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Lixão do Roger : habitat urbano do homem urubu

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102<br />

Giovanni de Farias Seabra<br />

Professor adjunto <strong>do</strong> Depto. de Geociências da UFPB.<br />

Doutor em Geografia.<br />

E-mail: seabra@geociencias.ufpb.br<br />

Claudia Neu<br />

Pós-graduada em Geografia DGEOC/UFPB. Mestranda em<br />

Geociências PPGEO/CTG/UFPE.<br />

E-mail: neuseabra@yahoo.com.br<br />

Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>:<br />

<strong>habitat</strong> <strong>urbano</strong> <strong>do</strong> <strong>homem</strong> <strong>urubu</strong><br />

Reprodução<br />

Do ponto de vista geográfico e paisagístico, o Bairro <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> apresenta-se<br />

como uma das áreas mais nobres da cidade de João Pessoa. Das colinas<br />

situadas no Alto <strong>Roger</strong> pode-se avistar tanto o Estuário <strong>do</strong> Paraíba bordeja<strong>do</strong> de<br />

manguezais, como os mais distantes bairros da orla marítima de João Pessoa e de<br />

Cabedelo. Entretanto, a despeito de seu eleva<strong>do</strong> valor imobiliário, são encontra<strong>do</strong>s<br />

no bairro o Presídio <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> e um <strong>do</strong>s maiores depósitos de resíduos sóli<strong>do</strong>s<br />

a céu aberto em áreas urbanas <strong>do</strong> Brasil: o Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>.<br />

C O N C E I T O S<br />

Janeiro/Junho de 2003


O depósito de lixo está localiza<strong>do</strong><br />

no berço histórico de João Pessoa,<br />

sobre verde e denso manguezal, na margem<br />

direita <strong>do</strong> rio Sanhauá, importante<br />

afluente <strong>do</strong> baixo Paraíba. A nobreza <strong>do</strong>s<br />

seus vizinhos pode ser constatada pela<br />

imponência <strong>do</strong>s edifícios históricos, cujo<br />

perío<strong>do</strong> de construção confunde-se com<br />

a data da fundação da capital, em 1585,<br />

com o nome de Nossa Senhora das Neves.<br />

No Centro Histórico está em andamento<br />

o projeto de revitalização da cidade<br />

antiga, tornan<strong>do</strong>-o um <strong>do</strong>s locais mais<br />

visita<strong>do</strong>s pelos turistas no esta<strong>do</strong> da Paraíba.<br />

Nesse local são destaque a Basílica<br />

de Nossa Senhora das Neves, a Igreja<br />

de São Pedro Gonçalves, o conjunto<br />

arquitetônico da Igreja de São Francisco,<br />

o Convento de Santo Antônio, a Casa<br />

de Pólvora e o Hotel Globo. Desses <strong>do</strong>is<br />

últimos tem-se deslumbrante vista <strong>do</strong> complexo<br />

estuarino <strong>do</strong> rio Paraíba, ao fun<strong>do</strong>,<br />

e <strong>do</strong> Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, em primeiro<br />

plano.<br />

O rio Paraíba, cujo estuário forma<br />

um conjunto de ambientes complexos<br />

e diversifica<strong>do</strong>s, é uma das áreas<br />

prioritárias para o desenvolvimento <strong>do</strong><br />

ecoturismo e <strong>do</strong> turismo náutico. Entretanto,<br />

a contaminação de suas águas pelo<br />

chorume proveniente <strong>do</strong> Lixão e o forte<br />

o<strong>do</strong>r provoca<strong>do</strong> pela combustão <strong>do</strong>s resíduos,<br />

praticamente, impedem a implantação<br />

de qualquer projeto turístico<br />

naquela área. Ainda mais por se tratar<br />

de um ecossistema frágil, protegi<strong>do</strong> por<br />

diploma legal.<br />

O chorume é um líqui<strong>do</strong> escuro,<br />

áci<strong>do</strong> e mal cheiroso, constituí<strong>do</strong> de compostos<br />

orgânicos e metais pesa<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong><br />

fácil identificá-lo em algumas pequenas<br />

depressões no meio <strong>do</strong> Lixão. Vistos<br />

de longe, os alagadiços parecem pequenos<br />

lagos de lama, onde os porcos se<br />

refrescam <strong>do</strong> calor em banhos dura<strong>do</strong>uros.<br />

Valas foram abertas para o chorume<br />

escoar, evitan<strong>do</strong> assim a concentração <strong>do</strong><br />

líqui<strong>do</strong> no local e direcionan<strong>do</strong>-o para o<br />

rio, contaminan<strong>do</strong> suas águas, como também<br />

a fauna e a flora flúvio-marinhas.<br />

Peixes crustáceos e moluscos contamina<strong>do</strong>s<br />

servem de alimento a população ribeirinha<br />

e são consumi<strong>do</strong>s pelos turistas<br />

em bares e restaurantes locais.<br />

O Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> é o “<strong>habitat</strong><br />

<strong>urbano</strong> <strong>do</strong> <strong>homem</strong>-<strong>urubu</strong>s”, que procura<br />

manter-se vivo numa acirrada disputa<br />

diária por uma ponta de lixo. São famílias<br />

inteiras, incluin<strong>do</strong> as crianças, que<br />

se alternam em jornadas diurnas e noturnas.<br />

Os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Lixão exercem<br />

uma função social de grande importância,<br />

embora não reconhecida, a qual,<br />

segun<strong>do</strong> eles, é bem melhor que vagar<br />

pela cidade, cometen<strong>do</strong> crimes diversos.<br />

Ecossistema e ecologia são vocábulos<br />

inexistentes em tal situação, pois<br />

são despejadas sobre o manguezal cerca<br />

de 700 toneladas de resíduos sóli<strong>do</strong>s por<br />

dia. Completan<strong>do</strong> 45 anos de atividade<br />

em novembro de 2003, o Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong><br />

vem crescen<strong>do</strong> juntamente com a cidade,<br />

presumin<strong>do</strong>-se que existam mais<br />

de 10 milhões de toneladas de resíduos<br />

já deposita<strong>do</strong>s e compacta<strong>do</strong>s. A altura<br />

<strong>do</strong> depósito pode ser comparada a um<br />

edifício de cinco andares. A estrutura<br />

dessa montanha residual é constituída de<br />

materiais considera<strong>do</strong>s inúteis pela maioria<br />

da população, os quais, no entanto,<br />

transformam-se em meio de vida para<br />

os “homens-<strong>urubu</strong>s”.<br />

Além <strong>do</strong>s problemas ambientais<br />

Reprodução<br />

encontra<strong>do</strong>s no Lixão, conflitos sociais são<br />

evidencia<strong>do</strong>s nas relações de trabalho e<br />

na hierarquia <strong>do</strong> poder, porque ali lixo é<br />

uma questão de sobrevivência. Os territórios<br />

são defini<strong>do</strong>s, e o acesso ao lixo<br />

depende de autorização <strong>do</strong>s mais antigos.<br />

Assim, o lixo de maior valor pertence<br />

aos mais fortes, fican<strong>do</strong> as sobras<br />

para os mais fracos.<br />

No Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, os “homens<strong>urubu</strong>s”<br />

trabalham durante os três turnos,<br />

cata<strong>do</strong>res de lixo que moram nas<br />

imediações <strong>do</strong> Lixão e até mesmo no<br />

próprio local. Esses trabalha<strong>do</strong>res informais<br />

possuem características próprias,<br />

evidenciadas pelos gestos, o andar, o<br />

olhar, e muitos afirmam que moram ali,<br />

neste “<strong>habitat</strong>”, em meio a <strong>urubu</strong>s, cães,<br />

bois e porcos.<br />

No local, chegam diariamente inúmeros<br />

caminhões abarrota<strong>do</strong>s com entulhos<br />

diversos. Uns transportan<strong>do</strong> troncos<br />

e galhos de árvores provenientes de<br />

podas feitas nas ruas da cidade; outros<br />

caminhões chegam com metralhas de<br />

antigas edificações e reformas de casas.<br />

Esses tipos de resíduos vão sen<strong>do</strong> aos<br />

poucos joga<strong>do</strong>s em cima da vegetação<br />

<strong>do</strong> mangue, para expandir o Lixão cada<br />

vez mais.<br />

Vin<strong>do</strong>s de Manaíra, Tambaú, Cabo<br />

Branco e Mangabeira, os caminhões da<br />

coleta <strong>do</strong>miciliar são espera<strong>do</strong>s com<br />

Janeiro/Junho de 2003 <br />

C O N C E I T O S 103


muita ansiedade. São os chama<strong>do</strong>s “guarus”.<br />

Eles trazem <strong>do</strong>s bairros de João<br />

Pessoa o material de maior valor, como<br />

latinhas de alumínio, papel branco, papelão,<br />

plásticos, garrafas PET, ferro,<br />

vidros e borrachas, soma<strong>do</strong>s a uma quantidade<br />

enorme de matéria orgânica.<br />

O “<strong>homem</strong>-<strong>urubu</strong>” passa dias inteiros,<br />

ou noites inteiras, coletan<strong>do</strong> papéis,<br />

plásticos, vidros, metais e alimentos<br />

deteriora<strong>do</strong>s, alguns servin<strong>do</strong> à própria<br />

refeição. To<strong>do</strong>s trabalham no ambiente<br />

insalubre nas piores condições e sem<br />

qualquer proteção, como o uso de luvas,<br />

botas ou máscaras. Durante a coleta não<br />

existe discriminação entre homens e<br />

mulheres, to<strong>do</strong>s possuem seu próprio<br />

“nicho”, que também lhes serve de residência.<br />

Esses “canteiros” são pequenas<br />

áreas delimitadas, onde cada um separa<br />

o material coleta<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> amontoa<strong>do</strong>s<br />

de papéis, papelões, plásticos e<br />

metais.<br />

Respeitan<strong>do</strong>-se o poder constituí<strong>do</strong>,<br />

cada um tem a sua preferência na<br />

cata <strong>do</strong> lixo. Os materiais mais procura<strong>do</strong>s<br />

são os de maior valor de merca<strong>do</strong>,<br />

como papel branco, alumínio, cobre, plástico<br />

fino, garrafas de vidro branco, garrafas<br />

de uísque e garrafas PET.<br />

TABELA DE PREÇOS / 1 Kg<br />

MATERIAL R $<br />

Alumínio 1,00 a 1,30<br />

Jornal 0,15<br />

Saco plástico fino 0,15<br />

Papel branco 0,12 a 0,15<br />

PET 0,12<br />

Garrafas de cerveja<br />

0,10 (4 unid.)<br />

Plástico 0,10<br />

Papelão 0,05<br />

Papel misto 0,05<br />

Ferro 0,03<br />

Quanto aos papéis e papelões,<br />

outro fator a ser considera<strong>do</strong> é a variação<br />

brusca <strong>do</strong>s preços <strong>do</strong>s produtos quan<strong>do</strong><br />

estão secos ou molha<strong>do</strong>s, conforme<br />

os dias secos ou chuvosos, varian<strong>do</strong> entre<br />

15 e 30%, ten<strong>do</strong> como agravante o<br />

monopólio <strong>do</strong> atravessa<strong>do</strong>r.<br />

O destino destes materiais, em<br />

sua grande maioria, como o papelão e<br />

papéis de to<strong>do</strong>s os tipos vão para o Recife;<br />

os metais também; o plástico segue<br />

para a indústria Polyutil, no Bairro das<br />

Indústrias, em João Pessoa; e garrafas<br />

PET seguem para a indústria de vassouras,<br />

em Mangabeira e para a indústria<br />

REPET, no município <strong>do</strong> Conde.<br />

Histórias de muitos cata<strong>do</strong>res são<br />

bem diferentes umas das outras, ou até<br />

parecidas, mas uma coisa em comum os<br />

cerca: o lixo.<br />

Em 1997, foram cadastradas 200<br />

famílias, que literalmente moravam em<br />

barracos no Lixão. Essas pessoas foram<br />

retiradas e alojadas em apartamentos<br />

construí<strong>do</strong>s pelo projeto “É pra Morar”,<br />

da Prefeitura Municipal de João Pessoa,<br />

através da Secretaria de Trabalho e Promoção<br />

Social - Setraps. O imóvel de dimensões<br />

reduzidas, conten<strong>do</strong> sala, quarto,<br />

cozinha e banheiro, possui tamanho<br />

insuficiente para abrigar as famílias numerosas.<br />

Os trabalha<strong>do</strong>res receberam os<br />

imóveis sob a condição de não voltarem<br />

a trabalhar no Lixão. Mas, sem a perspectiva<br />

de trabalho na cidade, muitos<br />

venderam os apartamentos e compraram<br />

um “barraco” mais barato, enquanto outros<br />

retornaram a morar no Lixão.<br />

De lá para cá, houve a proibição<br />

da entrada de crianças, mas muitas continuam<br />

catan<strong>do</strong> o lixo; elas afirmam que<br />

quan<strong>do</strong> o fiscal se aproxima, largam tu<strong>do</strong><br />

e correm.<br />

Existe um convênio assina<strong>do</strong> entre<br />

o município de João Pessoa e o Governo<br />

Federal, através da Secretaria<br />

Nacional de Assistência Social, com a<br />

implantação <strong>do</strong> Programa Erradicação<br />

<strong>do</strong> Trabalho Infantil (PETI). Esse programa<br />

visa atender aos menores que trabalhavam<br />

no Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, fazen<strong>do</strong> com<br />

que permaneçam nas salas de aula, receben<strong>do</strong><br />

uma bolsa-escola no valor de R$<br />

40,00 mensais, para ajudar no orçamento<br />

<strong>do</strong>méstico. Entretanto, o receio de<br />

deixá-los a sós em casa, a insuficiência<br />

<strong>do</strong>s recursos e os atrasos na liberação<br />

das bolsas são apresenta<strong>do</strong>s como justificativas<br />

para o retorno <strong>do</strong> menor à cata<br />

<strong>do</strong> lixo.<br />

A fiscalização <strong>do</strong> trabalho infantil<br />

está sen<strong>do</strong> realizada. Mesmo assim, a<strong>do</strong>lescentes<br />

com tamanho de adultos entram<br />

no Lixão à noite. Auxilia<strong>do</strong>s pela<br />

escuridão, torna-se muito mais difícil para<br />

o fiscal identificar ao longe o menor. Caso<br />

os fiscais venham em direção a eles, os<br />

mesmos driblam entre adultos para não<br />

serem vistos. Após inúmeras denúncias<br />

104<br />

C O N C E I T O S<br />

Janeiro/Junho de 2003


publicadas em jornais locais, é comum<br />

ver os menores trabalhan<strong>do</strong> após o horário<br />

escolar.<br />

Morar no Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> é estar<br />

em meio a animais, pastan<strong>do</strong> restos de<br />

comida e fezes. Contu<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> eles<br />

próprios dizem., “ a gente termina se<br />

acostuman<strong>do</strong> ...” .<br />

O cheiro insuportável e <strong>urubu</strong>s<br />

voan<strong>do</strong> simbolizam a sujeira e a podridão.<br />

Em suas manobras, caminhões e<br />

tratores colocam em risco a vida <strong>do</strong>s<br />

“mora<strong>do</strong>res”, trafegan<strong>do</strong> entre homens,<br />

mulheres e crianças e, levantan<strong>do</strong> uma<br />

poeira fina ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s “barracos”,<br />

construí<strong>do</strong>s com tapumes, tábuas, plásticos,<br />

palhas, ou qualquer outra coisa.<br />

Os “barracos” servem para estocar o<br />

produto coleta<strong>do</strong>, além de abrigo e local<br />

de vigília, tanto <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res locais,<br />

como os oriun<strong>do</strong>s de outros municípios.<br />

Nos finais de semana, os cata<strong>do</strong>res,<br />

habitantes <strong>do</strong> Lixão, vão visitar suas famílias,<br />

levan<strong>do</strong> a renda obtida com o<br />

produto <strong>do</strong> trabalho.<br />

A princípio, os “barracos” têm a<br />

função de não deixar molhar o papel e o<br />

papelão na chuva. Contu<strong>do</strong>, na hora <strong>do</strong><br />

descanso, ao longo da jornada de trabalho,<br />

os cata<strong>do</strong>res puxam um papelão e<br />

estendem no chão para se deitarem. Do<br />

la<strong>do</strong> de fora <strong>do</strong> “barraco”, os trabalha<strong>do</strong>res<br />

possuem uma mesa improvisada,<br />

de madeira ou com armação de ferro<br />

para prepararem as suas refeições. O<br />

fogo para o cozimento <strong>do</strong>s alimentos não<br />

é problema, pois, no próprio local, são<br />

encontra<strong>do</strong>s madeira ou galhos usa<strong>do</strong>s<br />

na fogueira. A água para consumo é encontrada<br />

na portaria <strong>do</strong> Lixão.<br />

Demonstran<strong>do</strong> to<strong>do</strong> orgulho de<br />

ser um trabalha<strong>do</strong>r ativo, os homens-<strong>urubu</strong><br />

reservam para si alguns momentos de<br />

descontração, entre uma e outra chegada<br />

de caminhões. Entre gritos e risos<br />

batem “ aquela” pelada de futebol em<br />

campo improvisa<strong>do</strong> sobre o mar de entulhos<br />

e dejetos, chutan<strong>do</strong> em todas as<br />

direções a bola murcha encontrada no<br />

meio <strong>do</strong> caos.<br />

“Não<br />

é de hoje que se<br />

discute a criação<br />

de um aterro sanitário,<br />

para a Região<br />

Metropolitana de<br />

João Pessoa e a<br />

intensificação da<br />

coleta seletiva.”<br />

Ao entrar no Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, é<br />

de qualquer um ficar, por alguns instantes,<br />

pasmos e paralisa<strong>do</strong>s com o que se<br />

vê ao re<strong>do</strong>r: pessoas andam procuran<strong>do</strong><br />

seu sustento no meio <strong>do</strong> lixo, com um<br />

olhar firme para o chão, poden<strong>do</strong>, a qualquer<br />

momento achar algo de interessante,<br />

e só levantam a cabeça para cumprimentar<br />

outra pessoa. Na mão o “gadenhe”,<br />

ferramenta utilizada para auxiliar<br />

a catação, semelhante a um garfo de um<br />

dente só; na outra mão, um saco plástico<br />

ou de nylon para encher de material<br />

coleta<strong>do</strong> e, raramente, usam luva.<br />

A variação <strong>do</strong>s preços depende<br />

da qualidade <strong>do</strong> produto, ou seja, se<br />

está limpo vale mais, se está sujo, vale<br />

menos. Por isso, existe uma hierarquia<br />

no processo de catação, ten<strong>do</strong> os trabalha<strong>do</strong>res<br />

mais antigos prioridade sobre<br />

os mais novos, na coleta de “merca<strong>do</strong>rias”<br />

mais limpas e valiosas. Para<br />

um observa<strong>do</strong>r mais atento, é possível<br />

perceber a existência de um código de<br />

ética no Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, que é respeita<strong>do</strong><br />

por to<strong>do</strong>s.<br />

Existe uma área reservada para<br />

depositar-se o lixo hospitalar, onde há<br />

um buraco feito com trator e onde são<br />

joga<strong>do</strong>s os resíduos. Nesse local, não é<br />

permiti<strong>do</strong> aproximar-se, devi<strong>do</strong> à alta<br />

contaminação provocada por gazes, seringas,<br />

resíduos de cirurgias e amputações.<br />

Mas, quan<strong>do</strong> o trator está quebra<strong>do</strong>,<br />

os veículos que transportam o lixo<br />

hospitalar despejam os resíduos em qualquer<br />

lugar <strong>do</strong> Lixão, aumentan<strong>do</strong> o risco<br />

de contaminação <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />

Em 1999, um pequeno grupo de<br />

40 cata<strong>do</strong>res organizou e criou a Associação<br />

<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Material<br />

Reciclável <strong>do</strong> Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> (ASTRA-<br />

MARE) onde, com muita dificuldade,<br />

reunia-se uma vez por semana. Em conversas<br />

informais, muitos declaravam não<br />

acreditar naquela associação. Mas, com<br />

a ajuda de religiosos e voluntários da<br />

sociedade civil, estabeleceram uma lista<br />

de reivindicações para apresentar ao<br />

prefeito da Cidade. Algumas delas incluíam<br />

a construção de um galpão para<br />

trabalharem e um melhor acesso a serviços<br />

de saúde.<br />

O movimento cresceu, houve novas<br />

adesões e passeatas foram organizadas.<br />

Agora a associação reivindica melhores<br />

preços <strong>do</strong>s materiais coleta<strong>do</strong>s,<br />

porque, anos atrás, os valores das merca<strong>do</strong>rias<br />

eram mais altos.<br />

Não é de hoje que se discute a<br />

criação de um aterro sanitário, para a<br />

Região Metropolitana de João Pessoa e<br />

a intensificação da coleta seletiva. Em<br />

2001, foi apresenta<strong>do</strong> um projeto para<br />

remediação <strong>do</strong> Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, elabora<strong>do</strong><br />

pela Empresa Municipal de Limpeza<br />

Urbana – EMLUR. Segun<strong>do</strong> o projeto,<br />

no perío<strong>do</strong> de cinco anos a área será<br />

transformada num “parque ecológico”,<br />

com um “centro de educação ambiental”<br />

e áreas de lazer. A proposta inclui a retirada<br />

<strong>do</strong> chorume e a eliminação <strong>do</strong>s<br />

gases por tubulações e, no seu entorno,<br />

será erguida uma barreira de argila.<br />

Entretanto, a EMLUR não revelou como<br />

irá executar o projeto ecológico no Lixão,<br />

e nem como captará os recursos para<br />

esse fim. Após mais de <strong>do</strong>is anos, desde<br />

o lançamento <strong>do</strong> projeto, absolutamente<br />

nada foi feito.<br />

Uma única melhoria pode ser constatada,<br />

e que serve à perpetuação <strong>do</strong><br />

Lixão naquele local. Foram construí<strong>do</strong>s<br />

<strong>do</strong>is galpões adapta<strong>do</strong>s com esteiras<br />

Janeiro/Junho de 2003 <br />

C O N C E I T O S 105


para a separação <strong>do</strong> lixo recolhi<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong><br />

emprega<strong>do</strong>s alguns <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />

cadastra<strong>do</strong>s.<br />

Há mais de <strong>do</strong>is anos foi feito cadastramento<br />

<strong>do</strong>s cata<strong>do</strong>res para trabalharem<br />

nos galpões. O critério para a<br />

seleção considerou preferencialmente os<br />

mais antigos, assim como as gestantes e<br />

o número de filhos. O objetivo da Associação<br />

é incluir to<strong>do</strong>s os cata<strong>do</strong>res que<br />

vivem <strong>do</strong> Lixão, exercen<strong>do</strong> os direitos<br />

como cidadãos.<br />

Observan<strong>do</strong> o quadro social e de<br />

saúde em que se encontram os “homens<strong>urubu</strong>s”<br />

<strong>do</strong> Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> e, consideran<strong>do</strong><br />

o conceito de poluição segun<strong>do</strong><br />

Grisi (1997), em que o efeito acarreta<strong>do</strong><br />

pelo procedimento humano de lançar<br />

na Natureza resíduos, dejetos ou qualquer<br />

outro material que alterem as condições<br />

naturais <strong>do</strong> ambiente e, que contaminam<br />

ou deterioram nossa fonte natural<br />

de recursos, <strong>do</strong> ar, terra, ou água,<br />

prejudicial ao próprio <strong>homem</strong> ou a qualquer<br />

ser vivo desejável, e levan<strong>do</strong> em<br />

conta a definição de saúde, segun<strong>do</strong> a<br />

Organização Mundial de Saúde - FAO<br />

(1975), e a esta<strong>do</strong> de completo bemestar<br />

físico, mental e social, e não apenas<br />

a ausência de enfermidade, pode-se<br />

constatar mais uma vez que os “homens<strong>urubu</strong>s”<br />

são os antropoindica<strong>do</strong>res da<br />

péssima qualidade de vida e da baixíssima<br />

qualidade ambiental <strong>do</strong> ambiente insalubre<br />

onde vivem, sob o olhar silencioso<br />

<strong>do</strong> poder público.<br />

A Prefeitura Municipal de João<br />

Pessoa, através da EMLUR, procura,<br />

timidamente, informar sobre a importância<br />

da coleta seletiva de lixo. Contu<strong>do</strong>,<br />

esse trabalho de educação ambiental<br />

não é acompanha<strong>do</strong> de medidas<br />

eficazes para a solução ou mitigação <strong>do</strong><br />

problema. Para os “homens-<strong>urubu</strong>s”, a<br />

seleção <strong>do</strong> lixo no local é uma necessidade<br />

e uma questão de sobrevivência,<br />

o que é evidencia<strong>do</strong> pela grande concorrência<br />

entre eles próprios e a tentativa<br />

de novos atravessa<strong>do</strong>res, na disputa<br />

pelos materiais de alto valor rejeita<strong>do</strong>s<br />

pela sociedade.<br />

Para uma área nobre, como o<br />

Bairro <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, que está junto ao centro<br />

da cidade de João Pessoa, próximo<br />

ao comércio e <strong>do</strong>s escritórios, deveria<br />

funcionar um centro de transbor<strong>do</strong><br />

de resíduos sóli<strong>do</strong>s, devi<strong>do</strong> a sua<br />

proximidade com os bairros emissores.<br />

Com a instalação desse centro de captação,<br />

a EMLUR não acrescentaria<br />

gastos imprevisíveis com combustível<br />

nem tanto com galpões instala<strong>do</strong>s para<br />

a seleção de material reciclável.<br />

A via férrea da Rede Ferroviária<br />

– REFFSA, que margeia o Lixão,<br />

pode ser utilizada para o transporte<br />

<strong>do</strong>s resíduos excedentes, a fim de serem<br />

processa<strong>do</strong>s em uma usina de compostagem<br />

e um incinera<strong>do</strong>r, instala<strong>do</strong>s<br />

na zona rural <strong>do</strong> município de Santa<br />

Rita, a uma distância aproximada de<br />

12 quilômetros, numa combinasão intermodal<br />

– transporte ferroviário e ro<strong>do</strong>viário.<br />

Ao invés de soluções como acima<br />

apresentada, a Prefeitura de João Pessoa<br />

desapropriou uma área para instalação<br />

<strong>do</strong> futuro aterro sanitário. Os impactos<br />

ambientais <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> projeto são<br />

inevitáveis, pois o local escolhi<strong>do</strong> está<br />

situa<strong>do</strong> na bacia <strong>do</strong>s rios Mambaba-Gramame,<br />

próximos a represa <strong>do</strong> mesmo<br />

nome, encarregada de fornecer água<br />

para consumo da população de João Pessoa.<br />

Entretanto, qualquer medida nesse<br />

senti<strong>do</strong> deve passar, obrigatoriamente,<br />

pela criação da Região Metropolitana de<br />

João Pessoa acompanhada de ampla discussão<br />

junto à comunidade, de forma a<br />

proporcionar melhorias na qualidade<br />

ambiental <strong>do</strong> município, oferecen<strong>do</strong> condições<br />

dignas às famílias que sobrevivem<br />

da cata <strong>do</strong> lixo.<br />

B I B L I O G R A F I A<br />

FELLEMBERG, Gunter. Introdução aos Problemas da Poluição<br />

Ambiental. São Paulo: Edusp,1980.<br />

GRISI, Breno M. Glossário de Ecologia e Ciências Ambientais.<br />

João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 1997.<br />

LIMA, Luiz Mário Queiroz. Lixo: Tratamento e Biorremediação.<br />

São Paulo: Hemius, 1995.<br />

MIRANDA, Luciana L. de O Que é o Lixo. São Paulo: Brasiliense,<br />

1995.<br />

ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD / FAO. Passmore, R. et<br />

al. Manual sobre Necesidades Nutricionlales del Hombre. Genebra:<br />

OMS, 1975.<br />

SCARLATO, Francisco C. e PONTIN, Joel A. Do Nicho ao Lixo:<br />

Ambiente, Sociedade e Educação. São Paulo: Scipione, 1998.<br />

106<br />

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Janeiro/Junho de 2003

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