Percurso para a Quaresma 2012 - FEC
Percurso para a Quaresma 2012 - FEC
Percurso para a Quaresma 2012 - FEC
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Fundação<br />
<strong>Quaresma</strong> <strong>2012</strong><br />
EIS O TEMPO FAVORÁVEL<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO<br />
Crédito da Foto: Luís Milteu ao serviço da Fundação Gonçalo da Silveira<br />
<strong>FEC</strong><br />
Fé e Cooperação
ENQUADRAMENTO
ENQUADRAMENTO<br />
Tempo de Transformações através de Olhares Cruzados<br />
<strong>Quaresma</strong> significa caminho de transformação, pre<strong>para</strong>ndo a Páscoa, que significa passagem da morte à vida, da escravidão<br />
à liberdade. Viver a <strong>Quaresma</strong> e celebrar a Páscoa pretende ser e deve ser uma experiência de transformação que implica<br />
os cristãos na construção do Reino. Nesta <strong>Quaresma</strong>, a <strong>FEC</strong> (Fundação Fé e Cooperação, ONGD da Conferência Episcopal<br />
Portuguesa) volta a propor que este percurso de fé seja transposto <strong>para</strong> o Desenvolvimento. Porque, na realidade, os dois<br />
percursos não devem ser distintos, devem estar entrelaçados e alimentarem-se mutuamente. O desenvolvimento é a<br />
passagem de condições menos humanas a condições mais humanas (Encíclica Populorum Progressio).<br />
Para além da sua acção na área da Cooperação <strong>para</strong> o Desenvolvimento, a <strong>FEC</strong> – Fundação Fé e Cooperação, deseja<br />
promover espaços de reflexão sobre o desenvolvimento humano e sustentável e promoção da justiça global. Através da<br />
Rede Fé e Desenvolvimento, pretende promover este processo no seio da própria Igreja, repensando-se a si própria em<br />
diálogo com a sociedade.<br />
O que se propõe<br />
Mais do que sugerir propostas de acção <strong>para</strong> esta <strong>Quaresma</strong>, quisemos catalisar um tempo de reflexão forte na vida de<br />
cada um e na vida em sociedade, neste momento difícil que atravessamos. As bases de partida <strong>para</strong> esta reflexão são<br />
as leituras próprias da liturgia de <strong>Quaresma</strong> e Páscoa, sobre as quais apresentamos diferentes meditações a partir de<br />
diferentes perspectivas – Olhares Cruzados diante da Cruz e da Ressurreição.<br />
Trata-se de um percurso em oito etapas - 4ª feira de cinzas, seis domingos da <strong>Quaresma</strong> e domingo de Páscoa. Para cada<br />
etapa sugere-se uma dimensão do Desenvolvimento e um olhar a partir de um sector concreto da sociedade, fazendo<br />
reflexo da própria Encíclica Caridade na Verdade, em que o Papa Bento XVI aborda a crise actual e o Desenvolvimento<br />
Humano Integral complementando estas diferentes perspectivas.<br />
Tivemos o privilégio e a oportunidade de cruzar a riqueza de diversos olhares e experiências de diferentes personalidades<br />
da sociedade portuguesa e também desde a Guiné-Bissau e Angola, países em que a <strong>FEC</strong> trabalha, que se enquadram<br />
de seguida de forma sistematizada:<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
2
ENQUADRAMENTO<br />
ETAPA<br />
CHAVE DE LEITURA<br />
UM OLHAR<br />
A PARTIR DA(S)...<br />
REFLEXÃO<br />
22 Fevereiro<br />
4ª Feira de Cinzas<br />
DESENVOLVIMENTO<br />
QUE PROMOVE O BEM<br />
COMUM<br />
IGREJA<br />
D. José Policarpo,<br />
Cardeal Patriarca de<br />
Lisboa, Presidente<br />
da Conferência<br />
Episcopal Portuguesa<br />
e do Conselho de<br />
Fundadores da <strong>FEC</strong><br />
26 Fevereiro<br />
I Domingo da<br />
<strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO<br />
PELA<br />
RESPONSABILIDADE<br />
EMPRESAS<br />
Pedro Rocha e<br />
Melo, Vice – Presidente<br />
da Brisa, membro da<br />
ACEGE<br />
4 Março<br />
II Domingo da<br />
<strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO<br />
COMO ABERTURA<br />
CULTURA<br />
José Tolentino<br />
Mendonça,<br />
Sacerdote, Poeta,<br />
Responsável pelo<br />
Secretariado Nacional<br />
da Pastoral da Cultura<br />
11 Março<br />
III Domingo da<br />
<strong>Quaresma</strong><br />
POR UM<br />
DESENVOLVIMENTO<br />
MAIS JUSTO<br />
UNIVERSIDADE<br />
Américo Mendes,<br />
Professor Associado da<br />
Faculdade de Economia e<br />
Gestão da UCP do Porto,<br />
área da Economia Social<br />
Maria Raquel<br />
Freire, Professora de<br />
Política Internacional da<br />
Faculdade de Economia<br />
da Universidade de<br />
Coimbra<br />
18 Março<br />
IV Domingo da<br />
<strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO<br />
HUMANO INTEGRAL<br />
ORGANIZAÇÕES DA<br />
SOCIEDADE CIVIL<br />
Irmã Marlene<br />
Wildner, Directora da<br />
Caritas Angola<br />
Nuno Macedo,<br />
Coordenador <strong>FEC</strong><br />
Angola<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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ENQUADRAMENTO<br />
25 Março<br />
V Domingo da<br />
<strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO<br />
COMO UM DOM<br />
COMUNICAÇÃO SOCIAL<br />
António Marujo,<br />
Jornalista<br />
Manuel Augusto<br />
Ferreira, mccj,<br />
Missionário<br />
Comboniano e Director<br />
da Revista Além-Mar<br />
1 Abril<br />
Domingo de<br />
Ramos<br />
DESENVOLVIMENTO<br />
PELA COERÊNCIA<br />
POLÍTICA E SERVIÇO<br />
PÚBLICO<br />
Guilherme<br />
d’Oliveira<br />
Martins, Presidente<br />
do Tribunal de Contas<br />
Assunção Cristas,<br />
Ministra da Agricultura,<br />
Mar, Ambiente e<br />
Ordenamento do<br />
Território<br />
8 Abril<br />
Domingo da<br />
Ressurreição<br />
DESENVOLVIMENTO<br />
COMO PASSAGEM<br />
IGREJA<br />
José Frazão sj,<br />
Faculdade de Filosofia<br />
da UCP em Braga<br />
Irmã Esperanza<br />
Ospina, Guiné Bissau<br />
RITA CORTEZ, aci,<br />
Escrava do Sagrado<br />
Coração de Jesus,<br />
Projecto Tasse.<br />
O percurso termina com uma proposta <strong>para</strong> um maior aprofundamento interior do Desenvolvimento à Luz Pascal. Tratase<br />
uma conferência da Irmã Rita Cortez aci, por ocasião da celebração da sua Congregação (Escravas do Sagrado Coração<br />
de Jesus) em Portugal, em Fevereiro de 2011 - “Entre a Beleza do Mundo e o Espanto do Céu – o Evangelho da Justiça e<br />
a Inserção Social”. Uma leitura muito interpeladora.<br />
O desafio que se deixa é o de juntar a este conjunto de reflexões o nosso próprio exercício, a partir da nossa realidade,<br />
com as nossas inquietações, nesta procura de como ser sal da terra que nos toca viver, sal que transforma, que dá<br />
sabor e sentido.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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ENQUADRAMENTO<br />
Porquê propor este percurso? Algumas razões principais:<br />
1/ Contextualizar o momento que vivemos na História da Salvação: A vivência da Páscoa remete-nos <strong>para</strong> a História<br />
da Humanidade que nos precede, História de tantas lutas, crises, epopeias e apogeus, História de Revelação de Deus<br />
através da fragilidade humana, libertando o Seu povo a caminho da Terra Prometida. É importante enxertarmos o<br />
momento que atravessamos nesta História, percebendo que estamos neste Caminho de Salvação, em que a Crise não<br />
tem a última palavra. É importante não absolutizarmos a “nossa crise”, tanto no Tempo, como no Espaço. Porque muitos<br />
outros já a sofreram e muitos outros a sofrem desde sempre, noutros pontos do Planeta. Que este percurso possa ser<br />
uma ajuda <strong>para</strong> nos situarmos na História que nos cabe viver e salvar, como portadores de Esperança e Transformação.<br />
2/ Rezar o Desenvolvimento Humano Integral: Em tempo de falências várias dos sistemas financeiros, sociais,<br />
ambientais, urge considerar o sentido pleno do Desenvolvimento Humano Integral – de todas as Pessoas e da Pessoa<br />
no seu todo. Pode vir-nos a tentação de pensarmos a realidade do nosso País, ou até da nossa família e amigos, de<br />
forma desligada da realidade Global. Jesus pergunta na parábola do Bom Samaritano: quem é o teu próximo? Que este<br />
percurso nos ajude a compreender que a nossa casa é o Mundo e que o meu próximo é também o irmão caído longe.<br />
Ou, o que pode resultar igualmente difícil, o irmão caído que sou eu próprio(a), ou um outro da minha própria casa.<br />
3/ Integrar Cristianismo e Cidadania: Muitas vezes pomos em gavetas se<strong>para</strong>das a nossa vida de fé e a nossa vida<br />
quotidiana de cidadãos, cada um com a sua marca própria de família, trabalho, amigos, interesses e responsabilidades.<br />
Mas ser Cristão é ser profundamente Cidadão, com um sentido forte de Missão na construção de sociedades justas e<br />
fraternas, em que todos tenham um lugar. Nos tempos difíceis que atravessamos, o tempo quaresmal pode ser ocasião<br />
de considerar com maior claridade a Paixão e Ressurreição de Cristo na nossa realidade, pessoal, local e global. Não como<br />
um filme a que assistimos, mas sim de forma profunda, com um olhar desde dentro, que nos implica. “O Espírito do<br />
Senhor está sobre mim, porque me ungiu <strong>para</strong> anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação dos<br />
cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos e a proclamar o ano da graça do Senhor”. (Lc 4,18). Este<br />
é o caminho de desenvolvimento assumido e proposto por Jesus. Talvez a dificuldade dos dias que vivemos nos abram<br />
também a porta <strong>para</strong> experimentar pessoalmente esta passagem da Escritura. Como vivo eu este caminho? Quem são<br />
os pobres e cativos que me toca libertar? Que injustiças me cabem denunciar? Que injustiças me tocam viver e integrar?<br />
4/ Alimentar uma acção cristã mais reflectida: <strong>Quaresma</strong> é tempo de jejum, penitência, oração. Passos que se podem<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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ENQUADRAMENTO<br />
rapidamente quantificar em acções concretas. É-nos mais fácil deixar de comer chocolates ou dar esmolas, do que<br />
aceitar fazer o processo de reflexão sobre os nossos estilos de vida e as causas estruturais da pobreza e de situações<br />
de injustiça. O que é o verdadeiro jejum? A verdadeira penitência? Estas propostas concretas só fazem sentido como<br />
processo de transformação interior e de conversão, que levem a relações mais ordenadas e justas de cada um consigo<br />
próprio, com Deus, com os outros, com os bens e recursos. Propostas que levem a um sentido profundo da Partilha, do<br />
Bem Comum, do valor e dignidade da Pessoa, seja qual for a sua realidade, do valor da Criação. Propostas que levem a<br />
processos de mudança de atitudes e comportamentos, em procuras inquietas da justiça.<br />
5/ Diferentes perspectivas sobre a realidade, diferentes olhares pascais sobre o Desenvolvimento: Vivemos<br />
tempos culturalmente individualistas e sectários, que potenciam a competição e o isolamento, mais do que a<br />
solidariedade e a abertura ao outro, a outras realidades. Por outro lado, a Cooperação e as Parcerias são temas muito<br />
caros ao Desenvolvimento, o qual só se realiza com a integração de diferentes dimensões, actores e sectores. De forma<br />
a ter diferentes perspectivas sobre a realidade que vivemos, e também diferentes olhares de Esperança, de Páscoa,<br />
convidámos diversas pessoas de diferentes contextos a contribuir com a sua reflexão crítica da realidade à luz das leituras<br />
que nos são propostas neste tempo litúrgico. Que o exercício que aceitaram fazer, cruzando a sua fé com a sua vida,<br />
inspire esse mesmo exercício em cada um de nós e das nossas comunidades.<br />
A <strong>FEC</strong> agradece profundamente a todos os que aceitaram este desafio de partilhar o seu olhar sobre a realidade através de<br />
uma experiência cristã, procurando a Páscoa na sua Vida e no nosso tempo. Que esta “Parábola do Desenvolvimento”,<br />
a que todos somos chamados, ilumine esta <strong>Quaresma</strong>.<br />
21 de Fevereiro de <strong>2012</strong><br />
NOTA:<br />
Deixe a sua opinião / sugestão e peça mais informações e recursos <strong>para</strong> o endereço redefedesenvolvimento@fecongd.org<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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PARTILHA<br />
21 FEVEREIRO | QUARTA-FEIRA DE CINZAS
22 de Fevereiro | Quarta-feira de Cinzas<br />
DESENVOLVIMENTO PELO BEM COMUM<br />
REFERÊNCIAS<br />
• I Joel 2, 12-18<br />
• 2 Cor 5, 20 - 6, 2<br />
• Mt 6, 1-6.16-18<br />
REFLEXÃO<br />
MENSAGEM DE D. JOSÉ POLICARPO, CARDEAL-PATRIARCA DE LISBOA<br />
PRESIDENTE DA CEP E DO CONSELHO DE FUNDADORES DA <strong>FEC</strong><br />
A <strong>Quaresma</strong> é o tempo litúrgico que nos convida a situar a nossa vida cristã no essencial da sua verdade: a de peregrinos<br />
do Céu, na humildade da nossa fragilidade e na coragem da nossa fidelidade. Experimentamos já uma realidade que<br />
ainda não possuímos completamente. O desejo da plenitude é o motor da nossa fidelidade. Só no Céu viveremos<br />
plenamente a Páscoa de Jesus; mas ela é já a realidade decisiva da nossa vida. Em cada <strong>Quaresma</strong>, que o mesmo é dizer<br />
em cada Páscoa, somos chamados a viver com uma fidelidade renovada esta semente de eternidade que foi semeada<br />
em nós pelo Espírito de Cristo ressuscitado. É assim que o Santo Padre começa a sua Mensagem: “A <strong>Quaresma</strong> oferecenos<br />
a oportunidade de reflectir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito, este é um tempo propício<br />
<strong>para</strong> renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé.<br />
Trata-se de um percurso marcado pela oração e pela partilha, pelo silêncio e pelo jejum, com a esperança de viver a<br />
alegria pascal”.<br />
A segurança da nossa fé<br />
1. A fé é uma atitude que cresce e se aprofunda, à medida que nos leva a entrar em comunhão pessoal com Cristo e, por<br />
Ele, com Deus Trindade Santíssima. A <strong>Quaresma</strong> tem de ser tempo de aprofundamento da fé, pessoal e comunitária. A fé<br />
é <strong>para</strong> ser vivida, na ousadia da liberdade e da vida, e não <strong>para</strong> ser guardada no cofre das memórias de família. Sempre<br />
que dizemos “eu creio”, afirmamos a nossa decisão de vida, a sua compreensão e o itinerário <strong>para</strong> atingir a sua plenitude.<br />
A firmeza da fé foi a força dos mártires, o desafio dos santos, levou à coerência da vida, vivida na lógica da fé, da Palavra<br />
de Deus, da Palavra da Igreja, dos mandamentos do Senhor.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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22 de Fevereiro | Quarta-feira de Cinzas<br />
DESENVOLVIMENTO PELO BEM COMUM<br />
A persistência da esperança<br />
2. A verdade da <strong>Quaresma</strong> reside na sinceridade com que nos relacionamos com Jesus Cristo, cuja Páscoa celebramos.<br />
Vivem da esperança aqueles que já experimentaram a realidade definitiva da Páscoa de Jesus, inauguração da vida<br />
definitiva; e, porque já a experimentaram, desejam a sua plenitude. A esperança é persistência no que já se tem, como<br />
fruto da nossa união a Cristo, e desejo de aprofundar essa vida nova. O próprio esforço de fidelidade está ligado à<br />
esperança. Só o Espírito Santo pode alimentar em nós esse desejo de plenitude.<br />
Num momento particularmente difícil que estamos a viver, são muitas as vozes a tentar suscitar a esperança. A esperança<br />
teologal engloba todas as realidades da nossa vida presente, que ganham em Cristo um sentido novo. A esperança é a<br />
virtude que nos ajuda a viver toda a realidade humana à luz da Páscoa de Jesus. A esperança exprime a fé no concreto da<br />
vida presente. Só a esperança teologal nos ajuda a não “desesperar” quando o sofrimento nos bate à porta.<br />
A primazia da caridade<br />
3. São Paulo afirma que, nesta vida presente, em que, unidos a Cristo, vivemos já as “primícias” do Reino dos Céus,<br />
permanecem a fé, a esperança e a caridade, mas que a maior é a caridade, a única que permanecerá no Reino definitivo<br />
(cf. 1Cor. 13, 8.13). Viver unido a Cristo é uma experiência de caridade: o amor com que Deus nos ama no Seu Filho e,<br />
com a força do amor de Deus, o amor com que nos amamos uns aos outros. A fé e a esperança são experiência do amor<br />
próprias da nossa situação de peregrinos do Reino dos Céus. Quando o cristão diz “eu creio”, no fundo ele diz: “eu amo” a<br />
Deus em Quem acredito; quando diz “eu espero”, ele diz: eu desejo deixar-me amar, e desejo amar de uma maneira cada<br />
vez mais generosa e total. É a caridade, vivida e desejada, que dá densidade à fé e à esperança.<br />
O amor dos irmãos<br />
4. O amor de Deus e o amor dos irmãos, <strong>para</strong> os cristãos, são um único amor, que é infundido no nosso coração pelo<br />
Espírito Santo. Quem ama a Deus, ama os irmãos. Se isso não acontecer, é porque o nosso amor a Deus não é sincero. A<br />
fé e a esperança exprimem-se, também, no amor fraterno.<br />
Compreende-se, assim, que o Santo Padre, ao desafiar-nos <strong>para</strong> uma <strong>Quaresma</strong> vivida na profunda união a Jesus Cristo,<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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22 de Fevereiro | Quarta-feira de Cinzas<br />
DESENVOLVIMENTO PELO BEM COMUM<br />
ponha o acento no amor fraterno. Este não é redutível a esquemas impessoais de solidariedade; é amor de uma pessoa<br />
por outra, que se olham de frente, que se conhecem em toda a sua realidade. Noutro texto, o Santo Padre disse que a<br />
caridade fraterna é “um coração que vê”. Quando olhamos <strong>para</strong> o nosso irmão com o coração, quando ele nos comove,<br />
ele torna-se o nosso próximo. No fundo é ter <strong>para</strong> com os nossos irmãos a mesma atitude que a fé nos leva a ter com<br />
Jesus Cristo: olhá-lo de frente, como o outro que vem ao meu encontro, tentando perceber quem é e o que faz por mim.<br />
Ouçamos o Santo Padre: “é um convite a fixar o nosso olhar no outro, a começar por Jesus, e a estar atentos uns aos<br />
outros, a não se mostrar alheio e indiferente ao destino dos irmãos”.<br />
Olhar toda a realidade dos nossos irmãos<br />
5. Pode acontecer que quando estamos sobretudo sensíveis às necessidades materiais, ignoremos a verdade espiritual do<br />
nosso irmão, a sua necessidade de conversão à fé e à esperança. Um falso sentido de respeito pela intimidade do outro, a perda<br />
da noção do que é verdadeiramente bom ou mesmo a perda da noção da diferença do bem e do mal, podem dispensar-nos<br />
de, ao olharmos <strong>para</strong> o nosso irmão, o amarmos em toda a sua realidade. Se a fonte do nosso amor fraterno é o amor com que<br />
Deus nos ama, a ajuda material aos irmãos pode ser ocasião do anúncio do amor de Deus e de convite à conversão.<br />
A fé, a esperança e a caridade, e o anúncio da salvação<br />
6. Convido-vos, pois, na sequência do Santo Padre, a vivermos esta <strong>Quaresma</strong> ao ritmo das três virtudes teologais: a fé, a<br />
esperança e a caridade, o que exige de nós uma coerência com a profundidade sobrenatural da vida em união com Cristo,<br />
de cuja Páscoa vivemos, e que nos pre<strong>para</strong>mos <strong>para</strong> celebrar. Convido-vos a mergulhar no mistério de Deus, Trindade<br />
Santíssima e a arrastarmos <strong>para</strong> essa comunhão as pessoas a quem amamos com um amor que tem a sua fonte em Deus.<br />
É preciso ir além das nossas rotinas pastorais e voltar a encarnar a ousadia da Igreja apostólica. Esta <strong>Quaresma</strong> tem<br />
mesmo de ser, <strong>para</strong> todos nós, ocasião de conversão. Cristo, que continua a querer salvar todos os homens, precisa da<br />
nossa ousadia, porque O queremos seguir e partilhar com Ele a missão, nesta sociedade que parece ter-se afastado tanto<br />
d’Ele e do Seu Evangelho.<br />
† JOSÉ, Cardeal-Patriarca de Lisboa<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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ALIANÇA<br />
26 FEVEREIRO | I DOMINGO DA QUARESMA
26 de Fevereiro | I Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO PELA RESPONSABILIDADE<br />
REFERÊNCIAS<br />
• Gén 9, 8-15<br />
• 1 Pedro 3, 18-22<br />
• Mc 1, 12-15<br />
REFLEXÃO<br />
Pedro Rocha e Melo, Vice-Presidente da BRISA<br />
Membro da ACEGE (Associação Cristã de Empresários e Gestores)<br />
“Estabelecerei a minha Aliança convosco, com a vossa descendência<br />
e com todos os seres vivos que vos acompanham”<br />
A história de Deus com os homens é um caminho de Aliança. Um caminho de revelação de um Deus de Amor, um Deus<br />
de Misericórdia, um Deus que toma sempre a iniciativa, respeitando a liberdade do homem, mas nunca desistindo de<br />
o procurar. Esta liberdade implica responsabilidade. Responsabilidade <strong>para</strong> procurar a vontade de Deus em todas as<br />
vertentes e momentos da nossa vida.<br />
De facto, esta Aliança de Amor, conta com a presença sempre fiel de Deus, mas necessita também da nossa disponibilidade<br />
como instrumentos livres nas Suas mãos. Deus quer a nossa colaboração, e nós, no meio do turbilhão das nossas vidas,<br />
precisamos de conseguir ouvir a Sua voz.<br />
O tempo da <strong>Quaresma</strong> é propício <strong>para</strong> uma <strong>para</strong>gem, <strong>para</strong>, em ambiente de silêncio e de paz, nos encontrarmos e<br />
aprofundarmos o conhecimento sobre nós próprios. Como me vejo? O que pretende Deus de mim neste momento,<br />
nesta situação? Qual a minha responsabilidade concreta?<br />
Enfrentamos desafios difíceis em Portugal e na Europa. É nestes momentos, com maior dificuldade de antever o que<br />
nos espera, e em que muitos se refugiam nos seus interesses e egoísmos, que nós cristãos temos a responsabilidade de<br />
assumirmos aquilo que somos. Partindo da força da Aliança de Amor com Deus, e na sua família, na sua comunidade, no<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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26 de Fevereiro | I Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO PELA RESPONSABILIDADE<br />
seu lugar de trabalho, cada um deve procurar o seu papel, o seu contributo <strong>para</strong> um futuro que se desenhará em função<br />
daquilo que hoje concretizarmos.<br />
Para os empresários e gestores o desafio é procurar utilizar o princípio do amor ao próximo como critério de gestão,<br />
respeitando a liberdade e a dignidade das pessoas, <strong>para</strong> que todos tenham a oportunidade de seguir a sua vocação<br />
e, dessa forma, possam contribuir decisivamente <strong>para</strong> um desenvolvimento humano integral nas comunidades onde<br />
trabalham.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
13
CONFIANÇA<br />
4 MARÇO | II DOMINGO DA QUARESMA
4 de Março | II Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO COMO ABERTURA<br />
REFERÊNCIAS<br />
• Gén 22, 1-2.9a.10-13.15-18<br />
• Rom 8, 31b-34<br />
• Mc 9, 2-10<br />
REFLEXÃO<br />
JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA<br />
Sacerdote, poeta<br />
responsável pelo Secretariado nacional da pastoral da cultura<br />
Um dos mais espantosos apelos de <strong>Quaresma</strong> que conheço não foi assinado por um eclesiástico, nem por um teólogo,<br />
mas sim por um poeta. Escreveu-o T.S.Eliot em 1930, três anos após a sua conversão, e deu-lhe um nome austero,<br />
sem o cómodo encosto que por vezes é o dos adjectivos: chamou-lhe simplesmente “Quarta-feira de Cinzas”. Nesse<br />
poema, dizem-se três coisas fundamentais. Se as soubermos ouvir, percebemos que elas correspondem a caminhos<br />
muito objectivos (a mapas pessoais e comunitários) de conversão. E não é esse o desafio da <strong>Quaresma</strong>, e desta<br />
<strong>Quaresma</strong> em particular?<br />
1. A <strong>Quaresma</strong> vem ao nosso encontro <strong>para</strong> que nos reencontremos. Os traços que o poeta desenha coincidem<br />
dramaticamente com os do nosso rosto: damos por nós a viver uma vida que não é vida, acantonada entre lamentos e<br />
amoques, sem saber aproveitar verdadeiramente a oportunidade que cada tempo constitui, como se tivéssemos capitulado<br />
no essencial, e passássemos a olhar <strong>para</strong> as nossas asas (e <strong>para</strong> as dos outros) sem entender já o papel delas. “Esmorecendo,<br />
esmorecendo”.<br />
2. A <strong>Quaresma</strong> vem ao nosso encontro <strong>para</strong> nos devolver ao caminho pascal. O que é que nos dá o sentido de<br />
redenção no tempo? – pergunta o poema. E o poema evangelicamente responde: o sentido de transformação é-nos<br />
dado quando aceitamos trilhar um caminho. O que nos permite passar do cerco das coisas triviais à revigoração da<br />
fonte, o que do sono nos dá acesso à vigília iluminada da vida é aceitarmos o desafio de nos fazermos de novo à estrada,<br />
e à estrada menos óbvia e mais adiada que é aquela interior. A Páscoa é a grande possibilidade de revitalização. Mas é<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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4 de Março | II Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO COMO ABERTURA<br />
preciso consentir naquela imagem brutalmente verdadeira do profeta Ezequiel: por agora somos mais uma sucata de<br />
restos, do que uma primavera do Espírito.<br />
3. A <strong>Quaresma</strong> vem ao nosso encontro <strong>para</strong> que a tensão criadora do Espírito de Jesus redesenhe em nós a vida.<br />
Interessantes são os verbos que o poeta usa como prece: “que sejamos instigados”, “que sejamos sacudidos”. A <strong>Quaresma</strong><br />
faz-nos passar do “deixa andar”, e do viver espiritualmente entorpecido, ao estado da corda tensa. Aquela que é capaz de<br />
avizinhar da nossa humanidade reencontrada a música de Deus.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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JUSTIÇA<br />
11 MARÇO | III DOMINGO DA QUARESMA
11 de Março | III Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
POR UM DESENVOLVIMENTO MAIS JUSTO<br />
REFERÊNCIAS<br />
• Ex 20, 1-3.7-8.12-17<br />
• 1 Cor 1, 22-25<br />
• Jo 2, 13-25<br />
REFLEXÃO<br />
Américo Mendes, Professor Associado da Faculdade de Economia<br />
e Gestão da Universidade Católica Portuguesa, Porto<br />
“Não terás outros deuses perante mim.” (Ex 20, 3)<br />
“Irmão: os judeus pedem milagres e os gregos procuram sabedoria.<br />
Quanto a nós, pregamos Cristo crucificado, escândalo <strong>para</strong> os judeus e loucura <strong>para</strong> os gentios.” (1 Cor 1, 22-23)<br />
“Tirai isto daqui; não façais da casa de meu Pai casa de comércio.” (Jo 2, 16)<br />
O que é que isto tem a ver com Desenvolvimento mais Justo? Tem tudo a ver. O crescimento económico que se acelerou<br />
nas sociedades humanas depois da chamada “Revolução Industrial” tem sido principalmente o fruto da “natureza<br />
expansiva da relação de mercado”, ou seja, da capacidade que a economia de mercado tem <strong>para</strong> gerar tendencialmente<br />
uma quantidade e uma diversidade cada vez maiores de bens e serviços.<br />
A economia de mercado tem um problema: inclui os consumidores que têm rendimento suficiente <strong>para</strong> comprarem<br />
aquilo que querem e as empresas que são capazes de produzir bens e serviços a preços <strong>para</strong> os quais conseguem<br />
arranjar clientes, mas, ao mesmo tempo que isto acontece, são EXCLUÍDOS os consumidores e as empresas que não<br />
estão nessas condições.<br />
A economia de mercado não tem o exclusivo da inclusão e exclusão. Outros modos de organização da actividade<br />
económica também incluem uns e excluem outros. Seja como for, no mundo em que vivemos, onde a economia de<br />
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POR UM DESENVOLVIMENTO MAIS JUSTO<br />
mercado é a forma de organização da actividade económica que largamente predomina, é do seu modo de inclusão e<br />
exclusão que se impõe falar.<br />
Esse modo de inclusão/exclusão baseia-se no TER (ter rendimento; ter meios <strong>para</strong> se ser competitivo) e no que garante<br />
esse ter, ou seja, no sistema de direitos de propriedade privada. Por isso, o mercado “falha” quando não é possível garantir<br />
este tipo de direitos de propriedade.<br />
No mercado os bens e serviços são valorizados como valor de TROCA. Como valores de troca os bens e serviços não<br />
só são permutáveis, como são COMENSURÁVEIS. As suas diferenças qualitativas anulam-se, sendo reduzidos a uma<br />
unidade de medida comum.<br />
O Deus em que acreditamos não se confunde com outros deuses que imperam nas sociedades assentes neste modo de<br />
organização da actividade económica:<br />
• Não se confunde com os deuses que incluem uns e excluem outros;<br />
• Não se confunde com os deuses do ter;<br />
• Não se confunde com os deuses da troca;<br />
• Não se confunde com os deuses que reduzem tudo e todos a uma dimensão única.<br />
O Deus em que acreditamos é o Deus que inclui todos como seres humanos. O Deus em que acreditamos é o Deus<br />
do Ser. O Deus em que acreditamos é o Deus da loucura da gratuitidade. O Deus em que acreditamos é o Deus que<br />
permanentemente nos chama a atenção <strong>para</strong> o sagrado da dignidade humana que não se deve comprar, nem vender. O<br />
Deus em que acreditamos é o Deus que nos conhece a cada um pelo nome, que preza a individualidade, a liberdade e a<br />
dignidade de cada um de nós, e que nos convida a seremos assim <strong>para</strong> com os outros seres humanos. Um Desenvolvimento<br />
mais Justo é um Desenvolvimento feito por seres humanos animados por um Deus assim e não por outros deuses.<br />
A verdadeira acção que devemos fazer na <strong>Quaresma</strong> é FAZER como Deus nos manda, ou seja, amar a Deus sobre todas<br />
as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Por mais exemplares e instrutivos que possam ser os casos de quem assim<br />
faz e que aqui poderiam ser citados, isso de nada vale se cada um de nós, por si próprio, não fizer assim.<br />
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POR UM DESENVOLVIMENTO MAIS JUSTO<br />
Outras referências (Obras do Padre Américo):<br />
• Pão dos Pobres (4 vols)<br />
• O Barredo<br />
• Doutrina (3 vols)<br />
• Viagens<br />
• Obra da Rua<br />
• Notas da Quinzena<br />
• De como eu fui<br />
• Viagens<br />
• Cantinho dos Rapazes<br />
• Correspondência dos Leitores<br />
Das páginas mais profundas, mais vividas e mais belas escritas em Portugal sobre um Desenvolvimento mais Justo,<br />
escritas por um Homem “de um livro só”.<br />
MARIA RAQUEL FREIRE<br />
NÚCLEO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS<br />
FACULDADE DE ECONOMIA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA<br />
‘Os judeus pedem milagres e os gregos procuram a sabedoria.’ A frase retirada da Leitura da Primeira Epístola do Apóstolo<br />
S. Paulo aos Coríntios sublinha as diferentes direções em que os vários olhares se vão perdendo. Aponta <strong>para</strong> a ausência<br />
de princípios basilares partilhados, que não têm que significar harmonização num sentido de uniformização, mas antes<br />
identificar como base de partida o respeito por valores e princípios fundamentais, transversais a culturas e tradições,<br />
como por exemplo a questão da dignidade humana e da justiça.<br />
A evolução do sistema internacional tem refletido uma tendência de desumanização e desvirtuação de alguns conceitos,<br />
nomeadamente o de segurança humana, que na sua formulação original, no âmbito das Nações Unidas, visava um<br />
olhar mais atento aos indivíduos e comunidades num quadro de organização internacional ainda muito centrado nos<br />
estados e em visões estatocêntricas de poder e influência. Os pressupostos de desenvolvimento associados implicam<br />
não só uma leitura de desenvolvimento num quadro estatal, mas também individual. Desenvolvimento significa a<br />
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capacidade de melhorar condições materiais e humanas num quadro de participação, onde o ideal universal que<br />
o conceito preconiza, inclui claramente uma definição <strong>para</strong> além do simples crescimento económico. No Relatório<br />
do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas de 1990 esta preocupação de um entendimento abrangente de<br />
desenvolvimento é evidenciada. E esta acepção de desenvolvimento global passa então por uma dimensão estrutural<br />
que visa condições básicas e dignas de sobrevivência, bem como a possibilidade de viver sem opressão num regime<br />
participativo e inclusivo; e também por uma dimensão de desenvolvimento individual onde a capacitação, formação<br />
e educação são princípios fundamentais, complementados por considerações relativas à dignidade do outro, a<br />
pressupostos associados à construção da paz e à cooperação <strong>para</strong> o bem comum (ver Carta Encíclica Populorum<br />
Progresso de Paulo VI sobre o desenvolvimento dos povos).<br />
Neste quadro, o surgimento do conceito de segurança humana, num alinhamento de desafio aos modelos<br />
positivistas, preconizava princípios de resposta a problemas estruturais relacionados com a dignidade da existência<br />
humana e o acesso a condições básicas de sobrevivência, além de sublinhar a necessidade do desenvolvimento<br />
individual, que se pressupõe seria construído com base nesta capacitação. Segurança humana surge assim na<br />
agenda internacional como uma nova abordagem, mais densa e aprofundada nas preocupações que engloba e nas<br />
respostas que pretende sejam dadas, com particular enfoque <strong>para</strong> situações de pós-violência armada, mas não só.<br />
Como sabemos, e no quadro atual de grave crise financeira, política e social, as necessidades básicas que no mapa<br />
europeu já não deveriam ser ‘básicas’, regressaram às preocupações, face aos problemas sociais que têm resultado<br />
de políticas nem sempre visionárias e estrategicamente orientadas <strong>para</strong> a promoção de um desenvolvimento<br />
sustentável. Mas voltando ao conceito de segurança humana, tem sido evidente um uso distorcido do mesmo<br />
<strong>para</strong> fins que não os originariamente pensados. As práticas de intervencionismo internacional e o princípio da<br />
‘responsabilidade de proteger’ têm, em algumas instâncias, ultrapassado os limites da legalidade e legitimidade,<br />
justificando intervenções com base em violações sistemáticas de direitos humanos, genocídio e crimes de guerra,<br />
resultando em ingerência interna, como o caso da Líbia ilustrou. Os critérios de intervenção, ou de decisão de não<br />
intervenção não são claros e uma linha de egoísmo tem prevalecido nas políticas e práticas de grandes estados<br />
no sistema internacional. O poder do material, do controlo de acesso a fontes e rotas energéticas, por exemplo,<br />
tem-se sobreposto ao valor da pessoa humana, o que tem tornado a questão da mercantilização das sociedades<br />
e das relações de interdependência no sistema internacional, uma questão preocupante. Por outras palavras, o ser<br />
humano vem sendo reduzido a uma quantificação material que não atende a princípios básicos estruturantes de<br />
sobrevivência e de qualificação e respeito pelo indivíduo enquanto pessoa.<br />
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Estas interrogações refletem-se a vários níveis. Relativamente aos programas de apoio ao desenvolvimento, é muito<br />
frequente nos seus objetivos de fundo não estar claro um programa de desenvolvimento estrutural de competências<br />
e infraestruturas básicas que capacitem indivíduos e comunidades locais numa lógica gradual emancipatória. Sem<br />
formação adequada, sem capacitação ajustada às necessidades face a recursos parcos e contextos adversos, as injeções<br />
de financiamento revelam-se muitas vezes limitadas e aquém da promoção do desenvolvimento estrutural necessário<br />
a uma dinâmica de sustentabilidade. Além do mais, o intervencionismo é um processo bidirecional, onde importa a<br />
atuação do agente interventivo ou doador, mas também dos agentes nos países recetores ou de acolhimento. De facto,<br />
as dificuldades a nível local são bem conhecidas. A corrupção que grassa ao nível das elites políticas e económicas em<br />
muitos países em desenvolvimento, bem como no denominado norte desenvolvido, minam esforços no sentido de<br />
desenvolvimento de programas de inclusão e com expressividade num contexto social e político alargado. Em muitos<br />
casos, a perpetuação de dinâmicas de exclusão ou mesmo de dominação, impedem também, do lado dos recetores, a<br />
promoção de políticas emancipatórias. Estas dinâmicas favorecem injustiças quer pelas disparidades que alimentam, quer<br />
pelas lógicas de exclusão que impõem. Além do mais, contribuem negativamente <strong>para</strong> um continuum de dificuldades<br />
estruturais que em nada dignificam a pessoa humana. Os problemas associados à tradução de princípios acordados e<br />
assinados em documentos oficiais no seio das Nações Unidas e de outros organismos em práticas concretas aponta <strong>para</strong><br />
a necessidade de um novo mandamento: agir segundo os princípios formalmente acordados e os objetivos definidos<br />
<strong>para</strong> uma prática responsável face aos mesmos.<br />
Destas linhas de reflexão parece claro que a busca pelo poder, influência e benefícios materiais têm estado em muitas<br />
circunstâncias à frente de princípios ordenadores de cariz cosmopolita, representativos e com base em equidade. Os<br />
novos ‘deuses’, traduzidos na busca incessante por mais poder, influência e benefícios materiais, minam sociedades<br />
fragilizando a sua coesão através das clivagens sociais que criam. Ainda, em quadros de fragilidade institucional,<br />
questionam mesmo o princípio de prossecução das funções básicas do Estado, extremamente vulneráveis à intervenção<br />
externa e incapazes de assegurar ordem e estabilidade internamente. É importante no entanto sublinhar que um quadro<br />
de equidade ao nível da representação ou da justiça, não deve ser lido numa óptica utilitarista socialista marxista. Ou seja,<br />
é importante sublinhar que igualdade não significa uniformidade. Os limites muito claros do modelo socialista marxista<br />
na preconização de uma sociedade justa, que se revelou profundamente injusta na precariedade das condições de vida,<br />
na ausência de capacidade de decisão e participação das populações, na ingerência no quotidiano, são exemplo (nesta<br />
matéria ver Carta Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII sobre a condição dos operários).<br />
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POR UM DESENVOLVIMENTO MAIS JUSTO<br />
Face a este cenário de difícil articulação entre promoção do desenvolvimento e efeitos adversos que resultam do mesmo,<br />
a dimensão normativa é fundamental e deveria assumir-se como preponderante no sistema internacional. O que fazer,<br />
então, <strong>para</strong> um horizonte mais justo? Regressando às leituras sugeridas, tal como Jesus no templo expulsa os ímpios,<br />
nas sociedades é preciso expulsar a corrupção e a hipocrisia materialista. Tal como sublinhado na Carta das Nações<br />
Unidas e documentos subsequentes sobre partilha de valores e princípios fundamentais, não chega apenas verbalizálos,<br />
é necessário concretizá-los. Muitos são os instrumentos à disposição num sistema de anarquia internacional, onde<br />
não existe autoridade suprema reguladora no ordenamento internacional. A existência de organismos como as Nações<br />
Unidas e outras organizações internacionais intergovernamentais, os regimes internacionais e o direito internacional<br />
devem constituir a base de construção de uma nova ordem assente em princípios de responsabilidade social e cuja<br />
aplicação vise uma ordem mais justa e mais equitativa. Mas a responsabilidade e ética na leitura e interpretação dos<br />
mesmos tem de ser uma constante que evite desvirtuamentos irremediáveis.<br />
Uma melhor (re)distribuição de poder e capacidades exige, no entanto, o assumir de políticas inclusivas, o que tem sido difícil<br />
num quadro estatocêntrico como inicialmente definido. Veja-se por exemplo a discussão em torno da reforma do Conselho de<br />
Segurança das Nações Unidas e como a dificuldade em avançar <strong>para</strong> modelos mais representativos espelha esta característica<br />
de manutenção e reforço de poder e benefícios materiais e de grande inflexibilidade que permeia o sistema internacional.<br />
Estamos assim perante um mundo onde princípios egoístas de promoção material se vão sobrepondo ao normativismo.<br />
Assim, e desta curta reflexão, três ideias fundamentais a reter <strong>para</strong> um desenvolvimento mais justo: primeiro, a<br />
necessidade de priorizar a dignidade humana como princípio básico e fundamental <strong>para</strong> o desenvolvimento na agenda<br />
internacional; segundo, uma leitura e implementação de políticas <strong>para</strong> o desenvolvimento assentes na capacitação<br />
efetiva <strong>para</strong> a emancipação social e libertação de dinâmicas de opressão e exploração, que deverá passar por regimes<br />
participativos, onde o indivíduo possa exercer a sua condição de cidadão e envolver-se nas actividades sociais e políticas<br />
da comunidade ‘com e pelos outros’ (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, Cap. V); e, terceiro, a premência de atuação<br />
concreta e firme com base em princípios de solidariedade e numa leitura competente de acordos e outros compromissos<br />
assumidos internacionalmente. O estabelecimento de programas comuns a nível internacional visando o bem comum,<br />
assente em princípios de solidariedade não é uma proposta irrealizável, veja-se por exemplo a mobilização internacional<br />
face a catástrofes naturais, é antes um objectivo que deve permear a construção das relações internacionais com base<br />
nos pressupostos de desenvolvimento e cooperação aqui avançados.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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UNIVERSALIDADE<br />
18 MARÇO | IV DOMINGO DA QUARESMA
18 de Março | IV Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL<br />
REFERÊNCIAS<br />
• 2 Cr 36, 14-16.19-23<br />
• Ef 2, 4-10<br />
• Jo 3, 14-21<br />
REFLEXÃO<br />
IRMÃ MARLENE WILDNER, CÁRITAS ANGOLA<br />
O Evangelho de João 3, 14-21 do IV domingo da quaresma, parte do diálogo de Jesus com Nicodemos, nos apresenta como<br />
tema central a fé em Cristo e seu projecto salvífico, dom que Deus oferece e que o ser humano pode acolher ou rejeitar.<br />
“Deus tanto amou o mundo ao ponto de dar seu filho unigénito, <strong>para</strong> que quem crê Nele (…) tenha a vida eterna. Deus<br />
não mandou seu filho ao mundo <strong>para</strong> julgar o mundo, mas <strong>para</strong> que o mundo fosse salvo por seu meio” (Jo, 3,16-17).<br />
A presença de Deus no mundo requer da sociedade e da pessoa uma escolha de acolhimento ou rejeição. As<br />
consequências <strong>para</strong> a vida da pessoa e da sociedade dependem desta escolha.<br />
Na perspectiva do Evangelho de João:<br />
“O julgamento se dá aqui e agora, no confronto das pessoas e da sociedade com a prática de Jesus. Jesus não julga,<br />
são as pessoas, as sociedades que fazem seu próprio julgamento de acordo com o estilo de vida que escolhem viver. É<br />
o próprio ser humano que constrói em si luz ou trevas, ele próprio realiza o seu julgamento. Quem opera o mal acaba<br />
necessariamente por odiar a luz porque não quer que suas más obras venham à luz. O amor de Deus contínua fazendose<br />
presente em nosso mundo, em nossa história por meio das pessoas que movidas pelo Espírito Santo vivem como<br />
Jesus viveu. Pessoas que fazem de sua vida uma paixão pelo proposta de Jesus e pela salvação da humanidade. A fé não<br />
é um sentimento subjectivo mas é adesão a uma pessoa objectiva e concreta que é Jesus Cristo e sua proposta de vida”<br />
(Cf. Instituto humanistico Unisinos, www. Ihu.Unisinos.br).<br />
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18 de Março | IV Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL<br />
No v.21 João usa uma expressão aparentemente curiosa: fazer a verdade. Na nossa linguagem e compreensão actual<br />
a verdade não é algo <strong>para</strong> se fazer mas <strong>para</strong> ser conhecida. Ao invés, <strong>para</strong> João a verdade não é um conceito a ser<br />
aprendido ou conhecido, nem mesmo uma simples realidade, mas é o Plano salvífico de Deus <strong>para</strong> ser acolhido e<br />
construído - “Quem faz a verdade se aproxima da luz, <strong>para</strong> que seja manifestado que as suas obras são feitas em Deus”.<br />
Agir correctamente não é só um fato de coerência mas é condição indispensável <strong>para</strong> criar um “lugar hermenêutico” onde<br />
o mistério de Deus pode se revelar na sua força e persuasão, como um lugar em que seja possível intuir a verdade, a origem<br />
de Cristo e do seu dom salvífico.<br />
Na óptica do evangelista, a fé, via <strong>para</strong> a salvação, se dá no afecto, no coração e com as mãos. A Salvação é crer com as<br />
mãos, com actos, com a prática de vida. A mão de Deus estendida ao ser humano é Cristo e seu projecto. Assim como<br />
Deus não se cansa de estender a mão, o ser humano, se quer viver na luz, deve escolher em seu coração o projecto de<br />
salvação de Jesus, vivê-lo com todos os seus afectos e praticá-lo em todos os seus actos.<br />
Estas três dimensões (afecto, coração e mãos) são portanto a proposta cristã <strong>para</strong> uma sociedade justa e fraterna que<br />
permite o desenvolvimento integral de todos os seus membros. Uma sociedade onde “cada um é chamado a dar sua<br />
contribuição <strong>para</strong> que o amor com que somos sempre e <strong>para</strong> sempre amados por Deus se torne operante na vida,<br />
força de serviço, sentido de responsabilidade” (Cf. Cidade do Vaticano (Agência Fides), Discurso do Papa Bento XVI aos<br />
membros da Caritas, 24 de Novembro, por ocasião do 40º aniversário de fundação da Caritas Italiana).<br />
A proposta de desenvolvimento humano, na perspectiva do projecto salvífico de Jesus, se traduz, no contexto social<br />
mundial actual, necessariamente, em: expressão de atenção <strong>para</strong> com aqueles que mais sofrem e que são excluídos<br />
do acesso à justiça e às oportunidades de desenvolvimento; em acções pedagógicas que ajudem os mais pobres a<br />
crescerem na sua dignidade e a sociedade civil a assumir conscientemente suas obrigações.<br />
Exige, enfim, capacidade de ler a progressão da vida das pessoas, abertura da mente, olhar amplo, intuição, “um<br />
coração que vê”. Exige entender que responder às necessidades não só significa dar pão aos famintos, mas também se<br />
deixar interpelar pelas causas da fome, com um olhar de Jesus, que sabia ver a realidade profunda das pessoas que se<br />
aproximavam Dele . Parafraseando o Papa Bento XVI, trata-se de assumir a responsabilidade de educar <strong>para</strong> a vida boa<br />
do Evangelho, que não tem sentido se não integrar, de maneira orgânica, o testemunho da caridade.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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18 de Março | IV Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO HUMANO INTEGRAL<br />
Estaremos então vivendo como pessoas e como sociedade a alegria da ressurreição, espírito que permeia a liturgia do<br />
IV Domingo da <strong>Quaresma</strong>, que significa estender a mão e erguer aquela parte da nossa sociedade caída por terra sem<br />
dignidade e oportunidade de desenvolvimento.<br />
nuno macedo, fec angola<br />
Oração Pública em Desenvolvimento<br />
Muitos apelos e preces foram feitos nas últimas semanas de Novembro com vista à pre<strong>para</strong>ção do Fórum de Alto Nível<br />
sobre a eficácia da Ajuda Pública ao Desenvolvimento em Busan, na Coreia do Sul. A nível internacional, muitos pediram<br />
um desenvolvimento mais justo e mais solidário. Neste contexto, a CIDSE – aliança de ONG católicas europeias e norteamericanas<br />
à qual a <strong>FEC</strong> pertence - pedia que se protegesse a sociedade civil e os direitos humanos, e que a economia<br />
estivesse ao serviço do homem, numa carta pública cujo conteúdo foi dado a conhecer a muitos. Mas será que os<br />
senhores do mundo ouviram o que se lhes disse, em Busan, na Coreia?<br />
Também em Portugal, muitas vozes se levantaram, particularmente preocupadas com o futuro da Cooperação<br />
Portuguesa. Como participaremos nós na construção desse mundo melhor, que possibilidades e responsabilidades<br />
temos? A Plataforma Portuguesa das ONGD fez até uma carta dirigida ao Primeiro-Ministro de Portugal, ao Ministro de<br />
Estado e dos Negócios Estrangeiros e ao Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, em que se lhes<br />
pedia uma série de coisas importantes, relativas aos processos da Cooperação, tais como “a Harmonização, a Apropriação<br />
Democrática, a Transparência e a Previsibilidade”. Será que os senhores de Portugal ouviram o que se lhes disse, em<br />
Lisboa?<br />
Em Angola não ouvi falar de Busan na Coreia, nem no Fórum de Alto Nível sobre a eficácia da Ajuda, nem da carta da<br />
CIDSE, ou da Plataforma… Nem da Sociedade Civil, nem dos Direitos Humanos, nem da Transparência ou da Apropriação<br />
Democrática! Mas vi, na velha Igreja do Cacuaco, uma mulher de joelhos em frente à imagem do Cristo, com a sua filha<br />
pequenina ao lado, que pedia algo que só ela sabe. E tive a plena certeza que aquela prece estava a ser ouvida no Céu.<br />
Tal a eficácia da Oração Pública em Desenvolvimento.<br />
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ENTREGA<br />
25 MARÇO | V DOMINGO DA QUARESMA
25 de Março | V Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM<br />
REFERÊNCIAS<br />
• I Jer 31, 31-34<br />
• Hebr 5, 7-9<br />
• Jo 12, 20-33<br />
REFLEXÃO<br />
ANTÓNIO MARUJO, JORNALISTA<br />
Vemo-nos gregos por um grão de trigo que deve morrer<br />
Os gregos queriam ver Jesus. Terá isso algo a ver com a crise que atravessamos? Ou com cativeiros e opressores? Ou com<br />
um grão de trigo que deve morrer?<br />
Percorremos os textos da liturgia católica deste V Domingo da <strong>Quaresma</strong>. E escutamos a promessa de uma aliança:<br />
“Imprimirei a minha lei no seu íntimo e gravá-la-ei no seu coração. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo.”<br />
Sentimos ainda o lamento dos que vão “cativos”, levados por opressores, e que se sentam a chorar junto aos rios da<br />
Babilónia, “com saudades de Sião”. Percebemos a garantia de que Jesus se tornou “<strong>para</strong> todos os que lhe obedecem fonte<br />
de salvação eterna”. E perscrutamos a parábola: “Quem se ama a si mesmo, perde-se; quem se despreza a si mesmo, neste<br />
mundo, assegura <strong>para</strong> si a vida eterna.” Outra forma de dizer: “Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só;<br />
mas, se morrer, dá muito fruto.”<br />
É preciso, então, morrer? E quem deve morrer <strong>para</strong> que outros vivam?<br />
Se olharmos <strong>para</strong> o que se tem passado na Tunísia, no Egipto, na Síria, no Iémen,... percebemos que muitos<br />
grãos de trigo estão a morrer. E darão frutos? Os pessimistas sempre nos dirão que tais revoluções acabarão<br />
com os fundamentalistas no poder, que serão os militares a controlar a situação ou que os povos árabes são<br />
incompatíveis com a democracia. Esquecerão, porventura, que a democracia é uma construção difícil, feita de<br />
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25 de Março | V Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM<br />
avanços e recuos. A avaliar por aquilo que se passa em Portugal e na Europa, é mesmo uma construção lenta,<br />
cheia de escolhos...<br />
Seria fácil escrever que, só na medida em que cada um de nós se anula, é que pode ajudar a que outros vivam. E repetir<br />
discursos e morais acerca desta parábola. Mas a sua moral maior estará, talvez, na frase seguinte – que a explica: “Quem<br />
se ama a si mesmo, perde-se...”<br />
O discurso católico tem repetido à exaustão a ideia de que, na presente crise económico-financeira, está em causa<br />
sobretudo uma crise de valores. É verdade. E isso pode ter muito a ver com essa frase do evangelho deste domingo:<br />
“Quem se ama a si mesmo, perde-se...” E poderia acrescentar-se: e faz perder os outros. É que, de facto, foi um sistema<br />
financeiro que se centrou sem si mesmo que se perder. Um sistema que se perdeu por ter perdido a razão primeira de<br />
existir – ajudar a criar e a movimentar a riqueza, <strong>para</strong> o bem das pessoas. Porque um sistema financeiro que não sirva as<br />
pessoas, de nada serve.<br />
É o Papa Bento XVI que o recorda na encíclica Caritas in Veritate: “O sistema financeiro deve ser orientado <strong>para</strong> dar apoio<br />
a um verdadeiro desenvolvimento. Sobretudo, é necessário que não se contraponha o intuito de fazer o bem ao da<br />
efectiva capacidade de produzir bens. Os operadores das finanças devem redescobrir o fundamento ético próprio da sua<br />
actividade, <strong>para</strong> não abusarem de instrumentos sofisticados que possam atraiçoar os aforradores.” (nº 65).<br />
Pior ainda: esse sistema (bancos, Banco Mundial, FMI, Reserva Federal dos Estados Unidos, Banco Central Europeu,<br />
grandes multinacionais,...) está a atirar as vidas de pessoas e de povos inteiros <strong>para</strong> a perdição. O sistema financeiro (ou<br />
seja, aqueles cujo primeiro interesse é o lucro a qualquer preço e que desprezam a vida, o trabalho e a dignidade humana<br />
de tantos) quer roubar a democracia que tantos sacrifícios tem custado a construir. E quer reduzir as nossas vidas à<br />
pobreza – sem nunca se sacrificar a si mesmo ou aos que o servem. Por isso, continua a haver cativos a chorar junto aos<br />
rios das nossas babilónias contemporâneas...<br />
Pessoas que ninguém escolheu, que ninguém votou, que ninguém elegeu arvoram-se hoje o direito de pôr e dispor das<br />
nossas vidas, dos nossos empregos, dos nossos países. E querem fazê-lo em nome da “regulação dos mercados”, forma<br />
encapotada de impor um conjunto de medidas que retiram direitos à generalidade das pessoas (mas não ao “sistema<br />
financeiro”), reduzindo-nos a meras máquinas de produção intensiva. O exemplo dos feriados aí está: se não se entende<br />
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25 de Março | V Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM<br />
que a pessoa humana tem necessidade de outros tempos que não apenas o do trabalho e da produção, então nada<br />
se entende do humano. E é pena ter visto a Igreja Católica a entrar nesse jogo, esquecendo a antropologia que a sua<br />
doutrina social transporta...<br />
Se o grão de trigo não morrer... Esta imagem ensina-nos também que algo de pequeno pode muitos frutos. O que<br />
se pressente hoje é que as manifestações, os protestos, as indignações, são difusos sinais de esperança, de que outro<br />
mundo é possível, porque outro mundo se deseja. Mesmo se essas manifestações estão cheias de contradições, de<br />
incoerências, de violências sempre injustificadas, de vontades difusas...<br />
São grãos de trigo. Que darão lugar a muitos frutos.<br />
MANUEL AUGUSTO LOPES FERREIRA, MCCJ<br />
DIRECTOR DA REVISTA ALÉM-MAR<br />
Na sociedade mercantilista em que vivemos - na União Europeia, <strong>para</strong> falarmos só de nós - no desenvolvimento não<br />
há tempo nem lugar <strong>para</strong> o dom. Tudo o que tem a ver com desenvolvimento humano, tanto na sua vertente pessoal<br />
como comunitária, tem um peso e um preço. Os capitais requeridos <strong>para</strong> o desenvolvimento social, nos campos da<br />
capacitação técnica e do ensino, da saúde e do bem-estar, da cultura e do lazer, das vias e dos meios de comunicação<br />
têm juros altos. O know how e as tecnologias estão bem registados: o seu uso e a transferência do saber consomem<br />
tempo em burocracias e custam caro.<br />
Bento XVI, com a encíclica «Caritas in Veritate» (A Caridade na Verdade) veio dar força (sobretudo na Introdução e<br />
no capítulo terceiro) a um pensamento contra-corrente a respeito do desenvolvimento humano das pessoas e das<br />
sociedades, da pessoa humana na sua inteireza. Ele veio alertar-nos <strong>para</strong> o que deveria ser óbvio: que o desenvolvimento<br />
<strong>para</strong> ser humano - da pessoa toda e de todas as dimensões da sua vida, das sociedades e de todos os âmbitos que<br />
tornam humano o conviver social - deverá ter em conta outras dimensões <strong>para</strong> além da mercantilista: a dimensão da<br />
«caritas», do amor e da gratuidade. Numa palavra: do dom, que está justamente no título proposto <strong>para</strong> esta reflexão e<br />
que deve estar no topo do dicionário cristão do desenvolvimento, a primeira das palavras que lhe é sinónimo.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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25 de Março | V Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM<br />
Esta gramática renovada do desenvolvimento, que o Papa Bento XVI sugere na sua carta, fica facilitada se olharmos<br />
<strong>para</strong> o desenvolvimento, das pessoas e das sociedades, não só de portas <strong>para</strong> dentro; isto é, dentro do nosso país,<br />
onde a crise actual colocou em causa o nosso ritmo de desenvolvimento e ameaça fazer-nos regredir <strong>para</strong> novas<br />
formas de pobreza, <strong>para</strong> situações de ausência de desenvolvimento pessoal e comunitário. Certamente entre nós,<br />
percebemos agora que o desenvolvimento e as condições de vida a que todos aspiramos implicam o dom <strong>para</strong> nos<br />
desenvolvermos solidários, de modo que ninguém fique <strong>para</strong> trás. E, por causa da crise, estamos a experimentar<br />
o desenvolvimento como dom; como partilha dos bens materiais e dos valores espirituais, mais do que noutros<br />
tempos recentes em que, apesar de sermos cristãos, alinhámos acriticamente no mercantilismo que caracteriza o<br />
nosso progresso e bem-estar social.<br />
Mas, mesmo na crise que nos aflige, percebemos melhor o desenvolvimento como dom, se olharmos um pouco <strong>para</strong><br />
mais longe; se, não perdermos a perspectiva global e considerarmos, por exemplo, os países com menores índices de<br />
desenvolvimento, à cabeça dos quais estão os países africanos.<br />
Sou missionário e sinto que não devo silenciar esta minha condição na Igreja. Gostaria de trazer <strong>para</strong> esta reflexão a<br />
perspectiva, mais universal e aberta aos outros, que os missionários incarnam e trazem <strong>para</strong> este debate, por força<br />
da circunstância de se encontrarem a viver no meio de povos excluídos do desenvolvimento humano, vítimas do<br />
desenvolvimento mercantilista que a Europa e a América estão a exportar <strong>para</strong> o sul do mundo, por via da globalização<br />
da economia, dos meios de produção e da distribuição de bens.<br />
Quem contacta com missionários em África – eu estive recentemente no nordeste da Etiópia e no sul do Sudão em visita<br />
a jovens missionários combonianos portugueses que lá trabalham – percebe que a palavra dom está na gramática que<br />
eles mais adoptam; que o dom envolve todas as dimensões do desenvolvimento que eles promovem pela via do seu<br />
envolvimento nos processos de transformação social actualmente em curso nesses países.<br />
A começar pelos meios económicos que eles recolhem <strong>para</strong> implementar os projectos, no âmbito da saúde e da educação.<br />
Felizmente, os missionários ainda confiam na Providência de Deus e na generosidade das pessoas, cristãos e amigos,<br />
comunidades paroquiais e grupos eclesiais, <strong>para</strong> recolherem os meios financeiros que as iniciativas de desenvolvimento<br />
requerem. Trata-se de dinheiro fruto de partilha: dom que resulta de uma grande generosidade de pessoas e grupos, de<br />
dinheiro limpo de exigências, juros, contrapartidas.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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25 de Março | V Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM<br />
Mas <strong>para</strong> além destes recursos financeiros, o desenvolvimento exige o dom de pessoas, de recursos humanos, que<br />
oferecem às pessoas e às sociedades dos países subdesenvolvidos o conhecimento, a capacitação e a visão que o<br />
desenvolvimento precisa <strong>para</strong> ser efectivo e, sobretudo, autenticamente humano. Na missão cristã hoje no mundo, o<br />
contributo mais notável está a ser dado pelo dom que são os leigos e leigas, técnicos e profissionais que se envolvem com<br />
as populações excluídas do progresso e as capacitam, pela via do testemunho e pelo exercício exemplar da profissão,<br />
<strong>para</strong> se tornarem protagonistas do próprio desenvolvimento.<br />
Quem viaja pela África hoje e olha nos olhos os jovens, as pessoas, contempla a beleza e a riqueza natural do continente<br />
sem prejuízos nem interesses egoístas, facilmente percebe que o que os africanos mais precisam, <strong>para</strong> se desenvolverem,<br />
é do dom de uma oportunidade, de uma presença amiga que os capacite <strong>para</strong> as tarefas do desenvolvimento das suas<br />
sociedades. Esta presença amiga e capacitadora dos missionários e dos leigos cristãos, é o dom maior, o factor decisivo,<br />
do desenvolvimento humano conjugado e vivido segundo uma gramática cristã.<br />
Na liturgia do V Domingo de Advento encontramos inspiração <strong>para</strong> assim conjugarmos o verbo promover / desenvolver<br />
e assim participarmos nos processos de transformação social, mesmo naqueles que nos vêm por caminhos tortuosos e<br />
dolorosos, como são os desta crise financeira.<br />
Na primeira leitura, do profeta Jeremias (31, 31-34), o sonho da Nova Aliança é visto e descrito como dom de<br />
Deus; algo que, de tão novo e diferente, só poderia vir d’Ele e da acção do Seu Espírito. A nova aliança a que alude<br />
o profeta, e as relações que ela estabelece, entre as pessoas e entre estas e Deus, têm o dinamismo próprio de<br />
Deus que é Amor, que é dom transformante: amor que se dá, comunicando aos outros a capacidade de amarem e<br />
corresponderem ao amor por eles mesmos. Diz o profeta: «ninguém ensinará mais o seu próximo dizendo “aprende<br />
a amar o Senhor», pois todos me conhecerão»!<br />
A carta aos Hebreus (5,7-9) lembra-nos que esse amor de Deus, que se expressa como dom que transforma e eleva o<br />
outro, que o capacita <strong>para</strong> um diálogo de salvação e felicidades entre iguais, não é amor que se vive e se pratica a bom<br />
preço, pelo atalho das opções fáceis, do retorno egoísta. É caminho difícil, diz Paulo, que «Cristo apesar de ser filho,<br />
aprendeu na obediência e nas lágrimas do que sofreu» e que os cristãos terão que trilhar <strong>para</strong> darem alma aos processos<br />
de transformação social e promoverem um desenvolvimento ao serviço da pessoa toda e de todas as pessoas, como<br />
filhos e filhas de Deus.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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25 de Março | V Domingo da <strong>Quaresma</strong><br />
DESENVOLVIMENTO COMO UM DOM<br />
O evangelho de João (12, 20-23) faz-nos ouvir, pela boca de Jesus, este axioma que liga o dom (o amor) ao desenvolvimento<br />
das pessoas e das sociedades: «se o grão de trigo lançado à terra não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto».<br />
As palavras de Cristo não foram uma receita <strong>para</strong> terceiros: foram a profecia do seu próprio itinerário, da sua vida e da<br />
sua morte. À sua semelhança, <strong>para</strong> os cristãos, as razões que ligam o desenvolvimento ao dom - dos bens, dos afectos,<br />
do próprio tempo e da própria vida - não são receitas <strong>para</strong> outros, mas caminho próprio e empenho de vida pessoal e<br />
comunitária.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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COERÊNCIA<br />
1 ABRIL | DOMINGO DE RAMOS
1 de Abril | Domingo de Ramos<br />
DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA<br />
REFERÊNCIAS<br />
• Is. 50, 4-7<br />
• Filip. 2, 6-11<br />
• Mc. 14, 1<br />
REFLEXÃO<br />
GUILHERME D’OLIVEIRA MARTINS<br />
PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE CONTAS<br />
O SINAL E A MARCA<br />
1. “O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, <strong>para</strong> que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam<br />
abatidos. Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos, <strong>para</strong> eu escutar, como escutam os discípulos. O Senhor Deus<br />
abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo.” (Is 50,4-5)<br />
O último domingo da <strong>Quaresma</strong> tem, compreensivelmente, uma liturgia da Palavra especialmente exigente.<br />
Aproximando-nos do momento crucial do ano religioso cristão, impõe-se que nos disponhamos a ouvir com especial<br />
atenção e cuidado a Palavra de Deus.<br />
Por isso, Isaías vem-nos recordar a necessidade de “uma palavra de alento aos que andam abatidos” — palavra de Fé e<br />
de compreensão, de Esperança, de atenção e de cuidado.<br />
2. É de Esperança que falamos nestes dias de incerteza e de provação. E, se há, no tempo que corre, uma especial<br />
actualidade e pertinência na invocação da segunda virtude teologal, a verdade é que não se trata de considerar um<br />
horizonte optimista, sem mais, mas de ligar a espera divina à responsabilidade e à eminente dignidade das pessoas.<br />
“Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio.<br />
Assumindo a condição de servo, tornou Se semelhante aos homens.” (Filip 2,6-7)<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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1 de Abril | Domingo de Ramos<br />
DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA<br />
O mistério da Encarnação divina obriga-nos a considerar que a Revelação leva a compreendermos que a condição<br />
humana se aproxima de Deus, através de Jesus Cristo. Longe de uma concepção distante e insondável de Deus, chegamos<br />
à compreensão do Amor e da proximidade, que nos permite responder a quem pede a nossa ajuda.<br />
“Por isso Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes, <strong>para</strong> que ao nome de Jesus todos se<br />
ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, <strong>para</strong> glória de Deus<br />
Pai.” (Filip 2,9-11)<br />
3. E chegamos à memória do tempo da Paixão e dos seus prolegómenos.<br />
“Faltavam dois dias <strong>para</strong> a festa da Páscoa e dos Ázimos e os príncipes dos sacerdotes e os escribas procuravam maneira<br />
de se apoderarem de Jesus à traição <strong>para</strong> Lhe darem a morte.” (Mc 14,1)<br />
Sentimos que há sempre o risco da cegueira, da indiferença e da insensibilidade. Em lugar da atenção às palavras de<br />
esperança e de “alento aos que andam abatidos”, sobressai a tentação de prevalecerem as considerações imediatistas e<br />
o interesse egoísta do poder, da ostentação, que são a matéria-prima do desespero.<br />
E o episódio de Betânia é significativo:<br />
“«Para que foi esse desperdício de perfume? Podia vender-se por mais de duzentos denários e dar o dinheiro aos<br />
pobres». E censuravam a mulher com aspereza. Mas Jesus disse: «Deixai-a. Porque estais a importuná-la? Ela fez<br />
uma boa acção <strong>para</strong> comigo. Na verdade, sempre tereis os pobres convosco e, quando quiserdes, podereis fazer-lhes<br />
bem; Mas a Mim, nem sempre Me tereis. Ela fez o que estava ao seu alcance: ungiu de antemão o meu corpo <strong>para</strong> a<br />
sepultura. Em verdade vos digo: Onde quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo inteiro, dir-se-á também em<br />
sua memória, o que ela fez».” (Mc 14,4b-9)<br />
Quem foi incapaz de compreender a missão de Jesus Cristo viu apenas um desperdício. Mas o Filho de Deus apressouse<br />
a esclarecer e a tornar evidente que o domínio do Amor se constrói na relação entre as pessoas a pensar nas<br />
obras que se projectam na eternidade.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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1 de Abril | Domingo de Ramos<br />
DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA<br />
4. “Os discípulos partiram e foram à cidade. Encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito e pre<strong>para</strong>ram a Páscoa.” (Mc 14,16)<br />
A pre<strong>para</strong>ção da Eucaristia fez-se como se todos ajudássemos a invocar a relação do Amor entre as pessoas, que<br />
prefiguram o banquete celeste.<br />
Se a Deus ninguém O viu, a verdade é que nos é dada permanentemente oportunidade de O receber, porque só o Amor<br />
permite encontrar a marca, o sinal e a manifestação da eternidade.<br />
Mas é fácil esquecermo-nos de quem está ao nosso lado <strong>para</strong> nos anunciar o tempo do definitivo Amor.<br />
Em Emaús o reconhecimento tardou.<br />
S. Tomé só acreditou vendo e tocando…<br />
S. Pedro negou três vezes antes do galo cantar.<br />
“Disse-lhes Jesus: «Todos vós Me abandonareis, como está escrito: ‘Ferirei o pastor e dispersar-se-ão as ovelhas’. Mas<br />
depois de ressuscitar, irei à vossa frente <strong>para</strong> a Galileia».” (Mc 14,27-28)<br />
5. “«Simão, estás a dormir? Não pudeste vigiar uma hora? Vigiai e orai, <strong>para</strong> não entrardes em tentação. O espírito está<br />
pronto, mas a carne é fraca».” (Mc 14,37b-38)<br />
Pedro é a nossa imagem. Nós próprios adormecemos e distraímo-nos. E se é certo que “O Senhor deu-me a graça de falar<br />
como um discípulo”, também é verdade que fomos e somos (de facto) cegos e surdos relativamente ao que nos é pedido…<br />
Eis a responsabilidade a que somos chamados: ter atenção e cuidado!<br />
6. “E às três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte: «Eloí, Eloí, lamá sabachtháni?» que quer dizer: «Meu Deus, meu<br />
Deus, porque Me abandonastes?».” (Mc 15,34)<br />
Num texto muito sentido e intenso, o romancista japonês Shusako Endo descreve esse episódio como se o tivesse<br />
presenciado, assumindo a dificuldade e a angústia de uma injustiça suprema. Mas, ao falar da imprecação fala-nos num<br />
fantástico sinal de Esperança, uma vez que é um Salmo inteiramente que está presente, pondo a esperança no lugar<br />
central da nossa vida.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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1 de Abril | Domingo de Ramos<br />
DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA<br />
Como se estivéssemos nesse dia distante mas presente, podemos olhar a multidão que, desordenada e esquecida,<br />
abandona em torpel o cenário…<br />
“Entretanto, Maria Madalena e Maria, mãe de José, observavam onde Jesus tinha sido depositado.” (Mc 15,47)<br />
Assunção Cristas<br />
Ministra da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território<br />
SERVIR PARA SER COERENTE<br />
Talvez a maior ambição da nossa vida, da vida de um cristão, seja aquela mais improvável a uma lógica puramente<br />
humana: a de servindo, viver com e em Cristo. Servir terá seguramente muitas aplicações e interpretações, há concerteza<br />
muito tempo e espaço <strong>para</strong> o serviço, <strong>para</strong> cada um servir de acordo com a sua medida, mas há algo incontornável em<br />
todo o apelo ao serviço: a alteridade. A existência do outro está na essência indeclinável do serviço, a inclinação <strong>para</strong> o<br />
outro é o alicerce do serviço, a aniquilação, a humilhação de si próprio, à semelhança de Jesus, é o terreno fecundo onde<br />
o serviço pode frutificar.<br />
Saber como, no concreto dos dias e dos anos - que não passam por nós, mas que nós queremos viver intensamente –,<br />
podemos agir cumprimento a vocação de serviço comum a toda a humanidade, é talvez o mais misterioso e contínuo<br />
desafio das nossas vidas.<br />
Na política a ideia de serviço é – no sentido performativo do dever ser - rigorosamente omnipresente. Na política, o outro<br />
são todos os outros, organizados em grupos mais ou menos difusos, que vão do conjunto de todos os cidadãos até grupos<br />
mais pequenos distinguidos mediante critérios diversos: os jovens, os idosos, os desempregados, os agricultores…Os<br />
temas são imensamente diversificados, com variações técnicas eventualmente impenetráveis, mas em todos eles, e no<br />
limite, temos o outro, as pessoas concretas que precisam de soluções concretas, que precisam que a sua visão seja tida<br />
em conta, seja vista, seja vida, seja ouvida. O outro pode ser mesmo a própria natureza, que queremos preservar por<br />
muitas razões – nomeadamente pelas consequências da sua destruição -, mas também e sobretudo pelo respeito e<br />
amor à obra da criação.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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1 de Abril | Domingo de Ramos<br />
DESENVOLVIMENTO PELA COERÊNCIA<br />
Em qualquer caso, é-nos exigida uma escuta atenta, e não há escuta atenta sem uma procura de humildade, de um<br />
certo apagamento, de abandono de si próprio <strong>para</strong> ouvir o outro na perspetiva do outro. Só assim se pode aprender e,<br />
pedindo a graça da doçura e da delicadeza, impregnar as nossas ações de sentido do outro.<br />
Em cada <strong>Quaresma</strong> é-nos dada a imensa oportunidade de refletir sobre o que fazemos e como fazemos. Como o nosso<br />
amor a Cristo é visível na nossa ação. Como a alegria que recebemos de Cristo é ampliada pela nossa vida. Como a<br />
interpelação <strong>para</strong> a concórdia tem resposta clara da nossa parte. Se é certo que bastará um momento de coerência na<br />
nossa vida <strong>para</strong> que a misericórdia de Deus nos salve, também é certo que a graça de procurar viver a coerência tornam<br />
a vida infinitamente mais extraordinária e então pode-se saborear a cada momento o gosto de vivermos com os outros<br />
e <strong>para</strong> os outros.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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TRANSFORMAÇÃO<br />
8 ABRIL | DOMINGO DA RESSURREIÇÃO
8 de Abril | Domingo da Ressurreição<br />
DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM<br />
REFERÊNCIAS<br />
• Act. 10, 34A. 37-43<br />
• Col. 3, 1-4 ou 1 Cor. 5, 6B-8<br />
• Jo. 20, 1-9<br />
REFLEXÃO<br />
JOSÉ FRAZÃO, SJ<br />
FACULDADE DE FILOSOFIA DE BRAGA, UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA<br />
Fazendo caminho connosco e atravessando todos os lugares estreitos e perigosos da nossa existência, Jesus faz-Se<br />
passagem, Ele, nossa Páscoa, nossa esperança. Livremente, adianta-se e segue à frente e, assim, se diz como Palavra e se<br />
realiza como gesto de Deus entre nós. Expõe-se-nos, dando tudo de si <strong>para</strong> que vivamos segundo o desejo de Deus <strong>para</strong><br />
nós. Dá a própria vida, não porque lhe seja roubada ou exigida, mas, porque, intimamente, o quer. E, assim, tão dado,<br />
vence todas as mortes, enxuga todas as lágrimas, cura todas as feridas. Na maior das solidariedades, desce, ele próprio,<br />
ao sepulcro das nossas mortes, fazendo brilhar, aí, a nova luz da confiança. Neste dia, tão feliz, «Maria Madalena foi de<br />
manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro e viu a pedra retirada». Estava vazio. Uma força prodigiosa marca a nossa história<br />
com um novo início. Um fermento novo já está a fazer nova a velha massa. Aquele que tinha sido abandonado na cruz<br />
está vivo. Vive, agora e <strong>para</strong> sempre, como Graça que salva a vida de cada homem e de cada mulher. Não a vida abstracta<br />
ou ideal, mas aquela de carne e de sangue que se narra e se decide no quotidiano de cada biografia e de cada grupo. Em<br />
Jesus de Nazaré, no seu gesto de nos dar a vida, Deus vence todas as nossas mortes.<br />
Da morte à vida, esta é a grande passagem que nos toca viver. Desde que nascemos, <strong>para</strong> todos, é esta a mais elementar<br />
das transformações. Passar do medo à confiança, da se<strong>para</strong>ção ao encontro, da insensibilidade à atenção, da frieza à<br />
ternura, do ressentimento ao perdão, da mesquinhez à grandeza de alma, da protecção de si, a todo o custo, à dádiva<br />
de si, sem condições. São estas as passagens mais vitais, porque são as que restituem, cada um, à verdade de si próprio e<br />
do seu estar no mundo. Mas, porque geram resistências viscerais, são, também, as mais dramáticas e as mais dolorosas.<br />
De facto, não há vida que não passe pela prova da morte a si próprio, porque quem se quiser conservar, esse, perder-<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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8 de Abril | Domingo da Ressurreição<br />
DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM<br />
se-á. Estranhamente, querendo viver, acontece que nos ligamos ao que nos faz morrer. Querendo o bem, muitas vezes,<br />
é o mal que preferimos. Gastamos tanta energia <strong>para</strong> atrair outros, mas acabamos, facilmente, por não suportar a sua<br />
presença. Amamos a humanidade, mas o pobre que encontramos na rua deixa-nos indiferentes. Aspiramos a muito<br />
e sonhamos alto, mas, contentamo-nos, facilmente, com demasiado pouco. Temos boas intenções, mas, muitas, não<br />
passam disso, de boas intenções. De um «admirável combate» se trata, entre a protecção de si, à custa dos outros, e<br />
a dádiva de si, incondicional, <strong>para</strong> o bem de qualquer outro. Nesta luta, quem não for passando, passo a passo, pela<br />
morte ao «seu próprio amor, querer e interesse», decidindo entregar-se, livremente, pela vida de um outro, resigna-se<br />
a fazer do sepulcro casa, mortificando o desejo íntimo de uma vida justa e de relações conseguidas. Mas, aquele que,<br />
reconhecidamente, acolher a graça do Ressuscitado que o restitui à vida, aprenderá, também ele, passo a passo, a gerar<br />
vida pelo dom que fizer de si. Dia-a-dia aprende com o seu Senhor que a única vida que vale a pena ser vivida é aquela<br />
que se dá. Nesta passagem, vive. E, deste modo, fará viver.<br />
IRMÃ ESPERANZA OSPINA<br />
GUINÉ-BISSAU<br />
Depois de 10 meses da minha chegada à Guiné-Bissau, não me atrevo a tentar descrever uma realidade pluricultural tão<br />
vasta, tão complexa que desafia a minha visão ocidental do mundo. Posso dizer que o percebo como um país que ainda<br />
não conseguiu recuperar das suas lutas de libertação seguidas da guerra interna que aconteceu há 13 anos; coexistem<br />
nele uma tradição fortemente enraizada e alguns vestígios de modernidade; um país com um índice de pobreza de<br />
70%, que tem acostumado muitos dos seus habitantes a limitar-se a estender a mão <strong>para</strong> receber as ajudas do primeiro<br />
mundo, ainda que tendo a terra mais fértil que tenho visto na minha vida, que com as primeiras chuvas começa a<br />
enverdecer de maneira milagrosa; com um clima privilegiado capaz de produzir quase qualquer produto. Um país com<br />
um alto nível de corrupção e impunidade, que se reflecte no receio e no temor de falar a verdade. Um país cuja capital<br />
conheceu o primeiro semáforo em Setembro do ano passado, e que no meio das suas ruínas começa lentamente a<br />
ressurgir.<br />
A partir de um olhar rápido e superficial, poder-se-ia dizer da Guiné Bissau, o que no seu tempo foi dito de Nazaré, “dali<br />
pode sair algo de bom?” E é neste contexto aparentemente hostil que Deus me vai mostrando uma via alternativa <strong>para</strong><br />
reconhecer os pequenos e grandes sinais de transformação e de Páscoa, que muitas vezes não se identificam com<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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8 de Abril | Domingo da Ressurreição<br />
DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM<br />
os nossos ideais de êxito, bem estar, fama, poder; e que necessariamente passam pela casa dos pobres, excluídos e<br />
esquecidos deste mundo, que preferimos esquecer nos seus sepulcros, de maneira que não incomodem os nossos “bem<br />
ganhos estilos de vida”.<br />
Situo-me agora no Evangelho de Marcos, Capítulo 5, 1 - ss, que me levam a pensar nas ruínas que foram por mais de<br />
dez anos as instalações do antigo internato de Bor, que apenas podia evocar um passado de sofrimento, um presente<br />
de conformismo e um futuro desesperançados, que escondia entre as suas paredes, os “endemoninhados” pelo vício<br />
e pela delinquência, que devolviam violentamente o que violentamente receberam. E ver hoje neste mesmo lugar o<br />
que hoje é a Casa de Acolhimento Bambaran que foi sonhada pelo Bispo de Bissau e pelos “amigos do terceiro mundo”,<br />
provenientes de Itália, nascida oficialmente em 16 de Abril de 2011 <strong>para</strong> acolher e proteger meninos e meninas desde<br />
os 0 aos 14 anos, órfãos, abandonados, maltratados, é <strong>para</strong> mim um primeiro e claríssimo sinal de ressurreição. Porta<br />
de entrada, <strong>para</strong> os grandes e subtis milagres de transformação que vão acontecendo nesta pequena e invisível família<br />
Bambaran.<br />
O possesso de Gerasa é por excelência o marginal <strong>para</strong> quem nada nem ninguém se atreve a olhar ou a tocar, porque<br />
“passa as noites e os dias nos sepulcros dando gritos e golpeando-se com pedras” e ao qual um só gesto de amor,<br />
proximidade e acolhimento de Jesus o levou a reconhecer a sua humanidade, passando de condições desumanas a<br />
condições dignas de toda a pessoa humana, “sentado, vestido e no seu perfeito juízo”. Identifico-o com os rapazes que<br />
chegaram à casa Bambaran com quadros de desnutrição grave, com antecedentes de maus tratos físicos e psicológicos,<br />
que diante dos primeiros gestos de ternura, talvez desconhecidos <strong>para</strong> eles, reagiram com violência, choro, isolamento,<br />
mas que pouco a pouco os foi humanizando, primeiro um sorriso, uma palavra, até conseguir hoje cantos, risos, jogos,<br />
alegria…<br />
Identifico-o com o “menino irán”, denominado assim aquele que por ter nascido com uma enfermidade neurológica ou<br />
alguma malformação não é considerado pessoa, mas portador de desgraças <strong>para</strong> a sua família e que por conseguinte,<br />
deve ser eliminado, um menino hoje resgatado, protegido e amado, que é portador de boas notícias até pelo seu nome<br />
que significa “Deus connosco”.<br />
Vejo este ser marginalizado, no bebé recém-nascido, que foi abandonado num hospital, depois da sua mãe ter morrido,<br />
uma mulher estrangeira, portadora de HIV, totalmente sozinha…um bebé que na casa Bambaran cresce saudável, feliz…<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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8 de Abril | Domingo da Ressurreição<br />
DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM<br />
É por aqui que vai actualizando o grande acontecimento da ressurreição, acredito que é por aqui que devem ir passando<br />
as nossas transformações, desde a base, desde o pequeno, desde o quotidiano, desde o profundo do coração. Deixando<br />
de esperar passivamente as respostas do poder político ou económico, dos macro projectos, das grandes inversões que<br />
prometem desenvolvimento e progresso puramente material, esquecendo os valores do pobre de Nazaré, de todos os<br />
pobres da terra, autenticamente humanos, como os que também o povo guineense tem e que segundo a minha opinião<br />
são essenciais <strong>para</strong> um desenvolvimento humano integral: a solidariedade, a hospitalidade, o sentido da família alargada,<br />
o respeito pelos mais velhos, o espírito festivo, a resistência, que liberta da opressão, do isolamento, da violência.<br />
Ao contemplar este pequeno grupo de meninas e meninos, que cada manhã me saúdam com um alegre “Bom dia, Mãe”,<br />
agradeço a Deus a oportunidade que me dá de acreditar que o amor que semeamos neles germinará <strong>para</strong> o futuro, em<br />
homens e mulheres novos, que contribuem verdadeiramente <strong>para</strong> a construção de um progresso realmente humano e<br />
inclusivo.<br />
Estou convencida que cada um dos cristãos e cristãs comprometidos com a sua fé podem acabar desde a sua própria<br />
realidade, com muitos sepulcros, expulsar muitos demónios e converter-se em rasgos luminosos da Ressurreição, e<br />
talvez até converter-se na consciência de um mundo que foge da cruz, que esquece os crucificados da história, e fecha<br />
as portas da verdadeira Vida, que nos traz a Páscoa do Senhor.<br />
8 PASSOS NO CAMINHO DO DESENVOLVIMENTO | QUARESMA <strong>2012</strong><br />
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8 de Abril | Domingo da Ressurreição<br />
DESENVOLVIMENTO COMO PASSAGEM<br />
Rita Cortez aci<br />
Escrava do Sagrado Coração de Jesus, Projecto TASSE<br />
Conferência apresentada nos 75 anos<br />
do Instituto das Escravas do Sagrado Coração de Jesus em Portugal,<br />
10 de Fevereiro de 2011<br />
ENTRE A BELEZA DO MUNDO E O ESPANTO DO CÉU - O EVANGELHO DA JUSTIÇA E A INSERÇÃO SOCIAL<br />
“PROMOVER O PRÓXIMO SEM FINS LUCRATIVOS”<br />
INTRODUÇÃO<br />
Entre a Beleza do Mundo e os Espanto do Céu, serviu-me de sugestão de ponta pé de saída <strong>para</strong> começar esta<br />
conversa…<br />
Permanecer e desejar ficar próximo da dor, de acompanhar e amar o que é pobre e frágil, ficar ali junto de realidades<br />
visivelmente feias – duras e dolorosas - e não “amáveis” só é possível se se descobre a Beleza escondida que as mesmas<br />
encerram. E quando se fica e se ama, descobre-se e toca-se o Céu. O Espanto do Céu.<br />
O Espanto do Amor Criador que não ama só o que é amável, mas porque ao amar tudo o que é criado e tem vida,<br />
converte o que ama em amável. Em Belo.<br />
Falar de Promover a Justiça, de promover o outro em contextos de vulnerabilidade é, sem dúvida alguma, situar-nos<br />
aqui: entre a Beleza escondida destes pequenos “mundos” e a certeza inabalável que aí tocamos, muitas vezes, o Céu!<br />
I. O EVANGELHO DA JUSTIÇA E A INSERÇÃO SOCIAL<br />
A promoção da justiça e a preferência pelos mais pobres fazem parte da história do Instituto das Escravas do Sagrado Coração<br />
de Jesus desde a sua fundação: assim começou o Instituto no coração da nossa fundadora, Rafaela Maria, procurando<br />
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aqueles que, no seu tempo, eram os mais desfavorecidos e excluídos. Podemos, por isso afirmar que a promoção da justiça<br />
no amor e a defesa dos mais pobres está no coração do nosso carisma e missão. Faz parte dele, não é opção.<br />
Creio poder falar de conversão a Cristo e ao seu Evangelho neste caminho… na nossa história. Conversão <strong>para</strong> encontrar<br />
aí, nesses lugares de ruptura, a Cristo que precisamente aí, COM esses irmãos, quer ser servido e encontrado. E onde<br />
também nós nos encontramos.<br />
Nesta linha de promoção da Justiça, algo que hoje, <strong>para</strong> as gerações mais novas parece ser óbvio, associar a missão das<br />
Congregações religiosas apostólicas a trabalhos de inserção social junto e com os mais pobres, nem sempre foi assim na<br />
história da Igreja e na história de muitas Congregações.<br />
Foi passar de Promover a Justiça POR ELES (uma classe desprotegida que não conheço, nem ponho rosto) a fazê-lo<br />
COM eles, CONTIGO que tem um nome e rosto, COM quem passo a ter uma relação.<br />
As chamadas comunidades de inserção foram um passo nesta direcção, neste desejo de nos aproximarmos e<br />
aproximarmos outros. Em Portugal surge em 1992 com a fundação da comunidade da Fonte da Prata; no Instituto é<br />
mais recente, uns anos antes.<br />
A grande e maior diferença foi passar de promotores da mudança a agentes e participantes da mudança COM aqueles<br />
com quem passámos a viver.<br />
A) EVANGELHO E JUSTIÇA – EVANGELHO DA JUSTIÇA?<br />
O anúncio da Fé em Jesus Cristo leva consigo a prática da Justiça, porque a Boa Nova de Jesus, o Seu Evangelho, o<br />
que Jesus anuncia e pratica é a Boa Nova da Justiça. A Justiça que brota do evangelho não é uma linha política, uma<br />
ideologia, nem muito menos uma estratégia de pastoral. O Evangelho de Jesus é Justiça, por isso uma prática imperiosa<br />
<strong>para</strong> quem O segue. Ou como disse recentemente o Papa Bento XVI: “quem quer ser verdadeiramente companheiro e<br />
amigo de Jesus deve partilhar com Ele o Seu Amor aos pobres”.<br />
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B) PALAVRAS – UMA PRAXIS<br />
A promoção da Justiça é, portanto, uma praxis, um modo de estar e de viver a fé, de entrar com Amor nos sofrimentos<br />
da história. O lugar de exercício deste Amor são, então, todos os lugares históricos – todas as margens - onde o Senhor<br />
Jesus quer ser encontrado.<br />
Que prática é esta? Proponho-vos um exercício de contemplação:<br />
1. LUGAR: Sinagoga – sábado<br />
2. VER AS PESSOAS E VER O QUE FAZEM<br />
Jesus entrou na sinagoga. E estava lá um homem que tinha uma das mãos <strong>para</strong>lisadas. Ora eles - os fariseus -<br />
observavam-no, <strong>para</strong> ver se iria curá-lo ao sábado, a fim de o poderem acusar.<br />
3. OUVIR O QUE DIZEM<br />
1. Jesus disse ao homem da mão <strong>para</strong>lisada: «Levanta-te e vem <strong>para</strong> o meio.»<br />
2. E a eles perguntou (aos fariseus): «É permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal, salvar uma vida ou matá-la?»<br />
Eles ficaram calados.<br />
3. Então, olhando-os com indignação e magoado com a dureza dos seus corações, disse ao homem:<br />
«Estende a mão.» Estendeu-a, e a mão ficou curada.<br />
Assim que saíram, os fariseus reuniram-se com os partidários de Herodes <strong>para</strong> deliberar como haviam de matar Jesus.<br />
4. REFLECTIR PARA TIRAR ALGUM PROVEITO<br />
AS PALAVRAS<br />
1.«Levanta-te e vem <strong>para</strong> o meio»: levanta e põe de pé quem estava caído - devolve dignidade; coloca no meio<br />
quem está na margem – cria oportunidades. Inversão dos papéis e relações sociais. Quem estava fora fica dentro.<br />
2. «É permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal, salvar uma vida ou matá-la?»: questiona a prática da justiça<br />
humana e da lei que não está ao serviço do homem e da vida, mas ao serviço do poder e dos poderosos criando<br />
e alimentando estruturas – políticas, sociais, económicas - injustas.<br />
A injustiça tem a sua raiz numa cultura de vida, isto é na maneira como pensamos, como nos organizamos,<br />
como partilhamos… são os valores que dão origem a um estilo de vida. Que cultura promovo?<br />
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3. «Estende a mão.»: devolve ao excluído as suas capacidades. A prática da justiça não é assistencialismo, é abrir<br />
possibilidade de futuro e criar oportunidades. Autonomia. Empowerment. Dar capacidade de decisão e participação<br />
a nível pessoal e comunitário. Daí a enormíssima importância da Educação e da Formação em contextos de exclusão.<br />
CONSEQUÊNCIA: queriam matar Jesus, silenciá-lo. Parece, então, claro que proclamar a Fé e o exercício da Justiça<br />
implica anuncio e denuncia; quebrar ciclos e estruturas que dão suporte ao um sistema repressivo e injusto,<br />
que promovem só alguns e os colocam cada vez mais no centro, e que, simultaneamente, aumentam de forma<br />
gigantesca aqueles que habitam as margens do nosso mundo.<br />
II. PROMOVER O PRÓXIMO - COLOCÁ-LO NO CENTRO<br />
O primeiro relatório sobre o Desenvolvimento Humano (do Programa das Nações Unidas <strong>para</strong> o Desenvolvimento) foi<br />
publicado em 1990 e começava com a premissa: “A verdadeira riqueza de uma nação está nas pessoas”. Com esta nova<br />
forma de conceber e medir o desenvolvimento, o relatório teve um forte impacto nas políticas de desenvolvimento de<br />
todo o mundo ao colocar a pessoa no centro das estratégias de desenvolvimento.<br />
Este relatório definia desenvolvimento humano como “um processo mediante o qual se ampliam as oportunidades<br />
dos povos”, associando esta definição ao “bem-estar da pessoa humana e pleno exercício da sua liberdade”, mediante 3<br />
indicadores: melhor saúde, mais educação e um nível de vida mais digno.<br />
O centro passou a ser a pessoa e o seu bem-estar – oportunidades/liberdades -e não o crescimento dos mercados.<br />
Apareceu um novo conceito de economia e de desenvolvimento: economia do desenvolvimento humano: expandir<br />
oportunidades e liberdades. Este novo conceito ou modelo de desenvolvimento concebido apenas há 20 anos não é<br />
novo o que nos acontece é que esquecemo-lo com frequência. Porquê? Porque é completamente incompatível com a<br />
lógica de ambição e competitividade em que, normalmente, vivemos.<br />
Modelo que não é mais do que falávamos antes: a prática de Jesus, a lógica do Reino. Um convite a dilatar o coração…<br />
colocando o “outro” no centro da minha vida, na minha família, no meu trabalho e interesses profissionais, das minhas<br />
decisões…. Quando este exercício passa do desejo e da reflexão teórica à prática, o que vejo é muito mais, o horizonte<br />
e o meu campo de visão rasgam-se brutalmente. O coração dilata-se e os pulmões enchem-se de oxigénio!<br />
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Trazer esta enormíssima massa humana que vive nas “margens” <strong>para</strong> o centro das nossas vidas é a única forma de não<br />
vivermos nós à margem, descomprometidos com o mundo e ao mesmo tempo, <strong>para</strong>doxalmente, engolidos por ele...<br />
Estou disposto a assumir as consequências de colocar milhões de vidas humanas no centro da minha vida? A assumir<br />
essa inversão de papéis sociais que me fará optar, decidir… no dia a dia como nas grandes decisões?<br />
Resumindo: a minha capacidade de promover o outro, de promover desenvolvimento humano, de anunciar o Evangelho<br />
da Justiça passa, então, pelo VALOR que dou à pessoa humana a ponto de a colocar no centro da minha vida.<br />
A pergunta que está subjacente a esta reflexão é: estou também certa que o outro é a maior riqueza <strong>para</strong> o desenvolvimento<br />
da sociedade em que todos vivemos?<br />
III. SEM FINS LUCRATIVOS – SER PARA O OUTRO<br />
Seria um erro, um tremendo engano dar por certo que quando até compreendo esta lógica e opto por ela, estou isento<br />
de não misturar na minha acção outros interesses: políticos, institucionais e até mesmo pessoais.<br />
Por experiência posso dizer-vos que infelizmente não é assim: que convivemos neste âmbito de acção social com<br />
muitos interesses que ocultam os interesses daqueles a quem servimos… e temos e devemos estar alerta!<br />
O lucro em contextos de exclusão, quando trabalhamos tentando promover a vida dos mais fracos, assume o nome<br />
de desejo de dominar, de impor sem ouvir, das lutas de poderes institucionais e políticos e até de um certo prestigio e<br />
reconhecimento social... com enormes fins lucrativos!... lucro que só fere a dignidade do outro….<br />
Porque entrar e estar em lugares de exclusão não é apenas definir medidas e acções, criar instrumentos e indicadores, medir<br />
resultados, articular com os parceiros e intervir… Sem entrar no âmbito do juízo, o campo da intervenção social pode ser<br />
altamente escorregadio, na tomada de decisões conduzidas pelo mal – interesses próprios - sob aparência de Bem.<br />
Ao longo destes anos fui percebendo que a única postura que podemos assumir <strong>para</strong> promover o outro SEM FINS<br />
LUCRATIVOS, diminuindo o risco de não estar ali em proveito próprio – pss, institucional ou políticos - é de SER PARA E<br />
COM O OUTRO.<br />
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1. SER PARA O OUTRO: ACTO DO SERVIÇO<br />
O servo responde e cumpre com um serviço. Assiste o débil, dá pão a quem tem fome, distribui roupa, arranja casa, ajuda<br />
a pagar rendas, cria oportunidades de estudo e de trabalho, defende o imigrante….<br />
2. SER COM O OUTRO: ACTO DE AMOR<br />
De servo a amigo, permitimos que nos comunique a sua intimidade, a sua vida… o lugar de encontro onde se presta o<br />
serviço, deixam de ser apenas os lugares físicos onde se dá algo, mas um espaço de relação e encontro de recuperação<br />
e re<strong>para</strong>ção do outro.<br />
Na missão da “promoção do outro” a amizade entende-se como o espaço relacional privilegiado onde se promove o<br />
outro sem fins lucrativos. A amizade – enquanto acto de serviço e de amor - é “mediação” porque é abertura, diálogo e<br />
comunicação de vidas. ESCUTA.<br />
Amizade como espaço relacional, possibilitadora de comunicação de vidas, não apenas de papeis e processos.<br />
Precisamos, com alguma, urgência de humanizar os “atendimentos e os serviços sociais”. Aqueles a quem servimos e<br />
amamos merecem que o façamos bem, entregando-lhe o melhor. “Fazer o Bem, bem feito”, dizia o P. Amadeu Pinto sj.<br />
Jesus que passou pela vida fazendo o Bem, bem feito também disse aos seus amigos: “já não vos chamo servos, mas<br />
amigos…”. Será que aqueles a quem servimos também dizem de nós: “já não vos chamo servos/as, mas amigos/as?”, já<br />
não vos chamo servos/as mas irmãos/ãs?<br />
CONCLUSÃO<br />
PROMOVER O PRÓXIMO SEM FINS LUCRATIVOS….<br />
Ser chamados a viver e anunciar a Boa nova da Justiça num Mundo que gira sob o princípio da Injustiça, do total desajuste,<br />
que gira à volta do egoísmo, do “lucro” fácil esta proposta parece quase um acto inútil e suicida…. Será? Não! Creio que<br />
é possível.<br />
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Como? Não vivendo de costas <strong>para</strong> esta história que é a nossa. Entrando nela fazendo-nos valer da sabedoria do<br />
discernimento, de mãos dadas com Aquele que é o Senhor e Dono desta história, que a habita e que pede de nós uma<br />
resposta.<br />
PROMOVER O PRÓXIMO SEM FINS LUCRATIVOS….<br />
Sendo Homens e Mulheres de Deus <strong>para</strong> o Mundo, pedindo a graça e o dom do discernimento, vamos sendo capazes<br />
de decidir aquilo que mais conduz ao Bem e à Promoção da Justiça do Reino já iniciado.<br />
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