Lixão do Roger : habitat urbano do homem urubu
Lixão do Roger : habitat urbano do homem urubu
Lixão do Roger : habitat urbano do homem urubu
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Giovanni de Farias Seabra<br />
Professor adjunto <strong>do</strong> Depto. de Geociências da UFPB.<br />
Doutor em Geografia.<br />
E-mail: seabra@geociencias.ufpb.br<br />
Claudia Neu<br />
Pós-graduada em Geografia DGEOC/UFPB. Mestranda em<br />
Geociências PPGEO/CTG/UFPE.<br />
E-mail: neuseabra@yahoo.com.br<br />
Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>:<br />
<strong>habitat</strong> <strong>urbano</strong> <strong>do</strong> <strong>homem</strong> <strong>urubu</strong><br />
Reprodução<br />
Do ponto de vista geográfico e paisagístico, o Bairro <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> apresenta-se<br />
como uma das áreas mais nobres da cidade de João Pessoa. Das colinas<br />
situadas no Alto <strong>Roger</strong> pode-se avistar tanto o Estuário <strong>do</strong> Paraíba bordeja<strong>do</strong> de<br />
manguezais, como os mais distantes bairros da orla marítima de João Pessoa e de<br />
Cabedelo. Entretanto, a despeito de seu eleva<strong>do</strong> valor imobiliário, são encontra<strong>do</strong>s<br />
no bairro o Presídio <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> e um <strong>do</strong>s maiores depósitos de resíduos sóli<strong>do</strong>s<br />
a céu aberto em áreas urbanas <strong>do</strong> Brasil: o Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>.<br />
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Janeiro/Junho de 2003
O depósito de lixo está localiza<strong>do</strong><br />
no berço histórico de João Pessoa,<br />
sobre verde e denso manguezal, na margem<br />
direita <strong>do</strong> rio Sanhauá, importante<br />
afluente <strong>do</strong> baixo Paraíba. A nobreza <strong>do</strong>s<br />
seus vizinhos pode ser constatada pela<br />
imponência <strong>do</strong>s edifícios históricos, cujo<br />
perío<strong>do</strong> de construção confunde-se com<br />
a data da fundação da capital, em 1585,<br />
com o nome de Nossa Senhora das Neves.<br />
No Centro Histórico está em andamento<br />
o projeto de revitalização da cidade<br />
antiga, tornan<strong>do</strong>-o um <strong>do</strong>s locais mais<br />
visita<strong>do</strong>s pelos turistas no esta<strong>do</strong> da Paraíba.<br />
Nesse local são destaque a Basílica<br />
de Nossa Senhora das Neves, a Igreja<br />
de São Pedro Gonçalves, o conjunto<br />
arquitetônico da Igreja de São Francisco,<br />
o Convento de Santo Antônio, a Casa<br />
de Pólvora e o Hotel Globo. Desses <strong>do</strong>is<br />
últimos tem-se deslumbrante vista <strong>do</strong> complexo<br />
estuarino <strong>do</strong> rio Paraíba, ao fun<strong>do</strong>,<br />
e <strong>do</strong> Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, em primeiro<br />
plano.<br />
O rio Paraíba, cujo estuário forma<br />
um conjunto de ambientes complexos<br />
e diversifica<strong>do</strong>s, é uma das áreas<br />
prioritárias para o desenvolvimento <strong>do</strong><br />
ecoturismo e <strong>do</strong> turismo náutico. Entretanto,<br />
a contaminação de suas águas pelo<br />
chorume proveniente <strong>do</strong> Lixão e o forte<br />
o<strong>do</strong>r provoca<strong>do</strong> pela combustão <strong>do</strong>s resíduos,<br />
praticamente, impedem a implantação<br />
de qualquer projeto turístico<br />
naquela área. Ainda mais por se tratar<br />
de um ecossistema frágil, protegi<strong>do</strong> por<br />
diploma legal.<br />
O chorume é um líqui<strong>do</strong> escuro,<br />
áci<strong>do</strong> e mal cheiroso, constituí<strong>do</strong> de compostos<br />
orgânicos e metais pesa<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong><br />
fácil identificá-lo em algumas pequenas<br />
depressões no meio <strong>do</strong> Lixão. Vistos<br />
de longe, os alagadiços parecem pequenos<br />
lagos de lama, onde os porcos se<br />
refrescam <strong>do</strong> calor em banhos dura<strong>do</strong>uros.<br />
Valas foram abertas para o chorume<br />
escoar, evitan<strong>do</strong> assim a concentração <strong>do</strong><br />
líqui<strong>do</strong> no local e direcionan<strong>do</strong>-o para o<br />
rio, contaminan<strong>do</strong> suas águas, como também<br />
a fauna e a flora flúvio-marinhas.<br />
Peixes crustáceos e moluscos contamina<strong>do</strong>s<br />
servem de alimento a população ribeirinha<br />
e são consumi<strong>do</strong>s pelos turistas<br />
em bares e restaurantes locais.<br />
O Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> é o “<strong>habitat</strong><br />
<strong>urbano</strong> <strong>do</strong> <strong>homem</strong>-<strong>urubu</strong>s”, que procura<br />
manter-se vivo numa acirrada disputa<br />
diária por uma ponta de lixo. São famílias<br />
inteiras, incluin<strong>do</strong> as crianças, que<br />
se alternam em jornadas diurnas e noturnas.<br />
Os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Lixão exercem<br />
uma função social de grande importância,<br />
embora não reconhecida, a qual,<br />
segun<strong>do</strong> eles, é bem melhor que vagar<br />
pela cidade, cometen<strong>do</strong> crimes diversos.<br />
Ecossistema e ecologia são vocábulos<br />
inexistentes em tal situação, pois<br />
são despejadas sobre o manguezal cerca<br />
de 700 toneladas de resíduos sóli<strong>do</strong>s por<br />
dia. Completan<strong>do</strong> 45 anos de atividade<br />
em novembro de 2003, o Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong><br />
vem crescen<strong>do</strong> juntamente com a cidade,<br />
presumin<strong>do</strong>-se que existam mais<br />
de 10 milhões de toneladas de resíduos<br />
já deposita<strong>do</strong>s e compacta<strong>do</strong>s. A altura<br />
<strong>do</strong> depósito pode ser comparada a um<br />
edifício de cinco andares. A estrutura<br />
dessa montanha residual é constituída de<br />
materiais considera<strong>do</strong>s inúteis pela maioria<br />
da população, os quais, no entanto,<br />
transformam-se em meio de vida para<br />
os “homens-<strong>urubu</strong>s”.<br />
Além <strong>do</strong>s problemas ambientais<br />
Reprodução<br />
encontra<strong>do</strong>s no Lixão, conflitos sociais são<br />
evidencia<strong>do</strong>s nas relações de trabalho e<br />
na hierarquia <strong>do</strong> poder, porque ali lixo é<br />
uma questão de sobrevivência. Os territórios<br />
são defini<strong>do</strong>s, e o acesso ao lixo<br />
depende de autorização <strong>do</strong>s mais antigos.<br />
Assim, o lixo de maior valor pertence<br />
aos mais fortes, fican<strong>do</strong> as sobras<br />
para os mais fracos.<br />
No Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, os “homens<strong>urubu</strong>s”<br />
trabalham durante os três turnos,<br />
cata<strong>do</strong>res de lixo que moram nas<br />
imediações <strong>do</strong> Lixão e até mesmo no<br />
próprio local. Esses trabalha<strong>do</strong>res informais<br />
possuem características próprias,<br />
evidenciadas pelos gestos, o andar, o<br />
olhar, e muitos afirmam que moram ali,<br />
neste “<strong>habitat</strong>”, em meio a <strong>urubu</strong>s, cães,<br />
bois e porcos.<br />
No local, chegam diariamente inúmeros<br />
caminhões abarrota<strong>do</strong>s com entulhos<br />
diversos. Uns transportan<strong>do</strong> troncos<br />
e galhos de árvores provenientes de<br />
podas feitas nas ruas da cidade; outros<br />
caminhões chegam com metralhas de<br />
antigas edificações e reformas de casas.<br />
Esses tipos de resíduos vão sen<strong>do</strong> aos<br />
poucos joga<strong>do</strong>s em cima da vegetação<br />
<strong>do</strong> mangue, para expandir o Lixão cada<br />
vez mais.<br />
Vin<strong>do</strong>s de Manaíra, Tambaú, Cabo<br />
Branco e Mangabeira, os caminhões da<br />
coleta <strong>do</strong>miciliar são espera<strong>do</strong>s com<br />
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muita ansiedade. São os chama<strong>do</strong>s “guarus”.<br />
Eles trazem <strong>do</strong>s bairros de João<br />
Pessoa o material de maior valor, como<br />
latinhas de alumínio, papel branco, papelão,<br />
plásticos, garrafas PET, ferro,<br />
vidros e borrachas, soma<strong>do</strong>s a uma quantidade<br />
enorme de matéria orgânica.<br />
O “<strong>homem</strong>-<strong>urubu</strong>” passa dias inteiros,<br />
ou noites inteiras, coletan<strong>do</strong> papéis,<br />
plásticos, vidros, metais e alimentos<br />
deteriora<strong>do</strong>s, alguns servin<strong>do</strong> à própria<br />
refeição. To<strong>do</strong>s trabalham no ambiente<br />
insalubre nas piores condições e sem<br />
qualquer proteção, como o uso de luvas,<br />
botas ou máscaras. Durante a coleta não<br />
existe discriminação entre homens e<br />
mulheres, to<strong>do</strong>s possuem seu próprio<br />
“nicho”, que também lhes serve de residência.<br />
Esses “canteiros” são pequenas<br />
áreas delimitadas, onde cada um separa<br />
o material coleta<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> amontoa<strong>do</strong>s<br />
de papéis, papelões, plásticos e<br />
metais.<br />
Respeitan<strong>do</strong>-se o poder constituí<strong>do</strong>,<br />
cada um tem a sua preferência na<br />
cata <strong>do</strong> lixo. Os materiais mais procura<strong>do</strong>s<br />
são os de maior valor de merca<strong>do</strong>,<br />
como papel branco, alumínio, cobre, plástico<br />
fino, garrafas de vidro branco, garrafas<br />
de uísque e garrafas PET.<br />
TABELA DE PREÇOS / 1 Kg<br />
MATERIAL R $<br />
Alumínio 1,00 a 1,30<br />
Jornal 0,15<br />
Saco plástico fino 0,15<br />
Papel branco 0,12 a 0,15<br />
PET 0,12<br />
Garrafas de cerveja<br />
0,10 (4 unid.)<br />
Plástico 0,10<br />
Papelão 0,05<br />
Papel misto 0,05<br />
Ferro 0,03<br />
Quanto aos papéis e papelões,<br />
outro fator a ser considera<strong>do</strong> é a variação<br />
brusca <strong>do</strong>s preços <strong>do</strong>s produtos quan<strong>do</strong><br />
estão secos ou molha<strong>do</strong>s, conforme<br />
os dias secos ou chuvosos, varian<strong>do</strong> entre<br />
15 e 30%, ten<strong>do</strong> como agravante o<br />
monopólio <strong>do</strong> atravessa<strong>do</strong>r.<br />
O destino destes materiais, em<br />
sua grande maioria, como o papelão e<br />
papéis de to<strong>do</strong>s os tipos vão para o Recife;<br />
os metais também; o plástico segue<br />
para a indústria Polyutil, no Bairro das<br />
Indústrias, em João Pessoa; e garrafas<br />
PET seguem para a indústria de vassouras,<br />
em Mangabeira e para a indústria<br />
REPET, no município <strong>do</strong> Conde.<br />
Histórias de muitos cata<strong>do</strong>res são<br />
bem diferentes umas das outras, ou até<br />
parecidas, mas uma coisa em comum os<br />
cerca: o lixo.<br />
Em 1997, foram cadastradas 200<br />
famílias, que literalmente moravam em<br />
barracos no Lixão. Essas pessoas foram<br />
retiradas e alojadas em apartamentos<br />
construí<strong>do</strong>s pelo projeto “É pra Morar”,<br />
da Prefeitura Municipal de João Pessoa,<br />
através da Secretaria de Trabalho e Promoção<br />
Social - Setraps. O imóvel de dimensões<br />
reduzidas, conten<strong>do</strong> sala, quarto,<br />
cozinha e banheiro, possui tamanho<br />
insuficiente para abrigar as famílias numerosas.<br />
Os trabalha<strong>do</strong>res receberam os<br />
imóveis sob a condição de não voltarem<br />
a trabalhar no Lixão. Mas, sem a perspectiva<br />
de trabalho na cidade, muitos<br />
venderam os apartamentos e compraram<br />
um “barraco” mais barato, enquanto outros<br />
retornaram a morar no Lixão.<br />
De lá para cá, houve a proibição<br />
da entrada de crianças, mas muitas continuam<br />
catan<strong>do</strong> o lixo; elas afirmam que<br />
quan<strong>do</strong> o fiscal se aproxima, largam tu<strong>do</strong><br />
e correm.<br />
Existe um convênio assina<strong>do</strong> entre<br />
o município de João Pessoa e o Governo<br />
Federal, através da Secretaria<br />
Nacional de Assistência Social, com a<br />
implantação <strong>do</strong> Programa Erradicação<br />
<strong>do</strong> Trabalho Infantil (PETI). Esse programa<br />
visa atender aos menores que trabalhavam<br />
no Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, fazen<strong>do</strong> com<br />
que permaneçam nas salas de aula, receben<strong>do</strong><br />
uma bolsa-escola no valor de R$<br />
40,00 mensais, para ajudar no orçamento<br />
<strong>do</strong>méstico. Entretanto, o receio de<br />
deixá-los a sós em casa, a insuficiência<br />
<strong>do</strong>s recursos e os atrasos na liberação<br />
das bolsas são apresenta<strong>do</strong>s como justificativas<br />
para o retorno <strong>do</strong> menor à cata<br />
<strong>do</strong> lixo.<br />
A fiscalização <strong>do</strong> trabalho infantil<br />
está sen<strong>do</strong> realizada. Mesmo assim, a<strong>do</strong>lescentes<br />
com tamanho de adultos entram<br />
no Lixão à noite. Auxilia<strong>do</strong>s pela<br />
escuridão, torna-se muito mais difícil para<br />
o fiscal identificar ao longe o menor. Caso<br />
os fiscais venham em direção a eles, os<br />
mesmos driblam entre adultos para não<br />
serem vistos. Após inúmeras denúncias<br />
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publicadas em jornais locais, é comum<br />
ver os menores trabalhan<strong>do</strong> após o horário<br />
escolar.<br />
Morar no Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> é estar<br />
em meio a animais, pastan<strong>do</strong> restos de<br />
comida e fezes. Contu<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> eles<br />
próprios dizem., “ a gente termina se<br />
acostuman<strong>do</strong> ...” .<br />
O cheiro insuportável e <strong>urubu</strong>s<br />
voan<strong>do</strong> simbolizam a sujeira e a podridão.<br />
Em suas manobras, caminhões e<br />
tratores colocam em risco a vida <strong>do</strong>s<br />
“mora<strong>do</strong>res”, trafegan<strong>do</strong> entre homens,<br />
mulheres e crianças e, levantan<strong>do</strong> uma<br />
poeira fina ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s “barracos”,<br />
construí<strong>do</strong>s com tapumes, tábuas, plásticos,<br />
palhas, ou qualquer outra coisa.<br />
Os “barracos” servem para estocar o<br />
produto coleta<strong>do</strong>, além de abrigo e local<br />
de vigília, tanto <strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res locais,<br />
como os oriun<strong>do</strong>s de outros municípios.<br />
Nos finais de semana, os cata<strong>do</strong>res,<br />
habitantes <strong>do</strong> Lixão, vão visitar suas famílias,<br />
levan<strong>do</strong> a renda obtida com o<br />
produto <strong>do</strong> trabalho.<br />
A princípio, os “barracos” têm a<br />
função de não deixar molhar o papel e o<br />
papelão na chuva. Contu<strong>do</strong>, na hora <strong>do</strong><br />
descanso, ao longo da jornada de trabalho,<br />
os cata<strong>do</strong>res puxam um papelão e<br />
estendem no chão para se deitarem. Do<br />
la<strong>do</strong> de fora <strong>do</strong> “barraco”, os trabalha<strong>do</strong>res<br />
possuem uma mesa improvisada,<br />
de madeira ou com armação de ferro<br />
para prepararem as suas refeições. O<br />
fogo para o cozimento <strong>do</strong>s alimentos não<br />
é problema, pois, no próprio local, são<br />
encontra<strong>do</strong>s madeira ou galhos usa<strong>do</strong>s<br />
na fogueira. A água para consumo é encontrada<br />
na portaria <strong>do</strong> Lixão.<br />
Demonstran<strong>do</strong> to<strong>do</strong> orgulho de<br />
ser um trabalha<strong>do</strong>r ativo, os homens-<strong>urubu</strong><br />
reservam para si alguns momentos de<br />
descontração, entre uma e outra chegada<br />
de caminhões. Entre gritos e risos<br />
batem “ aquela” pelada de futebol em<br />
campo improvisa<strong>do</strong> sobre o mar de entulhos<br />
e dejetos, chutan<strong>do</strong> em todas as<br />
direções a bola murcha encontrada no<br />
meio <strong>do</strong> caos.<br />
“Não<br />
é de hoje que se<br />
discute a criação<br />
de um aterro sanitário,<br />
para a Região<br />
Metropolitana de<br />
João Pessoa e a<br />
intensificação da<br />
coleta seletiva.”<br />
Ao entrar no Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, é<br />
de qualquer um ficar, por alguns instantes,<br />
pasmos e paralisa<strong>do</strong>s com o que se<br />
vê ao re<strong>do</strong>r: pessoas andam procuran<strong>do</strong><br />
seu sustento no meio <strong>do</strong> lixo, com um<br />
olhar firme para o chão, poden<strong>do</strong>, a qualquer<br />
momento achar algo de interessante,<br />
e só levantam a cabeça para cumprimentar<br />
outra pessoa. Na mão o “gadenhe”,<br />
ferramenta utilizada para auxiliar<br />
a catação, semelhante a um garfo de um<br />
dente só; na outra mão, um saco plástico<br />
ou de nylon para encher de material<br />
coleta<strong>do</strong> e, raramente, usam luva.<br />
A variação <strong>do</strong>s preços depende<br />
da qualidade <strong>do</strong> produto, ou seja, se<br />
está limpo vale mais, se está sujo, vale<br />
menos. Por isso, existe uma hierarquia<br />
no processo de catação, ten<strong>do</strong> os trabalha<strong>do</strong>res<br />
mais antigos prioridade sobre<br />
os mais novos, na coleta de “merca<strong>do</strong>rias”<br />
mais limpas e valiosas. Para<br />
um observa<strong>do</strong>r mais atento, é possível<br />
perceber a existência de um código de<br />
ética no Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, que é respeita<strong>do</strong><br />
por to<strong>do</strong>s.<br />
Existe uma área reservada para<br />
depositar-se o lixo hospitalar, onde há<br />
um buraco feito com trator e onde são<br />
joga<strong>do</strong>s os resíduos. Nesse local, não é<br />
permiti<strong>do</strong> aproximar-se, devi<strong>do</strong> à alta<br />
contaminação provocada por gazes, seringas,<br />
resíduos de cirurgias e amputações.<br />
Mas, quan<strong>do</strong> o trator está quebra<strong>do</strong>,<br />
os veículos que transportam o lixo<br />
hospitalar despejam os resíduos em qualquer<br />
lugar <strong>do</strong> Lixão, aumentan<strong>do</strong> o risco<br />
de contaminação <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res.<br />
Em 1999, um pequeno grupo de<br />
40 cata<strong>do</strong>res organizou e criou a Associação<br />
<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Material<br />
Reciclável <strong>do</strong> Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> (ASTRA-<br />
MARE) onde, com muita dificuldade,<br />
reunia-se uma vez por semana. Em conversas<br />
informais, muitos declaravam não<br />
acreditar naquela associação. Mas, com<br />
a ajuda de religiosos e voluntários da<br />
sociedade civil, estabeleceram uma lista<br />
de reivindicações para apresentar ao<br />
prefeito da Cidade. Algumas delas incluíam<br />
a construção de um galpão para<br />
trabalharem e um melhor acesso a serviços<br />
de saúde.<br />
O movimento cresceu, houve novas<br />
adesões e passeatas foram organizadas.<br />
Agora a associação reivindica melhores<br />
preços <strong>do</strong>s materiais coleta<strong>do</strong>s,<br />
porque, anos atrás, os valores das merca<strong>do</strong>rias<br />
eram mais altos.<br />
Não é de hoje que se discute a<br />
criação de um aterro sanitário, para a<br />
Região Metropolitana de João Pessoa e<br />
a intensificação da coleta seletiva. Em<br />
2001, foi apresenta<strong>do</strong> um projeto para<br />
remediação <strong>do</strong> Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, elabora<strong>do</strong><br />
pela Empresa Municipal de Limpeza<br />
Urbana – EMLUR. Segun<strong>do</strong> o projeto,<br />
no perío<strong>do</strong> de cinco anos a área será<br />
transformada num “parque ecológico”,<br />
com um “centro de educação ambiental”<br />
e áreas de lazer. A proposta inclui a retirada<br />
<strong>do</strong> chorume e a eliminação <strong>do</strong>s<br />
gases por tubulações e, no seu entorno,<br />
será erguida uma barreira de argila.<br />
Entretanto, a EMLUR não revelou como<br />
irá executar o projeto ecológico no Lixão,<br />
e nem como captará os recursos para<br />
esse fim. Após mais de <strong>do</strong>is anos, desde<br />
o lançamento <strong>do</strong> projeto, absolutamente<br />
nada foi feito.<br />
Uma única melhoria pode ser constatada,<br />
e que serve à perpetuação <strong>do</strong><br />
Lixão naquele local. Foram construí<strong>do</strong>s<br />
<strong>do</strong>is galpões adapta<strong>do</strong>s com esteiras<br />
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para a separação <strong>do</strong> lixo recolhi<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong><br />
emprega<strong>do</strong>s alguns <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res<br />
cadastra<strong>do</strong>s.<br />
Há mais de <strong>do</strong>is anos foi feito cadastramento<br />
<strong>do</strong>s cata<strong>do</strong>res para trabalharem<br />
nos galpões. O critério para a<br />
seleção considerou preferencialmente os<br />
mais antigos, assim como as gestantes e<br />
o número de filhos. O objetivo da Associação<br />
é incluir to<strong>do</strong>s os cata<strong>do</strong>res que<br />
vivem <strong>do</strong> Lixão, exercen<strong>do</strong> os direitos<br />
como cidadãos.<br />
Observan<strong>do</strong> o quadro social e de<br />
saúde em que se encontram os “homens<strong>urubu</strong>s”<br />
<strong>do</strong> Lixão <strong>do</strong> <strong>Roger</strong> e, consideran<strong>do</strong><br />
o conceito de poluição segun<strong>do</strong><br />
Grisi (1997), em que o efeito acarreta<strong>do</strong><br />
pelo procedimento humano de lançar<br />
na Natureza resíduos, dejetos ou qualquer<br />
outro material que alterem as condições<br />
naturais <strong>do</strong> ambiente e, que contaminam<br />
ou deterioram nossa fonte natural<br />
de recursos, <strong>do</strong> ar, terra, ou água,<br />
prejudicial ao próprio <strong>homem</strong> ou a qualquer<br />
ser vivo desejável, e levan<strong>do</strong> em<br />
conta a definição de saúde, segun<strong>do</strong> a<br />
Organização Mundial de Saúde - FAO<br />
(1975), e a esta<strong>do</strong> de completo bemestar<br />
físico, mental e social, e não apenas<br />
a ausência de enfermidade, pode-se<br />
constatar mais uma vez que os “homens<strong>urubu</strong>s”<br />
são os antropoindica<strong>do</strong>res da<br />
péssima qualidade de vida e da baixíssima<br />
qualidade ambiental <strong>do</strong> ambiente insalubre<br />
onde vivem, sob o olhar silencioso<br />
<strong>do</strong> poder público.<br />
A Prefeitura Municipal de João<br />
Pessoa, através da EMLUR, procura,<br />
timidamente, informar sobre a importância<br />
da coleta seletiva de lixo. Contu<strong>do</strong>,<br />
esse trabalho de educação ambiental<br />
não é acompanha<strong>do</strong> de medidas<br />
eficazes para a solução ou mitigação <strong>do</strong><br />
problema. Para os “homens-<strong>urubu</strong>s”, a<br />
seleção <strong>do</strong> lixo no local é uma necessidade<br />
e uma questão de sobrevivência,<br />
o que é evidencia<strong>do</strong> pela grande concorrência<br />
entre eles próprios e a tentativa<br />
de novos atravessa<strong>do</strong>res, na disputa<br />
pelos materiais de alto valor rejeita<strong>do</strong>s<br />
pela sociedade.<br />
Para uma área nobre, como o<br />
Bairro <strong>do</strong> <strong>Roger</strong>, que está junto ao centro<br />
da cidade de João Pessoa, próximo<br />
ao comércio e <strong>do</strong>s escritórios, deveria<br />
funcionar um centro de transbor<strong>do</strong><br />
de resíduos sóli<strong>do</strong>s, devi<strong>do</strong> a sua<br />
proximidade com os bairros emissores.<br />
Com a instalação desse centro de captação,<br />
a EMLUR não acrescentaria<br />
gastos imprevisíveis com combustível<br />
nem tanto com galpões instala<strong>do</strong>s para<br />
a seleção de material reciclável.<br />
A via férrea da Rede Ferroviária<br />
– REFFSA, que margeia o Lixão,<br />
pode ser utilizada para o transporte<br />
<strong>do</strong>s resíduos excedentes, a fim de serem<br />
processa<strong>do</strong>s em uma usina de compostagem<br />
e um incinera<strong>do</strong>r, instala<strong>do</strong>s<br />
na zona rural <strong>do</strong> município de Santa<br />
Rita, a uma distância aproximada de<br />
12 quilômetros, numa combinasão intermodal<br />
– transporte ferroviário e ro<strong>do</strong>viário.<br />
Ao invés de soluções como acima<br />
apresentada, a Prefeitura de João Pessoa<br />
desapropriou uma área para instalação<br />
<strong>do</strong> futuro aterro sanitário. Os impactos<br />
ambientais <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> projeto são<br />
inevitáveis, pois o local escolhi<strong>do</strong> está<br />
situa<strong>do</strong> na bacia <strong>do</strong>s rios Mambaba-Gramame,<br />
próximos a represa <strong>do</strong> mesmo<br />
nome, encarregada de fornecer água<br />
para consumo da população de João Pessoa.<br />
Entretanto, qualquer medida nesse<br />
senti<strong>do</strong> deve passar, obrigatoriamente,<br />
pela criação da Região Metropolitana de<br />
João Pessoa acompanhada de ampla discussão<br />
junto à comunidade, de forma a<br />
proporcionar melhorias na qualidade<br />
ambiental <strong>do</strong> município, oferecen<strong>do</strong> condições<br />
dignas às famílias que sobrevivem<br />
da cata <strong>do</strong> lixo.<br />
B I B L I O G R A F I A<br />
FELLEMBERG, Gunter. Introdução aos Problemas da Poluição<br />
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GRISI, Breno M. Glossário de Ecologia e Ciências Ambientais.<br />
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LIMA, Luiz Mário Queiroz. Lixo: Tratamento e Biorremediação.<br />
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