampney, 1994).<br />

O NTS desempenha papel fundamental na regulação cardiovascular, não só por ser o<br />

local de convergência das aferências periféricas (barorreceptores, quimioreceptores,<br />

receptores cardiopulmonares), como de aferências suprabulbares (hipotalâmicas) em sua<br />

primeira estação sináptica, mas também por distribuir as informações aferentes em tais<br />

núcleos bulbares de integração primária (Michelini, 2007). Desta forma, estes núcleos<br />

recebem informação do NTS (o núcleo dorsal motor do vago (DMV), o núcleo ambíguo (NA)<br />

e o bulbo ventro lateral caudal (BVLc)). Entretanto, o BVLc, constituído por neurônios<br />

224


Neurofisiopatologia<br />

inibitórios gabaérgicos (Figura 3.3), projeta-se para a mais importante fonte de estimulação<br />

simpática, o bulbo ventro lateral rostral (BVLr).<br />

Figura 3.2: Reconstrução tridimensional dos barorreceptores. Modificado de Michelini,<br />

(2007).<br />

A resposta neural comandada pelos barorreceptores é sumarizada da seguinte<br />

maneira: quando há elevação da PA os barorreceptores são estimulados e promovem<br />

aumento da geração de potenciais de ação, conduzidos pelas aferências (carotídeas e<br />

aórticas) até o NTS, excitando-o, através da liberação do neurotransmissor glutamato (Sved<br />

& Gordon, 1994). Por sua vez, o NTS através da liberação do neurotransmissor glutamato,<br />

ativa os neurônios do NA e DMV que, via nervo vago, promove bradicardia reflexa e redução<br />

do débito cardíaco. Concomitantemente à ativação do NA e DMV, os neurônios inibitórios do<br />

BVLc são ativados, inibindo, via liberação do neurotransmissor ácido γ-aminobutírico<br />

(GABA) no BVLr, a atividade simpática.<br />

Em situação de hipotensão os efeitos são inversos à situação de alta pressão, ou seja,<br />

diminuição da atividade vagal e aumento da atividade simpática. Porém, no NTS há uma<br />

grande quantidade de neurotransmissores, neuromoduladores e receptores, cada um com<br />

sua especificidade, como a angiotensina II, adenosina, vasopressina, ocitocina, óxido nítrico<br />

entre outros; montando uma rede complexa de aferências, que aumenta sua complexidade,<br />

plasticidade e acurácia na regulação momento a momento da pressão arterial.<br />

225


V Curso de Inverno<br />

Figura 3.3: Visão esquemática sagital do bulbo de rato: neurônios excitatórios, Δ<br />

neurônios inibitórios. Retirado de Colombari, (2001).<br />

Estima-se que a parcela de hipertensos no Brasil seja da ordem de 15% a 20% da<br />

população adulta, chegando a ser de aproximadamente 50% nos idosos (Sociedade<br />

Brasileira de Hipertensão, 2001). Na hipertensão há aumento no padrão de disparos dos<br />

barorreceptores causado pela elevação da PA. Este aumento causa saturação dos<br />

barorreceptores, diminuindo a resposta reflexa em situações de mudanças abruptas da PA.<br />

Porém, muitos anos atrás, Krieger e colaboradores (1982) demonstraram que os<br />

barorreceptores, após dois dias de hipertensão, conseguem se adaptar ajustando seu<br />

padrão de disparo, mesmo com a PA elevada, ou seja, nessa situação o novo regime de<br />

pressão é reconhecido como “normal”, de forma que as mudanças abruptas da PA serão<br />

corrigidas. Isso é possível porque os elementos elásticos na parede do vaso à qual os<br />

barorreceptores estão ligados sofrem uma deformação devida suas propriedades elásticas,<br />

diminuindo a tensão exercida nos barorreceptores, estes então, voltando à conformação de<br />

níveis normais de PA (Figura 3.4).<br />

Reis e colaboradores (1984) propuseram que a hipertensão arterial sistêmica deve ser<br />

resultado de um desbalanço entre a rede neural central que ativa os neurônios simpáticos<br />

vasomotores e aqueles que os inibem, favorecendo uma alta descarga simpática, que<br />

acarreta em elevação dos níveis pressóricos. Ainda hoje os mecanismos envolvidos na<br />

gênese da hipertensão arterial sistêmica não estão completamente desvendados. Porém,<br />

226


Neurofisiopatologia<br />

houve muita evolução nos conceitos e no seu tratamento, mas há ainda muito que pesquisar<br />

nesta área tão promissora.<br />

Figura 3.4: Registro da ativação dos barorreceptores. Retirado de Michelini (2007).<br />

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Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />

228


Neurofisiopatologia<br />

Treinamento físico aeróbio: adaptações e benefícios<br />

cardiovasculares e parâmetros comportamentais em animais e<br />

indivíduos hipertensos<br />

Regiane Xavier de Moraes<br />

regiane@ib.usp.br<br />

Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />

Durante a maior parte da história escrita pelos homens, sempre houve demonstrações<br />

de interesse em entender como o corpo funciona. Antigos escritos egípcios, indianos e<br />

chineses descrevem tentativas realizadas por médicos para tratar várias doenças e<br />

restaurar a saúde. Esterco de camelo e pó de chifre de carneiro podem parecer terapias<br />

bizarras atualmente, mas devemos vê-las sob a perspectiva do que se sabia sobre o corpo<br />

humano desde os primórdios.<br />

A fisiologia (do grego physis, natureza e logos, palavra ou estudo) é o ramo da biologia<br />

que estuda as múltiplas funções mecânicas, físicas e bioquímicas nos seres vivos. De uma<br />

forma mais sintética, a fisiologia estuda o funcionamento do organismo. Aristóteles (384 –<br />

322 a.C.) usou a palavra, com o sentido amplo, para descrever o funcionamento de todos os<br />

organismos vivos e não apenas do corpo humano. Entretanto, Hipócrates (460 – 377 a.C.),<br />

considerado o pai da Medicina, usou a palavra para descrever “o poder curativo da<br />

natureza” e, assim, este campo de estudo tornou-se intimamente associado à medicina. No<br />

século XVI, na Europa, a fisiologia foi considerada como o estudo das funções vitais do<br />

corpo humano, embora, hoje em dia, o termo seja aplicado também ao estudo das funções<br />

dos animais e das plantas.<br />

Dentre as subdivisões independentes da fisiologia (ecofisiologia, fisiologia vegetal,<br />

fisiologia animal, eletrofisiologia) está a neurofisiologia, que estuda a fisiologia do sistema<br />

nervoso e a fisiologia do exercício, que se aplica aos estudos voltados aos efeitos do<br />

exercício físico sobre o organismo.<br />

Para tratarmos ferimentos e doenças de forma apropriada, devemos conhecer o<br />

funcionamento do corpo humano no seu estado saudável. Desta forma, quanto maior a<br />

compreensão dos mecanismos que guiam as funções fisiológicas dos organismos vivos,<br />

com as suas peculiaridades e a ampla gama de detalhes e variáveis, com mais precisão<br />

serão descobertos e efetuados os tratamentos e, concomitantemente, novas terapias<br />

surgirão.<br />

Neste tópico será abordada a relação do exercício físico com a hipertensão arterial,<br />

além de atualidades e tendências em pesquisa na área da fisiologia do exercício e doenças<br />

cardiovasculares. Além disso, será também elucidada a importância do treinamento físico na<br />

alteração de características e hábitos comportamentais.<br />

O sedentarismo é o principal fator de risco de mortes em função de doenças<br />

cardiovasculares e pode contribuir para o aparecimento e/ou agravamento de doenças<br />

229


V Curso de Inverno<br />

cardiovasculares como a hipertensão arterial. A hipertensão arterial é uma das doenças de<br />

maior prevalência na população brasileira e mundial. No Brasil, a Sociedade Brasileira de<br />

Hipertensão (SBH) estima que haja 30 milhões de hipertensos, cerca de 30% da população<br />

adulta. Entre as pessoas com mais de 60 anos, mais de 60% são acometidos. No mundo<br />

são 600 milhões de hipertensos, segundo a Organização Mundial de Saúde. Não se deve<br />

desprezar também a prevalência desta patologia em crianças e adolescentes. A SBH estima<br />

que 5% da população com até 18 anos seja hipertensa, o que corresponde a 3,5 milhões de<br />

crianças e adolescentes brasileiros. Diversos estudos levantaram a prevalência da<br />

hipertensão juvenil. No Rio de Janeiro, por exemplo, ela está em torno de 7%. Em Belo<br />

Horizonte e Florianópolis, 12% e em Salvador, 4% das crianças e adolescentes são<br />

acometidas. Assim, é interessante analisarmos o fato de que como ainda não há cura para a<br />

hipertensão arterial, a detecção precoce e o controle adequado para a vida inteira são<br />

desafios para a saúde pública.<br />

Durante os últimos tempos, o exercício físico, bem como as suas implicações e<br />

conseqüências, tem sido extensamente estudado por cientistas de todo o mundo.<br />

Usualmente, os exercícios aeróbicos e/ou de resistência mais recomendados e utilizados<br />

são a caminhada, a corrida, a natação, a musculação e o ciclismo. Em animais, as<br />

metodologias normalmente utilizadas são a roda de corrida espontânea, além da corrida<br />

induzida em esteiras rolantes adaptadas e a natação forçada. No entanto, rodas de corrida<br />

espontânea é o método de treinamento animal mais indicado para o estudo de parâmetros<br />

fisiológicos por não causar estresse e injúria aos animais. As pesquisas buscam<br />

compreender as ações do exercício no organismo, quais os mecanismos centrais e<br />

periféricos que as norteiam e, principalmente, quais os benefícios que poucas horas de<br />

mudança na rotina diária podem causar tanto para uma pessoa ou animal saudável como<br />

para os acometidos por patologias.<br />

A realização do exercício físico provoca uma série de respostas fisiológicas nos<br />

diversos sistemas corporais, em particular no cardiovascular e nervoso. Objetivando manter<br />

a homeostasia celular, diante do aumento das necessidades metabólicas, há incremento do<br />

débito cardíaco, redistribuição do fluxo e aumento da perfusão sanguínea para a<br />

musculatura em atividade.<br />

Sabe-se que exercícios físicos regulares, quando são adequadamente prescritos, e de<br />

baixa intensidade podem provocar alterações autonômicas importantes que influenciam o<br />

sistema cardiovascular. Entre estas, deve-se ressaltar a atenuação da hipertensão arterial<br />

tanto em humanos quanto em ratos espontaneamente hipertensos. A atividade física<br />

contribui para a melhora do controle barorreflexo e para a redução de aproximadamente 8 e<br />

11 mmHg das pressões arteriais sistólica e diastólica, respectivamente, em indivíduos<br />

hipertensos (Hagberg et al., 2000). Estudos mostram que a diminuição da pressão arterial<br />

deve-se à diminuição do débito cardíaco que está associado à diminuição da freqüência<br />

cardíaca pós-exercício (bradicardia de repouso) (Véras-Silva et al., 1997). Entretanto, alguns<br />

230


Neurofisiopatologia<br />

autores propõem que exercícios crônicos provocam queda na resistência vascular sistêmica<br />

e, consequentemente, redução da pressão arterial (Nelson et al.,1986). O treinamento físico<br />

normaliza o tônus simpático, que controla a freqüência cardíaca em ratos espontaneamente<br />

hipertensos (Gava et al.,1995) e diminui a atividade nervosa simpática em humanos, ou<br />

seja, estes resultados sugerem que a atividade física pode modular a atividade nervosa<br />

simpática para o coração e vasos periféricos explicando, em partes, a queda pressórica.<br />

Durante o exercício ocorrem modificações específicas da freqüência cardíaca, que<br />

constituem um mecanismo muito preciso de manutenção do suprimento do fluxo sanguíneo<br />

para o cérebro, coração, pele e músculos em atividade.<br />

Alguns neurotransmissores possuem importantes funções que garantem condições<br />

necessárias para a realização da atividade física. Entre estes estão a vasopressina e a<br />

ocitocina. A vasopressina e a ocitocina são produzidas em neurônios magnocelulares do<br />

núcleo paraventricular do hipotálamo, que envia e recebe projeções do núcleo do trato<br />

solitário. Ambos os núcleos são importantes centros de controle cardiovascular (Michelini e<br />

Morris, 1999).<br />

A vasopressina facilita a resposta taquicárdica durante a atividade física.<br />

Contraditoriamente, a ocitocina diminui a taquicardia e contribui para a bradicardia. Desta<br />

forma, estes neurotransmissores possuem efeitos específicos e opostos no controle da<br />

freqüência cardíaca. Este balanço entre o estímulo excitatório (vasopressinérgico) e<br />

inibitório (ocitocinérgico) provê a eficiência do ajuste fisiológico requerido<br />

momentaneamente, já que a taquicardia é necessária para suprir a maior demanda de fluxo<br />

sanguíneo e a maior taxa metabólica da musculatura em atividade durante o exercício físico.<br />

Assim, no núcleo do trato solitário de animais treinados, a vasopressina e a ocitocina atuam<br />

como moduladores da freqüência cardíaca durante a atividade física por potencializar ou<br />

moderar, respectivamente, a taquicardia (Michelini, 2001).<br />

É importante enfatizar que as vias vasopressinérgicas e ocitocinérgicas do tronco<br />

encefálico não são os únicos mecanismos centrais envolvidos na gênese da taquicardia.<br />

Assim, projeções descendentes vasopressinérgicas e ocitocinérgicas do núcleo<br />

paraventricular do hipotálamo para o núcleo do trato solitário são parte do mecanismo<br />

central de modulação do reflexo barorreceptor no controle da freqüência cardíaca durante o<br />

exercício e outras condições ambientais (Michelini, 2001).<br />

Podem ser observadas ainda outras alterações cardiovasculares decorrentes do<br />

treinamento físico, tais como a hipertrofia cardíaca. Exercícios aeróbicos, por meio do<br />

aumento de volume sanguíneo, podem estimular adaptações na morfologia cardíaca,<br />

metabolismo energético e funções. Estes podem produzir hipertrofia cardíaca excêntrica, na<br />

qual o aumento da massa ventricular é proporcional ao aumento da câmara cardíaca<br />

(Frohlic et al., 1992). Trata-se de uma resposta fisiológica e compensatória fundamental<br />

para suportar o aumento da carga de trabalho. Estas alterações estruturais, morfo-<br />

231


V Curso de Inverno<br />

funcionais e metabólicas do coração, induzidas pelo exercício, resultam em maior volume de<br />

ejeção sistólica (que se torna mais vigorosa) e em maior esvaziamento ventricular.<br />

Entretanto, a hipertrofia cardíaca pode se instalar em resposta a certos estados<br />

patológicos crônicos como e hipertensão arterial. Na hipertrofia concêntrica o aumento da<br />

massa ventricular não é proporcional ao aumento da câmara cardíaca. Desta forma, o<br />

trabalho cardíaco é feito contra uma excessiva resistência ao fluxo sanguíneo. O coração<br />

hipertrofiado pode falhar e tornar-se incapaz, em casos mais graves, de prover o fluxo<br />

sanguíneo normal para o indivíduo hipertenso.<br />

Vários são os fatores desencadeantes da hipertensão arterial. Entre eles, o excesso de<br />

peso, a alimentação rica em gordura e sal e pobre em frutas, verduras e legumes, o<br />

tabagismo, o alcoolismo e os fatores genéticos. Outros fatores importantes são os<br />

relacionados aos comportamentos e à capacidade de reação em diversas situações<br />

cotidianas. Assim, os comportamentos que atualmente acometem quase a totalidade das<br />

pessoas entre crianças e adultos, como o estresse e a ansiedade, podem desencadear ou<br />

acentuar o estado hipertensivo. A ansiedade, o estresse e a hiperatividade são acentuadas<br />

características comportamentais de ratos espontaneamente hipertensos. Desta forma,<br />

surgiu a necessidade de verificar as ações do exercício físico espontâneo (em rodas de<br />

corrida) sobre parâmetros fisiológicos cardiovasculares e sobre parâmetros<br />

comportamentais, na ânsia de analisar como o treinamento físico pode ajudar e colaborar<br />

para a melhora da qualidade de vida de animais e indivíduos acometidos pela hipertensão<br />

arterial. Interessantemente, foi observado em 2005 (Moraes, R.X. in dissertação de<br />

mestrado) que ratos espontaneamente hipertensos efetivamente treinados em rodas de<br />

corrida espontânea apresentam diminuição do medo/ansiedade, estresse e hiperatividade.<br />

Para este fim, neste mesmo estudo foi padronizado um protocolo de treinamento físico em<br />

rodas de corrida espontânea, um dado até então ausente na literatura, para que fosse<br />

possível verificar as ações do treinamento físico espontâneo sobre tais parâmetros.<br />

Como podemos observar, transtornos de ansiedade e depressão têm sido intimamente<br />

associados a alterações comportamentais e desde os primórdios, o estudo da<br />

psicopatologia experimental tem se ocupado deles através de modelos animais de tais<br />

patologias.<br />

Considera-se que a ansiedade e a depressão são exacerbações não adaptativas da<br />

reação de defesa (Graeff, 1994). A reação de defesa é o conjunto de diversas estratégias<br />

comportamentais selecionadas ao longo da evolução que amplia as possibilidades de<br />

sobrevivência em situação de perigo. Entre mamíferos, os padrões de resposta a estas<br />

situações são parecidos em sua topografia e aparentados em seus mecanismos fisiológicos<br />

de deflagração (Blanchard et al., 1993).<br />

A reação de defesa apresenta-se como uma seqüência de passos na qual a<br />

proximidade do estímulo aversivo ambiental determina variações topográficas e fisiológicas<br />

observáveis e que podem ser classificadas em três níveis, relacionados com substratos<br />

232


Neurofisiopatologia<br />

neurais diferenciados, que podem caracterizar as seguintes emoções: apreensão ou<br />

ansiedade generalizada no nível um, medo no nível dois e pânico no nível três (Blanchard e<br />

Blanchard, 1988). Estes níveis relacionam-se com quatro estratégias: imobilização<br />

(freezing), fuga, agressão defensiva ou submissão (Zangrossi Jr, 1996; Blanchard e<br />

Blanchard, 1988).<br />

O primeiro nível de defesa ocorre quando o perigo é incerto, como em situações de<br />

novidade do ambiente ou quando estímulos potencialmente perigosos ocorreram<br />

anteriormente no ambiente. Neste nível, o comportamento comum do animal é uma<br />

aproximação lenta, receosa e tímida do estímulo aversivo. No segundo nível de defesa, um<br />

estímulo aversivo e potencialmente danoso é identificado e está a uma distância crítica do<br />

animal. Entre os comportamentos observados inclui-se o congelamento, que é a inibição de<br />

comportamentos coerentes e a fuga ou esquiva do ambiente. O terceiro nível implica em<br />

contato estrito do animal com o estímulo aversivo. O principal comportamento observado<br />

neste nível é o de fuga desabalada ou agressão defensiva (Blanchard et al., 1986).<br />

A manutenção destes mecanismos básicos em praticamente todas as espécies de<br />

mamíferos indica o seu alto valor adaptativo. A expressão destes mecanismos, no entanto,<br />

pode ser moldada por situações ambientais diversas, tais como, fatores ligados ao<br />

desenvolvimento, familiaridade com o estímulo ou ainda por ações de variáveis fisiológicas,<br />

como níveis de hormônios ou drogas, lesões, fatores genéticos, etc. (Blanchard e Blanchard,<br />

1988). Isto dá a estes comportamentos a capacidade de serem extremamente plásticos,<br />

podendo ser modulados de acordo com situações vivenciadas pelos animais ou com<br />

estímulos como o treinamento físico, por exemplo.<br />

Para abordar experimentalmente aspectos que representem mecanismos ou sintomas<br />

ansiosos em animais de laboratório, que correspondam ao que é encontrado na ansiedade<br />

humana, foram desenvolvidos inúmeros modelos animais comportamentais. Estes modelos,<br />

geralmente, têm como objetivo enfocar aspectos comuns de ansiedade/medo e defesa<br />

encontrados em seres humanos e animais, tais como alteração na defecação e micção,<br />

reações de sobressalto, alterações na resposta de latência, piloereção, tremores, aumento<br />

da PA, entre outros (Wise e Taylor, 1990).<br />

Em animais de laboratório, o estado de ansiedade eliciado pelos modelos<br />

experimentais é avaliado com base nos mesmos parâmetros utilizados na avaliação da<br />

ansiedade humana, ou seja, na intensidade, duração, freqüência e/ou padrão das respostas<br />

defensivas.<br />

Entre os modelos animais de ansiedade mais utilizados estão o labirinto em cruz<br />

elevado e o labirinto em T elevado.<br />

O labirinto em T elevado, validado farmacologicamente por Graeff e colaboradores<br />

(1998), representa um derivado do labirinto em cruz elevado, que foi modificado a fim de<br />

testar simultaneamente o medo condicionado e incondicionado no mesmo aparelho (Graeff<br />

et al., 1993). Os resultados são obtidos separadamente em cada um dos braços do aparato.<br />

233


V Curso de Inverno<br />

Trata-se de um modelo etologicamente fundamentado, no qual o pressuposto teórico é<br />

a manipulação do medo incondicionado, ou seja, de medos inatos. Esses medos estão<br />

relacionados com a sobrevivência do indivíduo como, por exemplo, no confronto com o<br />

predador (Blanchard et al., 1986). É bem demonstrado que o fator motivacional crítico, no<br />

qual este modelo etológico se baseia é a natureza aversiva aos braços abertos (Zangrossi e<br />

Graeff, 1997).<br />

Este modelo experimental foi desenvolvido para investigar os efeitos de drogas<br />

ansiolíticas e analisar diferentes tipos de ansiedade e, ao mesmo tempo, verificar a memória<br />

(Viana et al.,1994). Também permite mensurar respostas relacionadas com medos<br />

condicionados ou inatos no mesmo animal, além de permitir simultânea verificação da<br />

memória para estes comportamentos (Conde et al.,1999).<br />

Com este teste é possível analisar a esquiva inibitória no braço fechado, que<br />

representa o medo condicionado, e a fuga, nos braços abertos, que representa o medo inato<br />

ou incondicionado. Colocar o animal várias vezes no braço fechado proporciona a<br />

exploração do labirinto e o aprendizado da esquiva inibitória dos braços abertos. Por outro<br />

lado, colocar o animal no final do braço aberto proporciona uma resposta de fuga para o<br />

braço fechado. A re-exposição dos animais a estas situações após um intervalo de tempo<br />

permite verificar a memória para estes comportamentos emocionais (Conde et al. 1999).<br />

Estudos em humanos e animais têm revelado alterações comportamentais e<br />

neuropsicológicas associadas aos exercícios físicos regulares. O treinamento físico melhora<br />

o humor e tem efeitos ansiolíticos e antidepressivos sobre as fobias e a depressão de<br />

pacientes (Simons e Birkimer, 1988; Dimeo et al., 2001). Estes resultados são de grande<br />

valia, sobretudo pelo fato de que a depressão e a ansiedade são desordens<br />

comportamentais que atingem a sociedade como um todo. Nos últimos anos, o avanço<br />

tecnológico, assim como as pressões sociais, políticas e econômicas, têm contribuído para o<br />

aumento de problemas mentais de ordem emocional. Em situações emocionais, o ser<br />

humano pode experimentar basicamente três emoções principais, em resposta a uma<br />

situação ameaçadora; raiva dirigida para fora (equivalente à cólera), raiva dirigida contra si<br />

mesmo (depressão) e ansiedade ou medo (McGauch et al., 1977). Encontrando-se em um<br />

estado de alerta, o organismo exibe uma resposta de luta ou fuga ao agente estressante.<br />

Ocorre que a prática de exercícios físicos aeróbios pode produzir efeitos antidepressivos,<br />

ansiolíticos e proteger o organismo dos efeitos deletérios do estresse na saúde física e<br />

mental (Salmon, 2001).<br />

Exercícios voluntários em rodas de corrida por quatro semanas alteraram o perfil<br />

comportamental de camundongos levando a uma diminuição da ansiedade e impulsividade<br />

de forma a proteger o organismo dos efeitos deletérios do estresse (Binder et al., 2004).<br />

Ainda sobre os aspectos psicobiológicos, a literatura relata forte correlação entre a<br />

melhora da capacidade aeróbia e a melhora das funções cognitivas, como melhor tempo de<br />

234


Neurofisiopatologia<br />

reação, maior força muscular, agilidade motora, melhora do humor e memória,<br />

especialmente em idosos (Williams e Lord, 1997).<br />

Por fim, o exercício físico crônico de intensidade baixa a moderada possui implicações<br />

clínicas importantes já que pode reduzir ou mesmo abolir a necessidade de uso de<br />

medicamentos anti-hipertensivos, diminuindo, desta forma, o custo do tratamento,<br />

extinguindo efeitos colaterais e, principalmente, promovendo melhora do quadro clínico de<br />

indivíduos hipertensos. Assim, pode ser tido como uma importante conduta não<br />

farmacológica no tratamento e controle da hipertensão arterial. Somam-se a estas<br />

descobertas o fato de que o treinamento físico colabora não só para a manutenção e<br />

conquista da saúde cardiovascular mas também para a saúde mental, já que atua<br />

beneficamente na redução de comportamentos maléficos e deletérios, que prejudicam os<br />

sistemas corporais e podem levar à graves patologias psicossomáticas. Finalmente, uma<br />

mudança na rotina diária para o desenvolvimento da prática de esportes, além de ser<br />

prazeroso e desestressante, colabora para a melhora na qualidade de vida bem como para<br />

a manutenção e ganho da saúde física e mental de indivíduos hipertensos e saudáveis.<br />

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Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />

236


Neurofisiopatologia<br />

Neurofisiologia do abuso de drogas<br />

Andreas Betz<br />

abetz79@yahoo.com.br<br />

Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial<br />

O que são drogas? Parece uma resposta fácil. Porém, para definir que substância é<br />

considerada droga, ela precisa ter pelo menos algumas características. Você pode dizer que<br />

é considerada droga a substância que altera a fisiologia de um organismo. Porém, só isso<br />

não basta, já que vitaminas, por exemplo, possuem esta propriedade. Pode-se dizer<br />

também que drogas são substâncias tóxicas, mas também esta definição não basta. A<br />

melhor maneira de definir uma substância como droga seria, portanto, a soma de algumas<br />

propriedades e também usar a intuição para taxar uma substância como tal.<br />

Todas drogas têm nomes químico, genérico e comercial. Como exemplo, irei usar uma<br />

droga tranqüilizante bem conhecida: o diazepam. Diazepam é o nome genérico do 7-cloro-1-<br />

metil-5-fenil-1,3-dihidro-2H-1,4-benzodiazepin-2-ona (nome químico) ou Valium® (nome<br />

comercial). A mesma droga pode ter alguns nomes comerciais, por causa da presença de<br />

várias empresas vendendo o mesmo produto.<br />

As drogas possuem várias vias de administração. Através da via oral, a droga é<br />

ingerida e absorvida pelo sistema digestório. Na via subcutânea, a droga é administrada sob<br />

a pele ou embaixo do tecido cutâneo. Na via intramuscular, a droga é administrada através<br />

da inserção de uma agulha no músculo esquelético, geralmente escolhidos como alvo o<br />

deltóide ou o glúteo máximo. Na via intraperitoneal, a droga é administrada através de uma<br />

agulha inserida na região abdominal onde se localizam os órgãos viscerais. Na via<br />

intravenosa, a droga é administrada através da veia do indivíduo, diretamente na corrente<br />

sanguínea. Ainda podemos citar a administração de drogas via inalação, onde a droga é<br />

absorvida diretamente pelos pulmões; injeções intracerebroventriculares, nas quais a droga<br />

é injetada diretamente nos ventrículos cerebrais e também injeções intracerebrais, na qual a<br />

droga é administrada diretamente em alguma área do cérebro.<br />

A maioria das drogas é metabolizada no fígado, podendo se transformar em<br />

subprodutos que podem ou não serem ativos. A maioria delas também é excretada pelo<br />

corpo através dos rins, fezes, suor e saliva.<br />

Quando uma droga é desenvolvida, ela passa por vários testes até ser aprovada para<br />

o consumo humano, se for considerada funcional e segura. Um método muito usado para<br />

verificar as propriedades terapêuticas das drogas é a utilização de animais experimentais e<br />

vários protocolos diferenciados. Através destes protocolos pode-se verificar, por exemplo,<br />

alterações no comportamento e em estruturas cerebrais que podem levar a um<br />

entendimento maior sobre a substância a ser analisada.<br />

As drogas podem gerar estados de tolerância, sensibilização e abstinência. A<br />

tolerância é um fenômeno que ocorre através da administração, que faz com que o indivíduo<br />

necessite de maior quantidade de substância para conseguir o efeito esperado da droga.<br />

237


V Curso de Inverno<br />

Ainda não se sabe qual o mecanismo responsável por este fenômeno, porém, sabe-se que<br />

após a descontinuidade do uso, a tolerância desaparece.<br />

A sensibilização é uma situação na qual a repetida administração da droga leva a um<br />

aumento nos efeitos dela, ou seja, uma ação inversa à descrita na tolerância. Sua<br />

ocorrência não é muito comum. Como na tolerância, a sensibilização desaparece após a<br />

descontinuidade do uso.<br />

A abstinência se dá através da descontinuidade ou diminuição do uso de drogas que<br />

levam à mudanças na fisiologia do indivíduo. Ela pode ocorrer alguns minutos depois da<br />

última administração da droga ou após algum tempo sem a utilização da mesma. Um dos<br />

mais conhecidos sintomas da abstinência é a “ressaca”.<br />

Como as drogas psicotrópicas agem? Estas drogas atuam principalmente na<br />

neurotransmissão encefálica. Elas alteram e modulam a comunicação entre os neurônios,<br />

através de interações com os neurotransmissores e seus receptores. Neurotransmissores<br />

são substâncias como monoaminas e peptídeos, entre outros, que são os responsáveis pela<br />

comunicação entre as células do sistema nervoso. A maioria dos neurotransmissores se<br />

encontra em vesículas sinápticas, presentes em terminais axônicos, próximos da fenda<br />

sináptica (Tabela 5.1).<br />

Tabela 5.1 – Alguns neurotransmissores do Sistema Nervoso Central<br />

Acetilcolina<br />

Monoaminas<br />

Adrenalina<br />

Noradrenalina<br />

Dopamina<br />

Serotonina<br />

Histamina<br />

Aminoácidos<br />

Glicina<br />

Glutamato<br />

Prolina<br />

Ácido gama-aminobutírico (GABA)<br />

As drogas podem atuar de várias maneiras agindo, por exemplo, como agonistas de<br />

neurotransmissores, mimetizando a ação de neurotransmissores endógenos (nicotina);<br />

238


Neurofisiopatologia<br />

inibindo a recaptação de neurotransmissores, ou seja, fazendo com quem eles permaneçam<br />

por mais tempo nas fendas sinápticas (cocaína); bloqueando receptores e, inibindo a<br />

recaptação da serotonina, que permanece maior tempo na fenda (Prozac) entre outras<br />

formas.<br />

A maioria das drogas causa o vício. O vício é uma síndrome comportamental na qual a<br />

procura pela droga e o seu uso dominam o comportamento do indivíduo. A droga de abuso<br />

(droga usada sem fim terapêutico) possui um grande poder motivacional, pelo prazer e<br />

euforia que pode proporcionar, porém suas conseqüências podem ser danosas aos seus<br />

usuários e familiares.<br />

A principal via relacionada com o vício de drogas é a mesolímbica de reforço. Ela é<br />

composta por dois núcleos principais: a área tegmental ventral e o nucleus accumbens. A<br />

área tegmental ventral possui neurônios dopaminérgicos que se projetam para o nucleus<br />

accumbens, liberando dopamina neste núcleo, o que inicia o processo de adição (Figura<br />

5.1).<br />

Figura 5.1: Via mesocorticolímbica de reforço. Fonte: www.humanillnesses.com/.../<br />

Addiction.html<br />

Após a ativação deste sistema, há a interação de vários outros núcleos encefálicos<br />

que vão interpretar e modular uma resposta ao estímulo apresentado. Entre os principais<br />

núcleos, destacam-se a amígdala (relacionada com aprendizado associativo) e o córtex préfrontal<br />

(relacionado com o comportamento motivacional). A interação destes núcleos leva ao<br />

comportamento de busca e abuso de drogas.<br />

Há uma gama enorme de drogas que são utilizadas tanto para abuso quanto para fins<br />

terapêuticos e, muitas vezes, a diferença entre um e outro se deve apenas à quantidade da<br />

droga ingerida.<br />

239


V Curso de Inverno<br />

Estimulantes Psicomotores<br />

Os estimulantes psicomotores são drogas que agem principalmente sobre sinapses<br />

adrenérgicas, noradrenérgicas, dopaminérgicas e serotoninérgicas. Entre eles, os mais<br />

conhecidos são: metilfenidato (Ritalina®), cocaína, anfetamina, metanfetamina e efedrina<br />

(Franol®). Cocaína e efedrina são encontradas na natureza, enquanto o metilfenidato é<br />

sintetizado em laboratório.<br />

Estas drogas são administradas via injeção intravenosa e intramuscular, inalação ou<br />

via oral. Elas atravessam rapidamente a barreira hemato-encefálica alterando a<br />

neurotransmissão do indivíduo. A anfetamina, a metanfetamina e a efedrina atuam inibindo a<br />

recaptação de dopamina pelos neurônios e também aumentando a liberação de<br />

neurotransmissores. A cocaína atua somente inibindo a recaptação de dopamina pelos<br />

neurônios. Elas são muitas vezes consumidas com outras drogas, o que leva a um aumento<br />

do seu efeito prazeroso.<br />

As drogas estimulantes causam sensação de bem-estar e excitação, e levam à<br />

mudanças fisiológicas como vaso e broncodilatação, taquicardia, insônia, irritabilidade,<br />

perda de apetite, agressividade, psicose, entre outros sintomas. Elas podem desencadear<br />

diversos mecanismos fisiológicos como o surgimento de arritmias e convulsões, além de<br />

poder levar à morte por depressão de núcleos respiratórios centrais e parada cardiorespiratória.<br />

Álcool<br />

O álcool é uma das drogas mais usadas no mundo. Foram encontradas evidências de<br />

sua fabricação na China há mais ou menos 9.000 anos (McGovern et. al., 2004). O álcool é<br />

produzido por fermentação ou destilação, sendo que as bebidas destiladas possuem maior<br />

teor alcoólico (em torno de 40%). Ele é administrado oralmente e sua absorção é feita<br />

através do sistema digestório. A maioria das moléculas de álcool é metabolizada no fígado e<br />

o restante é eliminado pelo organismo junto com o suor, urina e fezes, entre outros.<br />

O álcool altera vários sistemas de neurotransmissão como o serotoninérgico (receptor<br />

5-HT3), GABAérgico, glutamatérgico e opióide (Froehlich & Li, 1993).<br />

Alguns efeitos do álcool são: vasodilatação periférica, euforia, desinibição, diurese e<br />

letargia; atua como sedativo, levando indivíduos a terem mais sono (porém diminui o tempo<br />

de sono REM), altera a visão e o tempo de reação, além de também causar perda de<br />

memória.<br />

Opióides<br />

São drogas derivadas da papoula. Possui dois ingredientes ativos: a morfina e a<br />

codeína. A heroína é uma droga derivada da morfina e tem capacidade de chegar ao<br />

cérebro mais rápido e em maior concentração do que a morfina. Hoje em dia existe uma<br />

240


Neurofisiopatologia<br />

enorme quantidade de opióides sintéticos, geralmente utilizados por hospitais, como<br />

potentes anestésicos.<br />

A heroína foi produzida pela primeira vez em 1898. Após a sua administração, que<br />

pode ser nasal, intravenosa e por vapor de fumaça (broncoaspiração), atua no cérebro,<br />

principalmente em áreas relacionadas com a dor e necessidades básicas do indivíduo,<br />

agindo em receptores opióides, que se ligam normalmente à endorfinas e encefalinas.<br />

Os opióides causam sensação de bem estar, acompanhada de vários efeitos colaterais<br />

como náusea, vômito, constipação, alterações na visão e audição, alucinações, além de<br />

deprimir núcleos bulbares responsáveis pelo controle respiratório e cardíaco, podendo levar<br />

o individuo a morte.<br />

Nicotina<br />

A nicotina é um alcalóide encontrado nas folhas de tabaco e é um dos maiores<br />

responsáveis por mortes de causas não naturais em todo o mundo.<br />

Ela causa aumento da pressão arterial, da frequência cardíaca, da atividade motora,<br />

vasoconstrição, náusea, diminuição do apetite, entre outros sintomas (McBride et. al., 1998).<br />

A nicotina atua como agonista de receptores nicotínicos de acetilcolina, alterando a<br />

maquinaria cerebral. Ela atravessa a barreira hemato-encefálica e chega ao cérebro em<br />

torno de dez segundos após sua administração. Uma única exposição à nicotina aumenta a<br />

liberação de dopamina no nucleus accumbens por mais de uma hora (DiChiara & Imperato,<br />

1998) através da estimulação, via receptores nicotínicos de acetilcolina, de neurônios<br />

dopaminérgicos da área tegmental ventral (circuito de recompensa).<br />

Esta droga também causa alterações na concentração, memória e humor.<br />

A nicotina pode causar aterosclerose, câncer de pulmão, boca e garganta, entre outros<br />

sintomas que, normalmente, só aparecem após longo período de uso.<br />

Maconha<br />

A maconha é utilizada há muito tempo (em torno de 6.000 anos). O ingrediente ativo<br />

da maconha é o delta-9-tetrahidrocanabinol. Ela é encontrada em três espécies de plantas:<br />

Cannabis sativa, Cannabis indiana e Cannabis ruderalis (Grinspoon & Bakalar, 1997).<br />

A maconha pode ser administrada oralmente (o que resulta em um efeito mais lento)<br />

ou fumada (que causa um efeito rápido). Ela age no sistema canabinóide cerebral, que<br />

responde pelos canabinóides endógenos anandamida e 2-araquidonilglicerol. Porém é muito<br />

mais potente que os canabinóides endógenos.<br />

A maconha causa euforia, alteração na sensibilidade auditiva, visual e tátil (R. T.<br />

Jones, 1978), perda da percepção de tempo e alteração na criatividade. Seus efeitos<br />

adversos podem ser: olhos vermelhos, boca seca, fome, aumento da freqüência cardíaca e<br />

temperatura corporal, náusea, insônia e dores de cabeça, déficit de atenção e até reações<br />

psicóticas.<br />

241


V Curso de Inverno<br />

Contudo, pode ter efeitos terapêuticos em casos clínicos como glaucoma (Grinspoon &<br />

Bakalar, 1997) bem como em problemas motores e espasticidade (Braude & Szara, 1979,<br />

vol 2).<br />

Alucinógenos<br />

Os mais conhecidos membros deste grupo de drogas são o LSD (dietilamida do ácido<br />

lisérgico), a mescalina (derivada de cactos) e o ecstasy. Estas drogas agem no sistema<br />

nervoso central, na neurotransmissão serotoninérgica e dopaminérgica. Elas podem ser<br />

administradas por via oral, sublingual, injetadas ou inaladas, e praticamente não produzem<br />

efeitos físicos.<br />

O LSD geralmente é consumido na dose de 100 a 300µg. Cerca de 1% da dose chega<br />

ao cérebro. É degradado pelo fígado e eliminado pelas fezes. Os efeitos variam bastante,<br />

podendo provocar ilusões, alucinações, grande sensibilidade sensorial (cores mais<br />

brilhantes, percepção de sons imperceptíveis), “flashbacks”, paranóia, alteração da noção<br />

temporal e espacial, confusão, sentimento de bem-estar, experiências de êxtase, psicose<br />

por “má viagem” entre outros.<br />

Estas drogas possuem uma grande tolerância quando administradas repetidamente.<br />

Porém, não apresentam abstinência, já que raramente são administradas por muito tempo.<br />

Drogas psicoterápicas<br />

Entre as drogas psicoterápicas, há três grupos principais: os tranqüilizantes-sedativos,<br />

os antidepressivos e os antipsicóticos.<br />

Tranqüilizantes-sedativos: existem dois grupos principais – os barbitúricos e os<br />

benzodiazepínicos. Os barbitúricos foram as primeiras drogas tranqüilizantes desenvolvidas,<br />

porém, apresentavam alguns efeitos não desejáveis e tinham uma potente ação depressora<br />

em núcleos bulbares que, com uma dose mais elevada, poderia levar o individuo à morte.<br />

Com o desenvolvimento dos benzodiazepínicos, os barbitúricos foram praticamente<br />

deixados de lado. Os benzodiazepínicos mais conhecidos são o diazepam (Valium®),<br />

clonazepam (Rivotril®) e um de grande interesse é o flunitrazepam (Rohypnol® ou “boa<br />

noite Cinderela”) por seu uso não medicinal.<br />

Estas drogas agem no sistema nervoso central potencializando as sinapses<br />

GABAérgicas, ou seja, inibindo a comunicação do sistema nervoso podendo também, em<br />

alguns casos, alterar a recaptação de adenosina, outro receptor inibitório. Seus efeitos<br />

incluem diminuição da atenção, perda de memória e de habilidades motoras em geral.<br />

Antidepressivos: existem vários tipos de antidepressivos. Entre eles destacam-se os<br />

inibidores de monoamina-oxidase (MAOis), os tricíclicos (ATCs), os inibidores de recaptação<br />

de serotonina (SSRIs) e os inibidores de recaptação de noradrenalina (SNRIs). Todos eles<br />

agem de acordo com a teoria de depressão das monoaminas, na qual a depressão seria o<br />

resultado de uma menor ativação dos sistemas monoaminérgicos no cérebro. Entre esses<br />

242


Neurofisiopatologia<br />

vários tipos, os mais conhecidos e difundidos no mercado são a sertralina (Zoloft®) e a<br />

fluoxetina (Prozac®). Além destes, o lítio é usado no tratamento de transtornos bipolares. A<br />

fluoxetina pode também ser usada em tratamento de personalidade obsessivo-compulsiva<br />

(Gitlin, 1993).<br />

A taxa de absorção destas drogas varia bastante e a maior parte delas é degradada<br />

pelo fígado.<br />

Os efeitos reportados mais comuns do uso de antidepressivos são: boca seca,<br />

constipação, tontura, arritmia cardíaca, náusea, dor de cabeça, redução do sono REM e<br />

suor excessivo. Alguns pacientes reportaram sintomas extrapiramidais.<br />

Alguns SSRIs parecem ser eficientes no tratamento do vício em outras drogas,<br />

inclusive o alcoolismo.<br />

Antipsicóticos: existem várias hipóteses sobre a psicose, porém, a mais aceita é a<br />

dopaminérgica, a qual preconiza que a esquizofrenia é o resultado do excesso da atividade<br />

da dopamina no cérebro.<br />

Os antipsicóticos são drogas chamadas, às vezes, de grandes tranqüilizantes. Existem<br />

dois grupos de antipsicóticos – os típicos (ex: chlorpromazina; haloperidol), que atuam<br />

bloqueando os receptores D2 de dopamina e os atípicos (ex: clozapina; risperidona;<br />

quetiapina), que atuam bloqueando os receptores D3 e D4 de dopamina além do receptor 5-<br />

HT2A de serotonina.<br />

A esquizofrenia (transtorno psicótico) é caracterizada pela falta de contato com a<br />

realidade. A pessoa parece ficar em um mundo à parte, não consegue interpretar eventos, e<br />

é acometida por alucinações.<br />

Os efeitos dos antipsicóticos variam muito. Entre eles podemos citar os sintomas da<br />

doença de Parkinson (efeitos extrapiramidais) causados em 40% dos pacientes que usam<br />

medicamentos típicos, os movimentos constantes compulsivos (acatisia) e os distúrbios de<br />

movimento (discinesia); além de alterações na frequência cardíaca, pressão arterial e<br />

possíveis ataques epiléticos, entre outros. A clozapina está relacionada com uma doença<br />

fatal chamada agranulocitose. Porém, os antipsicóticos não são drogas letais, sendo<br />

praticamente impossível obter uma overdose.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Braude MC, Szara, S. Pharmacology of marijuana (2 vols.). Orlando: Academic press, 1976.<br />

Di Chiara G, Imperato A. Drugs abused by humans preferentially increase synaptic dopamine<br />

concentrations in the mesolimbic system of freely moving rats. Proc Natl Acad Sci U S A. 1988<br />

Jul;85(14):5274-8.<br />

Gitlin MJ. Pharmacotherapy of personality disorders: conceptual framework and clinical strategies.<br />

J Clin Psychopharmacol. 1993 Oct;13(5):343-53. Review.<br />

Graeff FG, Guimarães FS. Fundamentos de psicofarmacologia, Atheneu, 2000.<br />

243


V Curso de Inverno<br />

Grinspoon L, Bakalar JB. Marijuana, the forbidden medicine. (Rev. and Exp. Ed.) New Haven , C T :<br />

Yale University Press, 1997.<br />

Hardman JG, Limbind LE. The pharmacological basis of therapeutics, 11 th Edition, New York: McGraw<br />

Hill, 2005.<br />

Jones RT. Marijuana: human effects. In L. L. Iverson, S. D. Iverson & S. H. Snyder (Eds), Handbook of<br />

psychopharmacology (Vol. 12), pp. 373-412. New York: Plenum Press, 1978.<br />

McBride JS, Altman DG, Klein M, White W. Green tobacco sickness. Tob Control. 1998 Autumn; 7(3):<br />

294-8. Review.<br />

McGovern PE, Zhang J, Tang J, Zhang Z, Hall GR, Moreau RA, Nunez A, Butrym ED, Richards M P,<br />

Wang CS, Cheng G, Zhao Z, Wang C. Fermented beverages of pre- and proto-historic China.<br />

Proc Natl Acad Sci U S A. 2004 Dec 21;101(51):17593-8. Epub 2004 Dec 8.<br />

Froehlich JC, Li TK. Recent developments in alcoholism: opioid peptides. Recent Dev Alcohol. 1993;<br />

11:187-205. Review.<br />

McKim W. Drugs and Behavior: An Introduction to Behavioral Pharmacology (6th Edition), New<br />

Jersey: Prentice Hall, 2006.<br />

Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />

244


Neurofisiopatologia<br />

Fisiologia aplicada a reabilitação de doenças<br />

neurodegenerativas<br />

Fernanda Beatriz Monteiro Paes Gouvêa<br />

beemonteiropaes@hotmail.com<br />

Laboratório de Neurotransmissão e Modulação Neural da Pressão Arterial;<br />

Leandro Cortoni Calia<br />

Faculdade de Medicina da Universidade de Santo Amaro.<br />

6.1. Envelhecimento e morte do Sistema Nervoso<br />

O processo evolutivo (desenvolvimento, amadurecimento e envelhecimento) é<br />

caracterizado por modificações permanentes, desde a fecundação do óvulo até a morte.<br />

Estas modificações podem ser morfológicas, fisiológicas ou de conduta e são diferentes em<br />

cada um dos estágios da vida.<br />

O processo de envelhecimento, apesar de ter características comuns nos seres<br />

humanos, pode variar de acordo com interferências ambientais, como condições de vida,<br />

higiene, alimentação e índice de mortalidade de uma determinada população.<br />

Em muitos países, legalmente, a idade considerada como início da velhice é de 65<br />

anos.<br />

Além das mudanças físicas (pele, cabelos, dimensões corpóreas), ocorrem<br />

modificações mentais. Estas mudanças são mais subjetivas e, portanto, mais difíceis de<br />

avaliar. Ocorre redução da função sexual (climatério), diminuição da tolerância glicídica, das<br />

funções renal e respiratória, diminuição do índice cardíaco, força muscular e da velocidade<br />

de condução neuronal, além de diminuição da acuidade sensorial (visual, auditiva, gustativa,<br />

olfativa), redução na capacidade isoimunitária e aumento da reação auto-imunitária. Cresce<br />

a vulnerabilidade ao estresse, injúrias e doenças em geral. Nos últimos anos, as melhoras<br />

no sistema sanitário, higiene, alimentação, qualidade da medicina e ambientação social<br />

contribuíram para o declínio desta vulnerabilidade. Contudo, ainda existem diferenças<br />

acentuadas entre populações, o que denota tanto a desigualdade de acesso aos recursos<br />

modernos quanto a provável existência de fatores genéticos no envelhecimento, que<br />

diferenciam populações (Andrade et al, 2004; Cambier e Dehen, 1988; Greve e Amatuzzi,<br />

1999; Leonard, 2006).<br />

Os processos de desenvolvimento são identificados pela capacidade adaptativa do<br />

organismo. O envelhecimento é caracterizado por respostas adaptativas insuficientes ou<br />

inadequadas. Ocorrem diminuições da massa protéica, do tecido orgânico de ossos e<br />

vísceras, ocorre rigidez de certos tecidos, como o das artérias, do cristalino e da pele;<br />

surgem pontos de hiperpigmentação na pele, vísceras e Sistema Nervoso, devido ao<br />

acúmulo de lipofuscina. Gorduras são acumuladas e há redução de massa mineral. Os<br />

processos mitóticos ficam reduzidos e há declínio do metabolismo basal, no conteúdo de<br />

245


V Curso de Inverno<br />

água celular, débito cardíaco e capacidade vital pulmonar (Nitrini e Bacheschi, 2003;<br />

Oliveira, 2003).<br />

O envelhecimento é um fenômeno multifatorial. Somam-se ao fator genético, o<br />

aparecimento de mutações aleatórias do DNA de células somáticas - que são acumulativas<br />

– alterações imunológicas, o entrecruzamento molecular e a formação de radicais livres.<br />

Durante o envelhecimento, ocorrem modificações fisicoquímicas entre moléculas, que<br />

ficam maiores, mais complexas e com digestibilidade reduzida, entre outras, o que torna o<br />

tecido rígido. A permeabilidade e o fluxo de substâncias ficam alterados, assim como fica<br />

reduzida a integridade celular. A formação de radicais livres de oxigênio e de peróxidos<br />

lipídicos origina aldeídos, causadores de ligações entrecruzadas entre macromoléculas,<br />

gerando estas modificações. No indivíduo idoso, há maior formação de radicais livres, que<br />

induzem a formação de mais ligações entrecruzadas (Douglas, 2000; Cistemas, 2003).<br />

O processo de envelhecimento ocorre por insuficiência genética, metabólica, hormonal<br />

e imunológica, como manifestação progressiva das alterações de função e estrutura, que<br />

culminam na diminuição da capacidade de reagir às agressões.<br />

Estas modificações podem ser determinadas por alterações genéticas na codificação<br />

de proteínas que corrigem mutações sutis ou mesmo alterações na expressão do material<br />

genético. Agentes como raios ultravioleta, substâncias químicas e alguns tóxicos podem<br />

desencadear mutações. Os mecanismos exatos de envelhecimento celular são pouco<br />

conhecidos.<br />

O Sistema Nervoso envelhece lentamente após a maturidade, e termina na morte da<br />

pessoa e de seu cérebro. As causas do envelhecimento ainda não foram completamente<br />

esclarecidas.<br />

O cérebro de um idoso é menor e mais leve, com alguns giros mais finos, separados<br />

por sulcos mais profundos. As cavidades são mais abertas e o córtex, portanto, menos<br />

espesso. São sinais de atrofia que podem ser observados com técnicas de imagem, como a<br />

tomografia computadorizada e a ressonância magnética. Ao ser observado no microscópio,<br />

o espaço extracelular possui depósitos de fragmentos de neurônios – as chamadas placas<br />

senis. Muitos neurônios possuem novelos de neurofibrilas no citoplasma. O número de<br />

neurônios diminui, assim como o número de sinapses e de substâncias químicas produzidas<br />

(principalmente enzimas que sintetizam e degradam neurotransmissores). Surgem proteínas<br />

anômalas nas placas senis; a principal é a ß-amilóide. Ocorrem modificações como lapsos<br />

de memória, diminuição da velocidade de raciocínio, confusões passageiras, dificuldade de<br />

locomoção, falta de equilíbrio, tremor distal, insônia noturna e sonolência diurna (Cambier e<br />

Dehen, 1988; Douglas, 2000; Oliveira, 2003).<br />

A velhice leva à deficiência no controle genético de produção de proteínas estruturais,<br />

enzimas e fatores tróficos, que repercute na função das células nervosas, dificultando a<br />

gênese, condução e a transmissão de impulsos nervosos. As células se degeneram,<br />

rompem e liberam detritos que se acumulam em placas senis; com o aumento das células<br />

246


Neurofisiopatologia<br />

anormais e a diminuição das normais; as neuroglias (sistema imunológico) são incapazes de<br />

remover os detritos, aumentando a quantidade destas placas. A principal degeneração é dos<br />

mecanismos de memória, neurônios e circuitos colinérgicos; porém, ocorrem também<br />

alterações circulatórias, respiratórias, digestivas, etc. que contribuem para a perda de<br />

função generalizada do organismo e acabam por levá-lo à morte.<br />

Em alguns indivíduos, observa-se a ocorrência de um comprometimento cognitivo<br />

progressivo, acompanhado do ponto de vista histopatológico por alterações degenerativas<br />

das proteínas fibrilares, que se acumulam de maneira desorganizada no citoplasma,<br />

caracterizando o quadro de Doença de Alzheimer.<br />

6.2. Degeneração<br />

A mielina é de fundamental importância para a condução do impulso no Sistema<br />

Nervoso. A resistência ao potencial de ação aumenta em áreas desmielinizadas, e o sinal<br />

pode lentificar ou nem mesmo chegar ao local destinado.<br />

A desmielinização do Sistema Nervoso Central envolve danos à bainha de mielina no<br />

cérebro e medula espinal.<br />

Diferentemente de muitos outros tecidos, o Sistema Nervoso tem capacidade limitada<br />

de reparação após ter sido lesado. Neurônios adultos não conseguem se reproduzir e, cada<br />

neurônio que morre representa um neurônio a menos que teremos para “se conectar”.<br />

Porém, as células-tronco neurais existem tanto no Sistema Nervoso adulto quanto em<br />

encéfalos ainda em desenvolvimento. São células indiferenciadas, precursoras de neurônios<br />

e glias. Por maturação e diferenciação, podem dar origem a vários tipos diferentes de<br />

células do Sistema Nervoso Central. Suas características incluem a capacidade de autorenovação,<br />

de diferenciação em muitos tipos de neurônios e células gliais, além da<br />

capacidade de povoar regiões do Sistema Nervoso central em desenvolvimento e em<br />

degeneração.<br />

Em encéfalos de mamíferos adultos, existem locais de divisão celular de alta<br />

densidade, possivelmente locais de células-tronco. Estas células são sensíveis ao ambiente,<br />

o que lhes confere capacidade de se diferenciarem de acordo com a célula do local em que<br />

se encontram. Além disso, sua proliferação responde ao estímulo de fatores de crescimento.<br />

Ainda não se conhece exatamente a função das células-tronco em encéfalos adultos.<br />

Contudo, seu papel em implantes cerebrais tem sido motivo para entusiasmo de<br />

pesquisadores: as células-tronco, quando implantadas, sobrevivem e até mesmo se<br />

proliferam, mesmo no Sistema Nervoso, e fazem conexão com neurônios pré-existentes.<br />

Em todos os indivíduos ocorre uma lenta lesão cumulativa desencadeada por<br />

subprodutos tóxicos do metabolismo celular, que provavelmente contribui para a morte<br />

neuronal ao longo da vida. Essa perda de neurônios pode não ser impedida.<br />

247


V Curso de Inverno<br />

6.3. Genética molecular<br />

Os humanos têm de 30 a 70 mil genes, distribuídos em 23 pares de cromossomos (22<br />

autossômicos e um par de cromossomos sexuais). Para cada gene, temos um alelo em<br />

cada cromossomo. A molécula de DNA é usada como padrão para a replicação de cópias<br />

adicionais durante a divisão celular, pela ligação de nucleotídeos livres com as bases<br />

complementares da cadeia aberta de DNA, unidos pela enzima DNA-polimerase numa nova<br />

dupla-hélice de DNA. Pequenas secções da molécula de DNA são usadas como padrão<br />

para a síntese de RNA mensageiro, responsável pelo transporte de mensagens para síntese<br />

de proteínas específicas. O RNAm é bem mais curto que a molécula de DNA e possui uma<br />

cadeia simples (enquanto o DNA é duplo).<br />

A conversão da informação codificada do DNA depende do código genético.<br />

Seqüências de três nucleotídeos formam códons que, por sua vez, representam<br />

aminoácidos que compõem a molécula de proteína. Vários aminoácidos podem ser<br />

codificados por mais de um códon. Além disso, existem três stop códons, que encerram<br />

transferências de informação (Bear et al, 2002; Lent, 2001; Kandel et al, 2003).<br />

Embora todas as células possuam o mesmo conjunto de genes, algumas células têm<br />

genes especializados que codificam proteínas específicas para a síntese de transmissores<br />

específicos, sob coordenação de proteínas reguladoras chamadas fatores de transcrição.<br />

O controle da manifestação de enzimas responsáveis pelos sistemas<br />

neurotransmissores é feito pelos fatores que operam durante o desenvolvimento<br />

embrionário e pelo grau de atividade neuronal. Quanto mais ativo é o sistema nervoso,<br />

maior a síntese de neurotransmissores importantes para o comportamento do organismo.<br />

Algumas doenças são causadas por um único gene. Assim, se uma pessoa herda dois<br />

alelos doentes, desenvolve a doença. Outras doenças são poligênicas: genes múltiplos<br />

trabalham juntos para transmitir o risco de um transtorno, sendo este maior quanto maior for<br />

a quantidade de alelos doentes num indivíduo. Além do mais, a genética pode interagir com<br />

fatores ambientais e complicar o quadro.<br />

A hereditariedade é uma medida de quanto a variância de um traço pode ser atribuído<br />

à genética. Quando a hereditariedade para um traço é alta, a quantidade de variância no<br />

traço é determinada pela genética. Contudo, a hereditariedade não diz nada a respeito do<br />

ponto no qual cairá a média da população, como também não impede os efeitos do<br />

ambiente. Em humanos, é calculada a partir do estudo de gêmeos e pode ir de 0 a 1,0.<br />

Quando não há efeito da genética na variância, dizemos que ela é 0; quando a genética<br />

comanda toda a variância, dizemos que é 1,0.<br />

Graças aos avanços na genética molecular, hoje é possível identificar prováveis genes<br />

ou regiões de cromossomos responsáveis por determinadas doenças.<br />

Cromossomos são longos filamentos de DNA, feitos de quatro bases: timina, guanina,<br />

adenina e citosina. Cada timina tem uma adenina complementar e cada guanina, uma<br />

citosina. Entre os genes, existem trechos de DNA sem sentido, que nunca são transcritos<br />

248


Neurofisiopatologia<br />

em RNAm nem traduzidos em proteínas. Mutações nesses trechos parecem não ter efeito<br />

nas funções humanas. Assim, ao longo das gerações, desenvolvemos inúmeras mutações<br />

nesses trechos, ao ponto de termos um DNA único. Essa é a base da impressão digital de<br />

DNA: uma área única é chamada de “marcador”, e podem ter seqüências muito diferentes<br />

entre os indivíduos.<br />

Os principais estudos de genética molecular são os de associação e os de ligação. Os<br />

estudos de associação são feitos entre pessoas que têm e que não têm uma determinada<br />

doença, e que não possuem vínculo familiar (consangüineidade). É usado para saber se o<br />

DNA na região do gene transportador é diferente entre essas pessoas, se há polimorfismos<br />

nos acometidos que não ocorrem nos indivíduos sadios. Enzimas específicas “cortam” o<br />

DNA em determinadas seqüências de bases, e este é posteriormente colocado em gel e<br />

exposto a um campo elétrico. Os fragmentos mais curtos se deslocarão mais no gel que os<br />

mais compridos. Assim, examinam-se os padrões do gel dos dois tipos de indivíduos, para<br />

ver se existem polimorfismos diferentes.<br />

Na maioria das vezes, não se sabe exatamente onde está o gene de interesse, apenas<br />

que os polimorfismos em um marcador particular são diferentes nos dois grupos; ou não se<br />

sabe quais genes estão ao redor do marcador ou, ainda, podem-se saber quais genes estão<br />

em volta do marcador, mas não é possível identificar qual deles é o responsável pela<br />

modificação. A possibilidade de erro aleatório em estudos de associação é alta, e os estudos<br />

requerem muitas replicações antes que possam ser aceitos.<br />

Os estudos de ligação envolvem descendência e duas ou mais características<br />

associadas, para localizar os genes de interesse. Geralmente são usados marcadores cuja<br />

localização já é conhecida, pois poucos traços humanos podem ser usados em estudos de<br />

ligação. Além desta dificuldade, o estudo de ligação requer acesso não só ao indivíduo<br />

acometido, mas aos membros de sua família, preferivelmente por várias gerações, o que<br />

também não é fácil.<br />

Uma das mais importantes áreas da genética molecular envolve as chamadas<br />

seqüências regulatórias, seqüências específicas de bases que circundam genes e que são<br />

ativadas ou desativadas por fatores específicos de transcrição.<br />

Com a clonagem molecular, inúmeros novos receptores foram descobertos. É possível<br />

determinar e distribuir regionalmente a localização celular do RNAm de receptores, com<br />

grande especificidade, o que possibilita relacionar o local de transcrição dos receptores e<br />

seus sítios de ligação funcionais.<br />

O estudo da interação entre alterações gênicas e efeitos de fármacos também tem<br />

despertado interesse. Já se reconhece que a resposta do Sistema Nervoso a determinadas<br />

drogas pode decorrer da modificação da expressão gênica.<br />

Técnicas de biologia molecular são freqüentemente empregadas na investigação de<br />

sistemas neurais modificados por drogas. Os processos histoquímicos são usados para<br />

identificar componentes químicos de células e tecidos, utilizando corantes, tinturas e outras<br />

249


V Curso de Inverno<br />

substâncias químicas, que se ligam ou reagem com cortes de tecido, possibilitando<br />

visualizar a reação. São corados citoplasma e outras estruturas celulares, geralmente em<br />

função do pH. Pode-se estudar também a estrutura e a organização cerebral por reações<br />

químicas realizadas por neurônios. A fluorescência utiliza a propriedade de formar produtos<br />

de condensação fluorescentes em presença de formaldeído, característica das aminas<br />

primárias (como dopamina, noradrenalina, serotonina e histamina).<br />

A citoquímica estuda a localização, as relações estruturais e as interações dos<br />

conteúdos celulares através de microscopia eletrônica, fracionamento celular e técnicas<br />

imunoquímicas. Atualmente é possível extrair partes homogêneas de proteínas e de RNAm<br />

de receptores para neuropeptídeos, assim como enzimas de síntese e degradação de<br />

neurotransmissores de tecidos, o que permite clonar, seqüenciar e expressar genes para<br />

diferentes neurotransmissores e receptores.<br />

6.4. Doença de Parkinson<br />

A doença de Parkinson é a forma mais comum de parkinsonismo, que possui diversas<br />

etiologias, inclusive o uso de fármacos (Bear et al, 2002; Douglas, 2000; Oliveira, 2003;<br />

Pliszka, 2004).<br />

A doença de Parkinson é o distúrbio mais comum dos núcleos da base e tem como<br />

características a rigidez muscular, marcha de pés arrastados, postura encurvada, tremores<br />

musculares rítmicos em repouso (em torno de 3 a 5 Hz) que desaparecem com a<br />

movimentação voluntária e uma expressão facial em máscara (ausência de expressão ou<br />

amimia), mas pode apresentar também bradicinesia, acatisia, festinação, congelamento,<br />

cinesia paradoxal, micrografia, disartria e sialorréia, entre outros (Barbosa et al, 2003; Bear<br />

et al, 2002. Cambier e Dehen, 1988; Delong, 2003; Pliszka, 2004).<br />

É causada pela degeneração das aferências da substância negra ao estriado, que<br />

utilizam a dopamina como neurotransmissor. A dopamina facilita a alça motora direta ao<br />

ativar células do putâmen. A falta de dopamina faz parar o sistema que alimenta a atividade<br />

na área motora suplementar via núcleos da base.<br />

A doença interfere nos movimentos voluntários e nos automáticos e é causada pela<br />

morte das células produtoras de dopamina da substância negra e de células produtoras de<br />

acetilcolina do núcleo pedúnculopontino, por motivos ainda desconhecidos. O começo das<br />

mortes celulares ocorre muito antes de aparecerem os sinais clínicos da doença.<br />

A etiologia do parkinsonismo pode ser identificada pelo quadro clínico (exame<br />

neurológico e anamnese), mas precisa de exames complementares (ressonância magnética<br />

encefálica, tomografia craniana, exame do líquido cerebroespinal) para sua exata<br />

determinação. A tomografia por emissão de pósitrons (PET) identifica a insuficiência<br />

dopaminérgica, mesmo em indivíduos assintomáticos, mas ainda é um método caro e nem<br />

sempre acessível.<br />

Na doença de Parkinson existe desequilíbrio entre a atividade dopaminérgica e a<br />

250


Neurofisiopatologia<br />

colinérgica. A maior parte dos tratamentos aumenta a atividade dopaminérgica. A morte de<br />

aproximadamente 80% das células produtoras de dopamina da via direta dos núcleos da<br />

base reduz a atividade nas áreas motoras do córtex cerebral, o que causa diminuição nos<br />

movimentos voluntários. Já a perda das células pedúnculopontinas gera a desinibição dos<br />

tratos reticuloespinal e vestibuloespinal, causando contração excessiva dos músculos<br />

posturais.<br />

O uso acidental de um narcótico sintético de procedência duvidosa, nas décadas de 70<br />

e 80, fez médicos investigarem e concluírem que o parkinsonismo poderia ser desenvolvido<br />

por indivíduos jovens, e que esta forma da doença estaria ligada ao MPTP (1-metil-4-<br />

fenil-1,2,3,6-tetra-hidropiridona), componente químico que mata os neurônios<br />

dopaminérgicos. A MPTP é transformada em MPP + (1-metil-4-fenilpiridinium), e as células<br />

dopaminérgicas confundem MPP + com dopamina, acumulando seletivamente esta<br />

substância. O problema é que, dentro da célula, a MPP+ bloqueia a produção de energia<br />

pelas mitocôndrias e a célula acaba morrendo. Com isso, desenvolveu-se o raciocínio de<br />

que a exposição crônica a algum produto químico tóxico pode levar ao desenvolvimento de<br />

formas comuns da doença de Parkinson. A MPTP pode induzir uma forma de morte<br />

neuronal programada na substância negra.<br />

Existem duas categorias de tratamento da doença de Parkinson, uma voltada para o<br />

controle das manifestações clínicas (terapia sintossomática) e outra, que tem como objetivo<br />

proteger ou restaurar a função de neurônios (terapia neuroprotetora). A terapia sintomática<br />

utiliza principalmente intervenções farmacológicas, mas inclui também cirurgias<br />

estereotáxicas. Já a terapia neuroprotetora utiliza meios farmacológicos e também implantes<br />

neurais e fatores de crescimento.<br />

Uma das principais drogas administradas no tratamento da doença de Parkinson é a<br />

levodopa (L-di-hidroxifenil-alanina), precursora de dopamina, que atravessa a barreira<br />

hematoencefálica, e estimula a síntese de dopamina nas células ainda vivas da substância<br />

negra. Contudo, o tratamento com a levodopa não altera o curso da doença nem o ritmo de<br />

degeneração dos neurônios. Ainda temos como fármacos utilizados a selegina, tolcapone e<br />

entacapone (bloqueadores da degradação de dopamina), agonistas dopaminérgicos<br />

(bromocriptina, lisurida, pergolida, apomorfina, sabergolina, ropinirol, pramipexol),<br />

anticolinérgicos e amantadina (bloqueador da recaptação de dopamina). Usam-se também<br />

inibidores periféricos da dopa-descaboxilase (carbidopa e benzerazida) para evitar que a<br />

dopamina seja dissipada antes de chegar ao Sistema Nervoso Central; em contrapartida,<br />

estes inibidores causam efeitos colaterais que devem ser levados em conta, como náusea,<br />

vômito, hipotensão postural, arritmia cardíaca. Já os inibidores da MAO (monoaminaoxidase)<br />

tipo B, iclusive a seleginina, ativam mecanismos antioxidantes e antiapoptóticos.<br />

Por fim, também são utilizados antagonistas do glutamato. Contudo, alguns destes<br />

medicamentos ainda não têm efeito comprovado e nenhum é capaz de estancar ou regredir<br />

a doença.<br />

251


V Curso de Inverno<br />

Usando informações relativas às vias neuronais e neuroplasticidade, novas técnicas<br />

estão sendo desenvolvidas para o tratamento de distúrbios neurológicos. A estimulação<br />

encefálica profunda, transplantes (implantes) neuronais e cirurgias estereotáxicas vêm<br />

sendo empregados no tratamento de tremores e acinesia, presentes em distúrbios dos<br />

núcleos da base que envolvam deficiência de dopamina.<br />

A estimulação cerebral profunda usa estímulo de alta freqüência nos neurônios<br />

talâmicos para tratar o tremor da doença de Parkinson. Através de uma estimulação elétrica<br />

prolongada, inibe-se a descarga de um conjunto hiperativo de neurônios. A estimulação é<br />

modulada e direcionada por gerador - implantado na tela subcutânea na região torácica -<br />

que responde a estímulos externos. Apesar de suas vantagens, como a reversibilidade do<br />

procedimento, a estimulação tem alto custo, requer ajustes periódicos e tem risco de<br />

infectar.<br />

O transplante neuronal consiste em colocação de células produtoras de dopamina de<br />

um doador fetal, nos núcleos da base. Já o implante envolve a relocação de células suprarenais<br />

da própria pessoa, nos núcleos da base, para que sintetizem dopamina.<br />

Para alguns casos graves de tremor e acinesia, centros especializados em cirurgia<br />

estereotáxica destroem uma pequena região de células talâmicas ou do globo pálido,<br />

acarretando em melhoras funcionais ao eliminar populações celulares hiperativas. Entre as<br />

cirurgias irreversíveis mais utilizadas estão a talamotomia, a palidotomia e a estimulação do<br />

núcleo subtalâmico. A talamotomia interfere no núcleo intermédio ventral do tálamo e é a<br />

mais eficiente para o controle do tremor. Contudo, seus efeitos sobre os mecanismos<br />

geradores do tremor ainda não foram esclarecidos (sugere-se que esteja ligado à redução<br />

da atividade autônoma no tálamo e à interrupção das vias palidofugal e contralateral do<br />

cerebelo). Este procedimento não é recomendado bilateralmente pois, além da disartria que<br />

provoca em aproximadamente 25% dos casos, coloca em risco de alterações mentais<br />

persistentes. Se for preciso intervir bilateralmente, utiliza-se a estimulação cerebral profunda<br />

em pelo menos um lado.<br />

A palidotomia é eficaz para o tremor e também para alívio de outros componentes,<br />

como a oligocinesia, rigidez e discinesias. O alvo da cirurgia é a porção sensório-motora do<br />

globo pálido interno. A indicação geralmente é feita para pacientes com quadros avançados<br />

da doença e com complicações motoras causadas por fármacos agonistas dopaminérgicos.<br />

Seus riscos são os mesmos da talamotomia e podem ocorrer aumento de peso e leve<br />

distúrbio comportamental.<br />

A intervenção sobre o núcleo subtalâmico tem maior abrangência e possibilita<br />

melhoras de manifestações axiais da doença, relacionadas com suas eferências<br />

glutamatérgicas direcionadas ao pálido interno e à substância negra reticulata, que se<br />

conectam ao núcleo pedúnculopontino.<br />

Os procedimentos cirúrgicos são feitos preferencialmente em pacientes sem<br />

alterações cognitivas ou naqueles com mais de cinco anos de evolução da doença. Não há<br />

252


Neurofisiopatologia<br />

limite de idade para indicação cirúrgica.<br />

6.5. Esclerose múltipla<br />

A esclerose múltipla decorre do processo de desmielinização central e parece ser<br />

causada por doença auto-imune, na qual a mielina é atacada por anticorpos do próprio<br />

indivíduo. A destruição de oligodendrócitos gera áreas de desmielinização (placas) na<br />

substância branca do sistema nervoso central, causando lentificação ou bloqueio da<br />

transmissão de sinais. É uma doença sem cura, sem meios de prevenção e etiologia<br />

desconhecida. Ocorrem alterações reflexas, como transtornos da bexiga, impotência sexual<br />

em homens e anestesia genital em mulheres, fraqueza muscular, distúrbios de coordenação,<br />

alterações da visão e da movimentação ocular além de distúrbios da sensação, como<br />

formigamentos, dormências e sensações de agulhadas e fala arrastada. Pode haver<br />

alterações de memória e emoções (Bear et al, 2002; Levy e Oliveira, 2003; Lundy-Eckman,<br />

2004; Nitrini e Bacheschi, 2003).<br />

A Esclerose Múltipla pode ser compreendida como uma patologia imunológica<br />

associada a fatores genéticos que predisporiam ou não ao desenvolvimento do quadro,<br />

diante de outros aspectos facilitadores, como alimentação, fatores ambientais, agentes<br />

infecciosos e outros. Em regiões de clima frio e temperado, o risco de contrair a doença é<br />

maior do que nos trópicos; locais de latitude maior que 30º têm maior prevalência que locais<br />

com mais baixa latitude.<br />

A desmielinização provoca transtornos relativamente permanentes. Geralmente ocorre<br />

entre os 20 e os 40 anos, mais em mulheres que em homens (3:1) e evolui por anos,<br />

embora possa ter períodos de remissão. Cerca de 74% das lesões estão na substância<br />

branca, 17% na junção entre o córtex e a substância branca , 5% no córtex e 4% na<br />

substância cinzenta. Quando as degenerações estão presentes no corpo caloso podem<br />

produzir uma série de alterações cognitivas, entre elas o prejuízo em tarefas que exijam<br />

atenção sustentada e vigilância (sinais de desconexão interhemisférica). Porém, buscar um<br />

padrão único para a natureza do déficit de memória na Esclerose Múltipla parece difícil, pois<br />

a doença lesa áreas inespecíficas, altera diversos sistemas e funções, além de<br />

comprometer diferentes vias, moduladas por diferentes neurotransmissores.<br />

É recomendado aos pacientes que evitem altas temperaturas e esforços físicos<br />

excessivos, pois aumentos na temperatura corporal são considerados nocivos aos axônios,<br />

dificultando ainda mais a condução do potencial de ação.<br />

A Esclerose Múltipla pode ser aguda, subaguda ou crônica, com períodos de<br />

exacerbação e remissão. A consciência permanece normal e, raras vezes, o pensamento e<br />

a memória são afetados.<br />

Embora a causa exata desta doença ainda não seja bem conhecida, a causa dos<br />

distúrbios sensoriais e motores está bastante clara. As bainhas de mielina dos feixes de<br />

axônios do encéfalo, medula espinal e nervos ópticos são lesados, em muitos lugares do<br />

253


V Curso de Inverno<br />

sistema nervoso ao mesmo tempo.<br />

As lesões encefálicas causadas pela Esclerose Múltipla podem ser visualizadas<br />

através da Ressonância Magnética. Além disso, o líquor mostra aumento de imunoglobilinas<br />

e bandas oligoclonais. Contudo, o diagnóstico é elaborado principalmente com base na<br />

história clínica.<br />

Esclerose múltipla - Estudos recentes<br />

O fumo é um dos fatores considerados como risco para a Esclerose Múltipla. Os<br />

fumantes têm de 40 a 80% a mais de chance de desenvolver a doença que os não<br />

fumantes. Além disso, quando já existe diagnóstico de Esclerose Múltipla, pacientes<br />

fumantes têm cerca de três vezes mais risco de progredir para as formas mais graves da<br />

doença. A justificativa parece ser os radicais livres produzidos pelo fumo, que causam danos<br />

neuronais. Em indivíduos que já possuem mecanismo de lesão, este quadro pode ser<br />

potencializado.<br />

Existe, atualmente, estudo com Imagem do Tensor de Difusão e fascigrafia por<br />

Ressonância Magnéticaβ, que permitem analisar a integridade dos feixes de substância<br />

branca, o que fornece informações adicionais sobre a caracterização destes, em pacientes<br />

com Esclerose Múltipla, o que não é possível com as técnicas convencionais de<br />

Ressonância Magnética. A caracterização supracitada ainda está em fase de investigação e<br />

estudo, mas é uma técnica promissora no que diz respeito ao diagnóstico da doença.<br />

6.6. Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA)<br />

A Esclerose Lateral Amiotrófica é uma doença progressiva limitada ao sistema motor<br />

voluntário, que destrói apenas os tratos ativadores laterais e as células do corno anterior da<br />

medula espinal (neurônio motor superior no cérebro, tronco encefálico e medula, neurônio<br />

motor inferior nas regiões medulares espinal e periférica), núcleos motores do tronco<br />

encefálico e córtex motor, causando sinais dos neurônios motores superior e inferior.<br />

A etiologia da doença ainda não foi esclarecida, e não existe, portanto, método<br />

laboratorial para o diagnóstico. Os exames feitos são apenas para exclusão de outras<br />

patologias, e o diagnóstico é feito baseando-se em achados clínicos, o que não permite<br />

prevenir a ocorrência da doença. Contudo, alguns exames podem auxiliar o diagnóstico,<br />

identificando algumas características histopatológicas (presença intraneuronal de ubiquitina,<br />

gliose reacional, alterações morfológicas de motoneurônios, neurônios atróficos com núcleo<br />

picnótico e presença de esferóides axonais).<br />

Os músculos são inervados por neurônios motores do corno ventral da medula espinal,<br />

ou neurônios motores inferiores, que comandam a contração e podem ser alfa ou gama. O<br />

motoneurônio alfa libera acetilcolina, que age em receptores nicotínicos da junção<br />

neuromuscular e produz potencial excitatório pós-sináptico e que gera abertura de canais de<br />

Na + voltagem-dependentes promovendo a despolarização dos túbulos T e a liberação de<br />

254


Neurofisiopatologia<br />

Ca 2+ do retículo sarcoplasmático, que culmina em contração muscular. O cálcio liga-se à<br />

troponina e esta expõe, na actina, os sítios de ligação para a miosina. A cabeça da miosina<br />

se conecta à actina e sofre rotação. Com ATP, as miosinas se desligam das actinas e o<br />

cálcio é recaptado para o retículo sarcoplasmático por ATPases. A actina é novamente<br />

coberta por troponina. Na Esclerose Lateral Amiotrófica, este mecanismo é afetado<br />

progressivamente e resulta em ausência de contração muscular.<br />

Os primeiros sinais são fraqueza e atrofia muscular. Geralmente, entre três e cinco<br />

anos todo o movimento voluntário é perdido – a capacidade de andar, falar, deglutir e<br />

respirar são lentamente perdidas. O quadro é caracterizado por paresia, hiper-rigidez<br />

mioplástica, hiper-reflexia, sinal de Babinski, atrofia muscular, fasciculações por atrofia e<br />

fibrilações. No indivíduo acometido, a consciência permanece normal, assim como a<br />

comunicação e a memória, o sistema sensorial e autônomo. A morte do indivíduo decorre de<br />

complicações respiratórias (Bear et al, 2002; Calia e Annes, 2003; Lundy-Eckman, 2004;<br />

Nitrini e Bacheschi, 2003).<br />

Esta é uma doença relativamente rara, apesar de ser a mais comum das doenças do<br />

neurônio motor em adultos, e sua causa é desconhecida.<br />

Por volta de 90% dos casos são idiopáticos, embora uma das formas da ELA, a forma<br />

familiar, já tenha o gene responsável identificado (mutação da enzima superóxido<br />

dismutase). Neste subtipo da doença, um produto tóxico do metabolismo celular é a<br />

molécula negativamente carregada de oxigênio (radical superóxido), a qual é extremamente<br />

reativa e pode provocar danos celulares irreversíveis. A superóxido dismutase é uma enzima<br />

essencial para que os radicais superóxido percam seus elétrons extras, convertendo a<br />

molécula novamente em oxigênio. A ausência desta enzima leva ao acúmulo de radicais<br />

superóxido, lesando as células.<br />

Existe a hipótese de que a ELA seja causada por excitotoxicidade do glutamato e<br />

aminoácidos relacionados, o que causa morte neuronal. Além disso, sugere-se que um<br />

transportador de glutamato pode estar defeituoso, provocando exposição prolongada dos<br />

neurônios em atividade ao glutamato extracelular.<br />

A primeira droga aprovada para o tratamento da ELA foi o riluzole, um bloqueador da<br />

liberação de glutamato. Porém, apesar de seu uso retardar em alguns meses a progressão<br />

da doença, a longo prazo o desenvolvimento do quadro continua igual.<br />

Esclerose Lateral Amiotrófica – estudos recentes<br />

Estudos com antibióticos ß-lactâmicos em modelos animais da doença sugerem que<br />

esses fármacos atuariam auxiliando a neuroproteção, uma vez que foi observada, após<br />

administração da droga, maior produção de fatores neuroprotetores no Sistema Nervoso<br />

Central. O mecanismo parece estar associado principalmente à excitotoxicidade do<br />

glutamato, pois os antibióticos utilizados induzem aumento na produção das moléculas<br />

transportadoras que recolhem o excesso deste neurotransmissor no Sistema Nervoso<br />

Central. Esta alternativa reduz o risco de danos aos neurônios, causados pelo excesso de<br />

255


V Curso de Inverno<br />

glutamato.<br />

Também foi sugerido que os radicais livres seriam responsáveis por lesões na<br />

Esclerose Lateral Amiotrófica. Contudo, estudos recentes em modelos animais propõem que<br />

a presença de radicais livres é, na verdade, conseqüência e não causa da lesão. Foi feita<br />

terapia com antioxidantes e não houve resultado satisfatório, permitindo supor que, então,<br />

os radicais livres não eram a causa da doença.<br />

Outra alternativa pesquisada para a Esclerose Lateral Amiotrófica são as substâncias<br />

antinflamatórias, pois foram evidenciados processos inflamatórios no desenvolvimento da<br />

doença. A excitotoxicidade do glutamato e a ação de radicais livres, no Sistema Nervoso<br />

Central, são importantes mecanismos neurodegenerativos. A inflamação pode contribuir no<br />

processo de degeneração, junto com estes dois outros fatores. Foi observada a presença de<br />

níveis aumentados de prostaglandinas em cérebros de indivíduos acometidos pela<br />

patologia. Sabe-se que as prostaglandinas são pró-inflamatórias. Estudos experimentais em<br />

modelos animais com camundongos geneticamente modificados para desenvolver a doença<br />

observaram que o uso de antinflamatórios estava envolvido no retardo do quadro – maior<br />

sobrevida, melhor resposta motora e menor perda de massa muscular. A identificação de<br />

maiores quantidades de fosfolipase A2 em camundongos com Esclerose Lateral Amiotrófica<br />

sugere que esta enzima tenha importância significativa no desenvolvimento da doença. O<br />

aumento da fosfolipase A2 antecede a lesão neuronal e a conseqüente perda motora, em<br />

camundongos. Se realmente esta enzima for fundamental para o surgimento da doença,<br />

então o tratamento à base de sulindaco, substância antinflamatória utilizada nos<br />

camundongos, pode ser efetivo para retardar o desenvolvimento do quadro clínico.<br />

Atualmente, amostras de sangue de indivíduos acometidos pela Esclerose Lateral<br />

Amiotrófica estão sendo estudadas por eletroforese bidimensional e Western Blotting. Estes<br />

estudos fornecerão informações sobre a composição das proteínas das amostras<br />

analisadas, e poderão contribuir para o desenvolvimento de marcadores que auxiliem o<br />

diagnóstico da doença.<br />

6.7. Doença de Huntington<br />

A doença de Huntington é uma doença hereditária autossômica dominante,<br />

progressiva, cujo início se dá entre os 40 e os 50 anos, e que leva à morte em<br />

aproximadamente 15 anos após o aparecimento dos sintomas. Provoca degeneração em<br />

muitas áreas cerebrais, principalmente no estriado e córtex cerebral, o que gera diminuição<br />

de sinais por inibição direta e excessiva do globo pálido interno e da substância negra<br />

reticular (núcleos estimuladores) pelo putâmen, e leva à desinibição do tálamo motor e do<br />

núcleo pedúnculopontino. Esta desinibição é inadequada, produzindo estimulação excessiva<br />

tanto do tálamo motor quanto do núcleo pedúnculopontino, causando hipercinesias (Barbosa<br />

et al, 2003; Bear et al, 2002; Lundy-Eckman, 2004; Nitrini e Bacheschi, 2003).<br />

É causada pela mutação dominante de um gene que codifica proteína de alto peso<br />

256


Neurofisiopatologia<br />

molecular chamada huntintina, no cromossomo 4, prolongando-a mais que o normal. Estas<br />

proteínas mutantes se agregam e desencadeiam a degeneração neuronal. Não se conhece<br />

ainda a função da huntintina normal, mas é possível que sirva para contrabalançar os<br />

gatilhos de morte celular programada. Observou-se acúmulo de huntintina no encéfalo de<br />

indivíduos com a doença de Huntington e concluiu-se que a proteína induz degeneração<br />

neuronal, provavelmente por mecanismo de apoptose.<br />

Observou-se também que a injeção de agonistas NMDA no estriado de ratos<br />

desencadeava perda celular semelhante à da doença de Huntington, levando à hipótese de<br />

que o gene alterado do cromossomo 4 produz alteração que desencadeia a ativação<br />

excessiva dos receptores NMDA ou a liberação excessiva de glutamato.<br />

Além de hipercinesia (movimentos involuntários anormais, rápidos e espasmódicos,<br />

mas relativamente coordenados dos membros, tronco, cabeça e face) - no caso a coréia - a<br />

doença de Huntington é caracterizada por demência e transtorno de personalidade.<br />

É uma síndrome inevitavelmente letal, cujos sintomas aparecem apenas na idade<br />

adulta, quando o indivíduo provavelmente já teve filhos e transmitiu os genes da doença.<br />

Pacientes com a doença de Huntington apresentam dificuldade no aprendizado de<br />

tarefas nas quais a resposta motora vem associada a um estímulo. Porém apesar de os<br />

indivíduos acometidos geralmente apresentarem disfunções motoras, estas não condizem<br />

com a severidade dos déficits cerebrais, sugerindo que essa deficiência seja uma<br />

conseqüência da doença. Esta constatação sugere que as doenças que atingem os núcleos<br />

da base afetam a memória de procedimentos, vinculada ao estriado – um dos focos de<br />

ataque da doença de Huntington.<br />

6.8. Doença de Alzheimer<br />

A doença de Alzheimer causa degeneração mental progressiva, o que gera perda de<br />

memória, confusão e desorientação do indivíduo acometido. Os sintomas começam a se<br />

tornar aparentes geralmente após os sessenta anos, e a expectativa de vida costuma ser de<br />

5 a 10 anos após o diagnóstico.<br />

O começo do quadro é caracterizado por sinais de esquecimento, que progridem para<br />

incapacidade de lembrar palavras, de produzir e mesmo compreender a linguagem. No<br />

estágio mais avançado da doença, o paciente negligencia o uso de roupas, a aparência e a<br />

alimentação. Além disso, o indivíduo apresenta cegueira de movimento, ou a incapacidade<br />

de interpretar o fluxo de informação visual – incapacidade de interpretar a direção do<br />

movimento de objetos em seu campo visual. Esta incapacidade interfere no uso da<br />

informação visual para o auto-movimento, e poderia explicar a tendência para divagação e<br />

perda, comuns nos doentes de Alzheimer.<br />

As alterações celulares incluem aglomerados neurofibrilares (massas aglomeradas de<br />

neurofibrilas; acúmulo de proteína tau que sofre processo de hiperfosforilação e lesa<br />

células), placas senis (lesões extracelulares formadas por cúmulo central de proteína<br />

257


V Curso de Inverno<br />

amilóide envolta por axônios e dendritos degenerados, e restos de células gliais) e atrofia<br />

grave do córtex cerebral, da amígdala e do hipocampo.<br />

A função das células do complexo prosencefálico basal ainda é desconhecida, mas<br />

sabe-se que é um dos primeiros grupos celulares a morrer durante a evolução da doença de<br />

Alzheimer. Esta área tem sido associada às funções cognitivas, e podem ter papel essencial<br />

no aprendizado e na formação da memória.<br />

Estima-se que 1,3% das pessoas entre 65 e 74 anos e 4% das pessoas entre 75 e 84<br />

anos sejam acometidas pela doença de Alzheimer. Além disso, as pessoas com trissomia do<br />

21 apresentam quadro de alterações celulares semelhantes às do Alzheimer por volta dos<br />

40 anos, e os indivíduos acometidos pela doença de Alzheimer têm algumas células<br />

geneticamente normais e outras com trissomia do 21.<br />

Grande progresso na biologia molecular permite hoje identificar o gene para a proteína<br />

precursora amilóide (PPA), presente no cromossomo 21. Assim, pessoas com síndrome de<br />

Down são mais vulneráveis à doença de Alzheimer, pois têm um cromossomo 21 a mais.<br />

Apesar disso, não é claro como a mutação do gene causa a doença nem mesmo qual a<br />

função da PPA normal no cérebro.<br />

Sugere-se que a PPA normal estimule a proliferação de neurônios e reforce os efeitos<br />

dos fatores de crescimento nervoso, enquanto que a PPA mutante cause morte do neurônio.<br />

Os casos precoces de doença de Alzheimer (entre 28 e 60 anos) foram ligados à<br />

presença dos genes presenilina 1 (PS1), encontrado no cromossomo 14, e presenilina 2<br />

(PS2) nos cromossomos 14 e 1. Quarenta mutações diferentes do PS1 foram ligadas ao<br />

começo precoce da doença, enquanto apenas duas do PS2 foram identificadas como causa<br />

desta precocidade. Todas estas mutações aumentam a produção e o depósito amilóide e<br />

podem levar um gene PPA normal a produzir proteína amilóide mutagênica.<br />

Outra proteína que parece estar ligada à maioria dos casos de Alzheimer é a<br />

apolipoproteína ε (Apoε), reguladora do metabolismo de gordura, cujo gene encontra-se no<br />

cromossomo 19 e possui diversos alelos. O alelo ε4, mesmo homozigoto, traz um risco<br />

muito maior para a doença de Alzheimer, além de estar associado com a má recuperação de<br />

danos encefálicos e de influenciar os depósitos amilóides.<br />

A Apoε formada liga-se à proteína tau, que faz parte dos emaranhados neurofibrilares,<br />

permitindo que se hipotetize que a proteína tau produza os emaranhados e,<br />

conseqüentemente, a morte dos neurônios.<br />

As pesquisas sobre doença de Alzheimer também enfocam os sistemas de<br />

neurotransmissores, apontando a redução da enzima colina acetiltransferase, responsável<br />

pela síntese de acetilcolina, nos portadores da doença. Os receptores 5-HT2A, NMDA e<br />

AMPA também estão diminuídos. Além disso, os receptores muscarínicos estão<br />

aumentados, possivelmente representando regulação para cima, conseqüente da<br />

diminuição da atividade da acetilcolina. Alguns medicamentos que reforçam a função da<br />

258


Neurofisiopatologia<br />

acetilcolina são efetivos na melhora da cognição, ainda que em pequena escala, mas não<br />

são capazes de alterar o curso de longo prazo da doença (Bear et al, 2002).<br />

É de fundamental importância que se descubra os mecanismos genéticos da doença<br />

de Alzheimer, para que se possa desenvolver drogas capazes de evitar a formação dos<br />

emaranhados neurofibrilares e dos depósitos amilóides.<br />

A excitotoxicidade também tem sido implicada como causa da doença de Alzheimer.<br />

Ainda não há exames específicos para detectar a doença, mas existem exames como<br />

a ressonância magnética para medir o hipocampo e a determinação da concentração de<br />

proteína tau, além das proteínas amilóides no líquido cerebroespinal, que são técnicas<br />

promissoras. Também não existe tratamento efetivo específico nem preventivo para a<br />

doença de Alzheimer. O que se faz atualmente é inibir a enzima acetilcolinesterase, para<br />

que não destrua a acetilcolina na fenda sináptica, pois se observou que nesta patologia<br />

ocorre redução na concentração de acetilcolina em núcleos subcorticais específicos,<br />

considerada responsável por parte da alteração encontrada no quadro clínico.<br />

São utilizados hoje a rivastigmina, a galantamina e o donepezil, principalmente em<br />

casos leves e moderados (apesar de ter sido observada alguma melhora nos quadros mais<br />

avançados). Além destas, a vitamina E em doses altas também parece retardar o quadro<br />

demencial. Os transtornos de humor podem precisar de tratamento específico e são usados<br />

preferencialmente os antidepressivos com menor ação anticolinérgica e neurolépticos<br />

atípicos.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Andrade VM, Santos FH, Bueno OFA. Neuropsicologia hoje. São Paulo: Artes Médicas, 2004.<br />

Barbosa ER, Haddad MS, Gonçalves MRR. Distúrbios do movimento in Nitrini R, Bacheschi LA. A<br />

neurologia que todo médico deve saber. São Paulo: Atheneu, 2003.<br />

Bear M, Connors B, Paradiso M. Neurociências: desvendando o sistema nervoso. Porto Alegre:<br />

Artmed, 2002.<br />

Calia LC, Annes M. Afecções neurológicas periféricas in Levy JA, Oliveira ASB. Reabilitação em<br />

doenças neurológicas. São Paulo: Atheneu, 2003.<br />

Cambier J, Dehen MM. Manual de neurologia. São Paulo: Atheneu, 1988.<br />

Cistemas JR. Patofisiologia dos radicais livres in Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe,<br />

2000.<br />

Delong MR. Os núcleos da base in Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da neurociência.<br />

São Paulo: Manole, 2003.<br />

Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe, 2000.<br />

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Frolenza OV. Tratamento farmacológico da doença de Alzheimer. Rev. Psiq. Clín. 32(3): 137-148,<br />

2005.<br />

Graeff FG, Guimarães FS. Fundamentos de psicofarmacologia. São Paulo: Atheneu, 1999.<br />

259


V Curso de Inverno<br />

Greve JMD, Amatuzzi MM. Medicina de reabilitação aplicada à ortopedia e traumatologia. São Paulo:<br />

Roca, 1999.<br />

Guyton AC. Fisiologia humana e o mecanismo das doenças. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,<br />

1989.<br />

Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM. Princípios da neurociência. São Paulo: Manole, 2003.<br />

Lent R. Cem bilhões de neurônios: conceitos fundamentais de neurociências. São Paulo: Atheneu,<br />

2001.<br />

Leonard BE. Fundamentos em psicofarmacologia. Rio de Janeiro: Revinter, 2006.<br />

Levy JA, Oliveira ASB. Reabilitação em doenças neurológicas. São Paulo: Atheneu, 2003.<br />

Lundy-Eckman L. Neurociência: fundamentos para a reabilitação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.<br />

Nitrini R, Bacheschi LA. A neurologia que todo médico deve saber. São Paulo: Atheneu, 2003.<br />

Oliveira RMC. Afecções neurológicas do Sistema Nervoso Central in Levy J.A, Oliveira ASB.<br />

Reabilitação em doenças neurológicas. São Paulo: Atheneu,<br />

Pliszka S. Neurociência para o clínico de saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2004.<br />

Santibañez G. Fisiologia dos estados emóticos in Douglas CR. Patofisiologia geral. São Paulo: Robe,<br />

2000.<br />

Revisado por Merari de Fárima Ramires Ferrari, Leandro Cortini Calia, Margareth Rose Priel<br />

260


Fisiologia do Comportamento<br />

Capítulo 6<br />

Fisiologia do Comportamento<br />

Autores:<br />

André Maia Chagas<br />

Claudia Franco de Olim Marote<br />

Pedro Leite Ribeiro<br />

Renata Pereira Lima<br />

Rodrigo Pavão<br />

Wataru Sumi<br />

263


264<br />

V Curso de Inverno


Fisiologia do Comportamento<br />

Fisiologia do comportamento<br />

Wataru Sumi<br />

Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />

wataru_sumi@yahoo.com.br<br />

Alguns organismos unicelulares como a Escherichia coli apresentam um<br />

comportamento relativamente complexo. Eles são capazes de detectar estímulos do<br />

ambiente por meio de dezenas de receptores, armazenar essas informações por um curto<br />

período de tempo, integrar a informação recebida de diferentes “canais sensoriais” e<br />

controlar o comportamento em função das informações recebidas (Allman, 1998).<br />

Organismos pluricelulares sem sistemas nervosos, também integram a resposta aos<br />

estímulos ambientais; porém, a informação recebida em uma célula sensível à estimulação<br />

ambiental, o receptor, é transmitida para outra, que tem a função de controlar a resposta, o<br />

efetor. A integração dessa resposta é possível, graças a um sistema de condução nãonervoso,<br />

envolvendo células epiteliais conectadas por pontes citoplasmáticas, capazes de<br />

conduzir alterações eletrofisiológicas. Esse tipo de condução, embora relativamente lento,<br />

afeta grande número de células, tornando o sistema energeticamente dispendioso. O<br />

surgimento de células especializadas em conduzir impulsos elétricos facilitou imensamente<br />

a condução e integração de informações, facilitando o controle das influências da atividade<br />

dos receptores sobre os efetores (Romero, 2000). As características básicas dessas células<br />

especializadas, os neurônios, são praticamente as mesmas em todos os grupos de animais.<br />

As diferenças comportamentais entre diferentes grupos de animais se devem basicamente<br />

ao número de neurônios e às interconexões, formadas pelas sinapses, existentes entre elas<br />

(Kandel, 1991).<br />

Os sistemas nervosos mais simples são capazes de produzir comportamentos em<br />

geral estereotipados e relativamente pouco flexíveis, relacionados com alimentação,<br />

locomoção e proteção. A capacidade de modular a resposta nesses animais se deve<br />

basicamente às propriedades de funcionamento das sinapses. Nesses pontos de<br />

comunicação entre dois neurônios, a informação nem sempre é transmitida por ação única<br />

de um neurônio pré-sináptico. Assim, para excitar o neurônio pós-sináptico, é necessário<br />

que a intensidade do estímulo seja suficientemente forte. Isso pode ocorrer quando diversos<br />

impulsos nervosos atingem a mesma sinapse, e a somação torna o estímulo forte o<br />

suficiente para despolarizar a célula pós-sináptica (Schmidt-Nielsen, 1996). Esse tipo de<br />

controle do sinal pela somação sináptica pode ser observado no comportamento de<br />

proteção do disco oral e tentáculos em anêmonas-do-mar; quando esses animais recebem<br />

mais de um estímulo em um curto intervalo de tempo, contraem os músculos do disco oral,<br />

protegendo assim os tentáculos (Dethier & Stellar, 1973).<br />

Desde muito cedo na história evolutiva do sistema nervoso, houve uma tendência à<br />

divisão do trabalho realizado pelos neurônios. Essa divisão parece ter ocorrido na<br />

265


V Curso de Inverno<br />

separação das funções receptora, condutora e efetora, decorrentes da especialização das<br />

células nervosas (Romero, 2000). Os neurônios especializados em conduzir informações<br />

recebidas de neurônios receptores, foram denominados interneurônios. O surgimento de<br />

interneurônios possibilitou a ocorrência de divergência e convergência no processamento de<br />

informações, aumentando a capacidade do sistema em modular o fluxo de informações. Em<br />

outras palavras, interneurônios permitem ao sistema funcionar como interruptores, excitando<br />

ou inibindo a atividade de outros neurônios, além de serem capazes de atuar como marca<br />

passo, gerando os próprios impulsos nervosos que estimulam outras células (Zigmond et al.,<br />

1999).<br />

Sistemas nervosos com muitos interneurônios podem modular a sensibilidade do<br />

neurônio pós-sináptico de acordo com uma diversidade de fatores, incluindo suas<br />

necessidades, facultanto maior processamento da informação recebida, o que torna a<br />

resposta muito mais flexível e complexa. Assim, o comportamento tornou-se mais elaborado.<br />

Talvez, um dos exemplos mais simples da importância dessa integração envolva a inibição<br />

de neurônios relacionada ao mecanismo de controle de músculos antagônicos. Quando os<br />

músculos são arranjados dessa forma, a contração simultânea de ambos os músculos se<br />

cancelam, gerando um efeito; alternativamente, pode-se evitar a contração concomitante<br />

dos músculos antagônicos, por meio de um sistema de interneurônios que inibe a atividade<br />

de um neurônio efetor quando o seu par antagônico é acionado, o que aumenta a<br />

diversidade de respostas possíveis (Manning & Dawkins, 1998).<br />

Outra característica de sistemas nervosos com muito interneurônios, presente mesmo<br />

em organismos considerados primitivos, é a segregação ou agrupamento de unidades<br />

semelhantes, observada claramente no processo de centralização do sistema nervoso que,<br />

conduziu mais tarde, ao desenvolvimento de um centro integrador do comportamento<br />

(Romero, 2000). A centralização do sistema nervoso, ou seja, a agregação das células<br />

nervosas que antes ficavam dispersas pelo corpo do animal, ocorreu na grande maioria dos<br />

animais; enquanto nos animais de simetria radial essa centralização envolveu a formação de<br />

anéis nervosos, nos animais de simetria bilateral ela envolveu uma cefalização, i.e., a<br />

concentração de tecido nervoso na porção anterior do organismo.<br />

Durante esse processo houve uma tendência à segregação entre os elementos<br />

condutores (i.e. axônios) e os elementos integradores, incluindo os corpos celulares,<br />

concentrados em massas localizadas nos assim chamados gânglios. Os gânglios<br />

correspondem a regiões do sistema nervoso onde há agrupamentos de corpos celulares<br />

(Dethier & Stellar, 1973). O surgimento desses pontos estratégicos de integração de<br />

informação permitiu melhorar substancialmente o processamento de informações,<br />

aumentando o poder de controle do comportamento; a ação dos neurônios moduladores da<br />

resposta tornou-se facilitada e possibilitou maior integração da informação ambiental<br />

recebida de diferentes modalidades sensoriais. Em sistemas nervosos bem mais complexos,<br />

houve o desenvolvimento de mecanismos responsáveis pela modulação do processamento<br />

266


Fisiologia do Comportamento<br />

das informações recebidas do ambiente em função de experiências anteriores, ou seja, um<br />

processamento atencional (ver Helene e Xavier, 2003). Sabe-se que a atenção é importante<br />

não apenas no processamento de informação sensorial, mas também na programação de<br />

ações motoras, estando ainda envolvida na função de planejamento (Gawryszewski et al.<br />

2007).<br />

Depreende-se dos exemplares existentes presentemente que inicialmente os animais<br />

possuíam diversos gânglios espalhados pelo corpo, cada qual funcionando de forma<br />

relativamente independente dos demais. Com o surgimento de um centro de controle<br />

superior, a integração da atividade desses gânglios passou a ser melhor integrada (Dethier<br />

& Stellar, 1973).<br />

Ao longo desse processo, surgiram instintos, definidos como um padrão de<br />

comportamentos estereotipados que aparecem em sua forma plenamente funcional desde a<br />

primeira vez que são executados, mesmo que o animal não tenha experiência prévia ao<br />

estimulo eliciador do comportamento. A rede neural responsável pela detecção do estímulo<br />

e ativação do programa motor é denominada mecanismo de liberação inato (Alcock, 2005).<br />

Esse tipo de comportamento aparece de forma bastante complexa nos gastrópodes. Por<br />

exemplo, o caracol Helix apresenta um comportamento de corte complicado, no qual os<br />

indivíduos se aproximam, evertem suas áreas genitais e lançam dardos calcários,<br />

penetrando nos órgãos internos do parceiro e promovendo a fecundação (Dethier & Stellar,<br />

1973). Note-se, porém, que muitos instintos podem ser aprimorados pela interação do<br />

organismo com o ambiente.<br />

A concentração de sistemas sensoriais na porção anterior de animais de simetria<br />

bilateral, associados ao formato do corpo e do sentido de locomoção, contribuiu para que os<br />

gânglios da extremidade anterior, por isso denominados cerebrais, se desenvolvessem de<br />

forma mais proeminente que os demais; ao mesmo tempo, esses gânglios assumiram o<br />

papel de centros-mestres de controle. O aumento gradativo de tamanho decorrente da<br />

concentração de neurônios nessa região e a importância hierárquica dos gânglios cerebrais<br />

é denominado cefalização. Nesse processo, os outros centros tornaram-se subordinas a ele,<br />

ou desapareceram (Dethier & Stellar, 1973). Isso possibilitou a diversificação do repertorio<br />

comportamental, além de tornar os padrões motores fixos muito mais complexos, pois foi<br />

possível exibir uma quantidade de movimentos coordenados em resposta a estímulos<br />

relativamente simples. O movimento de cópula, que envolve a coordenação de vários<br />

músculos, pode ser desencadeado por estímulos simples como a cor da fêmea. Isso fica<br />

evidente quando um animal, nesse caso em besouro australiano, tenta copular com<br />

qualquer objeto que tenha a mesma cor da fêmea da espécie (Alcock, 2005).<br />

A história evolutiva do sistema nervoso em vertebrados segue linha similar; i.e.,<br />

surgiram novas estruturas relacionadas ao processamento de informações oriundas dos<br />

sistemas sensoriais e de controle. Se por um lado, o comportamento tornou-se ainda mais<br />

complexo, por outro, muitos mecanismos se mantiveram. Um comportamento parecido com<br />

267


V Curso de Inverno<br />

o exibido pelo besouro australiano é observado em filhotes gaivota. Quando os filhotes<br />

estão com fome, eles bicam a ponta do bico dos pais, para que eles regurgitem alimento<br />

meio digerido. O sinal que desencadeia a resposta de bicar no filhote não é<br />

necessariamente a presença dos pais, ou de nenhuma outra gaivota, mas sim um bico<br />

amarelo com uma bolinha vermelha. Se colocarmos um palito amarelo com listras<br />

vermelhas na ponta, a resposta de bicar do filhote será tão intensa quanto à resposta dada<br />

na presença de um dos pais (Alcock, 2005).<br />

Ao longo da evolução, à medida que o sistema nervoso se tornava mais e mais<br />

complexo, os padrões de resposta automáticos foram dando espaço para o comportamento<br />

plástico, ou seja, a capacidade de modificar o comportamento em vista das experiências<br />

passadas foi se aprimorando. Acredita-se que as atividades eletrofisiológicos gerada pelos<br />

estímulos ambientais, ou mesmo pelo próprio organismo, alterem a conectividade entre as<br />

células nervosas, alterando a transmissão de impulsos elétricos pela rede neural, formando<br />

assim, as memórias (Helene & Xavier, 2007). Essa habilidade é uma propriedade básica de<br />

todos os organismos que possuem um sistema nervoso e está presente inclusive em<br />

organismos unicelulares; neste último caso, ela se manifesta sob a forma de<br />

condicionamento clássico (ou Pavloviano). Sabe-se, por exemplo, que as minhocas são<br />

capazes de aprender a se dirigir para um braço de um labirinto em T, onde encontram uma<br />

câmara escura e úmida, evitando outro braço, onde eles receberiam um choque elétrico e<br />

são expostos a uma solução irritante (Dethier & Stellar, 1973); foi necessária uma média de<br />

200 tentativas para se atingir 90% de acertos. Portanto, embora lenta, a aquisição ocorre<br />

sendo, portanto, adaptativa.<br />

Resumidamente, o surgimento do sistema nervoso possibilitou melhor detecção e<br />

reação a estímulos ambientais. Além disso, o aumento de sua complexidade contribuiu para<br />

um aumento do repertório comportamental dos animais, decorrentes da aquisição e<br />

desenvolvimento de novas habilidades. Nos capítulos seguintes, veremos de forma mais<br />

detalhada como ocorre o processamento sensorial, como se deu a integração neural, o<br />

mecanismo neural da atenção e memória, além de entender como se dá a seleção natural<br />

das características comportamentais.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Alcock J (2005). Animal Behavior: An Evolutionary Approach (8th edition). Sinauer Associates, Inc.,<br />

Sunderland, Mass.<br />

Allman JM (1998). Evolving Brains. Scientific American Library- W. H. Freeman, first edition, New<br />

York.<br />

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Blücher.<br />

Gawryszewski LG, Ferreira FM. Guimarães-Silva S(2007); Atenção! Em: Intersecções entre psicologia<br />

e neurociências. (Landeira-Fernandez J & Silva MTA) Ed. Medbook, Rio de Janeiro (cap 6,<br />

268


Fisiologia do Comportamento<br />

pp83-101).<br />

Helene AF, Xavier GF (2007); Memória e (a elaboração da) percepção, imaginação inconsciente e<br />

consciente. Em: Intersecções entre psicologia e neurociências. (Landeira-Fernandez J & Silva<br />

MTA) Ed. Medbook, Rio de Janeiro (cap 6, pp83-101).<br />

Kandel ER (1991). Nerve Cells and Behaviour. In Kandel ER, Schwartz JH & Jessel TM (Eds.),<br />

Principles of Neural Science; pp. 18-32, Ch. 2.<br />

Manning A & Dawkins MS (1998). An introduction to animal behaviour. Cambridge: Cambridge<br />

University Press.<br />

Romero SMB (2000). Fundamentos de Neurofisiologia Comparada: da Recepção à Integração.<br />

Ribeirão Preto, Editora Holos.<br />

Schmidt-Nielsen K (1996). Fisiologia animal-adaptação e meio ambiente. 5.ed. São Paulo: Santos.<br />

Swanson LW (1999) Organization of Nervous Systems. In Fundamental Neuroscience (Zigmond MJ et<br />

al., eds)<br />

Revisado por Gilberto Xavier<br />

269


V Curso de Inverno<br />

Sensação e percepção<br />

André Maia Chagas e Renata Pereira Lima<br />

Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />

andremaia.chagas@gmail.com renata.plim@gmail.com<br />

Se analisarmos os seres vivos, perceberemos que apresentam pelo menos algum tipo<br />

de sistema que os permite trocar informações com o ambiente que os circundam. Seja uma<br />

planta, que é capaz de sentir situações de estresse hídrico e fechar seus estômatos, seja<br />

uma bactéria que é capaz de sentir substâncias nocivas em seu meio e se afastar delas por<br />

movimentação ativa, ou ainda nos exemplos aos quais estamos mais acostumados, um<br />

beija flor que detecta flores em uma árvore e se aproxima da mesma em busca de alimento.<br />

Mas o que possibilita essas ações? Utilizando o olhar científico, veremos que elas são<br />

possibilitadas pela existência de estímulos físicos e químicos que chegam a todo tempo nos<br />

seres vivos, que são captados por células especializadas capazes de transformar esses<br />

estímulos em unidades de informação que possam ser utilizadas pelo organismo em<br />

questão.<br />

Como o objetivo desse módulo é de mostrar aspectos gerais do funcionamento do<br />

sistema nervoso, limitaremos a discussão a animais que são dotados desse sistema.<br />

Nesses animais, as células receptoras recebem os estímulos ambientais e os transformam<br />

em estímulos elétricos, processo chamado transdução, que por sua vez são utilizados pelas<br />

próximas células para a transmissão da informação ao longo do sistema nervoso. Essa<br />

transformação dos estímulos ambientais é classificada pela neurociência como sensação e<br />

é diferente entre as espécies, já que diferentes espécies possuem células receptoras<br />

diferentes e sistemas nervosos com diferentes capacidades de processamento; o que faz<br />

com que diferentes espécies experimentem o mundo de maneiras diferentes. Um som de<br />

30.000 Hz que é inaudível para nós (somos capazes de perceber sons na faixa entre 20 e<br />

20.000 Hz) é perfeitamente detectável por um morcego, um gato, um cachorro ou um rato,<br />

por exemplo. Além das diferenças interespecíficas, também existem diferenças de sensação<br />

intraespecíficas. Uma substância que é detectada como amarga por alguns indivíduos, é<br />

considerada insípida por outros, e aqui podemos até supor um método de seleção e<br />

evolução para os sistemas sensoriais, já que indivíduos que pudessem perceber a presença<br />

de uma substância nociva em algum alimento poderiam ter mais chances de sobreviver num<br />

ambiente onde tal característica apresenta-se necessária. As sensações podem ser<br />

percebidas de formas diferentes ao longo da vida de um mesmo indivíduo, uma vez que a<br />

percepção implica numa interpretação da sensação. Em outras palavras, a história de<br />

experiências prévias de um indivíduo pode gerar diferenças fisiológicas nos mecanismos<br />

que levam à interpretação de uma sensação, levando a percepções distintas. Ademais,<br />

níveis de consciência, estados emocionais e estados psicológicos são capazes de interferir<br />

na percepção de determinada sensação.<br />

270


Fisiologia do Comportamento<br />

As sensações são divididas em modalidades sensoriais (sentidos), dependendo do<br />

tipo de estímulo ambiental, interno ou externo, do tipo de célula receptora envolvida com o<br />

processo de transdução e do subsistema encefálico envolvido com o processamento dos<br />

estímulos.<br />

Tabela 1 – Algumas modalidades sensoriais (sentidos) e suas características principais.<br />

Modalidade<br />

Estímulo<br />

Tipo de receptor<br />

sensorial<br />

VISÃO Luz Fotorreceptor<br />

AUDIÇÃO Ondas mecânicas lineares Mecanorreceptor<br />

PROPRIOCEPÇÃO Movimentos da cabeça e articulações,<br />

Mecanorreceptor<br />

estiramento e contração de músculos<br />

TATO Estímulo mecânico Mecanorreceptor<br />

TEMPERATURA Quantidade de calor Termorreceptor<br />

DOR<br />

Estímulos físicos ou químicos potencialmente Nociceptor<br />

causadores de dano tecidual<br />

PALADAR Substâncias químicas Quimiorreceptor<br />

OLFATO Substâncias químicas voláteis Quimiorreceptor<br />

INTEROCEPÇÃO<br />

Pressão arterial, concentração plasmática<br />

de substâncias (O2, CO2, glicose, H+, etc),<br />

osmolaridade plasmática, temperatura central<br />

Quimiorreceptor,<br />

mecanorreceptor,<br />

t e r m o r r e c e p t o r ,<br />

osmorreceptor<br />

As modalidades sensoriais por sua vez, são divididas em sub-modalidades, referentes<br />

a características inerentes de cada sensação. Por exemplo, na visão existem cores, brilho,<br />

forma e movimento, na audição existem timbres e tons além da possibilidade de localizar<br />

espacialmente a fonte sonora.<br />

Animais se utilizam continuamente de informações dos meios interno e externo, seja<br />

durante a execução de um movimento, seja na regulação da temperatura corpórea, seja na<br />

regulação da pressão arterial; ou seja, os sensores informam ao sistema nervoso, através<br />

de receptores situados nas paredes das veias e artérias, qual a situação de estiramento das<br />

mesmas e qual a pressão sob as quais trabalham, e também o grau de contração da<br />

musculatura e a posição relativa dos membros, além do estado geral de equilíbrio do corpo,<br />

entre outras coisas, de modo que o organismo possa reagir prontamente a qualquer nova<br />

estimulação. Então, o sistema nervoso atua regulando, entre outras coisas a pressão do<br />

sistema circulatório, o tônus muscular de modo a se manter o equilíbrio etc,<br />

automaticamente, de modo que você sequer se dá conta de que toda essa regulação está<br />

ocorrendo em seu organismo.<br />

Depois de codificados, os estímulos ambientais passam a ser associados, no sistema<br />

nervoso. Essa associação, nos seres humanos, é denominada percepção, e é utilizada por<br />

nós o tempo todo, embora não nos demos conta disso. É a percepção que nos permite<br />

saber se uma música é conhecida, se ela pertence a algum filme de nossa infância, e em<br />

271


V Curso de Inverno<br />

que situação havíamos assistido a tal filme. I.e., é papel do sistema visual codificar e<br />

“montar” tanto os objetos quanto seus limites com o ambiente, e cabe a percepção a ligação<br />

entre ver um rosto e reconhecê-lo como o rosto de um familiar, por exemplo. A visão<br />

processa tudo que está em frente aos olhos, porém é a percepção que seleciona quais<br />

estímulos serão tornados conscientes e colocados em primeiro plano para a integração com<br />

outras informações. Se você está assistindo a um televisor colocado ao lado de uma janela,<br />

o sistema visual processa o televisor, a imagem que ele transmite, a janela e tudo o que se<br />

passa fora dela, porém é pela percepção que as coisas que ocorrem na janela são<br />

ignoradas e passam desapercebidas.<br />

Agora que temos uma idéia geral sobre o sistema sensorial e a percepção, vejamos o<br />

substrato neurobiológico por trás dessas funções, tomando a visão como exemplo: A retina,<br />

localizada na parte posterior do globo ocular, possui dois tipos principais de fotorreceptores<br />

responsáveis pela transdução e processamento inicial da informação visual; os cones e os<br />

bastonetes. Eles possuem diferenças na sensibilidade a diferentes comprimentos de onda e<br />

na velocidade da resposta, sendo os bastonetes mais sensíveis a baixa intensidade<br />

luminosa e, assim, a movimento, e os cones (3 subtipos) sensíveis de maneira seletiva para<br />

determinada região do espectro de freqüências eletromagnéticas. Devido a esta<br />

sensibilidade seletiva, muitas vezes os cones são denominados cones para “vermelho”,<br />

“verde” e “azul”. Entretanto, parece mais apropriado o uso dos termos cone sensível a<br />

comprimentos de onda longos (vermelho), médios (verde) e curtos (azul), respectivamente,<br />

L, M e S (da sigla em inglês). É justamente essa sensibilidade a diferentes comprimentos de<br />

onda, exibida pelos cones, que permite a elaboração de um processamento neural que<br />

culminará com a percepção de cores, como será discutido mais adiante.<br />

A presença de receptores diferentes e especializados faz com que haja uma<br />

separação da informação assim que ela é captada na retina, a qual contém diferentes<br />

classes de células ganglionares, onde começa o processamento paralelo de informação<br />

apresentado pelo sistema nervoso. Os axônios das células ganglionares correm ao longo da<br />

superfície interna da retina e juntam-se para formar o nervo óptico. Sinais representando<br />

cores, movimento, forma e localização, por exemplo, são processadas simultaneamente em<br />

diferentes regiões do encéfalo. Em mamíferos, o nervo óptico projeta-se primariamente ao<br />

tálamo (particularmente o núcleo geniculado lateral), e daí para o córtex visual primário, no<br />

lobo occipital (Figura 1).<br />

Um dos tipos de células ganglionares denominado parvocelular (ou tipo P, por projetarse<br />

para a porção parvocelular do núcleo geniculado lateral, NGL), de menor tamanho,<br />

respondem por mais de 90% da população total de células ganglionares. Outro tipo,<br />

composto por células ganglionares maiores, é denominado magnocelular (ou tipo M, por<br />

projetar-se para a porção magnocelular do NGL), correspondendo, aproximadamente, a 8%<br />

da população. O restante é composto por células que não se enquadram nesta definição e<br />

por isso denominadas por alguns autores de células “não-M–não-P”. Esses diferentes<br />

272


Fisiologia do Comportamento<br />

conjuntos de células ganglionares transmitem diferentes tipos de informação visual para<br />

diferentes regiões do NGL. As células ganglionares do tipo M projetam-se às camadas<br />

magnocelulares do NGL (camadas 1 e 2, mais ventrais). Conduzem potenciais de ação com<br />

maior velocidade e são mais sensíveis a estímulos de baixo contraste. Já as células P<br />

alcançam as camadas parvocelulares do NGL (camadas 3, 4, 5 e 6, mais dorsais) sendo<br />

mais lentas que as células M. Os neurônios pertencentes ao terceiro grupo de células<br />

ganglionares da retina (células não-M–não-P) projetam-se para neurônios do NGL que se<br />

intercalam entre as camadas magno e parvocelulares desse núcleo talâmico (essas<br />

camadas intercaladas são também denominadas “koniocelulares”). Esses conjuntos de<br />

camadas do NGL dão origem a três principais vias visuais, as vias magno, parvo e<br />

koniocelulares, que por sua vez projetam-se para o córtex visual primário (V1) por meio de<br />

projeções denominadas genículo-corticais.<br />

Figura 1 – Esquema mostrando a via tálamo-cortical. A projeção do nervo óptico no tálamo e as<br />

vias magno e parvocelular com inserção no córtex visual primário (modificado de Gazzaniga, 2006).<br />

As células da via magnocelulares se projetam para a quarta camada de V1, para V2 e<br />

V5, envolvida no processamento de informações sobre movimento, relações espaciais e<br />

percepção de profundidade, além de projetarem para outras áreas do córtex parietal<br />

associadas a funções vísuo-espaciais (via dorsal). Por essa razão é que se diz ser esse<br />

sistema primariamente responsável por identificar “onde” um objeto é visto. A via<br />

parvocelular, projeta-se às camadas profundas de V1, parte de V2, e V4, para o córtex<br />

temporal inferior. Ela responde à orientação do estímulo, elemento essencial na percepção<br />

de forma, contribuindo também com elementos fundamentais da percepção de cores.<br />

Resume-se o papel dessa via dizendo-se que ela se relaciona com “o que” é visto, ou seja,<br />

a identidade de um dado objeto. As células koniocelulares do NGL projetam-se para V1, V2<br />

e V4, nesta ordem, e, finalmente para o córtex temporal inferior (via ventral), um circuito<br />

273


V Curso de Inverno<br />

envolvido na percepção de cor e forma.<br />

2006).<br />

Figura 2 – Via retino-genículo-cortical de processamento visual (modificado de Gazzaniga<br />

A separação das projeções das vias magno, parvo e koniocelular não é absoluta,<br />

sendo observadas interações e superposições funcionais entre elas em muitas instâncias ao<br />

longo do processamento visual. Essa segregação, mesmo que parcial, exemplifica o intenso<br />

processamento distribuído e paralelo executado pelo sistema nervoso. Também ilustra como<br />

informações visuais contidas em um único estímulo são detectadas e analisadas<br />

paralelamente por diferentes circuitos neurais, permitindo, por meio de sua atividade<br />

sincrônica, gerar uma sensação unificada da estimulação, no processo perceptivo. Sendo<br />

assim, ao olharmos para uma tartaruga, não vemos primeiro a cor verde, depois a forma<br />

convexa, depois o movimento da direita para a esquerda, de modo fragmentado. Ao<br />

enxergarmos uma tartaruga verde passando na nossa frente da direita para a esquerda, de<br />

fato enxergamos uma tartaruga verde passando na nossa frente da direita para a esquerda,<br />

como um conjunto integrado. Desta forma, podemos dizer que sua identificação vai<br />

depender fundamentalmente da análise de sua forma, processada pela via parvocelular, que<br />

é relacionada com o que vemos. O processamento de suas características cromáticas<br />

(cores), que também auxilia na sua distinção, é realizado por uma via paralela, que se<br />

origina em células ganglionares da retina, que respondem a diferentes comprimentos de<br />

onda e se projeta ao córtex visual por intermédio das vias koniocelular e parvocelular. Um<br />

terceiro subsistema, projetando-se por meio da via magnocelular, estará envolvido no<br />

processamento de seu movimento e de suas relações espaciais, associado, portanto, a<br />

“onde” vemos a tartaruga. Ao final desse processamento, distribuído por diferentes áreas e<br />

processado por diferentes módulos neurais, essas informações fornecem não uma<br />

percepção de características fragmentadas e separadas, mas sim uma percepção integrada<br />

e coerente da cena visualizada. Não está completamente claro como essa associação de<br />

274


Fisiologia do Comportamento<br />

informações distintas processadas paralelamente, porém oriundas de uma mesma cena<br />

visual são associadas, caracterizando o “binding problem”; é possível que essa associação<br />

esteja relacionada com a atividade sincrônica dos diferentes módulos envolvidos no<br />

processamento, sem a necessidade de sua confluência de sua atividade para uma região<br />

específica do sistema nervoso que “integraria” a atividade dos diferentes módulos.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Fuster JM (2006). The cognit: a network model of cortical representation. International Journal of<br />

Psychophysiology 60: 125-132.<br />

Gazzaniga MS, Ivry RV, Mangun GR (2006). Neurociência Cognitiva. Editora Artmed, 2ª edição.<br />

Kandel ER, Schwartz JH, Jessel TM (1995). Essentials of Neural Science and Behavior. Appleton &<br />

Lange.<br />

Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM (2000). Principles of neural science. McGraw-Hill Medical, 4ª<br />

edição.<br />

Lent R (2004) Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos Fundamentais de Neurociência. Editora<br />

Atheneu.<br />

Revisado por Gilberto Xavier e Marcus Vinícius C. Baldo<br />

275


V Curso de Inverno<br />

Integração Neural<br />

Renata Pereira Lima<br />

Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />

renata.plim@gmail.com<br />

Num sistema nervoso, neurônios nunca funcionam isolados; eles estão organizados<br />

em circuitos que processam tipos específicos de informações. O sistema nervoso parece<br />

organizado em grupos de circuitos, i.e., módulos, cujas funções servem a um propósito<br />

comportamental específico. Desta maneira, sistemas sensoriais como a visão ou audição<br />

adquirem e processam informações a partir de ambiente, o sistema motor permite que o<br />

organismo responda a tais informações através da geração de ações. Há, entretanto, um<br />

grande número de células e circuitos que estão entre estas mais ou menos bem definidas<br />

aferências e eferências. Eles são coletivamente referidos como sistemas de associação e<br />

são responsáveis pelas mais complexas funções. Além destas amplas distinções, os<br />

neurocientistas tem convencionalmente dividido o sistema nervoso dos vertebrados, sob o<br />

ponto de vista anatômico, em componentes centrais e periféricos. O sistema nervoso central<br />

(SNC) compreende o encéfalo e a medula espinal. O sistema nervoso periférico (SNP) inclui<br />

fibras de neurônios que conectam os receptores sensoriais na superfície do corpo ao SNC e<br />

a porção motora, que consiste em axônios de nervos motores que conectam o encéfalo e a<br />

medula espinal aos músculos esquelético, viscerais, cardíaco e glândulas.<br />

Embora o arranjo dos circuitos que compõem estes sistemas varie grandemente de<br />

acordo com suas funções, algumas características são comuns entre eles. As conexões<br />

sinápticas que definem um circuito são tipicamente realizadas numa densa malha de<br />

dendritos, e terminais axonais. A direção do fluxo de informação em um circuito particular é<br />

essencial para se entender sua função. Células nervosas que transmitem informações em<br />

direção ao sistema nervoso central são chamadas de neurônios aferentes; já as que<br />

transmitem informações para fora do encéfalo e da medula espinal (ou para fora do circuito<br />

em questão), são chamadas de neurônios eferentes.<br />

Células nervosas que participam<br />

somente no aspecto local do circuito são chamadas de interneurônios. Estas três classes –<br />

neurônios aferentes, neurônios eferentes e os interneurônios – são os constituintes básicos<br />

de todos os circuitos neurais.<br />

De modo geral, podemos classificar os circuitos como:<br />

Convergentes: aquele onde um grupo de neurônios recebe uma aferência (entrada) de<br />

um neurônio pré-sináptico e o circuito tende a se tornar concentrado. Para demonstrar este<br />

tipo de circuito, imagine que tenhamos os neurônios A, B, C e D. Os neurônios A, B e C<br />

possuem cada um deles uma entrada diferente. Estas entradas se projetam para o neurônio<br />

D e este se projeta para outro neurônio, realizando uma eferência (saída). Circuitos<br />

convergentes são responsáveis, por exemplo, pela interpretação dos estímulos sensoriais.<br />

276


Fisiologia do Comportamento<br />

Divergentes: são os circuitos que trabalham de maneira oposta aos circuitos<br />

convergentes. Em vez de concentrar as aferências, estas se projetam separadamente para<br />

diferentes neurônios. No caso do circuito divergente, o neurônio A possui uma aferência e se<br />

projeta para os neurônios B, C e D. A característica básica de um circuito divergente é o fato<br />

de que um neurônio iniciará respostas de maneira crescente em outros neurônios. Tais<br />

circuitos são encontrados nos sistema motores e sensoriais.<br />

Reverberantes: o sinal de aferência é transmitido ao longo de uma série de neurônios<br />

e cada um destes fará sinapses com neurônios de uma porção da via previamente<br />

percorrida. O impulso reverbera sendo enviado ao longo do circuito continuamente até que<br />

um neurônio seja inibido. Então, uma aferência no neurônio A se projeta para o neurônio B,<br />

que se projeta para o neurônio C e então para o D e este se projeta de volta para o neurônio<br />

A (ou para o B) e o ciclo se repete até que um neurônio (que pode ser tanto A, quanto B, C<br />

ou D) seja inibido. Circuitos reverberantes estão envolvidos no ciclo de sono-vigília,<br />

atividades motoras e memórias de longa duração.<br />

Circuitos podem funcionar paralelamente ou serialmente. No funcionamento paralelo,<br />

sinais aferêntes são separados em vias distintas e as informações são analisadas de<br />

maneira analítica concomitantemente no tempo. Por exemplo, o sistema visual funciona em<br />

vias paralelas que processam a informação neural de forma simultânea e integrada. Sinais<br />

representando cores, movimento, forma e localização, por exemplo, são processados<br />

simultaneamente em diferentes regiões do encéfalo. Atividades concomitantes (e<br />

sincronizadas) nas vias visuais dorsal e ventral (que são anatomicamente distintas) são<br />

responsáveis pela percepção unitária da imagem. No funcionamento serial, os resultados do<br />

processamento de um circuito são necessários para que o próximo circuito possa contribuir<br />

para o processamento. Isto é, um neurônio estimula outro neurônio, que por sua vez<br />

estimula outro neurônio e assim por diante. Um exemplo clássico de processamento serial é<br />

o arco reflexo. Um arco reflexo produz uma reação involuntária rápida, na maioria das vezes<br />

inconsciente, que protege o organismo, sendo originado a partir de um estímulo externo que<br />

gera uma resposta antes mesmo do indivíduo tomar conhecimento da existência do estímulo<br />

periférico, e conseqüentemente, antes deste poder comandá-la voluntariamente. Muitos<br />

reflexos motores são controlados por neurônios localizados na substância cinzenta da<br />

medula espinhal e do tronco encefálico (incluindo bulbo, ponte e mesencéfalo),<br />

independentemente da vontade, como por exemplo:<br />

• a retirada imediata da mão de uma panela muito quente;<br />

• extensão da perna após a percussão e estiramento do tendão patelar;<br />

• fechamento da pupila com o aumento da intensidade luminosa;<br />

• aumento da secreção gástrica com a chegada do alimento no estômago.<br />

Desta maneira, o reflexo gera uma reposta involuntária do organismo a um<br />

determinado estímulo (dor, estiramento, aumento da intensidade luminosa, variações da<br />

277


V Curso de Inverno<br />

pressão arterial etc). Ocorrendo um estímulo, a fibra sensitiva de um nervo aferente (ou<br />

sensitivo) transmite-o até a medula espinhal passando pela raiz posterior, ou ao tronco<br />

encefálico, por meio de um nervo craniano. Na medula ou no tronco encefálico o neurônio<br />

aferente comunica-se com o eferente diretamente ou por meio de interneurônios<br />

associativos, gerando, no neurônio motor a atividade que leva à ação. Os axônios eferentes<br />

que levam essa ordem da medula (pela raiz anterior) ou do tronco encefálico (por um nervo<br />

craniano) constituem as fibras eferentes motoras ou vegetativas, que levam a informação ao<br />

órgão efetor (músculo estriado esquelético, glândula, músculo liso ou músculo cardíaco) que<br />

executará a resposta ao estímulo inicial.<br />

É importante ressaltar que o processamento serial é a maneira mais simples que um<br />

circuito pode funcionar. Este tipo de processamento está envolvido nas respostas mais<br />

simples e estereotipadas. Durante o processamento de funções mais complexas, de modo<br />

geral, os circuitos envolvidos além de serem processados em série, funcionam<br />

concomitantemente em paralelo com outros circuitos de maneira sincronizada.<br />

Construção de circuitos e sua modificação pela experiência<br />

A construção da circuitaria do sistema nervoso envolve processos ontogenéticos<br />

associados à interação do sistema com o ambiente. Assim, fatores químicos liberados por<br />

determinados neurônios em diferentes estágios do desenvolvimento ontogenético atraem<br />

projeções de outros neurônios intrinsecamente; paralelamente, essas projeções e conexões<br />

entre neurônios podem originar-se também em associação com a estimulação<br />

proporcionada pelo ambiente e/ou pela atividade de certos conjuntos de neurônios. Assim,<br />

os padrões macroscópicos básicos das conexões no sistema nervoso estabelecidas<br />

filogeneticamente, podem ser microscopicamente alterados por padrões de atividade<br />

neuronal (isto é, experiência), modificando a circuitaria sináptica do encéfalo. A atividade<br />

neuronal gerada em decorrência de interações com o ambiente pré e pós-natal influencia a<br />

estrutura e função do sistema nervoso, além da construção de sua circuitaria.<br />

A história de interação de um individuo com o ambiente, i.e., sua experiência<br />

acumulada, molda os circuitos neurais determinando seu comportamento. Em alguns casos,<br />

as experiências funcionam primariamente como gatilhos que ativam alguns comportamentos<br />

inatos. Mais frequentemente, entretanto, experiências desenvolvidas em períodos<br />

específicos no início da vida (referidos como períodos criticos) determinam um repertório<br />

comportamental no indivíduo adulto. Estes períodos críticos influenciam comportamentos<br />

diversos incluindo laços maternais, preferências sexuais e aquisição de linguagem, entre<br />

outros.<br />

Embora seja possível identificar conseqüências comportamentais de determinados<br />

estímulos, apresentados em períodos críticos, para essas funções complexas, suas bases<br />

biológicas ainda não estão completamente esclarecidas. Talvez o exemplo mais bem<br />

investigado relacione-se ao período critico no estabelecimento da visão. Estes estudos<br />

278


Fisiologia do Comportamento<br />

mostraram que a experiência é traduzida em padrões distintos de atividade neuronal que<br />

influenciam a função e a conectividade dos neurônios relevantes. No sistema visual (e em<br />

outros sistema também) a competição entre aferências com diferentes padrões de atividade<br />

é um determinante importante na consolidação dos padrões de conectividade. Em um<br />

axônio aferente, padrões de atividade correlatos tendem a estabilizar as conexões. Quando<br />

padrões normais de atividade são rompidos (experimentalmente, em animais, ou<br />

patologicamente, em humanos) durante um período critico na infância, a conectividade no<br />

córtex visual é alterada, assim como a função visual. Se não é feita a manutenção destes<br />

padrões até o final do período critico, estas alterações estruturais da circuitaria nervosa<br />

dificilmente se restabelecem posteriormente.<br />

A conectividade nervosa estabelecida ao longo do desenvolvimento normal possibilita<br />

ao encéfalo armazenar vasta quantidade de informações que reflete a experiência especifica<br />

daquele individuo. Como esperado, a construção dessa conectividade que tanto influencia o<br />

desenvolvimento do sistema nervoso gera alterações maiores nos estágios iniciais de<br />

desenvolvimento. Assim, em um animal adulto, o sistema nervoso se torna gradativamente<br />

mais refratário a lições da experiência e o mecanismo celular que media as alterações da<br />

conectividade neuronal se tornam menos plásticos.<br />

Integração entre circuitos: o modelo de redes<br />

O conceito de que no córtex cerebral há domínios discretos dedicados mais ou menos<br />

exclusivamente a algumas funções cognitivas, tais como discriminação visual, linguagem,<br />

atenção espacial, reconhecimento de face, retenção de memória, memória operacional etc,<br />

tem sido questionado devido à falta de evidências conclusivas que o apoiem. Em seu lugar,<br />

modelos de redes neurais têm sido apresentados como uma alternativa mais coerente com<br />

as evidências disponíveis sobre seu funcionamento.<br />

Em 1949, Donald Hebb propôs que durante a aprendizagem neurônios estimulam<br />

outros neurônios, de tal forma que a atividade concomitante de ambos os conjuntos leva a<br />

um fortalecimento das sinapses entre eles, levando a alterações estruturais. De acordo com<br />

essa noção, essa alteração estrutural leva ao armazenamento da informação podendo<br />

explicar o fenômeno da memória. Este modelo postula que todas as representações<br />

cognitivas consistem em redes de neurônios cuja atividade foi associada pela experiência.<br />

Nesse contexto, pode-se assumir que memórias filogenéticas correspondem a redes que se<br />

consolidaram ao longo das gerações e não necessitam de experiência individual para serem<br />

funcionais, embora possam ser aprimoradas pela experiência individual. Tipicamente, um<br />

neurônio recebe informações de cerca de 10 4 neurônios e, por sua vez, projeta-se para<br />

outros 10 4 neurônios. Como o encéfalo humano contém pelo menos 10 11 neurônios, isto<br />

significa dizer que pelo menos 10 19 conexões sinápticas são formadas no cérebro; porém, a<br />

complexidade de seu funcionamento é evidentemente maior, em particular quando se<br />

considera os arranjos seqüenciais pelos quais uma informação pode viajar ao longo de<br />

279


V Curso de Inverno<br />

seqüências de neurônios. Quanto mais freqüentes as exposições a estímulos relevantes,<br />

mais fortes tornam-se essas conexões. Como conseqüência, a informação tende a ser<br />

arquivada de maneira relacional. Isso permite entender porque a recordação envolve,<br />

usualmente, categorias. Por exemplo, ao pedirmos para uma pessoa listar todos os animais<br />

de que se recorda, não raro a lista conterá animais agrupados por categorias de<br />

similaridade, ou seja, quadrúpedes, aves, animais aquáticos, invertebrados etc. O mesmo<br />

ocorre em relação a alimentos; a recordação também será categórica (frutas, verduras,<br />

legumes, carnes etc.). Isso ocorre porque o aumento de atividade eletrofisiológica em<br />

determinados circuitos neurais (que levam à recordação de uma dada informação) tende a<br />

estimular a atividade em circuitos relacionados. Assim, quando aprendemos que<br />

determinado estímulo se refere a um determinado conceito, estamos na verdade fazendo<br />

associações com conceitos que já conhecemos (associando nós de uma rede com outros).<br />

Então, quando visualizamos o desenho de uma tartaruga, integramos todas as informações<br />

disponíveis (cor, forma, contexto, movimento) com os circuitos já consolidados previamente<br />

e que em algum momento foi associado ao conceito “tartaruga”. O mesmo vale para uma<br />

outra modalidade de estímulo, ou seja, um som específico que atribuímos como<br />

característico de um determinado animal, o cheiro de uma comida que está intimamente<br />

ligado com o seu sabor etc.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Fuster JM (2006). The cognit: a network model of cortical representation. International Journal of<br />

Psychophysiology 60: 125-132.<br />

Gazzaniga MS, Ivry RV, Mangun GR (2006). Neurociência Cognitiva. Editora Artmed, 2ª edição.<br />

Helene AF, Xavier GF (2007). Memória (e a elaboração da) percepção, imaginação, inconsciente e<br />

consciência. Em Landeira-Fernandes J, Silva MTA (Eds.), Intersecções entre psicologia e<br />

neurociências, MedBook Editora Científica Ltda.<br />

Kandel ER, Schwartz JH, Jessell TM (2000). Principles of neural science. McGraw-Hill Medical, 4ª<br />

edição.<br />

Seung HS (2000). Half a century of Hebb. Nature Neuroscience 3: 1166.<br />

Revisado por Gilberto Xavier e Marcus Vinícius C. Baldo<br />

280


Fisiologia do Comportamento<br />

Memória e Aprendizagem<br />

Rodrigo Pavão<br />

Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />

rpavao@gmail.com<br />

A memória pode ser definida como a capacidade de um organismo alterar seu<br />

comportamento em decorrência de experiências prévias. Do ponto de vista fisiológico, essa<br />

capacidade é resultado de modificações na circuitaria neural em função da interação do<br />

indivíduo com o ambiente. Como já foi apresentado nos capítulos anteriores, o encéfalo<br />

humano é composto por bilhões de neurônios, cada neurônio se projeta para centenas de<br />

outros neurônios, e as regiões em que essas células se comunicam são denominadas<br />

sinapses. A Figura 1 (esquerda) mostra um botão terminal do neurônio pré-sináptico “A”<br />

sobrepondo-se ao corpo celular de um neurônio pós-sináptico; o primeiro é capaz de<br />

modular a atividade do segundo. A formação de novas memórias envolve mudanças nas<br />

sinapses existentes (como a do terminal “A“ com o neurônio pós-sináptico) ou a formação de<br />

novas sinapses (como a do terminal axonal “B” sobre o terminal “A” – ver Figura 1, direita);<br />

essas alterações levam à alteração e estabelecimento de circuitos neurais que representam<br />

as memórias arquivadas.<br />

Figura 1 – Sinapses axo-somática (esquerda) e axo-axônica (direita). A atividade do botão<br />

axonal “B” pode modular a liberação de neurotransmissores do botão terminal “A” (modificado de<br />

Carlson, 1998).<br />

Esse conhecimento atual resultou do trabalho de inúmeros personagens;<br />

destacaremos os principais em um breve histórico do estudo da memória. As primeiras<br />

indagações de que se têm notícia na história da humanidade sobre a natureza da memória<br />

foram formuladas pelos filósofos gregos e, posteriormente, reformuladas pelos pensadores<br />

iluministas. No entanto, o estudo experimental da memória teve início no século XIX, com o<br />

desenvolvimento do que hoje denominamos Psicologia Experimental. Hermann Ebbinghaus<br />

(1880) realizou uma série de estudos (avaliando sua própria memória) envolvendo a<br />

memorização de listas de sílabas sem sentido e a recordação das mesmas em diferentes<br />

períodos de tempo depois de sua apresentação. Suas principais observações são<br />

resumidas na Figura 2.<br />

Müller e Pilzecker (1900), inspirados pelos trabalhos de Ebbinghaus, realizaram testes<br />

que envolviam a apresentação de pares de sílabas que cuja lembrança deveria ocorrer após<br />

281


V Curso de Inverno<br />

um intervalo de tempo, oferecendo-se apenas um dos elementos de cada par; uma lista<br />

distratora era oferecida para um segundo grupo de voluntários durante o intervalo de tempo<br />

entre a lista apresentada e a lembrança da primeira lista. Os autores notaram que os<br />

voluntários cuja atenção foi desviada do material estudado exibiram lembrança menor do<br />

que o grupo de voluntários sem desvio da atenção; assim, enfatizaram a fragilidade das<br />

memórias quando a atenção é desviada (Lechner e col.,1999). Esses autores descreveram<br />

também o efeito de perseveração, em que testes posteriores eram afetados por testes<br />

prévios. Os voluntários lembravam-se de pares de sílabas apresentadas em outro teste,<br />

realizado semanas antes, resultando em erros, pois novas combinações deveriam ser<br />

recordadas. A lembrança de combinações estudadas semanas antes evidencia que<br />

atividade cerebral persevera após novo aprendizado (Lechner e col.,1999). Essa atividade é<br />

resultante do processo de consolidação das memórias. No trabalho de Ebbinghauss (1885)<br />

a estabilização da lembrança das sílabas várias horas após sua apresentação é também<br />

resultado desse processo de consolidação.<br />

Figura 2 – Resultados dos estudos de Ebbinghauss envolvendo memorização de listas<br />

de sílabas. Foram descritas (1) a curva de recordação ao longo do tempo após a exposição às<br />

sílabas (painel da esquerda) em que ocorre uma queda rápida da porcentagem de itens<br />

recordados até cerca de duas horas; a partir de então, a porcentagem de itens recordados<br />

permanece praticamente constante, (2) recordação em função da posição na série, em que a<br />

recordação logo após a apresentação da seqüência de itens resulta numa maior lembrança dos<br />

itens posicionados no início e no final da lista de itens, e (3) a curva de aprendizagem, em que<br />

há necessidade de vários dias de treinamento para que a lembrança completa da lista ocorra<br />

com menos treino (Ebbinghauss, 1885).<br />

Esses resultados sugeriram a existência de diferentes tipos de memória, incluindo (1)<br />

uma memória que dura poucos segundos ou minutos, suscetível a interferências e não<br />

consolidada, e (2) memória que dura dias ou semanas, robusta e resistente a interferências,<br />

e consolidada.<br />

Em seu livro Principles of Psychology, William James (1890) denominou esses tipos de<br />

memória como (1) memória consciente primária e (2) memória consciente secundária,<br />

respectivamente. Além disso, esse autor mencionou também, em capítulos distintos,<br />

282


Fisiologia do Comportamento<br />

“habilidades / hábitos”, envolvendo experiência não consciente. Curiosamente, essas idéias<br />

foram ignoradas até a década de 1960.<br />

No início do século XX, o fisiologista russo Ivan Pavlov e o psicólogo americano<br />

Edward Thorndike, descreveram, respectivamente, o Condicionamento Clássico, em que um<br />

animal aprende a associar dois estímulos (e.g., som de campainha a apresentação de<br />

comida) pela sua apresentação contígua, e o Condicionamento Operante em que o animal<br />

aprende a associar uma resposta motora a uma recompensa e uma segunda resposta a<br />

uma punição.<br />

Esses paradigmas estabelecidos por Pavlov e Thorndike influenciaram de modo<br />

decisivo uma escola de pensamento denominada Behaviorismo, que almejava tornar a<br />

psicologia uma “ciência objetiva”, baseada na observação de comportamentos, desprezando<br />

conceitos como pensamento, imaginação, consciência ou mente, que eram consideradas<br />

entidades subjetivas, não passíveis de abordagem experimental. A história do Behaviorismo<br />

pode ser contada por seus conflitos com outras escolas de pensamento, como sua disputa<br />

com a Psicologia Clínica, em que os behavioristas criticavam os psicanalistas por uma<br />

suposta falta de controle experimental e de embasamento lógico e científico. Os<br />

behavioristas defendiam que deve-se estudar as relações entre os estímulos apresentados<br />

e as respostas geradas.<br />

Uma escola alternativa de pensamento também baseada nos estudos iniciais de<br />

Pavlov e Thorndike, denominada Cognitivismo, investigava não apenas como estímulos<br />

geravam reações, mas também os processos não observáveis diretamente, mas que<br />

intervêm entre o estímulo e a resposta. Essa escola de pensamento admite a flexibilidade do<br />

comportamento animal, incluindo conceitos como representação, criação, inteligência,<br />

memória e atenção, conceitos não admitidos pelo behaviorismo por não serem restritos à<br />

relação entre estímulos e respostas.<br />

O cognitivista Edward Tolman (1948) defendeu a idéia de que ratos arquivam em sua<br />

memória uma representação espacial do ambiente, um mapa cognitivo, que permite a<br />

orientação flexível no ambiente, inclusive encontrar atalhos nunca percorridos, mas<br />

dedutíveis a partir do mapa cognitivo. Na esteira dos etologistas, Cooper e Zubek (1958)<br />

realizaram estudos sobre as relações entre os comportamentos inatos e aprendidos (ver<br />

Figura 3).<br />

E os mecanismos fisiológicos subjacentes a esses processos?<br />

Gold e colaboradores (1970) expuseram ratos a uma câmara clara de uma caixa<br />

conectada, por uma porta tipo guilhotina, a uma câmara escura cujo assoalho é constituído<br />

de barras metálicas eletrificáveis. Os ratos rapidamente entram na câmara escura; no<br />

entanto, ao entrarem nessa câmara, levam um choque nas patas. Em tentativa posterior<br />

(teste), realizada 24 horas depois, os animais inseridos na câmara clara não entram na<br />

câmara escura (ver a barra vermelha da Figura 4). Animais de um grupo controle, que não<br />

receberam choque nas patas no dia anterior, entram rapidamente na câmara escura (ver<br />

283


V Curso de Inverno<br />

barra verde da Figura 4). Em experimentos adicionais, a intervalos de tempo variáveis<br />

depois do treinamento com choque nas patas, aplica-se uma corrente elétrica no sistema<br />

nervoso dos animais, um choque eletro-convulsivo (ver Figura 4 - esquerda). Observa-se<br />

que quanto menor o intervalo de tempo entre o choque nas patas e o choque eletroconvulsivo,<br />

maior é o prejuízo de memória aversiva sobre o ambiente escuro. Porém, a<br />

medida que esse intervalo de tempo aumenta, menor é o efeito, como se o choque eletroconvulsivo<br />

perdesse sua efetividade para “apagar” a memória (ver Figura 4 – direita, barras<br />

de cor laranja).<br />

Figura 3 – Ratos de uma mesma população inicial, que apresentavam diferentes níveis<br />

de desempenho em uma tarefa envolvendo a aprendizagem de um labirinto foram cruzados por<br />

gerações sucessivas, gerando uma linhagem “burra” e uma linhagem “brilhante” no<br />

desempenho dessa tarefa. Em seguida, esses animais foram expostos a três condições<br />

ambientais distintas, envolvendo (1) crescimento em ambiente empobrecido (gaiola com<br />

animais isolados), (2) crescimento em ambiente padrão (caixa com um pequeno grupo de<br />

animais), e (3) crescimento em ambiente enriquecido (caixa grande, com muitos animais,<br />

brinquedos etc). Os animais das linhagens “burra” e “brilhante” crescidos em ambientes<br />

empobrecido ou enriquecido exibiram desempenho equivalente. Diferentemente, animais<br />

dessas duas linhagens crescidos em ambiente padrão exibiram marcada diferença de<br />

desempenho; o desempenho dos animais da linhagem “brilhante” foi marcadamente melhor.<br />

Em outras palavras, a diferença existe apenas condição padrão de criação. Os autores<br />

concluíram que tanto fatores inatos como ambientais influenciam o comportamento (modificado<br />

de Cooper e Zubek, 1958).<br />

Shashoua (síntese publicada em 1985) prendeu um flutuador nas nadadeiras peitorais<br />

de peixinhos dourados de modo que os animais ficam em posição invertida. Após longo<br />

esforço de cerca de 3 horas, alguns peixes conseguem volta à posição normal, apesar do<br />

flutuador (Figura 5, treino inicial representado pela curva verde). Se o flutuador for removido<br />

e recolocado três dias depois, os animais que aprenderam a tarefa mais rapidamente; i.e.,<br />

os peixes conseguem voltar à posição normal em apenas 15 minutos, o que indica que eles<br />

284


Fisiologia do Comportamento<br />

aprenderam e retiveram a solução desse desafio (curva azul) (para detalhes sobre esses<br />

experimentos, ver Helene e Xavier, 2007a).<br />

Figura 4 – Experimento ratos e choques. A organização temporal dos eventos e os resultados<br />

estão apresentados à esquerda; os resultados obtidos estão à direita. Modificado de Xavier (2004) e<br />

Gold (1970).<br />

Figura 5 – Experimentos de Shashoua (1985) envolvendo aprendizagem em peixes dourados<br />

(para detalhes ver o texto) (modificado de Shashoua, 1985, e Xavier, 2004).<br />

Em outro teste, Shashoua (1985) injetou valina marcada com hidrogênio radioativo<br />

(valina-H*) no ventrículo encefálico de animais que ficaram por 4h com o flutuador, ou valina<br />

marcada com carbono radioativo (valina-C*) no ventrículo de animais que não foram<br />

treinados. Os encéfalos dos animais dos dois grupos foram homogeneizados conjuntamente<br />

e as proteínas foram separadas por peso molecular. A maioria das proteínas presentes<br />

estava marcada tanto com valina-H* quando com valina-C*; porém, algumas delas estavam<br />

mais marcadas com valina-H*, indicando que elas se originaram no cérebro dos animais que<br />

aprenderam a tarefa; essas proteínas foram denominadas ependiminas. Num terceiro teste,<br />

as ependiminas foram isoladas e injetadas em coelhos para producão de anticorpos<br />

específicos contra as ependiminas. Então, os anticorpos foram injetados no ventrículo<br />

encefálico de peixes que tinham acabado de aprender a tarefa de nadar com o flutuador; no<br />

285


V Curso de Inverno<br />

teste de memória realizado 3 dias depois, esses peixes demoraram cerca de 3h para voltar<br />

à posição normal (Figura 5, curva vermelha). Ou seja, esses animais comportam-se como<br />

se nunca tivessem sido submetidos ao treinamento. Presentemente, as ependiminas são<br />

denominadas “moléculas de adesão celular” e estão diretamente relacionadas com o<br />

fortalecimento e formação de sinapses.<br />

Em conjunto, os resultados dos experimentos envolvendo choques eletro-convulsivos<br />

e síntese de proteínas sugerem que há dois processos envolvidos na manutenção da<br />

memória. Um deles, mais instável, é prejudicado pelo choque eletro-convulsivo, estando<br />

relacionado ao padrão de atividade eletrofisiológica dos neurônios (freqüência de disparos,<br />

por exemplo). O outro, associado com produção de proteínas, parece envolver alterações<br />

estruturais nas sinapses gerando circuitos alterados no sistema nervoso. Num certo sentido,<br />

esses dois tipos de processos parecem sobrepor-se aos descritos por James (1890).<br />

Resumindo, parece haver (1) uma Memória de Curta Duração, baseada na atividade<br />

elétrica dos neurônios e, assim, um tanto suscetível a interferências e (2) uma Memória de<br />

Longa Duração, representada por alterações estruturais dos neurônios, particularmente nas<br />

sinapses com outros neurônios, robusta e resistente a interferências.<br />

Onde esses traços de memória estão no sistema nervoso? Eles estariam localizados<br />

em áreas discretas ou estariam espalhadas pelo sistema nervoso? Este tipo de investigação<br />

ficou conhecida como “a busca pelo engrama (= traços de memória)”.<br />

Franz Gall, fundador da Frenologia, no século XIX, defendia que quando uma pessoa<br />

usa muito uma determinada região do cérebro, esta se hipertrofiaria (de modo similar a um<br />

músculo) e, assim, deformava a caixa craniana, gerando um “calombo”; por outro lado, se a<br />

região não fosse usada, ela atrofiaria, gerando uma “depressão”. Seguindo esta concepção,<br />

Gall investigava o formato da caixa craniana de pessoas inteligentes, engraçadas, egoístas,<br />

loucas etc. e propôs mapas sobre a localização das funções mentais (publicados em<br />

revistas especializadas como a American Phrenology Journal, http://www.phrenology.com/<br />

americanphrenology.html). Esta proposta gozou de grande reputação durante o século XIX,<br />

mas foi totalmente abandonada posteriormente.<br />

Figura 6 – Franz Gall e um mapa frenológico.<br />

Na década de 1920, Karl Lashley tentou localizar, em ratos, o engrama, ou seja, os<br />

traços da memória, responsáveis pelo aprendizado do percurso para se orientar num<br />

286


Fisiologia do Comportamento<br />

labirinto. Para testar essa idéia ele fez incisões no córtex antes ou depois do animal<br />

aprender a tarefa; então, avaliava o desempenho do animal, tentando correlacionar a<br />

extensão das lesões, com seu desempenho. O autor descreveu que os prejuízos de<br />

aprendizagem e memória se correlacionam com a extensão da lesão, mas não com sua<br />

localização (ver Bear, 2002; Helene e Xavier, 2007b). Esse resultado favoreceu a hipótese<br />

de que os engramas estão espalhados pelo sistema nervoso e não dispostos em áreas<br />

específicas como propunham, por exemplo, os frenologistas.<br />

No entanto, as memórias parecem não estar totalmente espalhadas pelo encéfalo<br />

como sugerem os resultados de Lashley. Pensa-se, atualmente, que os ratos solucionam a<br />

tarefa valendo-se de diferentes modalidades sensoriais (visão, propriocepção, tato, olfato<br />

etc.) e estratégias (orientação alocêntrica, egocêntrica etc.); quando as lesões são<br />

pequenas, os ratos podem aprender e lembrar a solução usando as modalidades<br />

preservadas; quando as lesões são extensas, o rato é incapaz de aprender ou lembrar do<br />

labirinto.<br />

Essa interpretação vai ao encontro de uma idéia interessante, denominada modelo de<br />

“cell assembly” (de agrupamento de células) de Donald Hebb (1949). De acordo com essa<br />

proposta, o engrama estaria representado em uma rede neural distribuída como<br />

apresentada na Figura 7.<br />

Figura 7 – Esquema representativo de redes neurais de Hebb. Os pontos pretos são os<br />

neurônios e as linhas são as conexões. A rede tem uma organização inicial como representado em<br />

(A); ao receber um estímulo, é ativada (B); esse estímulo pode ser apresentado repetidas vezes, ou<br />

pode ter reverberado nessa rede, de modo que as conexões entre os neurônios são fortalecidas (C e<br />

D); então, um estímulo mais fraco ou mesmo incompleto, mas que mantenha algumas das<br />

características do inicial (D) é capaz de ativar a rede fortalecida (E) (modificado de Bear, 2002, e de<br />

Helene e Xavier, 2007b).<br />

A perspectiva de que o engrama da memória esteja representado em circuitos neurais<br />

que funcionam de maneira cooperativa e que diferentes regiões nervosas podem contribuir<br />

para esse processo, estimulou os neurocientistas a se debruçassem sobre a tentativa de<br />

localizar os sítios da memória em nosso encéfalo.<br />

O estudo do caso do paciente H.M. muito contribuiu para o desenvolvimento dessa<br />

área. Esse paciente sofria de epilepsia intratável (na ocasião); o foco epiléptico situava-se<br />

no lobo temporal medial, bilateralmente. Então, na tentativa de ajudar o paciente, removeu-<br />

287


V Curso de Inverno<br />

se essa estrutura cirurgicamente; isso resultou na remoção dos 2/3 anteriores do hipocampo<br />

e da amígdala, além de outras porções corticais (Scoville e Milner, 1957) (ver Figura 8,<br />

esquerda). Como esperado, H.M. foi curado da epilepsia; porém, exibiu uma perda de<br />

memória. A amnésia de H.M. era anterógrada (o paciente era incapaz de formar novas<br />

memórias) e também retrógrada; porém, neste último caso a amnésia era temporalmente<br />

graduada (ver Figura 8 direita). O prejuízo cognitivo de H.M. estava restrito à aquisição de<br />

memórias de longa duração; suas capacidades perceptuais se mantiveram, assim como seu<br />

QI, sua personalidade e a memória de curta duração; ou seja, estes últimos, estavam todos<br />

preservados (Scoville e Milner, 1957).<br />

Vale ressaltar aqui que mais uma vez foi mostrada a distinção entre memória de curta<br />

duração (associada à atividade elétrica) e memória de longa duração (associada à estrutura<br />

neural) proposta por James um século antes.<br />

Figura 8 – O paciente H.M. teve parte do lobo temporal medial removido bilateralmente (porção<br />

cortical, amígdala e hipocampo). A amnésia exibida por H.M. era anterógrada (ele era incpaz de<br />

formar novas memórias) e retrógrada, neste último caso, temporalmente graduada (lembranças da<br />

juventude e de eventos ocorridos até 2 anos antes da cirurgia foram preservados, mas as lembranças<br />

são gradualmente prejudicadas até o momento da cirurgia (modificado de Bear, 2002 e Xavier, 2004).<br />

No entanto, H.M. conseguia adquirir e reter diversas informações. Por exemplo,<br />

aprendeu a ler palavras invertidas, como se apresentadas por meio de um espelho, após a<br />

cirurgia e também novas habilidades motoras e cognitivas (ver Helene e Xavier, 2007a, para<br />

detalhes). Mesmo assim, se consultado sobre seu treinamento prévio nessas tarefas,<br />

alegava nunca ter feito isso; mesmo assim, seu desempenho nessas tarefas treinadas era<br />

proficiente.<br />

Aparentemente, o hipocampo (e outras estruturas do lobo temporal medial) é<br />

fundamental para a reverberação da atividade neural, que leva ao arquivamento de<br />

informações sobre eventos experienciados. Essa reverberação seria essencial para o<br />

arquivamento das informações sobre “o que” ocorreu, mas não sobre “como” desempenhar<br />

uma tarefa percepto-motora. Na aquisição de uma habilidade, por exemplo, “como” andar de<br />

288


Fisiologia do Comportamento<br />

bicicleta, a aquisição envolveria o treinamento repetitivo e envolveria regiões nervosas<br />

intactas no paciente H.M. Assim, embora o paciente adquira essa habilidade não é capaz de<br />

se recordar “que” já a praticou. Em outras palavras, a natureza da informação “saber que” é<br />

diferente da natureza da informação sobre “saber como” (ver Helene e Xavier, 2007a, para<br />

detalhes). As memórias “saber como” são atualmente denominadas memórias implícitas (o<br />

que faz bastante sentido, pois é muito difícil declarar como se anda de bicicleta) e “saber<br />

que” são denominadas memórias explícitas.<br />

Pacientes com Doença de Parkinson (que exibem disfunções em estruturas nervosas<br />

denominadas gânglios da base) exibem um quadro oposto ao dos amnésicos (que, como<br />

vimos, tem lesão no lobo temporal medial). Os pacientes com disfunções nos gânglios da<br />

base exibem memória explícita preservada e prejuízo da memória implícita; esse prejuízo<br />

pode envolver tanto aprendizagem e desempenho de respostas motoras, como perceptuais<br />

(pacientes com Parkinson, por exemplo, exibem prejuízo na aprendizagem da habilidade de<br />

leitura de palavras invertidas) (Knowlton e col., 1996; Perretta e col., 2005).<br />

A memória de curta duração, preservada em amnésicos e parkinsonianos, usada<br />

corriqueiramente para guardar, por exemplo, um número de telefone obtido numa lista (e<br />

quando terminamos de teclá-lo já não somos mais capazes de declará-lo), está associada<br />

ao funcionamento dos córtices frontal e parietal (Baddeley e Warrington, 1970). A memória<br />

de curta duração é frequentemente denominada memória operacional.<br />

Assim, memória vem sendo classificada em (1) memória de curta duração ou memória<br />

operacional e (2) memória de longa duração. Por sua vez, a memória de longa duração<br />

pode ser subdividida em (2a) memória explícita e (2b) memória implícita.<br />

Memória de Curta Duração (Memória Operacional)<br />

ex. lembrar número da lista telefônica<br />

Memória Explícita<br />

ex. lembranças<br />

Memória Implícita<br />

ex. habilidades e hábitos<br />

mantida em amnésicos<br />

prejudicada em amnésicos, mantida em amnésicos<br />

mantida em parkinsonianos<br />

especialmente para eventos prejudicada em parkinsonianos<br />

prejudicada em pacientes com danos frontais<br />

recentes.<br />

mantida em pacientes frontais<br />

mantida em parkinsonianos<br />

mantida em pacientes frontais<br />

dura poucos segundos ou minutos<br />

suscetível a interferências<br />

dura semanas ou anos<br />

é resistente a interferências<br />

não consolidada (representada no padrão de atividade<br />

eletrofisiológica das redes neurais; e.g., freqüência de<br />

disparos)<br />

consolidada (representada na estrutura das redes neurais; e.g.,<br />

ependiminas) – memória implícita pelo treino repetitivo,<br />

memória explícita pela reverberação (hipocampo)<br />

É possível fazer uma comparação, que poderia ser interpretada como provocação,<br />

entre a Frenologia do século XIX e o modelo de memória atual. Apesar de um pouco<br />

agressiva, essa comparação é útil, pois estimula a interpretação de que os modelos são<br />

aproximações incompletas que nos ajudam entender a realidade (ver http://fisio.ib.usp.br/<br />

fisioteorica). De fato, algumas limitações do modelo de memória podem ser apontadas,<br />

como não levar em conta a dramática plasticidade do sistema nervoso e a clara inspiração<br />

289


V Curso de Inverno<br />

nos equipamentos eletrônicos.<br />

O primeiro aspecto pode ser evidenciado pelo estudo realizado por Leah Krubitzer<br />

(1998) sobre a estrutura cortical de gambás. O córtex de um gambá adulto normal exibe<br />

uma estrutura como a representada na Figura 9 (esquerda); se nos estágios fetais o animal<br />

é submetido à remoção parcial do córtex, seu córtex adulto exibirá estrutura bastante<br />

diferente da do gambá normal (Figura 9, direita). Isso mostra que estruturas relacionadas<br />

com determinados tipos de processamento podem assumir funções distintas (o animal<br />

lesado apresenta uma reorganização generalizada do sistema, não limitado a prejuízo no<br />

processamento visual). Assim, uma interpretação alternativa a dos correlatos anátomofuncionais<br />

obtidos dos estudos envolvendo lesões é de que o sistema lesado funcione de<br />

modo distinto, não limitado ao prejuízo naquela função.<br />

Figura 9 – Organização cortical de gambás adultos. À esquerda o córtex normal e à direita o<br />

córtex re-organizado após uma lesão fetal (modificado de Krubitzer, 1998).<br />

O outro aspecto é o uso de analogia entre funcionamento de equipamentos eletrônicos<br />

e o funcionamento dos sistemas de memória. Isso, em princípio, não é um problema; é<br />

simplesmente uma estratégia de estudo. A evolução dos modelos de memória parecem<br />

corresponder a evolução dos equipamentos eletrônicos, e.g., (1) modelo de conexões<br />

estímulo-resposta inspirada nas centrais telefônicas do início do século XX, (2) os modelos<br />

sobre tipos de memória, estocagem e recuperação da informação inspirados nos<br />

computadores dos anos 50-80 que também sofreram grande avanço e (3) computadores<br />

atuais estão muito mais flexíveis, com grande interação entre hardware e software. Um<br />

exemplo dessa questão, que pode ser apresentada como uma restrição ao entendimento do<br />

sistema nervoso ao avanço tecnológico dos computadores, é evidente nas palavras de<br />

Baddeley (1998): “por que não desenvolver computadores que são baseados em<br />

processamento paralelo, e estudar as capacidades desse sistema para aprender, lembrar e<br />

pensar?”. Talvez a analogia tenha assumido um outro papel que não inspirar / facilitar a<br />

comunicação, tornando-se uma “camisa-de-força” ao restringir o entendimento do fenômeno<br />

às características do sistema descrito na analogia.<br />

Apesar dessas limitações, é inegável que esse modelo é útil e pode gerar<br />

conseqüências práticas. Sabe-se que pacientes com a doença de Parkinson exibem sérias<br />

dificuldades em suas atividades rotineiras, em decorrência do prejuízo da memória implícita.<br />

290


Fisiologia do Comportamento<br />

Piemonte (2000), partindo do conhecimento de que pacientes com a doença de Parkinson<br />

exibem prejuízo da memória implícita, mas memória explícita preservada, treinou esses<br />

pacientes a realizarem suas atividades cotidianas como andar, levantar-se da cama ou vestir<br />

uma camisa, com base em seqüências de instruções memorizadas explicitamente sobre<br />

como executar cada uma dessas tarefas; isto é, cada uma dessas ações foi subdividida em<br />

sub-componentes de movimentos, por exemplo, levantar a perna, virar o tronco, empurrar a<br />

cama, que foram memorizados explicitamente pelos pacientes. Então, essas memórias<br />

declarativas eram utilizadas no momento do desempenho da atividade. O resultado foi um<br />

aumento na velocidade e precisão dos movimentos por parte dos pacientes, com melhora<br />

substancial de sua qualidade de vida. Isso ressalta que modelos, apesar de muitas vezes<br />

incompletos, podem gerar conseqüências práticas e também contribuir para o avanço do<br />

conhecimento numa área.<br />

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Revisado por André Frazão Helene e Gilberto Xavier<br />

292


Fisiologia do Comportamento<br />

Neurofisiologia da Atenção<br />

Claudia F. de O. Marote<br />

Laboratório de Neurociências e Comportamento<br />

claufmar@ib.up.br<br />

Os sistemas sensoriais de um indivíduo recebem uma diversidade de estimulações a<br />

todo momento. Algumas destas entradas sensoriais são relevantes para o comportamento<br />

corrente, outras não. Imagine a situação de dirigir um carro: o acendimento da luz vermelha<br />

no farol deve ser identificado e a resposta apropriada de frear deve ser emitida; o<br />

acendimento da luz vermelha do farol do carro parado à esquerda precisa ser identificado,<br />

mas não necessita de resposta; a luz vermelha do rádio pode ser ignorada. As entradas<br />

sensoriais dos estímulos identificados foram selecionadas e receberam processamento<br />

adicional pelo sistema nervoso enquanto que as demais foram ignoradas. Esta seleção é<br />

efetivada pela atenção, sendo seu estudo, portanto, fundamental para o estudo do<br />

comportamento.<br />

A atenção é mais comumente observada pela alteração do comportamento do<br />

indivíduo. Assim, quando queremos examinar com mais eficiência um evento,<br />

movimentamos o respectivo órgão sensorial em sua direção. O movimento dos olhos, por<br />

exemplo, permite que uma imagem recaia em nossa fóvea, aumentando a eficiência de seu<br />

processamento. Entretanto, quando nos encontramos em um ambiente repleto de pessoas,<br />

com diversas conversas paralelas, conseguimos alternar nossa atenção entre uma conversa<br />

e outra; também conseguimos acompanhar o movimento de uma pessoa interessante “pelo<br />

canto dos olhos”. Ou seja, é possível orientar a atenção sem que haja movimentação da<br />

superfície sensorial, o que é conhecido por “orientação encoberta” da atenção.<br />

No dia-a-dia nos deparamos com inúmeras situações nas quais procuramos um objeto<br />

no meio de muitos outros, por exemplo, quando buscamos um livro específico em uma<br />

estante repleta de livros. Para a investigação desses fenômenos e produção do<br />

conhecimento científico nessa área tenta-se criar testes em que se tem controle sobre as<br />

variáveis em estudos, e que sejam aplicáveis em laboratório.<br />

Descreveremos duas tarefas que envolvem a atenção nas situações descritas acima,<br />

a de orientação encoberta e a de busca visual. Uma forma de mensurar o efeito da atenção<br />

no processamento do estímulo é examinar como os indivíduos respondem a um estímulo<br />

alvo. A medida utilizada é o tempo de reação, i.e., o tempo desde a apresentação do<br />

estímulo até a emissão da resposta, que indica quanto tempo o indivíduo levou para<br />

sinalizar que percebeu o estímulo alvo. Estímulo alvo é o estímulo procurado, ou esperado,<br />

ou seja, o estímulo ao qual o indivíduo deve responder.<br />

TAREFAS EXPERIMENTAIS<br />

Orientação da atenção - Posner (1980) desenvolveu uma tarefa que permite avaliar o<br />

efeito da atenção encoberta. A Figura 1 exemplifica a tarefa.<br />

293


V Curso de Inverno<br />

Figura 1 – Ilustração da tarefa de orientação encoberta (vide texto). A variação na luminância<br />

de um dos quadrados laterais serve como pista para a orientação da atenção. O voluntário deve<br />

pressionar uma tecla ao detectar o alvo. Quando o alvo aparece no mesmo lado da pista (tentativa<br />

válida) o tempo de reação é menor do que quando o alvo aparece no lado oposto (tentativa inválida)<br />

(adaptado de Posner e Raichle, 1994).<br />

Em um monitor são apresentados dois quadrados laterais e uma cruz central. Com o<br />

olhar fixo na cruz, durante todo o experimento, o voluntário deve responder pressionando<br />

um botão ao aparecimento de um estímulo alvo, um círculo dentro de um dos quadrados<br />

periféricos. Em cada tentativa, antes do aparecimento do alvo, um dos quadrados periféricos<br />

sofre uma variação de sua luminosidade, o que serve como pista. O alvo pode ser<br />

apresentado no mesmo lado da pista, constituindo uma tentativa válida, ou no lado oposto,<br />

constituindo uma tentativa inválida. A variável considerada é o tempo decorrido desde o<br />

aparecimento do alvo até a resposta do voluntário, chamado de tempo de reação. O<br />

resultado usualmente observado é que o tempo de reação nas tentativas inválidas é maior<br />

do que o tempo de reação nas tentativas válidas. Uma vez que a resposta emitida é a<br />

mesma nos dois tipos de tentativas e o olhar permanece fixo no centro do monitor, esta<br />

diferença, conhecida como efeito de validade, é atribuída a um processamento interno<br />

diferencial do estímulo nas condições válida e inválida. Este processamento diferencial é<br />

imputado à atenção: considera-se que a pista atrai a atenção e quando o alvo é apresentado<br />

na mesma posição (tentativa válida) a resposta é mais rápida e mais acurada do que na<br />

situação em que a atenção tem que ser movida da posição da pista para o local do alvo<br />

(tentativa inválida) (Posner, 1980; Posner e Raichle, 1994). Estes autores propuseram a<br />

294


Fisiologia do Comportamento<br />

metáfora de que a atenção funciona como o foco de uma lanterna, que ilumina a região<br />

atendida, dando prioridade para os estímulos nela presentes.<br />

A pista pode ser também uma seta próxima da cruz central. Nesta condição considerase<br />

que o voluntário deva intencionalmente orientar a atenção para o lado indicado pela seta.<br />

Este tipo de orientação da atenção é considerado voluntário ou endógeno, em oposição à<br />

orientação automática ou exógena, que ocorreria quando um estímulo atrai a atenção para o<br />

local onde o alvo é apresentado. A condição de orientação endógena também é rotulada “de<br />

cima para baixo”, referindo-se ao controle da atenção por áreas situadas em níveis mais<br />

elevados de processamento do sistema nervoso, e que atuam sobre as áreas em níveis<br />

mais sensoriais. Já a condição de orientação exógena pode ser denominada “de baixo para<br />

cima”, na qual sistemas sensoriais estariam no controle da orientação da atenção.<br />

Tarefa de busca visual - Nesta tarefa, geralmente solicita-se ao indivíduo que<br />

identifique um estímulo específico, o alvo, apresentado em conjunto com outros estímulos,<br />

chamados de distrativos. Por exemplo, procurar uma barra vertical entre diversas barras<br />

horizontais. Nesta tarefa registra-se o tempo que o voluntário leva para identificar o alvo. O<br />

resultado obtido é um tempo de reação bastante curto, e que independe do número de<br />

estímulos distrativos, se o estímulo alvo difere dos mesmos por apenas uma característica,<br />

como se o alvo “saltasse aos olhos”. Já na condição em que o alvo compartilha mais que<br />

uma característica com os estímulos distrativos, por exemplo, buscar uma barra vermelha<br />

vertical entre barras vermelhas horizontais e barras verdes verticais, então o tempo de<br />

reação é tanto maior quanto maior o número de estímulos distrativos presentes no arranjo.<br />

Na busca que “salta aos olhos”, processos pré-atentivos segmentariam o campo visual em<br />

unidades perceptuais, analisando as propriedades básicas (por exemplo, cor, orientação,<br />

movimento) dos elementos do conjunto; tal análise aconteceria em paralelo, daí a resposta<br />

ser rápida. Na condição de busca por mais de uma característica, considera-se que deve<br />

haver uma conjunção de características, o que requereria atenção, pois a busca aconteceria<br />

serialmente, de item a item.<br />

Essas evidências são tomadas como indícios de que a capacidade da atenção é<br />

limitada. Isto é, se a capacidade desse sistema fosse ilimitada, o alvo que envolve<br />

integração de diferentes características poderia ser identificado imediatamente pela<br />

avaliação de cada uma delas simultaneamente, o que não ocorre (Theeuwes, 1994;<br />

Verghese, 2001; Wolfe e Horowitz, 2004). Este tipo de resultado apóia interpretações de que<br />

há um filtro, um gargalo atencional (ver adiante), e tal gargalo localizar-se-ia em estágios<br />

iniciais do processamento da informação, antes da conjunção de características. Entretanto,<br />

estudos posteriores sugeriram que algumas das características dos objetos são integradas<br />

antes do envolvimento da atenção. Desta forma, há evidências de que tanto estágios iniciais<br />

quanto tardios do processamento de informações podem estar sujeitos a gargalos<br />

atencionais de capacidade limitada (Luck e Vecera, 2002).<br />

295


V Curso de Inverno<br />

COMO A ATENÇÃO ATUA NO SISTEMA NERVOSO?<br />

No sistema nervoso toda informação sensorial é transformada em impulso nervoso.<br />

O que significa atender a um objeto?<br />

O estudo da atenção se beneficiou do registro da atividade de células do sistema<br />

nervoso de macacos, durante variantes da tarefa de atenção encoberta. Antes das tentativas<br />

testes, tentativas de instrução informavam ao animal sobre o estímulo alvo e o local a ser<br />

atendido. Para a investigação da atenção nas vias visuais de macacos, um microeletrodo é<br />

introduzido na estrutura candidata, e a atividade extracelular de um neurônio é medida em<br />

diferentes condições de atenção. Inicialmente, o campo receptivo do neurônio é identificado<br />

assim como um estímulo ótimo e um estímulo não-ótimo. A apresentação do estímulo ótimo,<br />

sozinho no campo receptivo, produz uma alta taxa de respostas, enquanto a apresentação<br />

do estímulo não-ótimo produz uma taxa baixa de disparo. A apresentação simultânea dos<br />

dois estímulos produz uma atividade média. Nesta condição a célula não pode representar<br />

os dois estímulos ao mesmo tempo; assim, há uma competição pela representação dos<br />

estímulos. A atenção seria responsável pela resolução desta competição. Isto é, orientar a<br />

atenção para um dos estímulos faz com que a célula responda a este estímulo como se ele<br />

estivesse sozinho no campo receptivo; como se atender a um dos estímulos filtrasse a<br />

influência do outro estímulo (Figura 2) (Gazzaniga et al., 1998; Aston-Jones et al., 1999).<br />

Este tipo de influência atencional já foi demonstrado em diversas estruturas do sistema<br />

visual (Reynolds e Chelazzi, 2004).<br />

Outros estudos envolvendo registro da atividade de células em diversas estruturas<br />

nervosas do sistema visual em macacos despertos fornecem evidências de que as células<br />

nervosas aumentam a taxa de disparo a um único estímulo quando a atenção é orientada<br />

para seu campo receptivo, comparado à taxa de respostas ao mesmo estímulo quando a<br />

atenção está fora do campo receptivo. Este tipo de influência atencional não se aplica a<br />

todos os estímulos e depende da relação entre o estímulo e o ruído que o cerca (ver a<br />

seguir). Também, num subcomponente do sistema visual, conhecido por via ventral, a<br />

modulação atencional é restrita a uma faixa de contraste dos estímulos - para detalhes ver<br />

revisões de Reynolds et al. (2000) e Treue (2001).<br />

Até aqui foram discutidas as alterações da resposta da célula durante a apresentação<br />

do estímulo nas diferentes condições de orientação da atenção espacial. Mas pode-se<br />

realizar também registros que envolvem populações de neurônios.<br />

Muitos estudos sugerem que a seleção atencional pode direcionar-se a características<br />

específicas dos estímulos. Evidências de seleção por características foram obtidas num<br />

experimento clássico utilizando-se a tomografia por emissão de pósitrons. A tomografia<br />

produz imagens do fluxo sanguíneo regional nas diferentes porções do sistema nervoso. Os<br />

efeitos atencionais são avaliados pela diferença entre a imagem produzida durante o<br />

desempenho da tarefa com engajamento atencional e a imagem produzida durante o<br />

desempenho da mesma tarefa, porém sem engajamento atencional; admite-se que essa<br />

296


Fisiologia do Comportamento<br />

subtração permita identificar as estruturas necessárias para o engajamento da atenção. No<br />

estudo mencionado, os indivíduos tinham que prestar atenção a diferentes características<br />

(cor, forma ou velocidade do movimento) de um mesmo conjunto visual. Diferentes regiões<br />

do córtex extraestriado eram ativadas quando os sujeitos atendiam a diferentes<br />

características do mesmo conjunto, resultados que não podem ser explicados invocando-se<br />

a atenção espacial, pois o direcionamento da atenção era alternados entre diferentes<br />

atributos do mesmo objeto no mesmo local (Kanwisher e Wojciulik, 2000).<br />

Figura 2 – Efeito da atenção na resposta eletrofisiológica de um neurônio na área V4 de um<br />

macaco. As áreas delineadas pela circunferência tracejada indicam a região atendida, o estímulo<br />

ótimo é a barra em azul e a barra branca é o estímulo não ótimo. Quando o animal atende ao<br />

estímulo ótimo, o neurônio exibe uma resposta máxima, enquanto a resposta gerada por atender ao<br />

estímulo não-ótimo é menor. Quando a atenção é orientada para fora do campo receptivo, a atividade<br />

registrada é intermediária.<br />

A modulação atencional baseada em características ultrapassa os limites do campo<br />

receptivo de células sensoriais na via dorsal de macacos. A resposta de neurônios do córtex<br />

temporal, MT, a um estímulo que se desloca num sentido preferido é maior quando o animal<br />

está atendendo ao estímulo do que em relação ao deslocamento num sentido não preferido,<br />

mesmo quando o estímulo atendido está longe do campo receptivo da célula registrada. Isto<br />

é, atender a uma característica, tal como a direção de um movimento, parece aumentar a<br />

responsividade de todos os neurônios que respondem preferencialmente a esta<br />

característica, e não somente daqueles cujos campos receptivos incluem o estímulo<br />

atendido (Treue, 2001). Talvez este mecanismo seja mobilizado durante a tarefa de busca<br />

visual.<br />

297


V Curso de Inverno<br />

Figura 3 – Durante o desempenho da tarefa de atenção visual encoberta a amplitude do<br />

registro eletroencefalográfico relacionado ao estímulo atendido é maior do que aquele observado<br />

para o estímulo não atendido (Hillyard et al., 1998).<br />

CONTEXTOS TEÓRICOS/EXPERIMENTAIS<br />

Luck e Vecera (2002) discutiram algumas questões específicas relacionadas à<br />

atenção, que merecem comentário:<br />

Recursos Limitados - É comum a noção de que a atenção não é capaz de processar<br />

todos os estímulos presentes no ambiente. Direcionar a atenção envolve a alocação de<br />

recursos, que seriam limitados, para o processamento de alguns estímulos; assim, quando a<br />

atenção está engajada no processamento de alguns estímulos, haveria limitações ao<br />

processamento de outros estímulos. Porém, existem propostas alternativas.<br />

Ruído na decisão - Considere a situação de busca visual, na qual cada elemento<br />

distrativo que possui uma característica do estímulo alvo é uma fonte de “ruído”, que é<br />

considerada para a decisão sobre se o estímulo é um alvo ou um distraidor. Quanto maior o<br />

número de decisões envolvidas maior a possibilidade de se cometer erros, ainda que<br />

houvesse um observador ideal, sem limitações na capacidade de processamento. De<br />

acordo com esta concepção, a atenção aumentaria o valor da representação do estímulo em<br />

estágios pós-perceptuais, diminuindo a influência do ruído.<br />

Gargalo no processamento da informação - Apesar do sistema sensorial ter uma<br />

capacidade enorme de processamento, assim como o sistema de memória de longa<br />

298


Fisiologia do Comportamento<br />

duração, haveria um processo intermediário, um gargalo atencional, que só lidaria com uma<br />

informação por vez. A discussão sobre se a seleção ocorreria nos estágios iniciais (nos<br />

processos sensoriais) ou em níveis mais elevados de processamento da informação persiste<br />

por décadas. Há evidências fisiológicas de seleção nos estágios iniciais; entretanto, há<br />

também evidências de que ela ocorre em processos pós-perceptuais. Assim, parece que o<br />

gargalo pode acontecer em diferentes estágios.<br />

O problema da integração de características - Um mesmo lugar do espaço<br />

corresponde ao campo receptivo de várias células que processam características diversas,<br />

por exemplo, estímulos horizontais, verticais, vermelho e verde. Quando dois estímulos são<br />

apresentados neste espaço, a atenção seletiva seria a responsável pela integração da<br />

informação das diferentes células de verde e horizontal para um objeto e vermelho e vertical<br />

para o outro.<br />

Ruído interno - Em algumas situações a atenção parece simplesmente aumentar o<br />

valor da representação dos estímulos, mas em outras situações este mecanismo não seria<br />

eficaz. Assim, este tipo de influência seria funcional quando o estímulo está cercado por<br />

pouco ruído e o ruído interno predomina. O ruído interno (ineficiências de processamento)<br />

envolveria aleatoriedades neurais e limitações na codificação das propriedades dos<br />

estímulos, além da perda de informações durante sua transmissão.<br />

A atenção desempenha um papel fundamental no comportamento animal. A questão<br />

central relaciona-se a como e porquê um estímulo particular, numa miríade de estímulos,<br />

recebe processamento preferencial. As tarefas comportamentais que vêm sendo<br />

desenvolvidas para estudos da atenção em laboratório vêm permitindo investigar a atenção<br />

assim como os substratos neurais nela envolvidos. Isso vem permitindo o desenvolvimento<br />

de elaborações teóricas sobre a natureza desta função e como a mesma se relaciona ao<br />

funcionamento do sistema nervoso. Embora não haja consenso sobre sua definição e o<br />

termo “atenção” seja utilizado para referência a múltiplos processos cognitivos distintos, tem<br />

havido progressos significativos na sua compreensão, o que deverá acelerar-se nas<br />

próximas décadas. Esse processo deverá contribuir para um entendimento mais unificado<br />

do funcionamento do sistema nervoso e suas propriedades.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Aston-Jones G, Desimone R, Driver J, Luck SE, Posner M (1999). Attention. In: Zigmond, M., et al<br />

(Ed.). Fundamental Neuroscience. San Diego: Academic Press, p.1385–1409.<br />

Gazzaniga M, Ivry RE, Mangun G (1998). Attention and Selective Perception. In: Gazzaniga, M., et al<br />

(Ed.). Cognitive Neuroscience: The Biology of the Mind. W.W. Norton & Company, p.207-245.<br />

Hillyard SA, Vogel EKE, Luck SJ (1998). Sensory gain control (amplification) as a mechanism of<br />

selective attention: Electrophysiological and neuroimaging evidence. Philosophical Transactions<br />

of the Royal Society of London Series B Biological Sciences, v.353, n.1373, p.1257-1270.<br />

Kanwisher NE, Wojciulik E (2000). Visual attention: Insights from brain imaging. Nature Reviews<br />

299


V Curso de Inverno<br />

Neuroscience, v.1, n.2, p.91-100.<br />

Luck SE, Vecera S (2002). Attention. Steven’s handbook of experimental psychology, v.1, p.235–286.<br />

Posner MI (1980). Orienting of attention. The Quarterly journal of experimental psychology, v.32, n.1,<br />

p.3-25.<br />

Posner MIE, Raichle EM (1994). Networks of Attention. In: Posner, M. I. E Raichle, E. M. (Ed.).<br />

Images of Mind. New York: Scientific American Library.<br />

Reynolds JHE, Chelazzi L (2004). Attentional modulation of visual processing. Annual Review of<br />

Neuroscience, v.27, p.611-647.<br />

Reynolds JH, Pasternak TE, Desimone R (2000). Attention increases sensitivity of V4 neurons.<br />

Neuron, v.26, n.3, p.703-714.<br />

Theeuwes J (1994). Stimulus-driven capture and attentional set: selective search for color and visual<br />

abrupt onsets. Journal of experimental psychology: Human perception and performance, v.20,<br />

n.4, p.799-806.<br />

Treue S (2001). Neural correlates of attention in primate visual cortex. Trends in Neurosciences, v.24,<br />

n.5, p.295-300.<br />

Verghese P (2001). Visual Search and Attention - A Signal Detection Theory Approach. Neuron, v.31,<br />

n.4, p.523-535.<br />

Wolfe JE, Horowitz T (2004) What attributes guide the deployment of visual attention and how do they<br />

do it? Nature Reviews Neuroscience, v.5, n.6, p.495-501.<br />

Revisado por Gilberto Xavier<br />

300


Fisiologia do Comportamento<br />

Causa e Função<br />

Pedro Leite Ribeiro<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

pedrolribeiro@gmail.com<br />

Apoiado numa trama de galhinhos de uma trepadeira, a uns 15 cm do solo, um ninho<br />

de tico-tico abriga um só filhote, na primeira semana de vida. Está sossegado, talvez<br />

dormindo, protegido do sol de verão pela folhagem acima. De repente, bem rápida, chega a<br />

tico-tico e habilmente pousa na beirada do ninho. Ato contínuo, o filhote se ergue, pescoço<br />

esticado para cima, o bico escancarado. A fêmea, agitada ou apressada, mete o bico goela<br />

adentro do pidão, retira-o, e girando o corpo, voa para trás, na direção de onde chegou. Não<br />

ficou nem um instante para descansar do sol dardejante de verão. Alguns minutos depois,<br />

ela chega de novo: mais uma refeição. Mais alguns minutos e a cena se repete. No entanto,<br />

ela não vai à exaustão total, e acaba descansando um pouco. O macho não apareceu por ali<br />

(Robert et al, 1961).<br />

A um metro dali, uns 15 cm abaixo da superfície do solo, enclausurada na câmara que<br />

construiu, uma saúva fêmea, conhecida popularmente pelos nomes de içá e tanajura, põe<br />

mais um ovo de alimentação. Não é um ovo normal, do qual eclode uma larva. É bem maior<br />

e é mole, em contraste com a casca dura dos ovos de procriação. Dobrando-se<br />

ventralmente, leva as mandíbulas até a abertura de seu ovipositor, de onde o ovo vem<br />

saindo, pinça-o com precisão, desdobra-se e o coloca delicadamente na boca de uma das<br />

várias larvas que estão todas juntas. O segura ali enquanto a larva vai sorvendo sua<br />

refeição (Autuori, 1940).<br />

Bem mais longe, uma outra fêmea, uma mulher, engata a primeira marcha em seu<br />

carro e parte para o shopping center. Na lista que leva na bolsa estão anotados vários itens,<br />

incluindo fraldas, mamadeira, chupetas, leite em pó e um carrinho de bebê. Enquanto dirige,<br />

ela pensa na lista, e faz cálculos de dinheiro. Fica preocupada e percebe que vai ter de<br />

pagar com o cartão de crédito. Ao pensar em cada item, aparece em sua mente a imagem<br />

de um bebê: ela sorri.<br />

Os esforços desmedidos que tantas fêmeas, e também alguns machos, de aves e<br />

outras classes de animais - fazem em favor de suas crias, em evidente desfavor de sua<br />

própria sobrevivência, recebem uma explicação simples da teoria da evolução. Elas estão<br />

cuidando da sobrevivência de seus genes. Foram selecionadas. Se as fêmeas de tico-tico<br />

ficassem descansando na sombra, evitando as fadigas da busca de comida para seus<br />

filhotes, seu dispêndio de energia seria muito menor e correriam menos riscos; porém,<br />

perderiam a prole. Seu cálculo da relação entre custos e benefícios não se completa no<br />

balanço energético de seus próprios organismos; ele inclui a descendência como parte<br />

decisiva da equação. Abandonando o ninho, as tico-ticos estariam melhor, precisariam de<br />

menos alimentos para si mesmas, mas não transmitiriam esse comportamento (egoísta?) a<br />

301


V Curso de Inverno<br />

qualquer descendente. O cálculo da formiga é um pouco diferente, mas essencialmente o<br />

mesmo. Fazendo o enorme esforço da fundação de um formigueiro, jejuando durante<br />

meses, vivendo de reservas, inclusive absorvendo seus músculos alares, ela não está<br />

trocando uma vida mais fácil pela procriação. Ela é incapaz de sair da câmara subterrânea<br />

onde se encerrou e buscar comida na superfície. E se não construísse a câmara, ficaria<br />

perambulando pelo solo até ser morta ou morrer de inanição (Autuori, 1942, 1941). Sua<br />

única chance de viver depende de conseguir que suas filhas dêem início a um novo<br />

formigueiro. A tico-tico teria uma ou duas novas oportunidades na mesma estação e outras<br />

mais no ano seguinte. Assim como fêmeas férteis dão origem a fêmeas férteis enquanto<br />

fêmeas estéreis não dão origem a nada, mães extremadas dão origem a mães extremadas,<br />

enquanto mães omissas não dão origem a ninguém; são pontos terminais de linhagens. A<br />

função do ovário e de todo o conjunto de órgãos e processos que resultam na produção dos<br />

ovos completa-se com o comportamento reprodutivo. A função de um órgão só se completa<br />

com o comportamento que o usa.<br />

O estudo funcional do comportamento é a busca de suas conseqüências para a<br />

sobrevivência e para a reprodução. É no exame do contexto adaptativo e dos efeitos do<br />

comportamento que podemos descobrir suas funções. Entendido o organismo como um<br />

sistema que está configurado para manter-se e reproduzir-se, com a manutenção<br />

subordinada à reprodução, é no entendimento do papel de cada comportamento que se dá o<br />

estudo funcional. É comum que os estudantes de Psicologia e Biologia sintam certo malestar<br />

com o conceito de função por causa de sua proximidade com as idéias de meta, fim,<br />

finalidade, propósito e objetivo. Trata-se de um desconforto filosófico, em face do justo<br />

receio de adotar uma visão teleológica da evolução, como se o futuro pudesse determinar o<br />

passado. Tal inquietude, no entanto, decorre de um exame superficial do conceito de função.<br />

É claro que é uma tolice rematada conceber a evolução como um desígnio divino, algo<br />

como a realização de um projeto ou o desdobramento de um plano de alguma forma<br />

presente desde sempre. Uma das muitas notáveis propriedades da mente humana é a sua<br />

habilidade de decifrar as intenções por trás do comportamento alheio. Essa faculdade, tão<br />

adaptativa nas relações sociais, facilmente transborda de seu uso funcional levando-nos à<br />

ilusão de perceber intencionalidade e consciência onde elas não existem. Programando<br />

engenhosamente a movimentação de alguns pequenos círculos numa tela de computador, o<br />

leitor poderá demonstrar a um observador sua tendência a interpretar a movimentação como<br />

se houvesse um enredo de fugas e perseguições. Ora, ao aprender que o estudo científico<br />

não pode deixar-se contaminar ingenuamente pela subjetividade, o estudante pode hesitar<br />

quando se depara com o conceito de função. Contudo, é preciso entender que a Ciência<br />

pode adotar termos de uso corrente sem trazer suas conotações e implicações. A<br />

descoberta de que o canto do tico-tico tem a função de proteger seu território e seduzir as<br />

fêmeas não significa que ele tenha de seu comportamento a mesma consciência que tem<br />

um ser humano em situações análogas. Assim como não há erro conceitual em descrever<br />

302


Fisiologia do Comportamento<br />

as peças de um automóvel dizendo qual é o objetivo de cada uma delas, ou dizer que um<br />

robô procura e usa a tomada para recarregar, ou com o objetivo de recarregar sua bateria,<br />

assim também não há teleologia em reconhecer que a evolução criou organismos dotados<br />

de recursos que dão conta de sua manutenção e reprodução agindo como se estivessem<br />

sendo controlados pelas conseqüências de suas ações.<br />

O controle de suas ações, no entanto, aquilo que os leva a fazer o que fazem a cada<br />

momento, constitui um outro tipo de fenômeno, que devemos chamar de causas do<br />

comportamento. O que leva a içá a fazer cada um de seus movimentos são os estímulos do<br />

ambiente e de seu próprio corpo, seus hormônios e as programações de seu sistema<br />

nervoso. Portanto, a pergunta "por que a içá alimenta as larvas?" tem duas respostas, uma<br />

funcional e outra causal. A observação de que as larvas de formigas são inertes, incapazes<br />

de se alimentarem sozinhas, terá valor no plano funcional. Já a indagação "será que as<br />

larvas dão algum sinal de suas necessidades, ou a produção de ovos de alimentação<br />

obedece a um programa que independe do estado das larvas?" cabe no plano causal.<br />

Investigar se a quantidade de testosterona afeta a freqüência ou a intensidade do canto do<br />

tico-tico é um estudo causal. Já o efeito do canto sobre a preservação do território é uma<br />

questão funcional. Note-se que esse mesmo canto deve também ser entendido como<br />

estímulo que atinge os ouvidos dos machos rivais. Examinado dessa forma, em busca de<br />

como ele controla as ações dos rivais, por exemplo, fazendo-os mais ou menos agressivos,<br />

o canto está dentro de um estudo causal.<br />

Niko Tinbergen, prêmio Nobel de 1973, organizou o estudo do comportamento em<br />

quatro tipos de resposta à pergunta por quê. A resposta causal, a funcional e mais duas que<br />

não serão aqui examinadas. Filogênese: por que está espécie tem esse comportamento?<br />

Como evoluiu? Como se comportavam seus ancestrais? Quais foram as pressões seletivas<br />

que o moldaram? Ontogênese: o repertório comportamental de uma espécie não surge todo<br />

no recém-nascido. Como se dá seu desenvolvimento? Por que tal comportamento aparece<br />

em tal idade? Qual é o papel do aprendizado?<br />

O entendimento da diferença entre causa e função serve bem para evitar confusões<br />

conceituais. O esclarecimento da função de um comportamento não resolve o problema<br />

funcional, mas é útil para gerar hipóteses sobre os fatores que atuam sobre ele. Existem<br />

mariposas que subitamente, em pleno vôo, deixam-se cair como se tivessem sido<br />

mortalmente feridas. Alguns segundos depois, antes de atingirem o solo, elas recobram seu<br />

vôo normal. A descoberta de que a função desse comportamento é protegê-la do ataque de<br />

morcegos leva-nos a buscar algum órgão receptor do ultra-som usado pelos morcegos em<br />

seu sistema de ecolocação.<br />

Em condições normais, no ambiente natural, os fatores causais e as funções têm um<br />

entrosamento admirável. A receptividade sexual acontece quando o organismo está pronto<br />

para a reprodução, apetites específicos quando ocorrem carências específicas, a sede<br />

quando falta água, e assim por diante. Sim, esse entrosamento torna-se admirável quando<br />

303


V Curso de Inverno<br />

se apreende bem a noção de que uma função não produz por si só o comportamento<br />

correspondente. Não é óbvio que a falta de água leve o animal a beber. Entre a falta de<br />

água nos tecidos e as atividades de procurá-la e ingeri-la, é necessária a ação de fatores<br />

causais adequados, a começar pelo reconhecimento correto do objeto, ou seja, o animal<br />

deve engolir água e não areia ou flores. E deve tomá-la e não atacá-la com mordidas. A<br />

compreensão da diferença entre causa e função tem a virtude de problematizar o<br />

comportamento.<br />

Em condições anormais, seja no ambiente natural seja no laboratório, causas e<br />

funções podem desencontrar-se, revelando de forma dramática como é notável o<br />

entrosamento normal. Lesões do hipotálamo lateral tornam os ratos inapetentes a ponto de<br />

morrerem de inanição com comida abundante ao seu alcance. As vítimas humanas de<br />

anorexia entendem bem a diferença entre precisar de comida e ter fome. Drosófilas<br />

mutantes sem asas movem as patas traseiras como se as estivessem limpando. Alguns<br />

cães domésticos dão uma volta em torno do lugar onde estão prestes a deitar-se para<br />

dormir. Há pelo menos um caso bem documentado de cópula entre um chimpanzé e uma<br />

fêmea babuína. E temos também que estar preparados para encontrar comportamentos cuja<br />

função principal não é sua única função, como a sexualidade dos bonobos que, em<br />

condições normais no ambiente natural, inclui rotineiramente relações entre machos, entre<br />

fêmeas e entre adultos e jovens impúberes. Há alguns casos documentados de adoção<br />

interespecífica (Otoni et al in press). No comportamento lúdico, tão comum em mamíferos,<br />

mas presente também em aves, os jovens fazem coisas de adultos, fora tanto do contexto<br />

funcional como do causal.<br />

Assim como nossa capacidade empática pode induzir-nos ao erro de antropomorfizar<br />

o comportamento animal, os animais também têm seus transbordamentos motivacionais.<br />

Tais exceções não devem ofuscar o extraordinário ajuste entre causas e funções sem o qual<br />

não haveria manutenção nem reprodução.<br />

Dias antes daquela ensolarada manhã em que a tico-tico cuidava de buscar comida,<br />

ela vinha sendo furtivamente observada por uma fêmea de chupim. Se a percebesse, a ticotico<br />

talvez tivesse ido embora, abandonando o ninho, para fazer outro em lugar mais seguro.<br />

Não a viu, e a chupim conseguiu botar um ovo junto aos seus. Por predação ou furados pela<br />

chupim, os ovos perderam-se todos, menos um, o da chupim. Foi vã toda a dedicação da<br />

tico-tico. Explorando o sistema causal da hospedeira, a chupim logrou desvirtuar a função<br />

do comportamento da tico-tico, em seu benefício. O parasitismo comportamental é uma lição<br />

fascinante acerca dos modos como o comportamento é controlado. A tico-tico vai continuar a<br />

cuidar do chupim como se fosse seu filho até sua independência, mas terá novas chances<br />

nos anos seguintes (Buzzetti, 2004).<br />

A içá que alimentava as larvas com ordem e precisão perdera a pequena porção de<br />

fungo que pegou do ninho onde nasceu e trouxe na bolsa infrabucal. Essa pelotinha de<br />

fungo era essencial. Ela ia depositá-la com todo o cuidado no chão da câmara, e depois<br />

304


Fisiologia do Comportamento<br />

meticulosamente alimentá-la com suas fezes e fazê-la prosperar. Sem esse jardim de fungo,<br />

seu esforço é vão. Ela continuará a alimentar as larvas, que se tornarão pupas e depois<br />

obreiras que vão cavar um túnel para cima e procurar alimento na superfície. Porém, sem<br />

fungo, o alimento será inútil e mãe e filhas não vão durar muito. Mesmo tendo perdido o<br />

fungo, a içá continuou a responder aos estímulos presentes. Não existe nenhuma<br />

possibilidade de a seleção natural operar e cancelar essa inércia comportamental.<br />

O bebê cuja lembrança fez sorrir a mulher que ia ao shopping center preocupada com<br />

a despesa não é seu filho. É filho de uma amiga, mãe solteira, que está sem dinheiro. O filho<br />

foi planejado. Ela tinha um bom emprego. Não queria casar-se e procurou um homem com o<br />

único fim de ter o filho. Perdeu o emprego e sua vida ficou complicada. A amiga, solidária,<br />

está feliz de poder ajudar. A complexidade do comportamento humano é um desafio para a<br />

análise de causas e funções. O comportamento da mulher que presenteia não parece ser<br />

um excesso de cuidados maternais. Lembra mais os comportamentos altruístas de<br />

fortalecimento de vínculos interpessoais, comuns em animais sociais. Já o comportamento<br />

da mãe, ao planejar o filho, parece inverter ou fundir a relação entre causa e função.<br />

Diferentemente de qualquer outro animal, ela conhece a relação entre a cópula e a gravidez<br />

e entre esta e o nascimento de uma criança. Mesmo que tivesse aversão ao ato sexual, ela<br />

poderia lançar mão da inseminação artificial. O filho, neste caso imaginário específico, não é<br />

a conseqüência desconhecida ou desconsiderada da atividade sexual. Isso foi assim, na<br />

pré-história, antes de nossos ancestrais descobrirem a relação entre sexo e procriação. No<br />

caso que estamos examinando, a reprodução é uma causa dos comportamentos da mãe.<br />

Pode-se fazer uma analogia com o comportamento de busca de algo perdido, que muitos<br />

animais são capazes de fazer. Uma fêmea que se perca de seu filhote e saia a procurá-lo<br />

também constitui um caso em que a distinção entre causa e função fica reduzida ou<br />

anulada. A memória e a capacidade cognitiva permitem que um animal se comporte em<br />

relação a um objeto do qual não recebe qualquer estimulação. O comportamento nesse<br />

caso tem a função de encontrar o objeto que é também parte de suas causas.<br />

Em nós, humanos, a cultura trouxe alterações importantes tanto ao plano<br />

causal quanto ao funcional. Ela não destruiu os sistemas que operavam antes de sua<br />

origem. Ela os transformou em algo que ainda não conseguimos entender. Curiosamente, a<br />

cultura criou os recursos que nos permitem organizar o pensamento científico e com ele<br />

progredir no entendimento do que fazem os outros animais, mas não se revela facilmente a<br />

si mesma. As próprias causas e funções de seu desenvolvimento constituem um desafio<br />

difícil que ainda é objeto de debate entre os que se dedicam a elucidá-las. Com métodos de<br />

observação e experimentação cada vez mais refinados, biólogos e psicólogos vêm<br />

progredindo de modo acelerado no estudo do comportamento animal e humano. A pergunta<br />

"Por que esse animal está se comportando desse modo?" recebe respostas cada vez mais<br />

amplas e convincentes. Quando trocamos animal por ser humano nessa indagação, as<br />

respostas são mais hesitantes, porém o progresso é indiscutível, e as próximas décadas<br />

305


V Curso de Inverno<br />

deverão proporcionar descobertas fascinantes.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Autuori M (1940). Algumas observações sobre formigas cultivadoras de fungo (Hym. Formicidae).<br />

Revista de Entomologia V 11.<br />

______ (1941). Contribuição para o conhecimento da saúva (Atta spp.). I. Evolução do sauveiro (Atta<br />

sexdens rubropilosa Forel, 1908). Arquivos do Instituto Biológico São Paulo, v.12, p.197-228.<br />

______ (1942). Contribuição para o conhecimento da saúva (Atta spp.-Hymenoptera-Formicidae). III.<br />

Escavação de um sauveiro (Atta sexdens rubropilosa Forel, 1908). Arquivos do Instituto<br />

Biológico São Paulo, v.13, p.137-148.<br />

Tinbergen N (1963). On Aims and Methods in Ethology. Zeitschrift für Tierpsychologie, 20: 410-433;<br />

Robert K (1961). Interspecific Preening Invitation Display of Parasitic Cowbirds. A Quarterly Journal of<br />

Ornithology.<br />

Buzzetti D (2004). Nurturing new life. Ed. Terceiro nome.<br />

Revisado por Gilberto Xavier<br />

306


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Capítulo 7<br />

Evolução de Sistemas<br />

Fisiológicos<br />

Autores:<br />

Antonio Carlos da Silva<br />

Fábio de Andrade Machado<br />

Flávio da Silva Nunes<br />

Ivan Prates<br />

Meirielen Caroline da Silva<br />

Monique N. Simon<br />

Pedro Leite Ribeiro<br />

Renata Brandt Nunes<br />

Tatiana Hideko Kawamoto<br />

Vânia Regina de Assis<br />

307


308<br />

V Curso de Inverno


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Fisiologia Evolutiva: contexto histórico e fundamentos<br />

Monique N. Simon<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

msimon@ib.usp.br<br />

“Todos os fisiólogos, com efeito, admitem que a especialização dos órgãos é uma<br />

vantagem para o indivíduo, no sentido que, neste estado, os órgãos desempenham melhor<br />

suas funções; em conseqüência, acúmulo das variações tendentes à especialização é da<br />

alçada da seleção natural. Por outro lado, se for cogitado que todos os seres organizados<br />

tendem a se multiplicar rapidamente e a se apoderar de todos os lugares desocupados, ou<br />

pouco ocupados na economia da natureza, fácil nos é compreender ser muito possível que<br />

a seleção natural prepare gradualmente um indivíduo para uma situação na qual muitos<br />

órgãos lhe serão supérfluos e inúteis; neste caso haveria uma real retrogradação na escala<br />

da organização.”<br />

Charles Darwin<br />

Reflexões sobre a evolução da função de órgãos e sistemas fisiológicos não são<br />

recentes para a comunidade científica. Um exemplo categórico está nas palavras de Charles<br />

Darwin em seu famoso livro “A Origem das Espécies e a Seleção Natural” publicado em sua<br />

primeira edição em 1859. Apesar de Darwin ter dado bastante ênfase aos caracteres<br />

morfológicos e comportamentais dos organismos ao propor a seleção natural como o<br />

mecanismo da evolução, algumas passagens do livro (como por exemplo a exposta acima)<br />

referem-se à fisiologia, inserindo-a em um contexto ecológico. O parágrafo acima demonstra<br />

a clareza com que Darwin percebia a evolução de caracteres fisiológicos, pois compreendia<br />

que os organismos não evoluem em uma única direção (para o aumento da especialização),<br />

mas sim para múltiplas direções dependendo das condições ambientais.<br />

Apesar do antigo interesse de diversos pesquisadores no tema, os evolucionistas<br />

americanos Garland e Carter (1994) consideraram que houve uma grande expansão na<br />

área denominada ‘fisiologia evolutiva’ a partir de 1970. Os estudos anteriores à essa<br />

década, realizados por pesquisadores das áreas de fisiologia comparativa e ecofisiologia,<br />

descreviam caracteres fisiológicos como funções de variáveis ambientais (isto é, a<br />

capacidade de se alterar a fisiologia diante de mudanças ambientais), mas não descreviam<br />

a variabilidade desses caracteres em populações naturais nem o quão herdáveis eram<br />

esses caracteres. O maior enfoque na variabilidade e na herdabilidade (características<br />

primordiais para a evolução) surgiu com o avanço tecnológico e teórico na área: uso de<br />

programas de análise filogenética e de estudos de seleção, e incorporação de conceitos da<br />

genética de populações e da genética quantitativa. Portanto, as variáveis estudadas são as<br />

mesmas da fisiologia comparativa e da ecofisiologia, o que muda é o contexto analítico, as<br />

309


V Curso de Inverno<br />

abordagens adotadas para a compreensão da evolução de sistemas fisiológicos (Bradley e<br />

Zamer 1999).<br />

Garland e Carter (1994) e Feder e colaboradores (2000) destacam o artigo de<br />

Stephan Jay Gould e Richard Lewontin, publicado em 1979, como um marco conceitual<br />

dentro da fisiologia evolutiva, um verdadeiro divisor de águas. No artigo “The sprandels of<br />

San Marco and the Panglossian paradigm: a critique of the adaptacionist programme”, Gould<br />

e Lewontin criticaram o que denominaram como ‘programa adaptacionista’: a pré-concepção<br />

de que todos os padrões de caracteres biológicos resultam de adaptação. De maneira mais<br />

direta: contrariaram o hábito de se considerar tudo como uma adaptação desde o início.<br />

Os autores ponderaram que o programa adaptacionista determina a seleção natural<br />

como uma força muito poderosa e única agindo sobre os indivíduos. Essa idéia contradiz o<br />

que o próprio Darwin afirmava: “Estou convencido de que a seleção natural é a maneira<br />

principal, mas não exclusiva de modificação”. Os estudos que se enquadram nesse<br />

paradigma, nesse modo de pensar, utilizam como único critério para aceitar uma<br />

determinada explicação evolutiva a consistência com a seleção natural. Gould e Lewontin<br />

defenderam que explicações alternativas à idéia de que ‘toda parte do organismo tem um<br />

propósito’ devem ser pensadas.<br />

Um bom exemplo dado por eles é o do Tyranosaurus: tenta-se explicar a existência<br />

de membros anteriores reduzidos em Tyranosaurus de diversas maneiras, sendo uma delas<br />

o uso pelo animal dos pequenos braços para se levantar. Gould e Lewontin enfatizaram que<br />

não era preciso ver o encurtamento dos braços como sendo exclusivamente uma<br />

adaptação. Provavelmente era uma conseqüência inevitável de padrões alométricos<br />

(alometria: estudo das proporções do corpo dos organismos em relação ao seu tamanho<br />

total) de aumento da cabeça em relação aos membros anteriores. Ainda advertiram que não<br />

se deve confundir o uso atual de uma estrutura com sua função original, já que os<br />

caracteres podem ser mantidos por pressões seletivas diferentes das que os originaram.<br />

O artigo de Gould e Lewontin perpetuou um maior rigor evolutivo nos estudos em<br />

fisiologia e uma transição de modelos dedutivos-especulativos (dificilmente testáveis) para<br />

modelos dedutivos-hipotéticos, com a possível falseabilidade das hipóteses e adoção de<br />

explicações alternativas. Com essa mudança de paradigma na fisiologia evolutiva, novas<br />

perguntas foram estabelecidas assim como novas abordagens. Dentre suas questões<br />

capitais estão (Feder e colaboradores 2000):<br />

(1)Quais são os padrões históricos, ecológicos e filogenéticos da evolução<br />

fisiológica?<br />

Quando contextualizamos as espécies em padrões filogenéticos determinamos o<br />

estado ancestral dos caracteres e sua taxa de mudança evolutiva, e aceitamos que a<br />

mudança evolutiva de um caracter (detectado no descendente) relaciona-se com seu estado<br />

ancestral. Um caracter existente em determinada espécie pode ter sido originado no<br />

ancestral e mantido/modificado no descendente pelas mesmas pressões seletivas, por<br />

310


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

outras pressões, ou mesmo ter expressão neutra diante da seleção natural (ou seja, não ser<br />

‘visto’ pela seleção natural por não interferir no sucesso reprodutivo do indivíduo). Ou,<br />

alternativamente, um caracter pode ser mantido/modificado no descendente por outros<br />

fenômenos evolutivos, que não estão necessariamente relacionados com o sucesso<br />

reprodutivo do indivíduo.<br />

A fisiologia evolutiva considera as alterações de caracteres fisiológicos em um<br />

contexto evolutivo, levando em conta a história natural das espécies, sua ecologia e suas<br />

relações filogenéticas. As variáveis estudadas a partir dessa perspectiva possuem agora<br />

uma história, fazem parte de um contexto mais amplo que é a evolução das espécies.<br />

(2) Quão importantes são os processos evolutivos em facilitar ou limitar a<br />

evolução fisiológica?<br />

Questionamentos desse tipo mostram claramente a incorporação de elementos da<br />

biologia evolutiva na fisiologia, principalmente provindos da genética de populações e da<br />

genética quantitativa. A genética de populações utiliza diversos parâmetros para determinar<br />

como evoluíram os genes ou conjuntos de genes dentro de uma população. Esses<br />

parâmetros são tamanho populacional, variação genotípica e fenotípica, herdabilidade,<br />

sobrevivência e reprodução diferenciais, taxas de mutação gênica, freqüência de alelos,<br />

entre outros. Os estudos em fisiologia evolutiva principiaram a utilizar esses parâmetros a<br />

fim de se concluir sobre quais condições naturais de uma população originaram e/ou<br />

mantiveram um certo caracter fisiológico.<br />

A genética de populações expandiu o horizonte de fenômenos evolutivos ressaltados<br />

pela fisiologia para além da seleção natural. Os autores passaram a se interessar por outros<br />

processos, como deriva genética, restrição evolutiva e compromisso evolutivo, e a<br />

considerá-los como mais importantes que a seleção natural em certos casos. Deriva<br />

genética é um processo evolutivo no qual as freqüências de alelos de genes mudam<br />

estocasticamente (ou seja, as probabilidades dos eventos são indeterminadas). A fixação ou<br />

desaparecimento de certos alelos na população ocorre como um fenômeno estocástico,<br />

impassível de previsão e sem a ação de pressão seletiva. A deriva genética é mais comum<br />

em populações pequenas nas quais o processo de especiação origina-se-se de um número<br />

pequeno de indivíduos. Processos de migração e desastres naturais podem levar uma<br />

pequena parcela de uma população a se isolar, e assim, evoluir a partir de número muito<br />

reduzido de indivíduos.. Utiliza-se a idéia de ‘gargalo de garrafa’ para se visualizar o que<br />

ocorre com a freqüência de alelos em uma população que se tornou pequena (Figura 1).<br />

311


V Curso de Inverno<br />

Figura 1 - Efeito gargalo: as bolas<br />

coloridas representam alelos de genes e o<br />

copo representa o isolamento reprodutivo. O<br />

gargalo limita drasticamente a variabilidade<br />

de alelos presentes na população isolada.<br />

O gargalo representa a drástica redução da variabilidade de alelos quando uma<br />

pequena população se isola. O isolamento não precisa ser necessariamente geográfico,<br />

mas precisa ser um isolamento reprodutivo (ou seja, impedimento do fluxo gênico). A deriva<br />

é um processo muito mais veloz que a seleção natural na especiação, e pode até mesmo<br />

fixar um alelo na população que é prejudicial para o sucesso reprodutivo dos indivíduos.<br />

Uma restrição evolutiva (“evolutionary constraint” em inglês) restringe os possíveis<br />

caminhos e modos de mudança evolutiva. Restrições podem ser agrupadas em duas<br />

categorias: filogenéticas e de arquitetura. A restrição filogenética refere-se à impossibilidade<br />

de origem/mudança de caracteres devido à dependência que os descendentes apresentam<br />

com seus ancestrais (inércia filogenética). Ao longo da evolução, certos caracteres/padrões<br />

originam-se e permanecem/mudam enquanto outros desaparecem para uma determinada<br />

espécie, ou seja, o caminho evolutivo vai sendo trilhado. Após certa distância não é mais<br />

possível realizar o caminho inverso e adquirir qualquer caracter/padrão. A inércia filogenética<br />

explica porque moluscos não voam e porque nenhum inseto é tão grande quanto um<br />

elefante.<br />

Restrições de desenvolvimento compõem uma subcategoria de restrição filogenética.<br />

Em organismos complexos, de alta integração das partes, estágios iniciais da ontogenia<br />

(embrião, por exemplo) são marcadamente refratários à mudança evolutiva. Isso se dá,<br />

presumivelmente, por conta de os processos de diferenciação dos órgãos e dos sistemas, e<br />

sua integração, constituírem um fenômeno delicado, muito suscetível a erros precoces que<br />

levam à morte. Como alterações que interferem no desenvolvimento geralmente levam à<br />

morte do indivíduo, a mudança não se perpetua nos descendentes. As mudanças que<br />

podem ocorrer ao longo do desenvolvimento são restritas.<br />

A segunda categoria de restrição evolutiva refere-se às restrições de arquitetura, que<br />

diferentemente das restrições filogenéticas, não são fruto da relação ancestral-descendente,<br />

mas sim provindas de propriedades da constituição e da estrutura dos organismos. Pode-se<br />

imaginá-la como uma restrição ‘interna’ aos organismos. Gould e Lewontin (1979)<br />

exemplificaram esse tipo de restrição com a própria arquitetura: se se desejasse construir<br />

uma estrutura na qual dois arcos são justapostos, uma conseqüência inevitável é o<br />

312


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

surgimento de estruturas triangulares entre os arcos. Os triângulos que surgem não podem<br />

ser quadrados ou retângulos, mas somente triângulos (Figura 2). Se houvesse uma pressão<br />

seletiva para transformar esse triângulo em um quadrado, nessa estrutura de arcos<br />

justapostos, ela não sucederia – uma restrição foi imposta. Uma restrição de arquitetura<br />

limita os caminhos evolutivos pela impossibilidade estrutural ou de constituição física de<br />

certos caracteres responderem a determinadas pressões seletivas.<br />

Figura 2 - Restrição de arquitetura.<br />

A foto da catedral de São Marco foi<br />

utilizada por Gould e Lewontin (1979)<br />

para exemplificarem uma restrição de<br />

arquitetura. A figura ao lado mostra<br />

graficamente o aparecimento inevitável<br />

de um triângulo quando dois arcos são<br />

justapostos.<br />

A idéia de compromisso evolutivo (‘evolutionary tradeoff’) está associada à<br />

genética quantitativa, ciência que foi criada para se compreender as bases genéticas de<br />

caracteres contínuos (de escala contínua, ou seja, qualquer intervalo da escala tem infinitos<br />

valores intermediários – temperatura, por exemplo, em contraponto com a variável discreta/<br />

categórica espécie – não existe 1,5 espécie!). A genética quantitativa assume que os<br />

caracteres contínuos são regulados por muitos alelos, e que cada um tem um pequeno<br />

efeito sobre o fenótipo. Quando há correlação genética entre caracteres, portanto uma<br />

ligação no nível genético entre os mesmos, um compromisso genético pode aparecer. Um<br />

compromisso genético pode ser resultante de pleiotropia, quando um alelo afeta mais de um<br />

caracter. Por exemplo: o desempenho locomotor possui propriedades de velocidade e<br />

resistência. Se um indivíduo sofre pressão em um conjunto de músculos (associados ao<br />

vôo, por exemplo) para atingir uma velocidade ótima, não poderá simultaneamente alcançar<br />

uma resistência ótima. Isso se dá porque as células que constituem os músculos – fibras<br />

musculares – ou aumentam a velocidade (aumento da quantidade de fibras de contração<br />

rápida – brancas) ou aumentam a resistência (aumento das fibras de contração lenta –<br />

vermelhas). Um organismo pode aumentar a velocidade e a resistência simultaneamente,<br />

mas não atingirá o estado ótimo para ambos, já que possuirá em seus músculos uma<br />

proporção de fibras rápidas e lentas.<br />

Um compromisso também pode ser fenotípico, portanto não ter origem em<br />

correlações genéticas e sim fenotípicas. A ligação, portanto, se dá entre fenômenos<br />

fenotípicos. Conhecem-se compromissos fenotípicos de:<br />

• Aquisição: o organismo aumenta o forrageamento – busca por alimento –<br />

mas se expõe mais à predação;<br />

313


V Curso de Inverno<br />

• Alocação: para a manutenção de um mesmo balanço energético, quanto<br />

mais energia metabólica é direcionada para uma parte, menos é direcionada<br />

a outras;<br />

• Especialista-generalista: organismos especialistas possuem desempenho<br />

ótimo em determinadas condições ecológicas, mas são restritos a um<br />

gradiente pequeno de nichos ecológicos, contra organismos generalistas,<br />

que não possuem um desempenho tão ótimo, mas ocorrem em uma ampla<br />

gama de nichos.<br />

O compromisso evolutivo representa a máxima: ‘Ninguém é bom em tudo’.<br />

Deriva genética, restrição evolutiva e compromisso evolutivo são conceitos<br />

fundamentais da fisiologia evolutiva, além de seleção natural e adaptação. A pergunta<br />

seguinte apresenta um dos principais paradigmas da fisiologia evolutiva: o paradigma do<br />

desempenho do organismo.<br />

(3) Como a interação entre genótipo, fenótipo, desempenho e sucesso<br />

reprodutivo influenciam seus próprios valores futuros?<br />

Um objeto clássico da fisiologia é a descrição de cadeias de eventos entre estímulo e<br />

resposta. A elucidação da transdução de sinal e de mecanismos homeostáticos serve de<br />

exemplo. Entretanto, pouco se estudou a recepção de sinais ecológicos e evolutivos por<br />

populações naturais e a manifestação da resposta correspondente – seleção, extinção –<br />

em termos de caracteres fisiológicos. Esse nível de organização mais elevado foi<br />

historicamente menos estudado que níveis menores, como sistemas, órgãos, células e<br />

moléculas.<br />

O indivíduo é uma das principais unidades a responder à seleção natural. O<br />

paradigma do desempenho do organismo mostra como se relacionam genótipo, fenótipo,<br />

desempenho e comportamento (inclusive o reprodutivo, que sofre muita pressão seletiva), e<br />

enfatiza que o desempenho do organismo só faz sentido em um contexto ecológico,<br />

aproximando a fisiologia da ecologia. Esse paradigma está representado na figura 3:<br />

A renovação conceitual dentro da área da fisiologia foi muito frutífera em culminar em<br />

novas perguntas e atingir um nível mais elevado de compreensão da fisiologia geral e da<br />

evolução da fisiologia. A inovação tecnológica também teve sua contribuição na expansão<br />

da fisiologia evolutiva, principalmente através dos estudos de seleção.<br />

Os estudos de seleção permitem a observação da evolução em ação, em tempo real,<br />

e não apenas a especulação de sua atuação através de suas conseqüências. As hipóteses<br />

evolutivas podem ser elaboradas a priori, havendo a migração de uma ciência dedutivaespeculativa<br />

para uma ciência dedutiva-hipotética. Estudos de seleção podem ser<br />

314


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

conduzidos na natureza ou no laboratório. Estudos em populações naturais medem a<br />

sobrevivência e o sucesso reprodutivo diferenciais dos indivíduos e procura correlacioná-los<br />

com caracteres fisiológicos. Notavelmente, houve pouco interesse na variação intraespecífica<br />

e no significado dessa variação em caracteres fisiológicos.<br />

Figura 3 - O paradigma do desempenho do organismo. O genótipo e o ambiente<br />

interagem através do desenvolvimento na determinação das características fenotípicas primárias dos<br />

organismos, categorizadas em bioquímicas, fisiológicas e morfológicas. Em conjunto, essas<br />

características determinam e limitam o desempenho e as habilidades dos organismos. O<br />

desempenho define a extensão ou os limites das capacidades de um organismo, e o comportamento<br />

indica como um organismo usa essas capacidades. Portanto, variações genotípicas ou fenotípicas<br />

apenas serão sujeitas à seleção se seus efeitos se estendem ao nível do desempenho, e portanto do<br />

comportamento.<br />

A grande inovação, contudo, ocorreu com os estudos de seleção em laboratório.<br />

Esse método permite a replicação de populações em ambientes que foram alterados<br />

propositadamente e de maneira controlada. Um dos grandes problemas de delineamento<br />

experimental (planejamento dos experimentos) em campo é a replicação dos dados.<br />

Experimentos sem réplica são experimentos pouco precisos, ou seja, os valores obtidos<br />

representam mal os valores reais para as variáveis consideradas. Além disso, no campo<br />

apenas se observa um número limitado de gerações.<br />

Apesar das destacadas vantagens dos estudos de seleção, o ambiente de<br />

laboratório não reproduz a complexidade da natureza e os animais utilizados como modelos<br />

para esses estudos (Drosophila, E. coli e C. elegans) não são os tradicionais da área da<br />

fisiologia comparativa. Esses modelos são preferidos em laboratório por se reproduzirem<br />

rapidamente, aumentando o número de gerações relativamente rápido, e cuja manutenção<br />

em condições laboratoriais é mais fácil. Mesmo com essas ressalvas, os estudos de seleção<br />

proporcionam condições fantásticas para o estudo de evolução:<br />

315


V Curso de Inverno<br />

• Análise rigorosa de hipóteses, com a implementação de controles e réplicas;<br />

• Minimização do efeito de deriva genética, pela manutenção de populações de grande<br />

tamanho;<br />

• Preservação dos organismos ancestrais (no caso de bactérias, com nitrogênio<br />

líquido) para mensuração de seu sucesso reprodutivo em direta competição com os<br />

descendentes.<br />

Os fisiólogos americanos Bennet e Lenski (1999) consideram que o diferencial dos<br />

estudos de seleção é sua habilidade de testar hipóteses gerais sobre padrões e<br />

conseqüências da adaptação evolutiva. Através dessa técnica, pode-se testar previsões<br />

sobre hipóteses gerais da fisiologia, como a existência de restrições e compromissos<br />

evolutivos, o surgimento de uma adaptação, além de haver a possibilidade de esmiuçar as<br />

vias fisiológicas envolvidas nas mudanças, identificando alterações nos mecanismos.<br />

A revolução conceitual e tecnológica que ocorreu na área de fisiologia evolutiva abriu as<br />

portas para o estudo de novas questões, fundamentais na fisiologia, de maneira rigorosa.<br />

Voltando à citação inicial de Darwin, percebemos que a idéia da seleção natural como único<br />

processo evolutivo perdurou por muito tempo (apesar do próprio Darwin admitir a existência<br />

de outros processos). Com a renovação conceitual e tecnológica a partir de 1970, a<br />

fisiologia evolutiva passou a enxergar outros processos evolutivos - como deriva genética,<br />

restrição e compromisso, e dar a devida importância a eles como agentes ou limites da<br />

evolução.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Bradley, T and WE Zamer (1999) Introduction to the Symposium: What is Evolutionary Physiology?<br />

American Zoologist 39: 321-322.<br />

Garland T and PA Carter (1994) Evolutionary Physiology. Annual Review in Physiology 56: 579-621.<br />

Feder, ME, AF Bennet and RB Huey (2000) Evolutionary Physiology. Annual Review in Ecology<br />

and Systematics. 21: 315-341.<br />

Gould, SJ and RC Lewontin (1979) Tha sprandels os San Marco and the Panglossian paradigm:<br />

a critique of the adaptationist programme. Proceedings of the Royal Society of London B<br />

205: 581-598.<br />

Bennet, AF and RE Zamer (1999) Experimental Evolution and Its Role in Evolutionary<br />

Physiology. American Zoologist 39: 346-362.<br />

Revisado por José Eduardo Pereira Wilken Bicudo<br />

316


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Análise de Dados Comparativos<br />

Fábio de Andrade Machado<br />

Museu de Zoologia da USP<br />

f.machado@usp.br<br />

Tatiana Hideko Kawamoto<br />

Laboratorio de Ecofisiologia e Fisiologia<br />

Evolutiva<br />

tatika@usp.br<br />

O termo Métodos Comparativos define atualmente um conjunto de práticas e<br />

técnicas descritivas e analíticas usadas na comparação entre espécies. A aplicação desses<br />

métodos é mais conhecida em estudos de biologia<br />

evolutiva, como as inferências filogenéticas<br />

(Amorim, 1997) e nos estudos sobre adaptações<br />

(Harvey & Pagel, 1991), muito comuns nas áreas<br />

de fisiologia comparativa e evolutiva.<br />

Historicamente, o conhecimento sobre os<br />

organismos vivos sempre se pautou em<br />

comparações. Desde a antiguidade, mais<br />

notadamente nos escritos de Aristóteles,<br />

definições e classificações foram criadas com<br />

base em comparações entre diferentes<br />

organismos. Ao publicar “A Origem das Espécies”<br />

em 1859, Darwin revolucionou o pensamento científico, na época ainda baseado no<br />

essencialismo aristotélico que havia perdurado por muitos séculos, transformando-o em<br />

pensamento evolutivo. É através da análise comparativa de diversas espécies e da<br />

qualidade transicional de diversos caracteres que Darwin fez sua hipótese a respeito da<br />

descendência comum com modificação. A característica naturalística dos métodos<br />

comparativos tem, assim, fortes laços com a proposição da teoria evolutiva de Darwin como<br />

maneira de estudar os padrões e processos encontrados na natureza. O olhar comparativo,<br />

entretanto, sempre permeou o modo dos cientistas interpretarem o mundo. Mesmo antes de<br />

Darwin, em 1798, o Barão Georges Cuvier desenvolveu o Princípio de Correlação de Partes<br />

que através de comparações anatômicas, mesmo sob uma perspectiva não-evolutiva,<br />

permitiram a reconstrução eficaz de diversas espécies fósseis a partir de materiais<br />

extremamente fragmentados. Apesar de não ser usado para a finalidade original, a idéia de<br />

correlações entre partes elaborada por Cuvier ainda hoje faz parte das técnicas aplicadas à<br />

análise de estrutura dos organismos.<br />

Figura 1 - Composição dos elementos<br />

ósseos dos membros anteriores: (A)<br />

humanos, (B) morcegos, (C) baleias e (D)<br />

cavalos.<br />

A concepção atual de biologia moderna apóia-se fortemente na metodologia<br />

comparativa quando o assunto tem enfoque evolutivo. O grande geneticista e um dos<br />

317


V Curso de Inverno<br />

principais articuladores da Teoria Sintética Theodosius Dobzhansky, em uma resposta às<br />

críticas infundadas contra a teoria evolutiva, escreveu um artigo intitulado “Nada em biologia<br />

faz sentido exceto à luz da evolução” (Dobzhansky, 1973), no qual aponta a evolução como<br />

a teoria unificadora da biologia. De fato, se toda a biologia se apóia em um alicerce<br />

evolutivo, o método comparativo é o que sustenta este alicerce, pois é ele que reúne as<br />

metodologias necessárias para se testar qualquer tipo de hipótese evolutiva.<br />

Em estudos de biologia evolutiva é procedimento comum “dividirmos” os organismos<br />

de interesse em partes ou caracteres, sejam estas “partes” comportamentos, funções<br />

metabólicas, aspectos morfológicos, entre outros. Tais caracteres isolados não<br />

necessariamente apresentam significado biológico (sensu Wilkinson, 1995), pois não<br />

correspondem a uma única unidade biológica válida (Lewontin, 1970; Hull, 1980). O sistema<br />

circulatório e o coração são exemplos de unidades biológicas básicas. Para entendermos<br />

melhor esse conceito, vamos avaliar um outro exemplo. Se quisermos estudar a variação<br />

dos tamanhos de cada dígito (dedo) em diversas espécies de mamíferos podemos fazê-lo,<br />

mesmo que esta informação não seja totalmente isolada e livre de efeitos de covariação.<br />

Considerando que o tamanho de dígitos varia em amplitude entre diferentes mamíferos,<br />

podendo ser grandes em primatas e, de modo extremo, em morcegos (Figura 1.A-B), muito<br />

reduzidos em baleias (Figura 1.C) ou ausentes em espécies de ungulados (Figura 1.D),<br />

medir independentemente cada um dos dígitos pode fazer sentido. Entretanto, morcegos<br />

maiores previsivelmente, possuirão dígitos maiores que morcegos menores como resultado<br />

simples de efeito alométrico, o que nos faz crer que tais medidas não são, de fato,<br />

totalmente desvinculadas. Mesmo assim, a divisão dos organismos nestes caracteres é<br />

válida, mesmo que aparentemente arbitrária, pois permite a investigação da variação nos<br />

padrões biológicos relacionando-os a estruturas que podemos reconhecer e mensurar. O<br />

cuidado que precisamos tomar aqui é não esquecer que cada caráter isolado não é um fator<br />

biológico único, e possíveis correlações devem ser consideradas nas análises e<br />

interpretações de estudos comparativos. Veremos mais adiante algumas formas de lidar<br />

com essas correlações.<br />

Podemos dividir arbitrariamente os métodos comparativos em dois quanto ao<br />

tratamento de caracteres. A primeira abordagem é mais clássica, tendo sido utilizada desde<br />

Carl Linnaeus em seu Systema Naturae, e consiste basicamente na identificação e<br />

descrição de caracteres que compõem um organismo. Estes caracteres são comumente<br />

codificados de maneira discreta (mas não necessariamente), ou seja, em categorias<br />

distintas. Podemos ver um exemplo disso na própria evolução humana, na qual apenas o<br />

Homo sapiens dentre todos os hominídeos não apresenta crista supra-ocular marcada. A<br />

outra abordagem é comumente utilizada em caracteres contínuos que apresentam valores<br />

ou estados que se sobrepõem entre espécies. Por exemplo, se medirmos a massa<br />

corpórea, podemos esperar que este valor seja igual entre, digamos, gatos e cães, apesar<br />

de possivelmente estas duas espécies apresentem tendências centrais (médias) distintas.<br />

318


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Tal abordagem poderia ser chamada de<br />

“populacional”, uma vez que leva em conta<br />

polimorfismos (poli - múltiplas morfia - formas de<br />

um caracter) entre grupos de indivíduos nas<br />

populações. O fato do rinoceronte negro<br />

apresentar dois chifres e de o rinoceronte indiano<br />

apresentar apenas um evidentemente não requer<br />

uma abordagem populacional, pois apenas um<br />

indivíduo (de cada espécie) contém toda a<br />

informação necessária para distinguí-las (apesar<br />

do conhecimento de outros indivíduos ser<br />

necessário para fazer este tipo de inferência).<br />

Figura 2 - Distribuições normais com<br />

diferentes parâmetros: média (µ) e desvio<br />

Entretanto, quando comparamos rinocerontes padrão (σ). Preta (µ=0; σ=1), vermelha (µ=1;<br />

brancos e negros notamos que poderiam diferir σ=1), cinza (µ=0; σ=0,25).<br />

quanto ao comprimento total de seus chifres, e<br />

que sua variação ocorre em função de diversas características ambientais e genéticas.<br />

Sendo assim, a medida do chifre de apenas um exemplar apresenta uma grande imprecisão<br />

que aumenta a possibilidade de generalizar a informação erroneamente. Seria como medir<br />

um homem pigmeu e chegar a conclusão que seres humanos são indistintos em termo de<br />

tamanho dos chimpanzés, ignorando totalmente a ampla diversidade humana. É válido notar<br />

que tais abordagens diferem quanto ao tratamento do caracter e não sua natureza. De<br />

forma similar, caracteres discretos podem apresentar variação populacional, como, por<br />

exemplo, na tentativa de distinguir duas populações humanas quanto ao sistema sanguíneo<br />

ABO, tendo que ser avaliados, assim como outros caracteres estruturados<br />

populacionalmente, de forma estatística.<br />

NOÇÕES DE ESTATÍSTICA<br />

Estatística é o campo matemático ligado à coleta, análise, interpretação e<br />

apresentação de informação que chamamos de dados. Historicamente, a primeira<br />

abordagem estatística é a que conhecemos como censo que procura descrever a população<br />

em sua totalidade. Uma segunda forma de levantarmos dados estatísticos é através de<br />

amostragens representativas do fenômeno de interesse. Dentro dessa segunda abordagem,<br />

muitas vezes as constatações de diferenças entre as amostras não é clara (p.e. há alguma<br />

sobreposição de intervalo de confiança das duas populações dos organismos comparados).<br />

Nestes casos se faz necessária a aplicação de procedimentos que permitam uma decisão, o<br />

mais objetiva possível, a respeito da existência de diferenças significativas entre as<br />

amostras. Assim sendo, a estimativa de parâmetros estatísticos destas populações, como<br />

médias e variâncias, nos fornecem poderosas ferramentas para avaliar as diferenças entre<br />

319


V Curso de Inverno<br />

grupos e nos dá base para inferências científicas. Quando usamos estatística, normalmente<br />

temos que entender um pouco sobre distribuições. Na concepção frequentista de estatística<br />

o que fazemos é utilizar um modelo de distribuição de dados para, de certa forma, simplificar<br />

nossas análises utilizando parâmetros de distribuição, calculados a partir dos dados, e não<br />

os dados em si. O que estamos comparando, no final, não são os dados brutos coletados e<br />

sim modelos de distribuição destes dados dentro de uma lógica de tendência central de<br />

valores (média) à qual está associada a uma<br />

dispersão própria (variância). Quando falamos de<br />

dados biométricos (ou seja, dados biológicos<br />

mensuráveis) normalmente falamos de<br />

informações contínuas que possuem um certo<br />

padrão que nos permite inferir uma distribuição<br />

normal, que é bem representada por apenas dois<br />

parâmetros descritores, a média e a variância<br />

(Figura 2). Tais parâmetros não são puramente<br />

abstratos e podem ser facilmente compreendidos<br />

em termos biológicos. A média (µ) de uma<br />

população de dados, em uma distribuição normal,<br />

pode ser interpretada como o fenótipo mais<br />

freqüente, ou em outras palavras, aquele que<br />

você espera encontrar com maior freqüência em<br />

seu grupo. Já variância (σ²) pode ser entendida como uma medida de dispersão dos dados<br />

ao redor desta média, ou seja, o quanto os pontos obtidos desviam da média. As causas<br />

desta dispersão podem ser muitas, desde variação populacional real até erro de<br />

amostragem, mas raramente a natureza exata destas causas é relevante (a não ser que<br />

algum fator de variação seja exatamente o objeto de estudo).<br />

Figura 3 - Exemplo de 5 grupos com variâncias<br />

intra-grupos iguais (σ²=25) e médias distintas.<br />

Discutiremos brevemente, a seguir, duas das principais técnicas estatísticas<br />

utilizadas em biologia: a analise de variância e a regressão linear. Ambos os métodos<br />

pertencem a uma família de análises chamada de modelos lineares gerais (General Linear<br />

Models). São assim chamados, pois partem do pressuposto que as variáveis em estudo<br />

variam de maneira linear, ou seja, aditiva em função dos fatores causais (ou seja, o efeito de<br />

cada fator pode ser somado para a obtenção do efeito geral). Estes modelos são os mais<br />

simples e serão explicados em sua forma univariada (ou seja, com apenas uma variável).<br />

Consulte Sokal & Rohlf (1995) e Zar (2007) para mais informações com enfoque biológico.<br />

ANOVA: A análise de variância univariada foi um método concebido por Fisher nas<br />

décadas de 1920 e 30 para avaliar simultaneamente as médias de uma dada variável entre<br />

diferentes grupos, sem incorrer no acúmulo de Erro tipo I (rejeitar a hipótese nula quando<br />

ela é verdadeira) ao realizamos comparações de diversos grupos par-a-par. O princípio é<br />

320


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

muito simples: você avalia a diferença estatística entre dois grupos averiguando se a<br />

variância dentro dos grupos é maior do que a entre-grupos (Figura 3). Se existe diferença<br />

entre as médias dos grupos, a variância inter-grupos será a variância total menos a<br />

variância intra-grupo. Note que só com a ANOVA não podemos saber onde está exatamente<br />

a diferença, sendo necessária a aplicação<br />

de testes posteriores.<br />

Regressão linear: Quando queremos<br />

analisar duas variáveis simultaneamente,<br />

avaliando a relação entre elas, estamos<br />

falando de técnicas de regressão.<br />

Intuitivamente o que tentamos fazer é obter<br />

uma reta que “passa” por uma nuvem de<br />

pontos (composta por seus dados), de<br />

maneira que esta reta se ajuste da melhor<br />

froma sobre seus dados (Figura 4). A<br />

regressão linear é muito utilizada para<br />

observar as relações causais entre fatores<br />

biológicos, possibilitando poder de previsão, uma vez que a reta ajustada possui uma<br />

formula que pode ser extrapolada para casos não observados. Por exemplo, se já temos a<br />

equação da reta obtida pela regressão linear da relação entre massa corpórea e consumo<br />

de oxigênio basal de dada espécie, podemos estimar de maneira indireta o consumo de<br />

oxigênio basal através da massa corpórea do novo indivíduo estudado.<br />

Estes métodos possuem premissas muito específicas que devem ser levadas em<br />

conta quando testamos qualquer hipótese científica. A primeira premissa óbvia é a de<br />

homogeneidade de variâncias (mesmo tamanho da variância) dentro da população. Isso é<br />

mais claro em ANOVA, uma vez que utilizamos apenas um parâmetro de variância intragrupo<br />

no teste. Se há diferenças de variância intra-grupo, no final da ANOVA não temos<br />

como saber se o teste detectou a diferença entre variâncias ou entre as médias. Entretanto,<br />

sabemos que normalmente nossos grupos de estudo apresentam variâncias distintas.<br />

Mesmo assim, há procedimentos em que podemos corrigir a amostragem de maneira a<br />

podermos aplicar o teste, e assim distinguir claramente o resultado (mais informações Sokal<br />

& Rohlf 1995 e Zar 2007). Existem, entretanto, premissas que não podem ser relevadas<br />

quando analisamos dados comparativos e a principal delas é a da independência dos<br />

dados.<br />

Figura 4 - Relação linear entre duas variáveis<br />

hipotéticas. O tracejado ilustra a reta com equação<br />

estimada pela regressão linear. A estimativa dos<br />

parâmetros minimiza a distância quadrada entre a<br />

reta e os pontos que representam os dados.<br />

Quando avaliamos dados populacionais de forma estatística esperamos que a<br />

inferência estatística seja realizada e sustentada por múltiplas fontes independentes de<br />

evidência. Sendo assim, você não poderia medir a taxa metabólica de um mesmo homem<br />

varias vezes e dizer que a média da sua amostra é uma boa estimativa da população<br />

humana, pois há um viés amostral. De forma análoga, se avaliamos indivíduos quanto à<br />

321


V Curso de Inverno<br />

capacidade de digerir lactose, mas não notarmos que 98% de nossa amostra é aparentada<br />

entre si (irmãos, primos, sobrinhos, tios, etc) nossos resultados apresentarão um forte viés,<br />

uma vez que sabemos que tal traço é fortemente influenciado pela genética. Quando<br />

avaliamos espécies distintas temos um caso especial disso. Tal problema é mais grave<br />

quando avaliamos mais de duas espécies, pois as relações de parentesco podem ser mais<br />

complexas e hierarquicamente estruturadas em filogenias.<br />

FILOGENIAS<br />

Inferência filogenética pode ser definida como o estudo comparativo das espécies ou<br />

grupos de espécies com o intuito de inferir padrões de parentesco entre eles. A taxonomia,<br />

com seu caráter puramente classificatório de um mundo essencialista passou, com o<br />

advento da teoria de descendência com modificação, a transformar-se em sistemática<br />

filogenética e a ter como objetivo último entender a relação de parentesco entre as formas<br />

de vida ao longo do tempo evolutivo (Hunter, 1998). A Sistemática Filogenética, proposta por<br />

Willi Hennig na década de 1950, é o estudo filogenético de grupos aparentados com a<br />

finalidade de testar a validade de grupos naturais (monofilia) e sua taxonomia. Vários<br />

métodos de Sistemática Filogenética foram desenvolvidos dentre os quais o dominante<br />

atualmente é a Cladística. A representação básica de uma hipótese filogenética é o que<br />

chamamos de árvore filogenética composta de uma topologia (espécies ou grupos de<br />

interesse), ramos e nós (representam ancestrais hipotéticos). A cladística baseia-se em<br />

critérios de similaridade para propor estas árvores, mas não em similaridade absoluta e sim<br />

compartilhada por clados. Por exemplo, apesar de hienídeos parecerem com canídeos em<br />

termos gerais, existem características que apontam que hienas são membros do grupo dos<br />

felídeos e viverrídeos. Tais características (sinapomorfias) definem grupos monofiléticos<br />

(que possuem um ancestral comum) e são corroboradas por informação concordante<br />

proveniente de outros caracteres ou fontes de dados do conjunto de organismos em estudo.<br />

É importante sempre lembrar que uma filogenia é uma hipótese de parentesco e sempre<br />

pode mudar, conforme novas evidências surgem. A escolha de uma boa filogenia em que se<br />

irá trabalhar segue critérios de estabilidade de acordo com sua pouca ou nenhuma alteração<br />

após alguns anos de sua proposição.<br />

MÉTODOS FILOGENÉTICOS COMPARATIVOS<br />

Como já colocado, a estruturação hierárquica das espécies gera um certo grau de<br />

dependência (expresso na hipótese filogenética) que se deve ter em mente quando<br />

testamos hipóteses em abordagens comparativas. A pergunta é: devemos sempre nos<br />

preocupar com tal dependência? A resposta obviamente é não. Por exemplo, quando<br />

realizamos uma análise filogenética, levar em conta a dependência seria totalmente<br />

infrutífero, pois destruiria exatamente o propósito da análise, que é testar e corroborar<br />

exatamente estas relações de dependência. Outro exemplo são estudos biomecânicos,<br />

322


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

onde o resultado da força aplicada pela mandíbula de um crocodilo pouco tem a ver com a<br />

filogenia subjacente, mas sim com tamanho da mandíbula, número de fibras musculares e<br />

etc. Mas quando buscamos abordagens evolutivas, a dependência de dados pode ofuscar<br />

completamente a questão.<br />

Quando tentamos correlacionar duas variáveis buscamos identificar fatores causais<br />

na natureza. Por exemplo, se tentarmos correlacionar em diapsidas a endotermia e a<br />

presença de penas, fica óbvio que estamos tentando verificar se a presença de penas está<br />

vinculada à endotermia. Entretanto, todos os diapsidas atuais que são endotermos possuem<br />

penas, o que pode parecer prova de que os fatores estão relacionados, mas não é. Seria o<br />

equivalente a dizer que vertebrados possuem olhos complexos e endosqueleto, logo estas<br />

duas características estão ligadas. Correlação evolutiva não é correlação funcional. Apesar<br />

dos vertebrados terem desenvolvido ossos e olhos, estes caracteres possuem funções<br />

distintas e provavelmente estão presentes em vertebrados simplesmente por estarem<br />

ambas no mesmo ancestral comum. Chamamos este padrão de Pseudo- repetição<br />

Filogenética.<br />

Quando nos deparamos<br />

com pseudorepetição, a principio,<br />

não invalidamos as análises<br />

estatísticas. Se tivermos a<br />

informação sobre a dependência<br />

dos dados podemos, de certa<br />

maneira, corrigir nossos testes para<br />

seu efeito. Na pseudorepetição<br />

filogenética a informação sobre<br />

dependência está codificada nas<br />

filogenias, permitindo inferir o efeito<br />

de tal estrutura nos dados e testar<br />

hipóteses. É importante ressaltar<br />

que as filogenias usadas como base para inferir a estrutura de dependência dos dados<br />

devem ser obtidas de forma independente, ou seja, com uma matriz de dados diferente<br />

daquele que está sendo comparado. Por exemplo, adaptações comportamentais podem ser<br />

testadas com filogenias baseados em morfologia, já adaptações morfológicas não podem<br />

ser analisadas com essa mesma filogenia. O conjunto de métodos utilizados para esta<br />

finalidade são chamados Métodos Filogenéticos Comparativos e a seguir veremos dois<br />

exemplos: Contrastes filogenéticos e Autovetores Filogenéticos.<br />

Figura 5 - Exemplo de aplicação do método de contrastes<br />

filogenéticos. A, B e C representam a topologia, X é o<br />

ancestral hipotético calculado como a média de A e B. Logo<br />

abaixo, os valores obtidos nos dois contrastes.<br />

CONTRASTES FILOGENETICOS<br />

Dentre as soluções propostas, a de Felsenstein (1985) é, de longe, a mais popular<br />

devido à maior simplicidade de sua aplicação. Carvalho et al. (2005) demonstram que o<br />

323


V Curso de Inverno<br />

artigo de 1985 já se tornou um clássico dos estudos de biologia evolutiva tendo sido citado<br />

por 1462 artigos no período de 1985 e 2002. Mesmo após 23 anos de existência, a<br />

expansão da influência do método de Contrastes Independentes ainda está aumentando e o<br />

número de trabalhos que aplicam o método cresce a cada ano.<br />

Felsenstein baseou-se na lógica de que grupos-irmãos divergem a partir de um<br />

mesmo momento no tempo, e por isso, a comparação entre eles não sofre dependência da<br />

estrutura hierárquica. Como a relação entre estes dois grupos é independente, o que<br />

fazemos é um contraste, ou seja, medimos a diferença entre os grupos-irmãos ao longo da<br />

filogenia, considerando o tempo de divergência dado pelo tamanho dos ramos (desviopadrão).<br />

O procedimento é executado de “cima para baixo”, começando no topo seguindo em<br />

direção à raiz, sempre identificando os grupos-irmãos. O número de contrastes resultantes é<br />

N-1, onde N é o número de espécies do clado analisado. Por exemplo, se tivermos 21<br />

espécies dentro de uma filogenia teremos como resultado 20 contrastes independentes.<br />

Outra premissa estatística importante, vista acima no item sobre estatística, é que os dados<br />

tenham distribuições idênticas para que sejam comparáveis. Quando olhamos para a<br />

filogenia percebemos que o tempo de divergência entre os ramos deve ser considerado, já<br />

que quanto mais antiga a divergência entre os ramos, maior a diferença esperada para os<br />

grupos-irmãos. Para resolver esse problema usamos um fator de correção, ou<br />

padronização, onde dividimos cada contraste com a raiz quadrada da soma do tamanho dos<br />

ramos (Figura 5). Como a comparação entre grupos-irmãos pode ser considerada um dado<br />

independente e estabelecendo-se distribuições idênticas através da padronização dos<br />

contrastes, cada contraste pode ser considerado um ponto independente passível de ser<br />

usado em métodos estatísticos convencionais, como regressões, correlações, entre outros.<br />

Agora, lembram-se de que a maior parte das inferências filogenéticas que temos<br />

disponíveis para que possamos usar em nossos contrastes são produzidos através de<br />

técnicas cladísticas, mais precisamente baseadas em morfologia? Essas filogenias não<br />

produzem ramos com relação proporcional de tempo, ou seja, não informam quanto ao<br />

tempo de divergência de cada contraste. O que fazer então? Podemos aplicar tamanho de<br />

ramos arbitrários. Apesar de parecer estranho, simulações em computador mostram que<br />

mesmo esse procedimento mais arbitrário apresenta resultados superiores e mais robustos<br />

do que, alternativamente, desconsiderar totalmente a estrutura filogenética subjacente. Ao<br />

que parece, os método de Contrastes Independentes é pouco sensível a erros de tamanho<br />

de ramos (Diaz-Uriarte & Garland, 1996).<br />

AUTOVETORES FILOGENÉTICOS<br />

O método de regressão de Autovetores Filogenéticos (RAF) foi originalmente<br />

proposto para medir a inércia filogenética de caracteres contínuos (Diniz-Filho et al,1998). A<br />

inércia filogenética pode ser definida como a proporção de variação fenotípica que está<br />

324


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

filogeneticamente estruturada (Diniz-Filho, 2000), ou seja, o quanto a filogenia pode prever o<br />

fenótipo. Por sua simplicidade e plasticidade o método foi estendido para a análise de<br />

correlação de elementos fenotípicos em um contexto filogenético (Diniz-Filho et al, 1999,<br />

2000). O princípio é muito simples: se pudéssemos codificar a filogenia como um caracter<br />

contínuo poderíamos usar este caracter como uma variável preditora (independente) em<br />

uma análise simples de<br />

regressão (como na figura<br />

4). Assim teríamos<br />

valores esperados pela<br />

filogenia (na reta de<br />

tendência) e desvios<br />

desse valor esperado (os<br />

r e s í d u o s ) . A s s i m<br />

d e s d o b r a r í a m o s a<br />

variância fenotípica em<br />

d o i s f a t o r e s , u m<br />

filogenético, proveniente da estrutura filogenética, e outro específico (Diniz-Filho, 2000).<br />

Figura 6 - A filogenia pode ser interpretada como um conjunto de distancias par-a-par entre os taxa,<br />

formando uma estrutura hiperdimensional com n dimensões (A). Como não existe um sistema de<br />

coordenadas pré-definido, qualquer rotação desta hiperestrutura mantêm as relações de distância (B).<br />

Assim, usamos técnica de Coordenadas Principais (C) que cria n eixos de modo que o primeiro novo<br />

eixo resuma a maior parte da variação e todos os seguintes sejam ortogonais (com ângulo de 90º) a<br />

ele, resumindo cada vez menos variação, criando um sistema de coordenadas arbitrário (D).<br />

O primeiro passo é, então, codificar a filogenia em forma de caracter. Para tal<br />

utilizamos uma técnica análoga à técnica de Componentes Principais chamada<br />

Coordenadas Principais, que transforma a informação filogenética na forma de distâncias<br />

filogenéticas (medido de alguma forma, seja distancia molecular, seja numero de passos<br />

entre nós, seja numero de nós, etc) entre cada par de espécies (ver figura 6). Uma vez<br />

extraídos estes novos eixos e (conseqüentemente) novas variáveis que codificam a filogenia<br />

do grupo, tais variáveis podem ser usadas em uma análise de regressão múltipla, que difere<br />

da univariada por ter diversas variáveis preditoras. Na verdade, no caso de RAF, o que<br />

temos é uma única variável preditora complexa, a filogenia.<br />

Apesar de parecer mais complexa, a regressão múltipla pode ser visualizada de<br />

maneira idêntica à regressão univariada, apresentando valores previstos e resíduos<br />

(variação não explicada pelo modelo) (figura 4). Assim sendo, se somarmos todos os<br />

resíduos e dividirmos pela variância total, encontraremos uma porcentagem NÃO explicada<br />

pela RAF e, conseqüentemente, achamos a porcentagem que é de fato explicada. Em<br />

outras palavras, se seu resíduo compõem 13% da variância total, então quer dizer que seu<br />

modelo de regressão (o RAF) explica 87% da variância. Esta variância explicada é o que<br />

325


V Curso de Inverno<br />

chamamos de inércia filogenética, uma vez que é o quão ajustado à uma dada filogenia o<br />

fenótipo está. Os resíduos podem ainda ser usados para testar diferença entre grupos<br />

através de ANOVA ou utilizados em regressões, isolando o efeito da filogenia nos caracteres<br />

avaliados.<br />

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326


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Fisiologia Evolutiva e Reprodução:<br />

o exemplo da evolução da viviparidade em Squamata<br />

Renata Brandt Nunes<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

renata.brandt@gmail.com<br />

Justifico a escolha deste tema para o módulo de Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

por 3 motivos. O primeiro deles é que nós humanos somos vivíparos e temos uma<br />

curiosidade natural sobre a nossa própria reprodução. Em segundo lugar, o modo de<br />

reprodução está intimamente relacionado à fisiologia, ecologia e comportamento de uma<br />

espécie. Por último, a viviparidade é recorrente na história dos vertebrados, com inúmeras<br />

origens distintas (Blackburn, 1999), o que levanta questões evolutivas e funcionais<br />

fascinantes.<br />

Muitas características dos Squamata os tornam o melhor modelo para as<br />

tentativas de se entender a evolução da reprodução mamífera. A maior parte das origens da<br />

viviparidade ocorreu recentemente e em níveis taxonômicos inferiores, o que permite uma<br />

potencial reconstrução da transição evolutiva (Blackburn, 1999). Além disso, por serem<br />

amniotas, suas membranas fetais são homólogas aquelas que contribuem para a placenta<br />

mamífera. Entretanto, é necessário cautela ao se aplicar as conclusões de estudos em<br />

sistemas reptilianos ao sistema mamífero, pois os Squamata são únicos quanto à fisiologia,<br />

apresentam outras características únicas (como clivagem do vitelo isolando parte de sua<br />

massa), além da seqüência pela qual a viviparidade e placentação evoluíram nos dois<br />

grupos ser diferente (Blackburn, 2006).<br />

Numa revisão recente, Blackburn (2006) argumenta que esse tema é recorrente na<br />

literatura e em propostas de financiamento, mas que a discussão de tais trabalhos nunca<br />

traça um paralelo entre a viviparidade de Squamata e Mamíferos, e que sempre fica uma<br />

promessa de estudo futuro. Minha opinião é que esse é um fenômeno interessante demais<br />

para ser justificado somente pelo entendimento da viviparidade nos mamíferos, sendo<br />

justificado por si só. Nesta última revisão citada, você encontrará ainda um pequeno<br />

histórico das pesquisas nesta área.<br />

Modos de reprodução<br />

Neste texto, como na maioria dos artigos científicos da área, seguiremos a<br />

terminologia proposta por Shine em 1985. São ovíparos os animais que fazem a postura de<br />

ovos com casca. Em contrapartida, os vivíparos são os animais dos quais os neonatos<br />

nascem ou que depositam ovos recobertos por um fino saco membranoso do qual emergem<br />

os neonatos em até alguns dias.<br />

Embora a maioria dos Squamata seja ovípara, a viviparidade evoluiu pouco mais de<br />

327


V Curso de Inverno<br />

100 vezes no clado (Blackburn, 1999; Blackburn, 2006; Shine, 1985). Apesar dessa maioria<br />

ovípara, a quase totalidade das espécies apresenta uma característica comum conservada,<br />

a retenção uterina prolongada dos ovos (Shine & Thompson, 2006). Dentro da diversidade<br />

de espécies ovíparas de cobras e lagartos, as fêmeas atrasam a postura por cerca de 1/3 do<br />

total do período de desenvolvimento embrionário (Calderon-Espinosa et al., 2006), que na<br />

tabela de desenvolvimento mais utilizada (Dufaure & Hubert, 1961) corresponde ao estágio<br />

30 (sistema circulatório funcional). Toda regra tem exceção e os camaleões estão entre os<br />

poucos squamata que fazem postura de ovos em estágios iniciais de desenvolvimento<br />

(Andrews & Donoghue, 2004) a exemplo de crocodilos e tartarugas.<br />

Transição para a viviparidade<br />

A viviparidade é um caráter derivado da oviparidade (Lee & Shine, 1998). Algumas<br />

espécies como Lacerta vivipara, Lerista bougainvilli, e Saiphos equalis podem ser tanto<br />

ovíparas quanto vivíparas, e isso sugere que a transição é gradual (Calderon-Espinosa et<br />

al., 2006). Entretanto, a escassez de espécies que realizam a postura de ovos, cujos<br />

embriões estão em estágios intermediários (entre os estágios 33 e 40), sugere que esta<br />

transição ocorre rapidamente ou que formas intermediárias não são adaptativas (Blackburn,<br />

1995). Algumas populações ovíparas de espécies bimodais (aquelas que apresentam os<br />

dois modos reprodutivos) fazem a postura de ovos com embriões em estágio de<br />

desenvolvimento mais avançado que a moda para squamata, o estágio 30 (Andrews &<br />

Mathies, 2000). Nestas espécies bimodais, a extensão do desenvolvimento embrionário<br />

intra-uterino é correlacionada negativamente com a espessura da casca. A espessura da<br />

casca, por sua vez, mais o aumento da vascularização do oviduto, e o desenvolvimento<br />

mais extenso do corioalantóide (ou membrana corioalantóide) são tidos como modificações<br />

morfológicas e fisiológicas associadas com a transição evolutiva da oviparidade para<br />

viviparidade (Andrews, 1997; Heulin et al., 2002).<br />

Lee e Shine (1998) concluíram que a viviparidade está sob restrição filogenética,<br />

pois evoluiu em alguns squamata mas não em tartarugas, archosauros e répteis<br />

sphenodontídeos. Robin Andrews explorou essa hipótese em diversos trabalhos posteriores<br />

com lagartos do gênero Sceloporus, comparando um clado tanto com espécies ovíparas<br />

quanto vivíparas (grupo S. scalaris) com um clado em que todas as espécies são vivíparas<br />

(grupo S. undulatus). Nas espécies ovíparas, foi estudada a capacidade para sustentar o<br />

desenvolvimento embrionário no útero sob condições que inibem a oviposição. Como<br />

conclusão, a evolução da viviparidade no grupo S. undulatus é limitada em razão da<br />

incapacidade dos embriões de continuar o desenvolvimento além do estágio normal de<br />

oviposição (Andrews & Mathies, 2000), com exceção de S. virgatus cujos embriões<br />

continuam o desenvolvimento até o estágio 37 (Andrews, 1997). Ao contrário da maioria das<br />

espécies do grupo S. undulatus, algumas espécies ovíparas do grupo S. scalaris, como S.<br />

scalaris e S. aeneus, e que são próximas a espécies vivíparas, têm a habilidade de<br />

328


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

sustentar a embriogênese in utero até estágios avançados (ao menos o estágio 36 em S.<br />

aeneus e 39.5 em S. scalaris (Mathies & Andrews, 1996).<br />

Num trabalho posterior, também com lagartos Sceloporus (Calderon-Espinosa et al.,<br />

2006), a abordagem mudou para a evolução da retenção dos ovos. Estudando grupo de<br />

lagartos Sceloporus, o grupo S. spinosus que apresentam um ancestral comum recente com<br />

o clado irmão, o grupo S. formosus, que é inteiramente vivíparo, os pesquisadores<br />

hipotetizaram que esses lagartos exibiriam uma capacidade maior para a retenção de ovos<br />

além do estágio normal para Sceloporus ovíparos (estágio 30). As fêmeas desse grupo<br />

exibiram de fato uma maior capacidade de retenção de ovos com continuação do<br />

desenvolvimento intra-uterino dos ovos além do estágio normal de postura. Entretanto, o<br />

grau de desenvolvimento variou dentro das ninhadas, como resultado da morte de embriões<br />

durante a embriogênese. Possíveis fatores foram investigados e a posição e o grau de<br />

lotação dentro do oviduto não estão relacionados à sobrevivência dos embriões. Outros<br />

fatores podem estar relacionados à variação no estágio no qual os embriões morreram<br />

como a heterogeneidade no grau de vascularização do oviduto, permeabilidade da casca do<br />

ovo a oxigênio ou os embriões podem ainda diferir na habilidade de sobreviver ou<br />

desenvolver sob pressão de oxigênio diminuída. Uma conclusão importante é que a alta<br />

mortalidade dos embriões retidos e das fêmeas grávidas sugere que a retenção dos ovos<br />

reduz a aptidão (“fitness”) e que a seleção não favoreceria normalmente essa característica.<br />

Cenários evolutivos<br />

E qual seria o cenário evolutivo que levou ao aparecimento da viviparidade?<br />

A resposta a esta pergunta parece envolver regimes térmicos, temperaturas mais<br />

altas aceleram a embriogênese e podem aumentar a viabilidade da prole. Em razão das<br />

temperaturas corpóreas maternas serem maiores do que as temperaturas dos ninhos em<br />

climas frios, mas não em áreas mais quentes, esta hipótese prediz que a viviparidade é mais<br />

provável de evoluir em áreas frias. Há uma revisão muito boa sobre as diversas hipóteses<br />

para o aparecimento da viviparidade em um dos volumes do Biology of the Reptilia, escrita<br />

por Shine (1985). Ele também apresenta uma análise bem completa dos clados e da<br />

distribuição geográfica de onde a viviparidade apareceu, e apesar de estarmos 20 anos de<br />

trabalhos a frente do que o Shine tinha disponível em 1985, esse é um capítulo que vale<br />

muito a pena ser lido ainda hoje.<br />

A hipótese dos “climas frios” concorda com dados de uma ampla variedade de<br />

táxons, adquirindo o status de ortodoxia (Shine, 1985) sem, no entanto, ser submetida<br />

algum desafio de teste (Mendez-de la Cruz et al., 1998; Hodges, 2004). Alguns estudos<br />

mediram diretamente as vantagens acumuladas devido ao prolongamento da retenção<br />

uterina dos ovos em climas frios (Shine, 2002). Algumas dessas vantagens podem ocorrer<br />

em climas mais quentes, como o tropical, por conta da melhora no desenvolvimento<br />

embrionário resultando da seleção materna por temperaturas mais estáveis (Webb et al.,<br />

329


V Curso de Inverno<br />

2006), em vez de mais altas (hipótese da manipulação materna do Shine). A hipótese de<br />

que a viviparidade evoluiu por benefícios térmicos tem apoio empírico bastante robusto,<br />

apesar de relativamente poucos táxons terem sido estudados (Shine & Thompson, 2006).<br />

Raridade dos estágios intermediários<br />

As pressões seletivas operando nos estágios embrionários de oviposição envolvem<br />

as conseqüências do desenvolvimento in útero contra o ninho, e vão depender, portanto,<br />

das respostas dos embriões a condições alternativas de incubação e como essas respostas<br />

mudam enquanto o desenvolvimento procede. De maneira simplista, os requisitos<br />

fisiológicos mais importantes são: temperaturas apropriadas, umidade e as trocas gasosas.<br />

A embriogênese continua normalmente apenas dentro de uma faixa limitada e<br />

espécie-específica (Shine, 1999). Mudanças dentro dessa faixa podem mudar tanto a taxa<br />

de embriogênese quanto as trajetórias de diferenciação (Shine & Thompson, 2006), o que<br />

significa que características fenotípicas dos squamata, como sexo da prole, cor, tamanho,<br />

forma, nível de atividade e desempenho locomotor (Ji & Brana, 1999; Ji et al., 2002;<br />

Deeming, 2004) são modificadas pela experiência térmica pré-eclosão ou de nascimento. É<br />

importante lembrar que a sensibilidade térmica não é constante ao longo da embriogênese,<br />

sendo mais pronunciada no começo do desenvolvimento (Andrews, 2004). Dessa forma,<br />

retenção por períodos mais prolongados no útero afetaria características fenotípicas<br />

diferentes de embriões retidos por um período menor.<br />

Há poucos dados de como mudanças na temperatura durante o período de<br />

incubação afetam as respostas embrionárias. Do que está disponível, se sabe, por exemplo,<br />

que embriões de Vipera aspis, uma espécie vivípara, nascem mais cedo depois de verões<br />

mais quentes. Altas temperaturas logo após a ovulação aumentaram a contagem de<br />

escamas ventrais (número de segmentos corporais), altas temperaturas no meio da<br />

gestação aceleraram o desenvolvimento e adiantaram o parto, e ainda altas temperaturas<br />

no final da gestação reduziram a freqüência de natimortos (Lourdais et al., 2004).<br />

Os embriões, assim como todos os organismos aeróbios, precisam obter oxigênio e<br />

eliminar gás carbônico. O gás carbônico se difunde mais rapidamente através da casca do<br />

ovo do que o oxigênio (Deeming & Thompson, 1991) razão pela qual se acredita que o<br />

oxigênio seja mais limitante ao se considerar custos e benefícios da retenção uterina de<br />

ovos (Andrews & Mathies, 2000). É importante lembrar ainda que o oxigênio difunde-se 4<br />

ordens de magnitude mais devagar na água que no ar. No útero, os poros da casca do ovos<br />

estão preenchidos por fluido, o que faz com que a condutância da casca seja baixa, mas em<br />

estágios iniciais de desenvolvimento a demanda do embrião por oxigênio também é mais<br />

baixa (Vleck & Hoyt, 1991). Em seu curso normal, logo após a postura, a casca do ovo seca<br />

e os poros passam a ser preenchidos por ar, facilitando a troca gasosa no momento anterior<br />

ao grande crescimento exponencial na demanda energética do embrião, quando este está<br />

rapidamente aumentando de massa (Vleck & Hoyt, 1991).<br />

330


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

A estrutura envolvida na troca gasosa do embrião com o meio é o córion, que se<br />

funde ao alantóide, e cresce em íntima associação à casca dos ovos. O corioalantóide<br />

cresce junto do embrião, ao menos em Bassiana duperreyi (Stewart & Thompson, 1996),<br />

não atinge seu tamanho máximo até o estágio 35/36. Mas a modulação das trocas gasosas<br />

pode também ser realizada pelo embrião, através de mudanças na afinidade do sangue pela<br />

molécula de hemoglobina (Ingermann et al., 1991), ou aumentando a capacidade carreadora<br />

do sangue (Warburton et al., 1995).<br />

Além de oxigênio, os embriões de squamata também precisam de água para um<br />

grande número de processos fisiológicos (Packard, 1991). Em contraste com ovos de outros<br />

grupos de répteis como tartarugas e crocodilos, cujo conteúdo inicial de água corresponde a<br />

78% (Belinsky et al., 2004), os ovos de squamata contém em média 69%, e 66% se<br />

considerarmos somente os de casca pergaminosa (Belinsky et al., 2004). Os squamata não<br />

dispõem de um reservatório de água como os outros grupos, o albúmen (Tracy & Snell,<br />

1985), e por essa razão a água necessária para completar o desenvolvimento deve vir de<br />

fontes externas. Entretanto, ainda não está claro como ovos e embriões controlam a troca<br />

de água com o substrato, que seria critico para avaliar as pressões seletivas impostas pela<br />

postura em diferentes estágios embrionários. Até agora, sabe-se que a água precisa se<br />

movimentar pela casca, e que esta portanto, seria um componente critico, e que o embrião<br />

teria certa capacidade de manipular o fluxo de água através de gradientes osmóticos ou por<br />

meio de aquaporinas (Andrews & Mathies, 2000).<br />

A casca é um potencial empecilho às trocas gasosas e hídricas dentro do útero. A<br />

casca dos ovos dos squamata é composta por uma membrana orgânica e uma camada<br />

calcificada fina. Um curto período após a ovulação, os ovos seguem para o útero, onde<br />

estão localizadas as glândulas da casca (Thompson et al., 2004), provavelmente envolvidas<br />

com a deposição da camada orgânica (Heulin et al., 2005). A deposição desta camada<br />

acontece momentos depois da fertilização (Demarco, 1988), quando provavelmente os<br />

embriões estão num estágio muito inicial do desenvolvimento. A calcificação ocorre também<br />

no útero (Girling, 2002). O tempo total para a deposição da casca é consideravelmente<br />

maior que as 24 horas necessárias para as aves (Packard & Demarco, 1991). Ovos de<br />

Sceloporus woodi, por exemplo, levam de 12-14 dias para a formação total da casca depois<br />

que chegam ao útero (Palmer et al., 1993). Portanto, algumas espécies ou seguram o<br />

desenvolvimento ou retêm os ovos por um período de tempo maior que o necessário para a<br />

formação completa da casca (Andrews & Mathies, 2000), implicando em uma certa restrição<br />

de trocas ao embrião.<br />

Forças seletivas<br />

Os efeitos da temperatura de incubação nas taxas e trajetórias de desenvolvimento<br />

embrionário provavelmente foram as forças seletivas mais importantes para a transição da<br />

oviparidade para viviparidade entre os squamata (Webb et al., 2006). Tendo em vista que (1)<br />

331


V Curso de Inverno<br />

em áreas mais frias, em razão da termorregulação materna, o oviduto proveria os embriões<br />

com um ambiente mais quente que o ninho; (2) temperaturas mais altas aceleram a<br />

embriogênese na maioria, senão em todo, período de desenvolvimento; (3) a diferença entre<br />

a temperatura média do oviduto e dos ninhos varia de forma consistente com a elevação e<br />

latitude (Shine and Thompson, 2006); é fácil imaginar um cenário onde a seleção natural<br />

favoreceria aumentos na duração da retenção uterina. Outros fatores, que também variam<br />

mais nos ninhos do que nos ovidutos, têm menor probabilidade de conferir alguma<br />

vantagem, pois geralmente variam menos clinalmente e sem padrão (Shine and Thompson,<br />

2006).<br />

Com relação às trocas hídricas, no solo os ovos estão sujeitos a um potencial hídrico<br />

(Ψ) que varia no tempo em razão por exemplo de diferenças na quantidade de chuva<br />

durante o ciclo de incubação (Packard, 1991). A variação de Ψ durante o período de<br />

incubação traz conseqüências ao “fitness” dos neonatos, como aumento do período de<br />

incubação, da taxa de crescimento, sucesso de eclosão e do tamanho dos embriões que<br />

eclodem (filhotes) quando os ovos são incubados em substratos mais úmidos (Ψ maior)<br />

(Packard, 1991). Dessa forma, no estágio inicial de desenvolvimento, os embriões ainda não<br />

dispõem de estruturas específicas para controle de trocas (como o alantóide), sendo<br />

portanto incapazes de sobreviver em ninhos naturais (Shine & Thompson, 2006).<br />

No útero, por sua vez, toda a superfície do ovo está em contato com um ambiente<br />

saturado e de Ψ constante no tempo (Shine & Thompson, 2006). Assim, as fêmeas<br />

reprodutivas devem reter seus ovos até a embriogênese atingir um estágio que garante a<br />

regulação hídrica adequada quando no ninho. A deposição da casca é um processo<br />

contínuo que se estende até o estágio 27 (Palmer et al., 1993) e o ao menos nos scincídeos<br />

Lampropholis guichenoti e Eumeces fasciatus, é entre os estágios 30-31 que o<br />

corioalantóide se estende por todo o embrião (Stewart & Florian, 2000); Stewart and<br />

Thompson, 1996). Então, ambos os mecanismos de controle de trocas hídricas podem estar<br />

insuficientemente formados até esse momento.<br />

Já sabemos que a demanda por gases respiratórios aumenta significativamente após<br />

o estágio 30. A inabilidade de ovos já depositados de realizar trocas gasosas<br />

adequadamente em ambiente saturado sugere que as trocas gasosas dentro do útero úmido<br />

podem ir se tornando problemáticas à medida que o desenvolvimento progride (Shine &<br />

Thompson, 2006). A ampliação na demanda por gases respiratórios impediria o<br />

prolongamento da retenção uterina além do estágio mais comum (o estágio 30 como<br />

sugerido por Shine (1983)? Na literatura, existem respostas contraditórias, até mesmo de<br />

um mesmo autor. Ovos de Sceloporus scalaris forçadamente retidos até o estágio 39.5 não<br />

retardaram o desenvolvimento em relação aos ovos controle (postura no estágio 31-33.5),<br />

não apoiando a hipótese que a postura acontece quando as trocas gasosas in útero não são<br />

mais suficientes para sustentar o desenvolvimento embrionário (Mathies & Andrews, 1996).<br />

332


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Entretanto, em Sceloporus undulatus a disponibilidade limitada de oxigênio in útero parece<br />

agir com uma restrição de desenvolvimento (Andrews, 2002). A favor dessa hipótese<br />

encontram-se ainda a correlação entre a espessura da casca e o estágio de<br />

desenvolvimento embrionário na postura dos ovos de squamatas que apresentam retenção<br />

uterina prolongada (Qualls et al., 1997). Contra os estágios intermediários está o fato da<br />

diminuição na espessura da casca tornar cada vez menos provável a sobrevivência dos<br />

ovos no ninho, pois os ovos se tornam mais vulneráveis a predadores, patógenos e a perda<br />

d’água (Andrews & Mathies, 2000).<br />

Deste modo, Shine e Thompson (2006) imaginam o seguinte cenário para a evolução<br />

da viviparidade em squamata:<br />

• A evolução da retenção uterina prolongada de ovos deve envolver uma<br />

seleção forte na seleção materna de sítios de postura, diminuição da<br />

espessura da casca e traria vantagens imediatas ao prolongamento da<br />

retenção uterina. A retenção uterina por um período cada vez maior reduz a<br />

duração da exposição dos ovos a condições potencialmente desfavoráveis e<br />

letais dos ninhos, mas também necessita cada vez mais do afinamento da<br />

espessura da casca, tornando o ovo cada vez mais sensível ao ambiente do<br />

ninho. Isso cria um ciclo de retro-alimentação positiva.<br />

• Uma vez que a retenção uterina passa do estágio 30 de desenvolvimento<br />

embrionário, o compromisso entre troca gasosa e balanço hídrico (afinamento<br />

da casca) impõem uma seleção forte para o prolongamento da retenção<br />

uterina até cobrir todo o período de desenvolvimento embrionário.<br />

• Desta forma, poucos táxons que passam por esse cenário evolutivo ficam nos<br />

estágios intermediários de retenção.<br />

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335


V Curso de Inverno<br />

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Revisado por José Eduardo Pereira Wilken Bicudo<br />

336


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Locomoção<br />

Meirielen Caroline da Silva<br />

Laboratório de Ecofisiologia Evolutiva<br />

meirielen@usp.br<br />

Os grupos de seres vivos apresentam diferentes formatos corporais que foram<br />

selecionados ao longo da evolução de modo a tornar os organismos bem-sucedidos em<br />

cada ambiente. Cada uma dessas variações de forma é mantida por tecidos ancorados a<br />

algum sitema de suporte e seu funcionamento é regido por princípios químicos, físicos e<br />

biológicos. Uma das grandes demonstrações do uso desse arranjo é a locomoção, série de<br />

reações e respostas que possibilita o deslocamento do animal, permitindo que este realize<br />

todas as partes de um ciclo de vida (Withers, 1992), sem, contudo, ser vital para a existência<br />

de vida ( vide caso dos organismos sésseis que cumprem todas as fases do seu ciclo sem<br />

realização de deslocamento).<br />

Aparato para locomoção<br />

Fluxo citoplasmático, cílios e flagelos<br />

1 Alguns protozoários e fungos realizam movimentos por meio de um fluxo<br />

citoplasmático muito parecido com a ciclose, fenômeno observado em todos os tipos de<br />

célula. Especulações acerca de uma possível origem dos movimentos em pontos de<br />

diferentes pressões dentro da célula já foram apresentadas, porém, pesquisas apontaram<br />

para a ocorrência de proteínas (actina e miosina) geradoras de força em todas as células<br />

animais, sendo as contrações realizadas por estas a origem mais provável para os<br />

movimentos observados ( Schmidt-Nielsen, 1996).<br />

Cílios e flagelos são estruturas formadas por proteínas (tubulina e dineína) capazes<br />

de realizar movimentos rápidos assimétricos e de ondulação simétrica, respectivamente.<br />

São observados, geralmente, auxiliando na locomoção de animais muito pequenos, mas<br />

podem ser encontrados em animais cujo tamanho é característico para relatos de ocorrência<br />

de musculatura .Sua ação acontece por meio da quebra de ATP, com eficiência variável. No<br />

deslocamento de espermatozóides, por exemplo, a eficiência total da conversão de energia<br />

metabólica em mecânica foi estimada como sendo de 19 a 25% (Rikmenspoel, 1969): bem<br />

semelhante à muscular.<br />

Músculos<br />

Os músculos são formados por fibras musculares que, por sua vez, são constituídas<br />

por miofibrilas. Nestas últimas, encontramos a unidade funcional do músculo, chamada<br />

sarcômero, constituída por filamentos de duas importantes proteínas: actina (filamentos<br />

finos) e miosina (filamentos grossos). O deslizamento destes filamentos protéicos um sobre<br />

o outro com gasto de ATP e geração de força, é o que denominamos contração muscular.<br />

337


V Curso de Inverno<br />

Os músculos podem ser lisos (de contração lenta, são responsáveis pelos movimentos de<br />

órgãos e vasos sangüíneos, por exemplo) ou estriados (esqueléticos, responsáveis por<br />

movimentos outros que não os da musculatura lisa , e cardíaco, um tipo especial de<br />

músculo estriado capaz de gerar ondas de propagação elétrica em suas superfície). Aqui,<br />

daremos especial atenção à musculatura responsável pela locomoção, a estriada<br />

esquelética.<br />

A contração muscular: a contração indica um estado de atividade mecânica do músculo e<br />

pode ser isométrica (extremidades musculares fixas) ou isotônica (extremidades livres e<br />

carga a ser movimentada variando), mas ambas geralmente ocorrem em conjunto nos<br />

músculos. O padrão de produção de força muscular após um estímulo ou vários, pode ser<br />

observado na figura abaixo:<br />

A contração ocorre quando um impulso nervoso atinge a junção neuromuscular,<br />

ocasionando uma onda de despolarização. Por meio da acetilcolina (vertebrados) e usando<br />

os túbulos T como canais de propagação, o impulso alcança todo o músculo, causando<br />

liberação de cálcio do retículo sarcoplasmático e ligação da miosina com a actina<br />

(encurtamento do músculo). Esta ligação será desfeita, apenas, com gasto de ATP.<br />

A força exercida por um músculo é diretamente proporcional à sua área de secção<br />

transversal, não importando o seu comprimento. Os músculos dos animais apresentam uma<br />

força máxima por área de secção transversal de 4 a 5 Kg força por centímetro quadrado.<br />

Tipos de fibras musculares: há três tipos de fibras musculares (Purves et al, 2002):<br />

a)fibras musculares de contração lenta (tônicas ou SOs): apresentam grande irrigação e<br />

quantidade de mioglobina. Apesar de contrairem-se lentamente em relação às fibras fásicas<br />

(a contração das fibras fásicas, segundo Close, 1972, é cerca de duas a três vezes mais<br />

rápida que a contração das fibras tônicas), tal contração pode ser mantida por longos<br />

períodos. São fibras oxidativas e resistentes à fadiga (músculos para sustentação do vôo ou<br />

de longas corridas).<br />

b)Fibras musculares de contração rápida (fásicas ou FGs): poucos vasos sangüíneos,<br />

338


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

mitocôndrias e mioglobina. Estão geralmente associadas a grânulos de glicogênio e<br />

apresentam metabolismo anaeróbio. Podem desenvolver uma grande tensão rapidamente,<br />

porém, esta não é mantida por longos períodos (pernas de aranhas, músculos peitorais de<br />

galinhas).<br />

c)Fibras musculares de contração intermediária (FOG): são fibras glicolíticas e oxidativas<br />

rápidas. Nelas, observa-se uma quantidade intermediária de vasos sangüíneos,<br />

mitocôndrias e mioglobina. Contraem-se repidamente e sustentam a contração por um<br />

tempo médio, em relação aos dois tipos anteriores.<br />

Esqueleto<br />

Este é o nome dado à estrutura ou arranjo capaz de manter a forma do animal e<br />

ancorar os músculos. Pode ser:<br />

a)Hidráulico : um sistema de pressurização mantém a rigidez das paredes (Ex.: anêmona).<br />

Pode funcionar juntamente com um sistema onde a musculatura e fibras colágenas geram<br />

a pressão sobre o líquido, como nos equinodermas. Algumas juntas de aranhas, por exmplo,<br />

possuem apenas músculos flexores, de modo que a extensão das patas é proporcionada<br />

por geração de pressão hidráulica (extremamente alta quando comparada a outros<br />

artrópodes: cerca de 0,5 atm) (Foelix, 1996).<br />

b) Rígido: endo ou exoesqueleto (Ex.:ossos, quitina)<br />

Dentre as características mais relevantes de um esqueleto, destacamos:<br />

-densidade : (Kg m -3 ) determina a massa da estrutura de acordo com um determinado<br />

volume. A tendência evolutiva é desenvolver esqueletos o mais leve possível, uma vez que o<br />

animal deve gastar energia para suportá-lo;<br />

-elasticidade : capacidade de liberar a energia armazenada durante um processo de<br />

aplicação de força numa determinada área. Cada material possui um elasticidade particular<br />

que exerce um papel na tarefa para a qual foi designado.<br />

- resistência: a distribuição de exoesqueletos ou endoesqueletos entre os animais não é<br />

aleatória. Segundo leis físicas, um cilindro oco (exoesqueleto, no caso) é mais resistente<br />

que um maciço de mesmo tamanho e material. No entanto, para um aumento de tamanho<br />

com necessidade de manutenção da resistência, este cilindro teria que ter paredes mais<br />

grossas, o que acarretaria um aumento de massa. Assim, houve uma tendência de<br />

desenvolvimento de endoesqueletos conforme os animais atingiram portes maiores.<br />

As diferenças de preenchimento nos ossos, por exemplo, são respostas às<br />

diferentes pressões exercidas sobre determinada parte do corpo.<br />

Juntas<br />

Juntas são articulações entre elementos do esqueleto que agem com os músculos<br />

339


V Curso de Inverno<br />

para produzir movimento. São mais móveis quando suportam pouca aplicação de força e<br />

menos móveis quando suportam grandes aplicações de força. No caso dos vertebrados,<br />

encontram-se imersas em líquido sinuvial que proporciona lubrificação. Já nos artrópodes,<br />

como os insetos, estão envoltas em camadas de cutícula e podem absorver parte da<br />

energia requerida para o movimento. A inserção da musculatura nas juntas também<br />

determina as características do animal que as mantém. Podem apresentar uma organização<br />

fusiforme -característica de vertebrados- ou penada -comum em artrópodes; aqui, o<br />

encurtamento das fibras não altera sua área transversal, fator importante em animais que<br />

não suportam modificações na forma, com exoesqueleto.<br />

Locomoção<br />

Cada ambiente impõe forças distintas sobre os corpos dos seres vivos. Sendo assim,<br />

para cada meio, encontramos diferentes estratégias de deslocamento e diferentes custos<br />

envolvidos. O custo energético da locomoção é diretamente relacionado ao esforço<br />

muscular, sendo que o nível de atividade muscular é modulado pela forma dos membros e<br />

patas, padrão de deslocamento e mecanismos para poupar energia (Reilly et al, 2007).<br />

I) Meio terrestre<br />

Os organismos que habitam o meio terrestre sofrem, em grande parte, a influência<br />

da força gravitacional. O modo de andar diz muito sobre a história dos animais e vem sendo<br />

estudada para compreensão dos custos envolvidos e evolução dos grupos. No caso de<br />

humanos, por exemplo, a postura e padrão de deslocamento, bem como o posicionamento<br />

dos elementos no esqueleto, ajuda a estabelecer o parentesco entre linhagens do gênero<br />

Homo (Bramble e Lieberman, 2004). Dentre as maneiras de se deslocar dos animais<br />

terrestres, podemos citar:<br />

I.a) Rastejar<br />

Padrão de deslocamento no qual o animal mantém o corpo sempre junto ao solo.<br />

Pode ser observado em serpentes e anelídeos, por exemplo. Estes animais apresentam,<br />

geralmente, um corpo mole. Por meio de alterações da pressão hidrostática do corpo, as<br />

lagartas podem rastejar fazendo uso somente das patas anteriores e pró-patas posteriores.<br />

As minhocas, contraindo a musculatura circular e longitudinal, conseguem mover-se por<br />

meio de uma onda que vai da porção anterior para a posterior, ao contrário de alguns<br />

poliquetas onde a onda de contração desloca-se na direção de locomoção do animal. As<br />

serpentes e alguns nematódeos rastejam empurrando objetos que ficaram para trás, como<br />

pedras e grama. Em alguns casos, as serpentes podem desenvolver outros tipos de<br />

locomoção, como o peristaltismo retrógrado das minhocas.<br />

I.b) Andar e correr<br />

Este tipo de deslocamento é realizado por animais de esqueleto rígido e apêndices.<br />

340


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Os organismos capazes de andar e correr podem alcançar grandes velocidades e manter<br />

poucas partes do corpo em contato com o substrato. A chamada marcha se dá movendo<br />

alternadamente os apêndices de modo a manter o centro de gravidade pouco deslocado (no<br />

caso dos quadrúpedes) ou no pé que está em contato com o solo (bípedes) . O tempo em<br />

que os animais mantêm-se sem tocar o solo varia de acordo com a velocidade<br />

desenvolvida. Em altas velocidades, os vertebrados tendem a permanecer pouco tempo em<br />

contato com o solo, enquanto os insetos, por exemplo, mantêm sempre ao menos três patas<br />

no chão. A resistência do ar oferece importante fator limitante ou de gasto energético para<br />

corredores, sendo que pode comprometer até 13 % da energia total dispendida numa<br />

corrida<br />

A taxa metabólica específica de um animal é determinante nas variações de gasto<br />

energético para diferentes inclinações do terreno de corrida: animais de taxa metabólica<br />

específica elevadas apresentam pequeno aumento no gasto energético quando deslocamse<br />

por uma subida íngime quando comparados a animais de baixa taxa metabólica<br />

específica na mesma situação (McMahon e Bonner, 1985). É necessário dizer que músculos<br />

e tendões constituem importantes sítios armazenadores de energia elástica, contribuindo<br />

para uma diminuição do gasto energético esperado em determinada atividade. A importância<br />

desta característica é percebida, principalmente, durante os saltos, quando cada fase de<br />

contato com o substrato ocasiona dissipação de energia e conseqüente elevação dos gastos<br />

necessários para o próximo salto, caso não haja armazenamento de energia elástica.<br />

I.c) Saltar<br />

Muitos animais como cangurus, pássaros e alguns roedores são capazes de saltar.<br />

Para tal, mantêm contato com o solo por pouquíssimo tempo quando comparados aos não<br />

saltadores. Cada organismo apresenta uma estratégia diferente para a realização do salto.<br />

A pulga armazena energia elástica num material chamado resilina presente em suas patas,<br />

trabalhando com uma espécie de catapulta. No caso do canguru, arranjos anatômicos como<br />

a ocorrência de um tendão de Aquiles e músculos bem desenvolvidos proporcionam um<br />

maquinário potente para o salto, capaz de armazenar energia elástica e mover o animal<br />

vertical e horizontalmente (Dawson e Taylor, 1973). A velocidades maiores, o canguru tende<br />

a aumentar a distância coberta por salto e não a altura máxima atingida, de modo que há<br />

pouca variação no consumo de oxigênio. O primata galago tem 250 g e é capaz de saltar<br />

2,25 m de altura. Tal proeza é possível devido à grande massa muscular relativa deste<br />

animal. Forças físicas como a resistência do ar devem ser especialmente consideradas aqui,<br />

levando-se em conta, inclusive, o tamanho e a forma do animal. Considerando-se modelos<br />

que prevêem a altura máxima que um animal pode atingir, percebemos que quanto maior o<br />

animal, mais próximo do desempenho previsto ele chegará. Isso acontece porque animais<br />

menores apresentam uma maior área relativa em contato com o ar, sendo assim<br />

impossibilitados de performances mais próximas às previstas.<br />

341


V Curso de Inverno<br />

Custo metabólico:<br />

O custo metabólico da locomoção terrestre depende da massa do animal, da<br />

distância percorrida, da taxa metabólica específica em repouso, da velocidade e do tipo de<br />

deslocamento que o animal realiza (andar, correr, trotar, pular). O mesmo vale para o<br />

deslocamento em meio aéreo e aquático, sendo que, para uma mesma massa, os custos da<br />

natação tendem a ser menores.<br />

II) Meio aquático<br />

O meio aquático praticamente anula as forças gravitacionais possibilitando aos<br />

animais que flutuem ou façam uso de outras forças durante o deslocamento. Para os<br />

animais que possuem densidade maior que a da água, diferentes estratégias podem ser<br />

adotadas de modo a produzir uma flutuabilidade neutra, como veremos a seguir. A<br />

complexidade estrutural dos habitats das diferentes espécies pode também determinar o<br />

estilo de nado (Kendall et al, 2007). Trabalhos com o peixe Lepomis macrochirus, mostram<br />

que ele apresenta dois principais padrões de nado, de acordo com carcaterísticas<br />

ambientais tais como ocorrência de vegetação exuberante e densidade de predadores:<br />

utilização das nadadeiras peitorais ou ondulação do corpo, sendo que o custo energético<br />

difere para cada padrão.<br />

II.a) Boiar<br />

A capacidade de um animal boiar depende da constituição de seu corpo. Um<br />

organismo deve alcançar uma determinada densidade total que o torne neutro no ambiente<br />

para que possa flutuar. Tal objetivo pode ser alcançado de diferentes formas, tais como<br />

aumentar o volume de gordura no corpo (armazenada no fígado dos tubarões),aumentar a<br />

quantidade de óleos nos tecidos (celacantos), aumentar grandemente o volume de<br />

substâncias amoníacas (lula Helicocranchia) , diminuir a quantidade de sulfatos (águavivas),<br />

criar cavidades preenchidas por ar (teleósteis e alguns cefalópodes), desenvolver<br />

esqueletos leves (lula e seu esqueleto de quitina, a pena).<br />

**A bexiga natatória dos teleóstei: a bexiga natatória desenvolveu-se a partir de um<br />

divertículo do trato digestivo, localiza-se mais ou menos no meio do corpo e é preenchida<br />

por gases provindos do sangue (fisóclistos) ou por deglutição a partir da superfície<br />

(fisóstomos). O funcionamento da bexiga depende da rete mirabile, um arranjo contracorrente<br />

dos capilares sangüíneos que impede a perda de gás da bexiga, e do Efeito Root, a<br />

ação do ácido lático, neste caso, que favorece a liberação de oxigênio do sangue na bexiga.<br />

II.b) Nadar<br />

Para que o deslocamento na água seja possível, os animais devem valer-se de<br />

movimentos que dêem impulso ao empurrar o meio líquido, tais como remadas, movimentos<br />

ondulatórios, propulsão a jato.<br />

Duas forças específicas têm grande importância na locomoção aquática: a força inercial e a<br />

342


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

força viscosa. A primeira é uma propriedade física descrita por Newton que diz que um corpo<br />

submetido a um conjunto de forças de resultante nula não sofre variação de velocidade.<br />

Força viscosa seria a resistência oferecida por um fluido. A partir deses conceitos, Osborne<br />

Reynolds (1983) propôs uma relação, mais tarde nomeada Número de Reynolds, que que<br />

avalia a importância relativa da força inercial e da força viscosa sobre um corpo<br />

deslocando-se num fluido. Em animais muito pequenos, a força predominante é a viscosa,<br />

de modo que assim que páram de movimentar-se,o deslocamento cessa. Para organismos<br />

maiores, a força inercial é mais importante. Tais relações têm especial relevância quanto às<br />

estruturas desenvolvidas para natação nos animais a diferentes números de Reynolds.<br />

Cílios e flagelos são geralmente observados em organismos muito pequenos enquanto<br />

músculos propulsores surgiram nos animais de maior porte.<br />

A potência necessária para realizar deslocamento sob a água aumenta muito com a<br />

velocidade, de modo que animais que nadam desenvolvem velocidades inferiores aos<br />

voadores, por exemplo. Alguns animais como o atum, tartarugas-marinhas e pingüins usam<br />

a cauda ou os membros anteriores como hidrofólios, gerando propulsão para a frente e uma<br />

força para cima que os ajuda a flutuar. Também o fazem alguns cefalópodes e tubarões,<br />

sendo que parte da força criada para cima provém de propulsão a jato, no caso dos<br />

primeiros, e movimentos da cauda, nos segundos. A propulsão a jato pode ser gerada<br />

eliminando-se água de uma cavidade (manto em cefalópodes, cavidade gastrovascular em<br />

águas-vivas) de modo que essa saída resulte no movimento do organismo todo.<br />

Custo metabólico:<br />

O custo metabólico para o nado depende de variáveis como velocidade e número de<br />

Reynolds, e é proporcional à massa do organismo (o custo metabílico é baseado na taxa de<br />

consumo de oxigênio para deslocar determinada massa em determinada velocidade).<br />

III)Meio aéreo<br />

O vôo evoluiu independentemente em 4 grupos distintos: os insetos, os Pterosauros,<br />

as aves e os morcegos. A massa dos maiores voadores alcança cerca de 10 Kg. Os<br />

princípios que regem a movimentação no ar são muito semelhantes aos da água. No<br />

entanto, o primeira oferece uma série de complicações, como o fato do ar ser muito menos<br />

denso (não oferecer flutuação) e do animal ter de criar uma força de ascensão tal que<br />

contrabalanceie totalmente sua massa. Quase todos os animais que voam buscam força<br />

para manterem-se no ar por meio de formas aerodinâmicas e músculos peitorais vigorosos<br />

( o caso das aves), exceto os muito pequenos, cujas asas são projetadas para criar força de<br />

subida por arrasto.<br />

III.a) Planar<br />

Os animais que planam têm um custo metabólico de mais ou menos duas vezes seu<br />

metabolismo basal. O movimento envolve pouco gasto de energia uma vez que se trata do<br />

343


V Curso de Inverno<br />

uso de um fenômeno físico (uso de correntes de ar), cujo único gasto provém da<br />

manunentação das asas abertas e rígidas.<br />

III.b)Vôo batido<br />

Neste tipo de vôo, os animais são capazes de manter uma velocidade constante para<br />

frente e uma altitude, usando energia muscular para gerar a força de subida. Forças de<br />

arrasto estão envolvidas no batimento das asas. Para que o vôo seja possível, o animal<br />

deve ser capaz de gerar a potência necessária, o que é impossível para aves muito grandes<br />

tais quais os avestruzes que têm uma massa grande demais para ser levantada, tornando a<br />

sustentação aérea muito dispendiosa em termos energéticos.<br />

Notamos , então, que a massa é fator determinante na viabilidade do vôo. Nos insetos como<br />

alguns Ephemeroptera, por exemplo, houve uma redução do sistema digestivo e/ou<br />

quantidade de ovos – quanto comparados a outros insetos- a fim de reduzir a carga a ser<br />

levantada.<br />

Comparações<br />

As formas de deslocamento são distribuídas de modo a minimizar os custos<br />

locomotores a uma dada velocidade ou para minimizar o estresse mecânico (Alexander,<br />

1989). A seguir, custos de deslocamento para cada um dos meios (McMahon e Bonner,<br />

1985):<br />

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344


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

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Revisado por José Eduardo Wilken Bicudo<br />

345


V Curso de Inverno<br />

Ajustes fisiológicos de anfíbios<br />

em ambientes com baixa disponibilidade de água<br />

Ivan Prates<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

ivanprates@gmail.com<br />

Os anfíbios e os gradientes de disponibilidade hídrica<br />

Ainda que grandemente modificados de seus ancestrais do Devoniano, os anfíbios<br />

modernos são muitas vezes considerados elementos de transição entre o modo de vida<br />

totalmente aquático e o terrestre (Claussen, 1973). Essa concepção suporta-se na grande<br />

importância da disponibilidade de água líquida para esses animais, expressa em diversos<br />

aspectos de sua biologia: a contribuição da respiração cutânea para muitas espécies, e o<br />

caráter associado do fluxo de gases respiratórios e de água; a presença, com poucas<br />

exceções, de uma fase larval aquática no ciclo de vida, bem como a necessidade do meio<br />

aquático para reprodução; a limitada capacidade de concentração da urina pelos rins; e o<br />

fato de que, em geral, a pele dos anfíbios não protege o corpo da perda de água por<br />

evaporação, sendo sua principal via de desidratação (Jorgensen, 1994; Pough et al. 1998;<br />

Shoemaker et al. 1992). A dependência da água, de qualquer forma, não impediu que os<br />

anfíbios invadissem muitos ambientes terrestres (Claussen, 1973). Nesse aspecto, é<br />

interessante que esses animais ocorram em ambientes que apresentam diferentes graus de<br />

disponibilidade hídrica, havendo inclusive formas bem sucedidas na colonização de<br />

ambientes de clima semi-árido (Duellman e Trueb, 1994). Na caatinga brasileira, por<br />

exemplo, os anuros estão representados por 40 espécies em cinco famílias (Rodrigues,<br />

2003), o que pode ser considerado exuberante para um ambiente de clima semi-árido<br />

(Navas et al. 2004). Para a ocupação bem sucedida de ambientes terrestres, os anfíbios<br />

desenvolveram diversos mecanismos de ordem fisiológica, morfológica e comportamental<br />

(Toledo e Jared, 1993).<br />

Pouca água...<br />

Paralelamente aos aspectos do comportamento, diferentes propriedades de caráter<br />

fisiológico estão envolvidas com a manutenção das relações hídricas em anfíbios. Dentre<br />

elas, as propriedades do tegumento são consideradas em uma parcela substancial dos<br />

estudos. As abordagens que estudam o papel da pele no balanço hídrico desses animais<br />

levam em conta a cinética do influxo e efluxo em diferentes condições e as características<br />

cutâneas que modulam as trocas de água com o ambiente (ver Shoemaker et al. 1992 e<br />

Toledo e Jared, 1993 para revisões).<br />

Desidratação<br />

346


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Com poucas exceções, a pele dos anfíbios não protege o corpo da perda de água<br />

por evaporação através da pele, de forma que as espécies terrestres estão<br />

permanentemente sob risco de desidratação (Jorgensen, 1994; Pough et al. 1983; Toledo e<br />

Jared, 1993). Os animais desprovidos de mecanismos fisiológicos para redução da perda<br />

evaporativa de água são definidos como “típicos”, sendo notáveis por apresentar taxas de<br />

desidratação equivalentes àquelas de uma superfície de água livre de mesmo tamanho e<br />

forma exposta às mesmas condições ambientais (Wygoda, 1984). A partir da tomada dos<br />

valores de taxas de desidratação de muitas espécies, elucidou-se que as formas aquáticas e<br />

semi-aquáticas comportam-se como típicas. Da mesma forma, as espécies terrestres não<br />

dispõem em geral de mecanismos fisiológicos para redução da perda evaporativa de água<br />

(Shoemaker et al. 1972; Wygoda, 1984). Nesse sentido, as formas terrestres diferem das<br />

demais primariamente por apresentar maior tolerância a grandes perdas de água<br />

(Jorgensen, 1994; Shoemaker et al. 1972) e por evitar a desidratação por meios<br />

comportamentais (Shoemaker et al. 1972). Por outro lado, as espécies de hábito arborícola<br />

têm se revelado atípicas, de forma que, quando comparadas a gêneros terrestres e<br />

aquáticos ou semi-aquáticos, possuem taxas de perda de água que são, no máximo,<br />

metade das dos demais (Wygoda, 1984).<br />

Apesar do caráter incomum dos mecanismos que previnem a desidratação através<br />

do tegumento, a importância de baixas taxas de perda evaporativa de água foi descrita para<br />

uma série de anfíbios que ocorrem em ambientes de clima semi-árido. Em anuros do gênero<br />

Phyllomedusa, por exemplo, essas taxas aproximam-se daquelas apresentadas por répteis,<br />

sendo até duas ordens de grandeza menores do que em Bufo, Rana e Scaphiopus<br />

(Wygoda, 1984). Essa propriedade foi associada à produção, pela pele, de secreções<br />

impermeabilizantes, de natureza lipídica, que são espalhadas sobre a superfície dorsal e<br />

cabeça através de movimentos estereotipados das patas (Shoemaker et al. 1992;<br />

Shoemaker et al. 1975). De forma semelhante, secreções de natureza lipídica e protéica<br />

conferem aos hilídeos australianos Litoria caerulea e Cyclorana australis taxas de<br />

desidratação reduzidas (Christian e Parry, 1997).<br />

Na Caatinga brasileira, o hilídeo Corythomantis greeningi apresentou cerca de<br />

metade das taxas de perda evaporativa de água atribuídas a anuros típicos, uma<br />

propriedade possivelmente associada à alta densidade de glândulas da pele e à presença<br />

de sais de cálcio na derme (Navas et al. 2002). Especula-se que a camada dérmica<br />

calcificada presente em certos anfíbios, em particular naqueles mais terrestres, esteja<br />

associada à absorção ou retenção de água (Toledo e Jared, 1993). Adicionalmente, a<br />

presença de iridóforos na derme de racoforídeos dos gêneros Chiromanthis e Hyperolius<br />

parece ser responsável por reduzidas taxas de desidratação, uma vez que tais<br />

cromatóforos, ricos em cristais insolúveis de bases purinas, formam uma barreira à<br />

passagem de água (Kobelt & Linsenmair, 1986).<br />

347


V Curso de Inverno<br />

Rehidratação<br />

Outro importante aspecto das relações hídricas em anfíbios trata da tomada de água.<br />

Os anfíbios não bebem; o influxo de água no corpo desses animais se dá pela pele (Toledo<br />

e Jared, 1993b; Shoemaker et al. 1992). Em formas terrestres, a alta susceptibilidade à<br />

perda de água está associada à alta tolerância à desidratação, bem como à capacidade de<br />

rápida rehidratação por absorção quando o contato com umidade é estabelecido<br />

(Jorgensen, 1994). Em anuros terrestres, foi observado que a área pélvica da superfície<br />

abdominal é especializada para a tomada de água. McClanahan et al. (1969), ao analisar as<br />

taxas de tomada de água em segmentos da superfície corpórea de Bufo puntactus, uma<br />

espécie do sudoeste semi-árido dos EUA, concluíram que a tomada de água na área<br />

peitoral do abdômen é desprezível quando comparada à área pélvica. Adicionalmente,<br />

esses autores verificaram que a pele dorsal e cabeça têm pouca importância na tomada de<br />

água, de forma que a área pélvica, que corresponde à cerca de 10% da superfície corpórea<br />

nesses animais, responde por 70% das taxas de absorção de água. Nessa espécie, essa<br />

região é caracterizada por menor espessura e maior vascularização quando comparada a<br />

outras porções da pele (McClanahan et al. 1969). Em geral, o tegumento da porção<br />

abdominal das espécies terrestres é mais granuloso do que o de espécies aquáticas, o que<br />

presumidamente aumenta a superfície para absorção de água (Toledo e Jared, 1993).<br />

Todos os anfíbios testados até aqui absorvem água através da pele quando em meio<br />

aquático (Shoemaker et al. 1992), mas a tomada de água em substrato apenas úmido foi<br />

demonstrada para uma série de espécies (Claussen, 1973; Jorgensen, 1994; Packer, 1963).<br />

Packer (1963) postula que essa capacidade é ecologicamente relevante para muitas<br />

espécies, como as que ocorrem em ambientes de clima semi-árido, que nunca voltam à<br />

água após a metamorfose.<br />

Na Austrália, as taxas de reidratação de quatro espécies de Neobatrachus estão<br />

fortemente correlacionadas à quantidade de dias do ano em que chove nos seus locais de<br />

origem. Por outro lado, essa mesma relação não foi verificada para cinco espécies do<br />

gênero Heleiporus, que ocorrem ao longo do mesmo gradiente. Os autores verificaram,<br />

entretanto, que as espécies do segundo gênero se enterram profundamente no solo em<br />

busca das camadas mais úmidas, concluindo que, se há um padrão comportamental que<br />

suprime o risco de desidratação, a capacidade de absorção não terá de ser paralela ao grau<br />

de aridez do ambiente (Bentley et al. 1958).<br />

Excreção<br />

Entre os anfíbios, a excreção de nitrogênio se dá geralmente na forma de amônia e<br />

uréia, sendo ureotélicas as espécies mais terrestres (Shoemaker et al. 1972). A excreção de<br />

ácido úrico, característica de aves e répteis, exige um volume menor de água e,<br />

surpreendentemente, foi relatada para alguns sapos de ambientes semi-áridos. A<br />

capacidade de osmorregulação em situações de estresse hídrico é maior em espécies do<br />

348


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

gênero arborícola Phyllomedusa do que três outras espécies de hilídeos (Hyla pulchella,<br />

Pachymedusa dacnicolor e Agalychnis annae) (Shoemaker e McClanahan, 1975). Quando<br />

privados de água, observa-se nos phyllomedusíneos um aumento menor das concentrações<br />

plasmáticas em comparação com as demais espécies. A excreção de nitrogênio na forma de<br />

ácido úrico previne o acúmulo plasmático de uréia e vem acompanhada com a excreção de<br />

Na + , K + e NH4 + . Ao excretar 80% dos resíduos de nitrogênio na forma de ácido úrico,<br />

Phyllomedusa sauvagei economiza 93% da água que seria necessária para a excreção dos<br />

mesmos resíduos na forma de uréia (Shoemaker e McClanahan, 1975).<br />

Muito sal!<br />

A limitada capacidade de concentração da urina e a pele muito permeável impedem<br />

que os anfíbios de maneira geral vivam em ambientes de água salgada. Entretanto, existem<br />

espécies que toleram água salobra. Dentre elas, a surpreendente Rana cancrivora, que vive<br />

em manguezais do sudeste da Ásia, sobrevive por períodos prolongados em misturas de até<br />

80% de água do mar. Em uma estratégia semelhante à dos elasmobrânquios, esses animais<br />

mantém a osmolalidade do plasma em níveis superiores à da água do meio, através da<br />

concentração de uréia de sangue (Schmidt-Nielsen e Lee, 1972). Essa condição, que<br />

promove a entrada passiva de água através da pele permeável, preserva os animais dos<br />

problemas em ingerir água salgada, como a eliminação de sais, para os quais seu sistema<br />

excretor não está capacitado. Essas rãs têm filtragem gromerular reduzida e elevada<br />

reabsorção tubular de água nos rins (Schmidt-Nielsen e Lee, 1972). Aumentos intracelulares<br />

nos níveis de uréia e aminoácidos garantem o equilíbrio osmótico dos tecidos com o sangue<br />

(Gordon e Tucker, 1968). Os girinos não são capazes de acumular uréia nos fluídos<br />

corpóreos; nessa fase, há evidências de que os animais ingerem água do meio e excretam o<br />

excedente de sais através das brânquias, como fazem os peixes teleósteos (Gordon e<br />

Tucker, 1965).<br />

Estivação<br />

Para várias espécies de anfíbios de clima semi-árido, a sobrevivência durante o<br />

período de estiagem está associada ao comportamento de estivação (Abe, 1995; Storey e<br />

Storey, 1990; Pinder et al., 1992). A estivação preserva o animal das elevadas temperaturas,<br />

da baixa umidade atmosférica e da ausência de fontes para reidratação. É um fenômeno<br />

complexo que inclui diversos ajustes fisiológicos.<br />

Durante a estivação, há redução da taxa metabólica, que pode chegar a 85% na rã<br />

Neobatrachus wilsmorei (Hand e Hardewing, 1996). Ocorre incremento na dependência dos<br />

lipídeos como fontes de energia. Paralelamente, uma baixa taxa de gliconeogênese se<br />

mantém, de forma que glicose é sintetizada a partir de glicerol ou aminoácidos para manter<br />

a atividade dos tecidos dependentes, como o cérebro (Fuery et al. 1998). A síntese protéica,<br />

um processo custoso, é suprimida (Hand e Hardewing, 1996). Em anuros, a estivação é<br />

349


V Curso de Inverno<br />

caracterizada por uma drástica redução na respiração cutânea, com conseqüente redução<br />

da perda de água (Guppy & Withers 1999; Abe, 1995; Guppy, et. al., 1994; Hochachka &<br />

Guppy 1987).<br />

Várias espécies de anuros, dentre hilídeos, ranídeos, leptodactilídeos e outros, bem<br />

como alguns urodelos, apresentam a habilidade de secretar carapaças (cocoons)<br />

compostas por várias camadas de células mortas, de natureza essencialmente protéica, que<br />

lhes conferem taxas de perda de água muito próximas a zero (Christian e Parry, 1997;<br />

Toledo e Jared, 1993b). Esses casulos são essenciais à sobrevivência de vários anuros que<br />

estivam. Adicionalmente, a reabsorção da água estocada na bexiga urinária é um<br />

mecanismo fundamental a sobrevivência dessas espécies (Shoemaker et al. 1972).<br />

Finalmente, enquanto mamíferos não suportam a perda de água em mais do que 12% de<br />

sua massa, anfíbios toleram até 30%, chegando a 50% em sapos estivadores do semi-árido.<br />

Nos anfíbios de ambientes semi-áridos, o tempo disponível para reprodução<br />

corresponde à estação chuvosa. Em resposta a essa limitação de tempo, a maioria das<br />

espécies que estivam apresentam reprodução explosiva, que se inicia com as primeiras<br />

chuvas (Pinder et al., 1992). Portanto, paralelamente aos ajustes metabólicos, os anfíbios<br />

precisam iniciar a custosa gametogênese, a partir de reservas protéicas. Finalmente, a<br />

estivação exige ajustes cronobiológicos, que determinam seu início e fim. Esse fenômeno<br />

complexo, que assegura a manutenção do balanço hídrico no semi-árido, exigiu<br />

evolutivamente o ajuste simultâneo de vários sistemas fisiológicos.<br />

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350


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351


V Curso de Inverno<br />

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Revisado por Carlos Arturo Navas Ianinni<br />

352


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Introdução à Endocrinologia Comparada:<br />

Fatos e Curiosidades<br />

Vânia Regina de Assis<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

v.regina.a@ib.usp.br<br />

Flávio da Silva Nunes<br />

Médico Veterinário Autônomo<br />

medvetfisio@gmail.com<br />

INTRODUÇÃO À ENDOCRINOLOGIA<br />

A endocrinologia é o estudo dos hormônios, mensageiros químicos que atuam sobre<br />

órgãos alvo e influenciam muitos processos, que vão do crescimento à reprodução. São<br />

secretados por glândulas sem ductos, denominadas glândulas endócrinas, e possuem<br />

diferentes ações: 1) Endócrina (hormônio secretado que alcança os órgãos alvo via corrente<br />

sangüínea); 2) Parácrina (hormônio secretado no interstício celular e que age em outras<br />

células); e 3) Autócrina (hormônio secretado no interstício celular e que age na própria<br />

célula e em células vizinhas). Ao contrário das glândulas endócrinas, as glândulas exócrinas<br />

não produzem hormônios e liberam suas secreções por ductos ou canais, como as<br />

glândulas lacrimais, salivares e sudoríparas.<br />

O hormônio recebe este nome, não só por ser um tipo de produto bioquímico, mas<br />

por sua função. É uma substância que ativa, inibe ou modula a atividade de células alvo.<br />

Quanto à natureza química podem ser classificados como proteínas (peptídeos), derivados<br />

protéicos (aminoácidos modificados) ou esteróides. Para exercer suas ações deve se ligar,<br />

com alta afinidade, a um receptor específico. Estes receptores podem estar localizados na<br />

membrana celular, como no caso de muitos receptores para hormônios protéicos, ou no<br />

núcleo, como no caso dos receptores para hormônios esteróides.<br />

Uma vez que um hormônio é liberado na corrente sangüínea ele pode circular<br />

livremente, se for solúvel em água (hidrofílico), ou pode estar ligado a uma proteína<br />

carreadora. Devido à natureza química dos diferentes hormônios, alguns não são solúveis<br />

no plasma (hidrofóbico) e por isso necessitam de uma proteína (que seja solúvel e que<br />

permita a ligação com esse hormônio) para ser transportado. Este é o caso dos hormônios<br />

esteróides, por exemplo, por sua natureza lipídica, se eles não estiverem ligados a uma<br />

proteína de transporte, eles não conseguem circular no sangue devido a sua insolubilidade.<br />

Em geral, aminas, peptídeos e proteínas por serem solúveis, circulam na sua forma livre.<br />

Além dos hormônios, existem outras categorias de mensageiros químicos:<br />

Neurohormônios<br />

Dentro do sistema nervoso de todos os animais, de celenterados e vermes chatos a<br />

seres humanos, há células que mostram indicações citológicas de serem capazes de<br />

funcionar como glândulas. Neurohormônios são mensageiros químicos liberados por<br />

353


V Curso de Inverno<br />

células neurosecretoras do sistema nervoso e são transportados por todo o corpo tanto<br />

através dos axônios dos neurônios quanto através da corrente sangüínea. Estas células são<br />

capazes de conduzir impulsos, mas não inervam órgãos efetores; recebem informações dos<br />

centros neurais via neurônios aferentes e respondem através da liberação de mensageiros<br />

químicos. O terminal axônico está tipicamente em contato com vasos sangüíneos, mas<br />

também pode estar dentro de órgãos neurohemais (centros de armazenamento e liberação)<br />

tais como a neurohipófise, a eminência mediana de vertebrados e a glândula do seio de<br />

crustáceos.<br />

Curiosidades:<br />

• Há situações nas quais um mesmo produto de uma glândula endócrina pode estar<br />

ativo dentro do indivíduo (hormônio) e entre indivíduos de uma colônia (feromônio).<br />

Certos hormônios da corpora allata de cupins provavelmente funcionam desta forma.<br />

• Há também casos de hormônios do hospedeiro influenciando o comportamento<br />

reprodutivo de parasitas que habitam seus tecidos e órgãos. Neste caso uma mesma<br />

substância serve como hormônio (para o hospedeiro) e feromônio (para o parasita).<br />

• Algumas plantas produzem compostos secundários que interrompem a reprodução, de<br />

invertebrados e vertebrados, através de seus efeitos nos hormônios esteróides e em<br />

seus receptores. Algumas plantas mimetizam o hormônio da muda de artrópodes,<br />

fazendo com que os animais sofram mudas consecutivas e não possam se reproduzir..<br />

Neurotransmissores<br />

Atuam nos terminais nervosos em pequenas quantidades, sobre curtos períodos de<br />

tempo e não empregam vias vasculares para a sua disseminação; provém de células<br />

nervosas convencionais e não secretórias. Exemplos: acetilcolina e noradrenalina.<br />

Fitohormônios<br />

São os hormônios vegetais, como as giberelinas, auxinas, florígenos... As<br />

células vegetais que sintetizam os fitohormônios não são suficientemente diferenciadas para<br />

serem consideradas glândulas de secreção endócrina, além disso, os hormônios vegetais se<br />

movem principalmente por transporte via célula a célula ao invés de utilizarem os canais<br />

vasculares.<br />

Feromônios<br />

Este termo foi originalmente aplicado para a substância de atração sexual em<br />

insetos, mas atualmente incluí vários tipos de agentes liberados no ambiente e funcionam<br />

em todos os grupos principais de animais, para a integração dos indivíduos dentro de uma<br />

mesma população. Podem ser ingeridos, absorvidos através das superfícies corpóreas ou<br />

percebidos pela olfação. Não são propriamente hormônios por serem produtos de glândulas<br />

exócrinas (glândulas cujas secreções são liberadas por ductos ou canais, como nas<br />

354


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

glândulas lacrimais, salivares e sudoríparas), contudo a capacidade das glândulas exócrinas<br />

produzirem feromônios é freqüentemente dependente de estímulos hormonais.<br />

Os feromônios diferem dos hormônios em vários aspectos: 1) são transmitidos via<br />

ambiente externo; 2) são geralmente mais espécie-específicos; 3) atuam sobre outros<br />

indivíduos, enquanto os hormônios tipicamente têm suas atividades confinadas no<br />

organismo que os produziu.<br />

Glândulas endócrinas estão presentes em alguns invertebrados, elas são poucas em<br />

número e bem menos especializadas do que em vertebrados. Do ponto de vista da<br />

anatomia comparada, as glândulas endócrinas não passaram por mudanças estruturais<br />

notáveis nas várias classes de vertebrados, mas tiveram importantes mudanças<br />

filogenéticas em suas propriedades químicas e ações hormonais dentro do corpo de<br />

vertebrados.<br />

ORGANIZAÇÃO GERAL DO SISTEMA ENDÓCRINO EM VERTEBRADOS<br />

Ocorreram poucas mudanças na posição das estruturas durante a evolução, então<br />

esta figura serve para quase todos os vertebrados (Figura1).<br />

Figura 1 - Localização aproximada das glândulas endócrinas em humanos. (http://<br />

www.horacertacascavel.com/saude/empresas.php?cat=11&ramo=4)<br />

Curiosidades:<br />

A PRL estimula em:<br />

Peixes teleósteos: construção de ninho, crescimento e secreção das vesículas seminais,<br />

preparação para a migração.<br />

Anfíbios: mudanças na pele, secreção de geléia no oviduto, espermatogênese ou antiespermatogênese<br />

(término do ciclo de atividade sexual dos machos).<br />

Aves: secreção do leite do papo (em columbídeos), formação de bando, efeitos prémigratórios<br />

(lipogênese, deposição de gordura, agitação), cuidado parental. No pingüim<br />

imperador (Aptenodytes forsteri, fêmeas com níveis muito elevados de prolactina e que<br />

perderam seus filhotes exibem o comportamento de roubo de filhotes.<br />

355


V Curso de Inverno<br />

HIPÓFISE OU GLÂNDULA PITUITÁRIA<br />

O centro de controle do sistema endócrino em vertebrados é a hipófise ou glândula<br />

pituitária, uma vez que seus hormônios controlam o metabolismo de diversas outras<br />

glândulas. É uma glândula endócrina, não pareada, situada na sela túrcica (uma cavidade<br />

do osso esfenóide) na parte central da base do crânio (entre os olhos), que se liga ao<br />

hipotálamo através do pedúnculo hipofisário ou infundíbulo. Nos seres humanos, tem o<br />

tamanho aproximado de um grão de ervilha (Figura 2).<br />

É formada a partir de duas estruturas embrionárias distintas, e assim é divida em:<br />

lobo anterior (ou adenohipófise - originada de células epiteliais), e lobo posterior (ou<br />

neurohipófise - de origem nervosa, não produz hormônios, armazena e lança na circulação<br />

os hormônios produzidos pelo Hipotálamo). Entre estes dois lobos está o lobo intermédio,<br />

que secreta o hormônio melanotrófico (MSH) ou intermedina, importante no controle da<br />

pigmentação<br />

da pele de<br />

p e i x e s ,<br />

a n f í b i o s e<br />

répteis.<br />

Figura 2 -<br />

Localização e<br />

divisão da<br />

Hipófise.<br />

A hipófise secreta uma série de hormônios que dirigem funções vitais diversas tais<br />

como crescimento, desenvolvimento sexual, volume urinário etc. Os hormônios hipofisários<br />

que estimulam outras glândulas do corpo são chamados hormônios tróficos. Os principais<br />

órgãos alvo sob o controle dos hormônios tróficos são a o córtex da adrenal, a tireóide,<br />

testículos e ovários.<br />

Adenohipófise<br />

Secreta diversos hormônios:<br />

GH ou STH - hormônio de crescimento, também conhecido como hormônio<br />

somatotrófico. Promove o alongamento dos ossos, estimula a síntese de proteínas e o<br />

desenvolvimento da massa muscular.<br />

PRL - prolactina ou hormônio lactogênico. Em mamíferos estimula a produção de<br />

leite pelas glândulas mamárias. Sua produção se inicia no final da gestação, aumenta após<br />

o parto e persiste enquanto durar o estímulo da sucção.<br />

TSH - hormônio tireotrófico. Age sobre a tireóide, estimulando à secreção de seus<br />

hormônios.<br />

356


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

ACTH - hormônio adrenocorticotrópico. Regula a atividade do córtex da glândula<br />

surpa-renal ou adrenal. Estimula a secreção de glicocorticóides.<br />

FSH - hormônio folículo-estimulante. Estimula a produção de espermatozóides nos<br />

testículos, e o desenvolvimento de folículos no ovário.<br />

LH - hormônio luteinizante. Estimula a liberação dos hormônios sexuais.<br />

Neurohipófise<br />

Não é um órgão produtor de hormônios. Libera na circulação dois hormônios que são<br />

sintetizados pelo hipotálamo, e que chegam até ela pelos prolongamentos dos neurônios.<br />

Ocitocina - Estimula as contrações do útero, durante o trabalho de parto. Provoca,<br />

também, em mamíferos, contrações dos ductos das glândulas mamárias e a saída do leite.<br />

Durante a lactação, a sucção do mamilo estimula a neurohipófise a secretar a ocitocina.<br />

Portanto, conclui-se que a prolactina estimula a produção do leite; a ocitocina determina sua<br />

ejeção.<br />

ADH - hormônio antidiurético (também conhecido como vasopressina ou AVP<br />

(arginina vosopressina)). Aumenta a permeabilidade dos túbulos renais à água, aumentando<br />

sua reabsorção. Com isso, o volume da urina produzida diminui e ela torna-se mais<br />

concentrada. Além disso, esse hormônio provoca vasoconstrição e pode elevar a pressão<br />

arterial.<br />

TIREÓIDE<br />

Presente em todos os grupos de vertebrados, mas ausente em invertebrados e<br />

protocordados, embora o endóstilo do anfioxo mostre algumas propriedades funcionais da<br />

tireóide.<br />

Um dos precursores da tiroxina (T4), a diiodotrionina, é encontrada no esqueleto<br />

orgânico de corais. Esqueletos de esponjas e corais contêm também moniodotirosina,<br />

monobromotirosina, dibromotirosina e até traços de tiroxina. A tiroxina e seus precursores<br />

têm sido encontrados em muitos invertebrados, e estudos indicam que eles se tornaram<br />

disponíveis para esses organismos, antes mesmo que uma discreta glândula tireóide se<br />

desenvolvesse. Entretanto, a presença dessas substâncias em invertebrados não significa<br />

que elas tenham a mesma função nestes animais que nos vertebrados.<br />

A maioria dos vertebrados não pode atingir dimensões e forma adulta na ausência<br />

das secreções da tireóide: T3 - Triiodotironina e T4 – Tiroxina (Figura 3). Efeitos dos<br />

hormônios da tireóide no desenvolvimento são vistos na metamorfose das larvas de<br />

anfíbios, onde esses hormônios são essenciais. Em salmão, ocorre um aumento da taxa<br />

metabólica e hiperatividade da tireóide quando o animal se prepara para a migração para o<br />

mar.<br />

357


V Curso de Inverno<br />

Figura 3 - Localização da glândula tiróide em humanos.<br />

(http://www.virtual.epm.br/material/tis/curr-bio/trab2004/2ano/obesidade/tireoide.jpg)<br />

ADRENAIS OU SUPRA-RENAIS<br />

Tecidos da adrenal estão presentes em todos os vertebrados de ciclóstomos a<br />

mamíferos, mas profundas diferenças são encontradas na organização dos componentes<br />

funcionais - células esteróidogênicas e células cromafins.<br />

O córtex é a região mais externa das glândulas supra-renais, onde são produzidos<br />

vários hormônios esteróides. Os mineralocorticóides (como a aldosterona) são produzidos<br />

na Zona Glomerulosa (mais externa), os glicocorticóides (como a corticosterona) são<br />

produzidos na Zona Fasciculata (intermediária) e os andrógenos (testosterona e DHT -<br />

dihidrotestosterona) que são produzidos na Zona Reticularis (mais interna).<br />

A medula é fonte de epinefrina (ou adrenalina), um hormônio circulante e também de<br />

norepinefrina (ou noradrenalina), um neurotransmissor. É geralmente ativada conjuntamente<br />

com o Sistema Nervoso Simpático e age sinergicamente com ele (Figura 4).<br />

Curiosidades:<br />

• Em animais homeotermos, que são ativos ao longo do ano, a tireóide é geralmente<br />

mais ativa durante os meses frios de inverno do que durante o verão. Contudo em<br />

mamíferos hibernantes, a tireóide tende a estar inativa durante o inverno e alcança um<br />

pico de atividade na primavera, quando os animais saem da hibernação.<br />

• Observações indicam que o inverso ocorre em heterotermos hibernantes. Em rãs e<br />

sapos hibernantes, a tireóide é moderadamente ativa durante o inverno e mais inativa<br />

durante o verão.<br />

INVERTEBRADOS<br />

Os órgãos endócrinos em crustáceos, como em insetos, estão presentes em 3<br />

categorias: 1) agregados de células neurosecretoras que produzem neurohormônios<br />

liberando-os nos terminais axônicos (que parece ser a forma mais comum); 2) órgãos<br />

neurohemais de armazenamento, possibilitando modificação e liberação desses<br />

358


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

neurohormônios; 3) glândulas endócrinas verdadeiras (não-neurais) que liberam hormônios<br />

no sangue.<br />

Figura 4 - Corte transversal da adrenal,<br />

indicando as zonas da região cortical e a<br />

região medular, destacando os locais de<br />

produção hormonal.<br />

(http://www.mmi.mcgill.ca/<br />

mmimediasampler2002/images/<br />

zingg-61no2.gif)<br />

I m p o r t a n t e s c e n t r o s<br />

neurosecretores são encontrados em<br />

conexão com o gânglio óptico, que<br />

fica dentro dos olhos pedunculados.<br />

Os mais conhecidos são os órgãos X,<br />

que estão presentes na maioria das<br />

espécies com olhos pedunculados, ou<br />

na cabeça, quando estes estão<br />

ausentes. Agrupamentos de células neurosecretoras também são encontrados na glândula<br />

protorácica.<br />

Em crustáceos existem 3 glândulas endócrinas que não são compostas por<br />

neurônios neurosecretores: os órgãos Y (localizados no segmento antenal ou maxilar), as<br />

glândulas androgênicas (localizadas fora dos testículos, ao longo dos vasos deferentes,<br />

presentes também em algumas espécies de insetos) e os ovários. A glândula do seio é um<br />

órgão de armazenamento e liberação de neurohormônios.<br />

A muda<br />

O crescimento é um processo descontínuo em artrópodes, o aumento de tamanho<br />

está restrito ao período entre a perda do exoesqueleto antigo e a produção do novo. É um<br />

processo que pode ser sazonal ou contínuo, é influenciado por uma grande variedade de<br />

condições ambientais.<br />

Estudos revelaram que células neurosecretoras do órgão X secretam um<br />

neurohormônio inibidor da muda, que é estocado e liberado pela glândula do seio, enquanto<br />

os órgãos Y produzem um hormônio que estimula o processo.<br />

Em insetos a ativação de células neurosecretoras do cérebro produz o hormônio<br />

cerebral (BH), os axônios desses neurônios desembocam na corpora cardiaca, onde são<br />

armazenados e posteriormente liberados para o sangue. O BH atua sobre as glândulas<br />

protorácicas estimulando a produção de ecdisona (o hormônio da muda - MH), que promove<br />

crescimento e diferenciação.<br />

359


V Curso de Inverno<br />

Curiosidade:<br />

• Os órgãos Y são análogos (e possivelmente homólogos) às glândulas protorácicas<br />

de insetos. As glândulas protorácicas degeneram em insetos adultos, após a última<br />

muda, e os órgãos Y estão bastante reduzidos em caranguejos durante a anecdise<br />

O hormônio juvenil (JH) é secretado pela corpora allata. Enquanto a função do MH é<br />

causar a diferenciação dos tecidos corpóreos para estruturas adultas, a do JH é manter as<br />

estruturas larvais ou ninfais. A atividade secretora da corpora allata também é regulada pelo<br />

sistema nervoso, e a quantidade de JH presente no sangue diminui progressivamente com<br />

as mudas sucessivas. O JH é essencial para a deposição de vitelo nos ovos e a formação<br />

de espermatóforos em muitas espécies de insetos.<br />

A diferenciação ocorre sob a influência da ecdisona, quando os níveis de JH estão<br />

reduzidos.<br />

Reprodução<br />

Há evidências da existência de mais hormônios sexuais em crustáceos superiores do<br />

que em outros invertebrados. Os hormônios regulam a diferenciação dos caracteres sexuais<br />

de machos e fêmeos através das glândulas androgênicas e dos ovários, respectivamente.<br />

Os testículos provavelmente não têm função endócrina.<br />

Conclusão<br />

Podemos perceber que a ocorrência de substâncias sinalizadoras (como neuro<br />

secreções, feromônios, hormônios) é bastante primitiva do ponto de vista evolutivo, e<br />

mantida em muitos grupos. Isso demonstra a importância dessas substancias para o<br />

funcionamento dos sistemas fisiológicos e também deixa claro que a conservação, tanto<br />

estrutural quanto funcional, é uma característica da evolução.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Griffin, J. E.; Ojeda, S. R. 1996. Textbook of Endocrine Physiology. 3ª edição. 396p.<br />

Nelson, R. J. 1995. An Introduction to Behavioral Endocrinology. 612p.<br />

Prosser, C. L. 1991. Neural and Integrative Animal Physiology. 4ª edição. 776p.<br />

Turner, C. D.; Bagnara, J. T. 1971. General Endocrinology. 5ª edição. 659p.<br />

Wynne-Edwards, K. E. 2001. Evolutionary biology of plant defenses against herbivory and their<br />

predictive implications for endocrine disruptor susceptibility in vertebrates. Environ. Health.<br />

Perspect. 109:443-448.<br />

Revisado por Carlos Arturo Navas Ianinni<br />

360


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Mecanismos Neurosensoriais e “O Exemplo da Visão”<br />

Antonio Carlos da Silva<br />

Laboratório de Ecofisiologia e Fisiologia Evolutiva<br />

acsilva@gmail.com<br />

Todos os animais necessitam receber e interpretar corretamente as informações do<br />

meio ambiente interno e externo. Um pássaro em uma manhã de primavera ouvindo o<br />

canto de outros machos competidores em busca de uma fêmea para acasalar, um lagarto do<br />

deserto buscando abrigo do sol escaldante, ou uma águia em seu vôo em busca de uma<br />

presa - em todos os exemplos, estes animais precisam de uma acurada informação sobre o<br />

que ocorre ao seu redor para decidirem o que fazer em seguida. A sua decisão poderá ser<br />

apropriada somente se a informação oferecida pelo meio ambiente for corretamente<br />

codificada e transformada em sinais que possam ser processados pelos neurônios<br />

cerebrais.<br />

De fato, isso só é possível por existirem órgãos sensoriais que providenciam os<br />

canais de comunicação destes estímulos do mundo externo para o sistema nervoso. Os<br />

órgãos sensoriais são compostos de células especializadas e respondem a uma classe<br />

particular de estímulos. Eles estão posicionados em muitos locais entre a superfície e o<br />

interior do corpo (neurônios que carregam os estímulos da periferia para o sistema nervoso<br />

central, chamados de neurônios aferentes. Neurônios que carregam a informação do<br />

sistema nervoso central para periferia são chamados de eferentes).<br />

Ao listarmos as modalidades sensoriais (ex. tipos de informações sensoriais que<br />

podemos distinguir) tipicamente incluímos a mudança de temperatura, o tato, o olfato,a<br />

gustação e a visão. Todas estas modalidades envolvem importantes sistemas sensoriais<br />

internos, por exemplo, proprioceptores que monitoram a posição do músculo (ex. relaxado,<br />

contraído).<br />

No caso da “visão” uma variedade de tipos e estruturas de olhos é encontrada no<br />

reino animal, além de estruturas que permitem a percepção luminosa em grupos de animais<br />

unicelulares (células fotorreceptoras dermais). Estudos filogenéticos relevaram que todos os<br />

filos animais já apresentaram de alguma forma um “órgão sensível a luz”, o que nos leva a<br />

tentar compreender quais as soluções encontradas por cada grupo de animais durante o<br />

processo de evolução em que resulta essa enorme diversidade (Halder et al.1995).<br />

Estas estruturas (ex. ocelos, olhos compostos, olhos em câmara) que permitiram aos<br />

organismos “perceberem” estímulos luminosos nos levam a relembrar Darwin em “ como a<br />

seleção natural.... pode produzir um órgão tão maravilhoso como o olho” (Darwin 1859).<br />

As unidades básicas do olho, as células fotorreceptoras, podem ser divididas em<br />

duas grandes classes, uma ciliar (conjunto de cílios sensíveis a luz) e um tipo rabdomerico<br />

(microvilar) o qual é constituído por um conjunto de células receptoras de luz, paralelas<br />

umas às outras, o exemplo mais comum é em olhos compostos de insetos que são<br />

361


V Curso de Inverno<br />

formados por omatídeos (um pequeno sensor que distingue a claridade da escuridão) e este<br />

é formado de uma lente e um rabdoma.(Halder et al. 1995).<br />

A estrutura ancestral que poderia ser chamada de precursora do olho – “foto-olho” –<br />

não tem bem esclarecido o seu surgimento na árvore evolutiva, mas pesquisadores<br />

sugerem que poderiam ter surgido como duas células foto-olho, compostas por células<br />

fotorreceptoras e um pigmento celular, como observado em pequenas larvas ciliadas de<br />

poliqueta trocóforo (Figura 1) (Pichaud and Desplan 2002, Gehring and Ikeo 1999)<br />

Em sua origem o olho simples (ex. protozoário Euglena possui pequenas vesículas<br />

sensíveis a luz “eyes spot”) poderia ter realizado alguma forma primitiva de visão a qual teria<br />

a função de detectar a direção da luz para fototaxia e além disso, poderia ter uma forma<br />

primitiva de relógio circadiano, que permitisse a oscilação do animal entre ciclos de claro e<br />

escuro. (Gehring e Rosbash 2003).<br />

Especializado, este o órgão fotorreceptor primitivo providencia uma discreta<br />

informação à célula dermal sensível a luz. A localização de fotorreceptores em pequenas<br />

vesículas ou bolsas com pigmentos sensíveis a luz, proporciona informação adicional como<br />

observado em Euglena, existem células sensíveis a luz no citoplasma que contém um<br />

pigmento vermelho-alaranjado responsável por essa percepção da luz.<br />

Figura 1 - Foto ilustrativa (D. Arendt), Duas células olho larval e protótipo pigmento-taça com olho<br />

fotoreceptores rabdomerico em Platynereis dumerilii (Polychaeta, Annelida, Lophotrochozoa). Ultraestrutura<br />

larval 24 h (canto superior esquerdo), (canto superior direito) adulto (72 h) e (estrutura maior<br />

abaixo) olhos totalmente crescidos. Amarelo, células fotoreceptoras rabdomerico; verde, células de<br />

pigmento.<br />

Alguns estudos sugerem que o olho do tipo ciliar é comum a deuterostômios e o do<br />

tipo rabdomerico de protostômios (Land 1992). Entretanto novas descobertas relacionando o<br />

362


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

gene “controlador principal” - homeobox, genes estruturais responsáveis por determinar qual<br />

a posição de determinadas estruturas dentro do organismo - têm revelado um terreno<br />

comum aos olhos de praticamente todos os animais multicelulares (Arendt 2003).<br />

Durante a evolução do olho, tipos adicionais de células foram surgindo entre elas<br />

células dermais foto-sensível. Os tipos de células que compõem as estruturas sensíveis a<br />

luz atingiram a sua diversidade máxima na estrutura “olho câmara” de vertebrados e<br />

cefalópodes, assim como nos olhos compostos de artrópodes (Arendt e Wittbrodt 2001).<br />

Todos os fotorreceptores sensíveis à luz utilizam um pigmento derivado da vitamina A, e<br />

este pigmento está vinculado a uma proteína chamada opsina. A informação luminosa ativa<br />

a opsina e causa uma mudança na conformação do pigmento fotossensível, o qual permite<br />

que a opsina se ligue a uma proteína G, - uma molécula comum e versátil usado em muitos<br />

sinais de transdução em cascata. Estas semelhanças sugerem que todos os olhos têm um<br />

antepassado evolutivo comum (Arendt 2001).<br />

Nos vertebrados, a pax6 é exigida para a formação de praticamente todos os tipos<br />

de células da retina (Marquardt et al. 2001) e em Drosophila, o pax6 é necessária para a<br />

formação de todo o disco dos olhos (Jang et al. 2003).<br />

Fotorreceptores rabdomericos são encontrados nos olhos compostos de artrópodes.<br />

Eles aumentam as suas superfícies apicais em numerosas dobras, nas quais a célula<br />

parece ter um achatamento, com a coroação de cerdas finas e cerdas membranosas,<br />

apesar de a própria célula poder assumir muitas formas em espécies diferentes. A<br />

Transdução do sinal em fotorreceptores rabdomericos envolve ativação de fosfolipase C<br />

(PLC) e do inositol tri-fosfato (IP3), um exemplo de como se dá a formação de imagem<br />

podem ser observado na Fig.2 (Arendt, 2001, 2003).<br />

O tipo de fotorreceptores ciliar, é comum em vertebrados, sua característica é um<br />

aumento da área superficial na membrana celular externa, que é uma modificação do cílio.<br />

A membrana ciliar é expandida e empacotada em dobras profundas de modo que a região<br />

de receptores da célula se parece com uma pilha de discos. Os fotorreceptores ciliares<br />

usam uma via diferente de sinalização, ativam uma fosfodiesterase (PDE) que muda a<br />

concentração de GMP cíclico na célula. Tanto o IP3 e ao PDE existem em todos os animais,<br />

a diferença está que a via é utilizada em diferentes fotorreceptores (Arendt 2001).<br />

As diferenças fundamentais de morfologia, desenvolvimento e estrutura dos<br />

fotorreceptores de diversos tipos de olhos encontrados no reino animal sugerem que os<br />

olhos surgiram independentemente pelo menos 40 vezes. Ao analisarmos as estruturas que<br />

compõem o olho em câmara em especial as camadas da célula da retina (ganglionar,<br />

plexiforme interna, nuclear interna, plexiforme externa, nuclear externa, externa, epitélio<br />

pigmentar). Observamos que os sistemas de transdução são muito parecidos<br />

desempenhando operações de detecção, amplificação, e transmissão (Randall. et al.1997).<br />

As evidências aqui levantadas nos mostram que existem relações importantes entre<br />

as estruturas básicas dos fotorreceptores, e nos levam a refletir no processo de evolução,<br />

363


V Curso de Inverno<br />

onde cada grupo animal enfrentando pressões seletivas nos mais variados ambientes<br />

desenvolveram uma grande diversidade de tipos de olhos, cada um com sua peculiaridade,<br />

atendendo a condições necessárias a sobrevivência do indivíduo e conseqüentemente da<br />

espécie.<br />

olho composto<br />

olho de vertebrados<br />

vertebrado.<br />

Figura 2 - (esquema ilustrativo). Formação de imagem: A) olho composto; B) Olho de<br />

Referências Bibliográficas<br />

Arendt, D and Wittbrodt, J (2001). Reconstructing the eyes of Urbilateria. Phil.Trans. Roy. Soc. Lond.<br />

B 356: 1545-1563.<br />

Arendt, D (2003). Evolution of eyes and photoreceptor cell types Int. J. Dev. Biol. 47: 563-571<br />

Halder, G, SP Callaert and WJ Gehring (1995). New perspectives on eye evolution. Current Opinion in<br />

Genetics & Development, 5:602-609<br />

Gehring, WJ and M Rosbash (2003). The co-evolution of blue-light photoreception and circadian<br />

rhythms. J Mol Evol 57,<br />

Gehring, WJ and K, Ikeo (1999). Pax 6: mastering eye morphogenesis and eye evolution. Trends<br />

Genet. 15: 371-7.<br />

364


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

Jang, CC, JL Chao, N Jones, LC Yao, DA Bessarab, YM Kuo, S Jun, C Desplan, SK Beckendorf and<br />

YH Sun (2003). Two Pax genes, eye gone and eyeless, act cooperatively in promoting<br />

Drosophila eye development. Development 130: 2939-2951.09<br />

Land MF and RD Fernald (1992): The evolution of eyes. Annu Rev Neurosci, 15:1-29<br />

Marquardt, T, R Ashery-Padan, N Rejewski and R Scardigli (2001). Pax6 is required for the multipotent<br />

state of retinal progenitor cells. Cell 105: 43-55.<br />

Pichaud, F and C Desplan (2002). Pax genes and eye organogenesis. Curr. Opin. Genet. Dev. 12:<br />

430-4.<br />

Randall, D, W Burggren and K Fench (1997). In: Eckert, Animal Physiology Mechanisms and<br />

adaptations, 4ª ed. Editora WH FREEMAN and Company..<br />

Revisado por José Eduardo Pereira Wilken Bicudo<br />

365


V Curso de Inverno<br />

Evolução do Comportamento Eusocial:<br />

o Eterno Paradigma<br />

Pedro Leite Ribeiro<br />

Laboratório de Ecofisiologia Evolutiva<br />

pedrolribeiro@gmai.com<br />

Nos arredores de um depósito de lixo, uma mosca varejeira macho encontra uma<br />

fêmea, uma breve corte acontece. Ele exibe um repertório comportamental de danças<br />

estereotipadas que impressionam a fêmea, esta aceita a cópula que dura alguns poucos<br />

minutos.<br />

Perto dali, apoiado numa trama de galhinhos de uma trepadeira, a uns 15 cm do<br />

solo, um ninho de tico-tico abriga um só filhote, na primeira semana de vida. Está<br />

sossegado, talvez dormindo, protegido do sol de verão pela folhagem acima. De repente,<br />

bem rápida, chega a fêmea de tico-tico e habilmente pousa na beirada do ninho. Ato<br />

contínuo, o filhote se ergue, pescoço esticado para cima, o bico escancarado. A fêmea,<br />

agitada ou apressada, mete o bico goela adentro do pidão, retira-o, e girando o corpo, voa<br />

para trás, na direção de onde chegou. Não ficou nem um instante para descansar do sol<br />

dardejante de verão. Alguns minutos depois, ela chega de novo, mais uma refeição. Mais<br />

alguns minutos e a cena se repete. No entanto, ela não vai à exaustão total, e acaba<br />

descansando um pouco. (Robert et al. 1961)<br />

Bem mais longe, uma outra fêmea, uma mulher, engata a primeira marcha em seu<br />

carro e parte para o shopping center. Na lista que leva na bolsa estão anotados vários itens,<br />

incluindo fraldas, mamadeira, chupetas, leite em pó e um carrinho de bebê. Enquanto dirige,<br />

ela pensa na lista, e faz cálculos de dinheiro. Fica preocupada e percebe que vai ter de<br />

pagar com o cartão de crédito. Ao pensar em cada item, aparece em sua mente a imagem<br />

de um bebê, o filho de uma amiga, e ela sorri.<br />

No jardim da casa desta mulher há uma colméia de abelhas. Lá, milhares de<br />

operárias trabalham freneticamente em diferentes tarefas de forma a suprir todas as<br />

necessidades do grupo. Um olhar atento revela que há uma divisão de tarefas, grupos de<br />

abelhas fazem coisas distintas, cada indivíduo parece ser responsável por uma tarefa<br />

diferente, e de forma harmônica e um pouco misteriosa, tudo que precisa ser feito para que<br />

a colônia sobreviva é feito. Numa outra câmara desta mesma colônia há uma abelha<br />

diferente, um pouco maior e não parece estar engajada em nenhuma tarefa de mesma<br />

classe que todas as outras. A abelha rainha. Ela põe ovos, que são cuidados pelas<br />

operárias, quando se transformam em larvas estas são alimentadas pelas suas irmãs mais<br />

velhas até que se transformem em adultos e comecem colaborar com necessidades da<br />

colônia. A rainha desta espécie de abelhas, além de pôr ovos, tem uma outra silenciosa e<br />

importante tarefa. Ela usa substâncias químicas, feromônios, que inibem as suas filhas, as<br />

operárias, de se tornarem fêmeas férteis (Wenseleers e Ratnieks 2006).<br />

366


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

A um metro dali, uns 2m abaixo da superfície do solo, enclausurada numa câmara,<br />

uma saúva fêmea, conhecida popularmente pelos nomes de içá e tanajura, põe mais um<br />

ovo. Este ovo, que se transformará numa larva, numa pupa e finalmente no adulto terá<br />

cuidados providos pelas operárias inférteis da colônia. Nenhuma dos poucos milhões de<br />

operárias jamais terá a chance de reproduzir. A colônia sobrevive harmonicamente, sem<br />

conflitos pelo direito de reproduzir, por aproximadamente 15 anos, que é quando a Içá<br />

morre. Esta não é substituída e toda colônia morre poucos messes depois de sua morte<br />

(Autuori 1942, 1941).<br />

Assim, nos exemplos acima, temos animas que exibem diferentes graus de<br />

socialidade, desde aqueles praticamente solitários onde apenas na cópula há algum tipo de<br />

interação até os verdadeiramente sociais ou eusociais como as abelhas e as formigas além<br />

de vários outros não citados aqui. Wilson em 1971 estipula três critérios que têm a<br />

pretensão de classificar todas as espécies animais com relação aos níveis de socialidade, a<br />

saber: 1) indivíduos da mesma espécie que ajudam de forma cooperativa na criação dos<br />

jovens 2) uma divisão de tarefas reprodutiva, uma sociedade na qual um grupo de<br />

indivíduos é infértil e colabora com a criação dos filhos dos indivíduos férteis da colônia 3)<br />

quando existe uma sobreposição de pelo menos duas gerações, de forma que os filhos<br />

possam ajudar seus pais. Wilson define como eusociais apenas aqueles animais que<br />

exibem os três critérios estipulados por ele (Wilson 1971). Importante notar, portanto, que<br />

existem também vários estágios considerados intermediários, como nós humanos que<br />

somos capazes de comportamentos solidários com a prole alheia, sem, no entanto,<br />

abdicarmos de nossa própria capacidade reprodutiva.<br />

É, no entanto, a existência de um grupo de indivíduos inférteis dentro uma sociedade<br />

que mais chama atenção de teóricos a respeito da evolução biológica. Afinal, a infertilidade<br />

parece ir à contramão de tudo que entendemos a respeito de seleção natural. Como um<br />

indivíduo com zero de “fitness” (“fitness” sendo definido como a capacidade de deixar<br />

descendentes) pode ter sido selecionado? Darwin ao propor a teoria da Seleção Natural em<br />

seu livro “Origem das Espécies” questiona a abrangência de sua teoria quando, por<br />

exemplo, fala dos insetos sociais: “ Há que se admitir a existência de casos que apresentam<br />

especial dificuldade com relação à teoria da seleção natural. Um dos mais curiosos é o da<br />

existência de duas ou três castas definidas de formigas-operárias ou fêmeas estéreis na<br />

mesma comunidade de insetos”.<br />

Hamilton em 1964 publicou dois trabalhos que pretendem explicar, sob a luz da<br />

seleção natural, o comportamento eusocial nas diferentes espécies animais. Estes<br />

trabalhos, que são considerados por muitos os mais importantes trabalhos sobre evolução<br />

depois de Darwin, introduzem uma importante idéia nova no contexto da evolução. A idéia<br />

da seleção de parentesco. No entanto, para entendermos a idéia de seleção de parentesco<br />

temos primeiro que entender o conceito de fitness inclusivo, ou fitness total, que é a base da<br />

teoria de Hamilton.<br />

367


V Curso de Inverno<br />

Fitness total é o resultado da soma do Fitness direto com o Fitness indireto. Sendo<br />

que o fitness direto é dado pela capacidade reprodutiva do animal em questão, enquanto<br />

que fitness indireto é dado pela capacidade reprodutiva dos outros membros da comunidade<br />

na qual o animal vive. Para se calcular o fitness indireto é necessário levar em consideração<br />

o grau de parentesco dos outros membros da comunidade com o indivíduo em questão.<br />

Assim, a capacidade reprodutiva de membros geneticamente relacionados (parentes) de um<br />

determinado indivíduo tem uma importante participação no fitness total do indivíduo. Desta<br />

forma, temos o cálculo do ftiness de um individuo parcialmente desvinculado da capacidade<br />

do indivíduo de gerar filhos. Pois seus genes podem ser transmitidos para as gerações<br />

futuras, por exemplo, pelos seus irmãos, através dos sobrinhos. É esse o principal<br />

argumento sobre o qual Hamilton tece sua teoria (Hamilton 1964b; 1964a).<br />

Afinal, comportamentos altruísticos poderiam ser justificados pelo aumento do fitness<br />

indireto sempre que este aumento fosse maior que o prejuízo no fitness direto que o<br />

comportamento altruístico possa provocar no individuo que faz a generosidade. Ou seja, um<br />

aumento no ftiness total. Assim, em situações particulares nas quais exista um alto grau de<br />

parentesco entre os membros de uma comunidade, pode ser mais vantajoso, do ponto de<br />

vista de transmissão de genes para gerações futuras, abdicar do fitness direto em prol do<br />

fitness indireto.<br />

É em sociedades partenogênicas que este raciocínio ganha força, afinal, as irmãs<br />

compartilham 75% dos genes umas com as outras em média, enquanto que mães e filhas<br />

compartilham apenas 50% dos genes. Assim, o fitness indireto fica potencializado. È<br />

possível com isso ser mais interessante, do ponto de vista da transmissão gênica, cuidar<br />

das irmãs do que dos próprios filhos.<br />

Estas idéias parecem, portanto, acalmar as críticas com relação a espetacular<br />

contradição que os insetos sociais e alguns outros poucos animais escancaravam com<br />

relação a principal teoria da biologia, a seleção natural. Então, uma vez que temos uma<br />

explicação lógica e coerente com relação ao status quo dos sistemas biológicos que nos<br />

propusemos a estudar, por que não tentarmos explicar o surgimento dos sistemas biológicos<br />

eusocias? Quais eram, ou deveriam ser, as condições ecológicas dos ancestrais dos<br />

animais eusociais que conhecemos hoje? Sabemos que o comportamento eusocial em<br />

insetos surgiu pelo menos cinco vezes distintas. Afinal, este comportamento pode ser<br />

observado em isoptera, thysanoptera, hemíptera, coleóptera e hymenoptera que são grupos<br />

de insetos filogeneticamente distantes.<br />

Desta forma, a descoberta de características comuns aos ancestrais destes cinco<br />

grupos pode ser de grande valor para o entendimento de quais são as condições<br />

necessárias ou pelo menos favoráveis ao surgimento de animais eusociais. Infelizmente, o<br />

estudo de fósseis é pouco revelador com relação ao comportamento. Apenas algumas<br />

informações podem ser tiradas através de estruturas morfológicas que evidenciem algum<br />

tipo de comportamento, ou a fossilização de grupos de insetos num único evento pode<br />

368


Evolução de Sistemas Fisiológicos<br />

eternizar um momento da vida social de uma determinada espécie. A fossilização de<br />

formigas aladas e outras ápteras pode revelar a existências de indivíduos férteis e outros<br />

estéreis, um indicativo de eusocialidade. No entanto, as condições ecológicas nas quais<br />

estes animais viviam são de difícil ou praticamente impossível fossilização.<br />

Resta aos estudiosos destes assuntos, então, fazer inferências teóricas de como<br />

deveriam ser as condições ecológicas dos ancestrais dos animais eusociais que<br />

conhecemos hoje. Estas inferências podem usar de apoio as poucas evidências fósseis, as<br />

características comportamentais e ecológicas dos animais em estágios intermediários de<br />

socialidade que conhecemos hoje e o próprio estudo dos animais eusocias atuais.<br />

De maneira geral acredita-se que algumas condições devam ser satisfeitas para que<br />

exista a possibilidade do surgimento da eusocialidade. 1) Deve existir uma situação<br />

ecológica tal que grupo de indivíduos da mesma espécie sejam obrigados a viver juntos.<br />

Seja porque eles vivem em ninhos ou exista a necessidade de manutenção de um território<br />

que dificilmente possa ser mantido por um único indivíduo. 2) Necessidades alimentares<br />

restritas de forma que a tarefa de procura por alimento tenha tal intensidade que inviabilize o<br />

cumprimento das outras tarefas que este indivíduo precisa fazer, como, por exemplo, o<br />

cuidado com prole (Wilson <strong>2008</strong>). Portanto, parece existir uma situação na qual as<br />

condições ecológicas adversas obriguem o trabalho coletivo através da imposição de<br />

dificuldades à vida solitária.<br />

Então a teoria que tiver a pretensão de explicar a eusocialidade deve também ser<br />

capaz de explicar as suas origens. A idéia de seleção de parentesco, as vezes, pode<br />

parecer insuficiente quando consideremos as condições pré-eusociais. Principalmente<br />

quando consideramos o surgimento da eusocialidade em cupins (diplobiontes) e em<br />

formigas cujas fêmeas foram fecundadas por vários machos. Afinal, nestes casos a relação<br />

de parentesco entre os irmãos deixa de ser de 75% e pode passar para menos de 30%.<br />

Neste contexto o fitness indireto nunca será maior que o fitness direto – cuidar da própria<br />

prole sempre será mais vantajoso do que abdicar dos próprios filhos em favor dos filhos de<br />

seus pais-.<br />

Neste contexto surge uma idéia alternativa ou pelo menos complementar as idéias<br />

de Hamilton (seleção de parentesco). Esta idéia inicialmente apresentada por Richard<br />

Alexander em 1974 e que ganha apoio em publicações recentes de Francis (Wenseleers<br />

Ratnieks et al. 2003; Ratnieks e Wenseleers <strong>2008</strong>) introduz um novo conceito dentro do<br />

contexto da evolução da eusocialidade, o altruísmo forçado.<br />

Estas idéias ganham suporte em recentes estudos com diferentes espécies de<br />

insetos sociais (Ratnieks 1988; Ferracane e Ratnieks 1989; Ratnieks e Visscher 1989;<br />

Ratnieks e Reeve 1991; Anderson, Franks et al. 2001; Oldroyd, Wossler et al. 2001;<br />

Wenseleers, Badcock et al. 2005; Camargo, Lopes et al. 2006; Foster, Wenseleers et al.<br />

2006; Ratnieks e Wenseleers <strong>2008</strong>). Estes estudos descrevem uma série de<br />

comportamentos agressivos dentro da sociedade de insetos, que podem ser resumidos em<br />

369


V Curso de Inverno<br />

três tipos distintos: 1) Coerção, comportamento social agressivo que pune e policia o<br />

comportamento individual egoísta. 2) Manipulação parental, comportamento exibido pelos<br />

pais que visa a persuasão dos filhos para que cuidem dos irmãos. 3) Policiamento,<br />

comportamento de inibição da atividade de reprodução de determina operária, que pode<br />

acontecer pela destruição dos ovos postos ou agressão física a operária. É a descrição<br />

destes comportamentos que levaram os estudiosos destes assuntos a acreditar que o<br />

comportamento altruísta poderia não ser voluntário, como a idéia de Hamilton supunha.<br />

Isso traz uma sutil e importante diferença no entendimento de como se deu o<br />

surgimento do comportamento eusocial. Afinal, não seria apenas as relações genéticas<br />

entre os indivíduos que vivem juntos a questão permissiva e causal do surgimento de castas<br />

inférteis. E sim o comportamento agressivo de membros dominantes dentro do grupo que<br />

levaria a esterilidade de alguns indivíduos do mesmo grupo.<br />

É claro que as idéias de Hamilton não podem ser desconsideradas ou totalmente<br />

substituídas, afinal o entendimento de como se deu a origem do comportamento eusocial<br />

ainda não está totalmente elucidado. Isso sem falar que a manutenção, do ponto de vista<br />

evolutivo, das relações altruísticas pacíficas em animais eusocias pode ter como explicação<br />

parcial ou até mesmo total as idéias de seleção de parentesco.<br />

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<strong>2008</strong>.<br />

Revisado por Carlos Arturo Navas Iannini<br />

371

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