abrir investigações sobre o assunto”, afirmao procurador Capaldo.A iniciativa italiana deu alento às entidadesbrasileiras que lutam pela abertura<strong>dos</strong> arquivos do regime militar e pela puniçãoaos responsáveis por torturas, prisõesilegais e assassinatos políticos. O governofederal reluta em permitir que as informaçõessobre aquele período venham a público.Não quer atritos com as Forças Armadas.Muitos discordam. “A abertura <strong>dos</strong>arquivos é fundamental para recuperar anossa memória histórica e indispensávelpara a investigação <strong>dos</strong> crimes cometi<strong>dos</strong>”,enfatiza a historiadora Janaína Teles, da Comissãode Familiares de Mortos e Desapareci<strong>dos</strong>Políticos.DesfaçatezO Ministério da Justiça deu sinais de quepoderá investigar a Operação Condor assimque receber pedido oficial da Justiçaitaliana. Ao contrário do que tem ocorridoaté agora com as tentativas de processocontra agentes da repressão, ninguém poderáinvocar a Lei de Anistia para escaparda Justiça. A Justiça italiana investiga crimescometi<strong>dos</strong> depois dela.Sabe-se que o Brasil participou da criaçãoda Operação Condor, n<strong>um</strong> encontro emSantiago do Chile, sob os auspícios do ditadorAugusto Pinochet, em novembro de1975. A identidade do brasileiro presente aessa reunião é <strong>um</strong> mistério cuja chave talvezesteja nos famosos arquivos. “Os militaresbrasileiros demonstraram habilidade emnão deixar impressões digitais, mas não hádúvida de que foram decisivos na OperaçãoCondor”, afirma o advogado Jair Krischke,presidente do Movimento de Justiça e DireitosH<strong>um</strong>anos do Rio Grande do Sul. Krischkeinvestiga a Condor há 20 anos.Entidades de direitos h<strong>um</strong>anos apontamo Brasil como o pioneiro da operação, lembrandoque o longo braço da repressão brasileirajá atingia brasileiros no exterior anosantes desse acordo. Um exemplo clássico decolaboração entre as ditaduras do Brasil eda Argentina foi o seqüestro <strong>dos</strong> exila<strong>dos</strong>Joaquim Pires Cerveira e João Batista RitaPereda em Buenos Aires, em dezembro de1973, por homens que falavam espanhol eportuguês. Ambos foram vistos pela últimavez no DOI-Codi do Rio de Janeiro. Entre1975 e 1980, outros seis brasileiros desapareceramna Argentina. A Comissão deFamiliares de Mortos e Desapareci<strong>dos</strong> Políticosmenciona também o s<strong>um</strong>iço de seteargentinos no Brasil no mesmo período.O caso <strong>mais</strong> famoso foi o seqüestro de <strong>um</strong>casal de uruguaios exila<strong>dos</strong> em Porto Alegre,Lilian Celiberti e Universindo Díaz, em1978. Leva<strong>dos</strong> para seu país, junto com osfilhos, só não foram mortos porque a imprensadenunciou o crime, cometido coma c<strong>um</strong>plicidade das autoridades daqui. Universindo,anos depois, relatou que os espancamentoscomeçaram já no apartamento emque foi capturado e prosseguiram na sede doDepartamento de Ordem Política e Social(Dops), na capital gaúcha. “Eles nos baterambrutalmente e colocaram no pau-de-arara.Durante horas e horas, os brasileiros golpearame os uruguaios nos interrogaram.”Confronta<strong>dos</strong> com atrocidades comoessa, os militares cost<strong>um</strong>am reagir como ogeneral-de-divisão Agnaldo Del Nero Augusto,atualmente na reserva: “A gente nãomatava. Prendia e entregava. Não há crimenisso”, declarou em entrevista ao jornal OEstado de S. Paulo. O ex-senador e coronelda reserva Jarbas Passarinho disse à Folha deS.Paulo: “Se soubesse que, mandando paraa Argentina, a pessoa ia ser morta, tenho aconvicção que o governo não mandaria.” Édifícil crer que alguém como Passarinho,ministro em três <strong>dos</strong> cinco governos militares,ignorava o que ocorria no país vizinho.“A ditadura brasileira estava tão empenhadaquanto os militares <strong>dos</strong> países vizinhosem impedir o avanço das forças deesquerda”, aponta Krischke. É conhecidoo envolvimento da embaixada brasileirana conspiração que derrubou o presidentechileno Salvador Allende, em 1973. Doisanos <strong>mais</strong> tarde, em 1975, as Forças Armadasdo Brasil estavam preparadas para invadiro Uruguai caso o candidato da esquerda,Líber Seregni, ganhasse as eleições. O plano,chamado de Operação 30 Horas (tempoconsiderado necessário para a ocupação),foi arquivado devido à derrota de Seregni,que disputou as eleições pela Frente Ampla,atualmente no governo.Isso é apenas <strong>um</strong>a parte do pouco quejá se sabe. Imagine-se o que virá a públicose, finalmente, toda a verdade for revelada.A democracia brasileira, restaurada há 22anos, parece forte o suficiente para sobrevivera <strong>mais</strong> essa prova.memória histórica Janaina Teles: esperando a abertura total <strong>dos</strong> arquivos da ditaduramauricio moraisPassarinho: oministro que nãosabia de nadaFolha Imagem
perfilAmor ancestralClaudia e Jecinaldo: história de amorentre dois povos Por Alceu Luís CastilhoClaudia, índia ticuna, virou mulher aos 12 anos. Emsua cultura, não há meio-termo: ou é menina, ou émulher. Encabulada, olha para o lado, busca ajuda emenciona a “primeira menstruação”. Fala em portuguêscom alg<strong>um</strong>a dificuldade. Com pausas. Mas comritmo. Claudia passou pelo ritual da Menina-Moça com orgulho. Edor. Foi obrigada a ficar de pé n<strong>um</strong>a rede durante quatro dias. Durantea festa devia apenas ouvir as conselheiras, as anciãs da aldeia– no oeste do Amazonas. Até hoje se lembra das palavras de sabedoria.A partir daquele momento, deixaria de ser a menina que sebanhava com inocência nos igarapés. Teria de agüentar privaçõese passar a resolver os próprios problemas, e assim seria durantea vida. Aos 28 anos, casada e com dois filhos, ela conta que nãocabe à mulher escolher o marido. Claudia tem <strong>um</strong> item essencialna composição da beleza de <strong>um</strong>a ticuna: pernas grossas. “Homemticuna gosta de mulher de pernas grossas. Se não tem, não serve. Ehomem que não sabe fazer canoa também não serve.” Mais: tem desaber fazer casa e ter roça, para ousar pedir a mão de <strong>um</strong>a ticunaconcorrida, como Claudia. Não que ela tenha algo contra o casamentoentre dois jovens desconheci<strong>dos</strong>, de aldeias distantes.Lembra-se da história de <strong>um</strong>a amiga que se casou dessa forma.Inicialmente não gostou: prometeu a si mesma que não ia dormircom ele. “Foi assim durante seis meses”, relata a ticuna. E pergunta:“Vocês, homens, agüentariam dormir seis meses ao lado de <strong>um</strong>amulher, sem fazer nada?” Ela mesma responde: “Não agüentariam.32 REVISTA DO BRASIL março 2008