DOENÇA DE CHAGASSAÚDEEdécio Cunha NetoPesquisador do Instituto do Coração (InCor)Faculdade de Medicina da USPGanhador do Prêmio Roche (1994) e Prêmio Santista Juventude(1998) por seu trabalho na Imunologia da Doença de Chagasedecunha@usp.brNovos conhecimentos na patogênese da Doença de Chagasdoença de Chagas, causadapelo protozoário Trypanosomacruzi, afeta de 16a 18 milhões de pessoas nocontinente americano. Dadosda Organização Mundial de Saúderevelam que cerca de 90 milhões depessoas estão expostas ao risco de infecção.Em decorrência de migraçõespopulacionais, a doença de Chagas,classicamente considerada uma enfermidaderural, passou a atingir centrosurbanos, estimando-se que, aproximadamente,300.000 indivíduos infectadosresidam hoje em São Paulo e mais de200.000, no Rio de Janeiro.A despeito de a doença de Chagaster sido descoberta e seu ciclo elucidadohá mais de oito décadas, váriosaspectos relacionados com o seu controleainda se apresentam desafiadores.Os quimioterápicos anti-T. cruzi atualmentedisponíveis apresentam baixaeficácia e alta toxicidade, especialmentena fase crônica da doença de Chagas. Oconhecimento dos aspectos imunológicose inflamatórios que levam ao desenvolvimentodas diferentes formas clínicase dos mecanismos responsáveispelas formas graves, como a cardiopatiachagásica crônica, poderia permitir umtratamento eficaz por meio da modulaçãodesses mecanismos.A via mais importante de transmissãode T. cruzi para humanos é avetorial, pelas fezes de insetos triatomíneos(barbeiros) infectados. Graças aprogramas de Saúde Pública, a transmissãovetorial está sendo controladaem diversos países da América Latina,como é o caso do Brasil. Em função dasgrandes correntes migratórias citadasacima, a transfusão sangüínea passou arepresentar, especialmente nas grandescidades, a via mais importante no surgimentode novos casos da doença deChagas.Acometimento cardíaco naDoença de ChagasA causa principal de morbidade emortalidade na doença de Chagas é oacometimento cardíaco, que ocorre de5 a 30 anos após a infecção primária emcerca de 30% dos indivíduos infectadospelo T. cruzi. Na cardiopatia chagásicacrônica (CCC), ocorre uma inflamação edestruição progressiva do tecido cardíaco,levando a alterações da conduçãodos impulsos elétricos no coração earritmias. Paralelamente, ocorre um progressivoafinamento do músculo cardíaco,levando à dilatação das cavidadesdo coração, tendo como conseqüênciaa incapacidade de bombear adequadamenteo sangue para o organismo, umquadro chamado de insuficiência cardíacacongestiva. Dessa forma, a CCCfreqüentemente tem um curso fatal,uma vez que o tratamento é apenassintomático e a possibilidade de realizaçãode transplantes cardíacos é bemmenor que a demanda. Existem cercade 2 milhões de pacientes acometidosde CCC em nosso país. A CCC é responsávelpor, aproximadamente, 15% doscasos de pacientes atendidos por insuficiênciacardíaca congestiva, em hospitaisdo Estado de São Paulo. Um grupomenor dos pacientes infectados por T.cruzi (cerca de 5% a 8%) desenvolvealterações no tubo digestivo (os chamadosmegaesôfago e megacólon), aparentementepor destruição dos neurôniosque controlam sua motilidade; esses
problemas digestivos dificilmente levamao óbito. Já no acometimento cardíaco,que é tratado apenas sintomaticamentecom sucesso variável, o pacienteem geral vem a falecer em decorrênciade complicações irreversíveis dadoença. A CCC é a indicação maiscomum para o implante de marca-passoscardíacos artificiais em nosso país.Nos pacientes com insuficiência cardíacarefratária, o único caminho é o transplantecardíaco, um procedimento dispendiosoe inaccessível para a grandemaioria dos pacientes. Estudos comanimais experimentalmente infectadosindicaram que o tratamento com drogasanti-T. cruzi não parece evitar a progressãoda cardiopatia 1 .Mecanismos dedestruição do coraçãoOs mecanismos que levamao desenvolvimento daCCC ainda são assunto deintenso debate. São aindadesconhecidos os fatores desuscetibilidade que levamapenas 30% dos indivíduos adesenvolverem a CCC apósa infecção por T. cruzi, enquantoque os restantes 70%não apresentam problemascardíacos. A principal característicado tecido cardíacona CCC é uma miocarditedifusa, incluindo a destruiçãodas fibras cardíacas esubstituição por fibrose cicatricial,associada a um considerável infiltradoinflamatório difuso, compostopor linfócitos T e macrófagos. Essascélulas inflamatórias têm sido consideradascomo as efetivas destruidoras dotecido cardíaco, na aparente ausênciado T. cruzi. Já no coração de pacientesda forma indeterminada (IND), semsintomas cardíacos, identifica-se umainflamação bem menos intensa, chamadamiocardite focal 2 , que pode estarassociada com restos parcialmente destruídosdo parasita 3 (Higuchi et al. Am.J. Trop. Med. Hyg. 1997; 56: 485). Utilizando-setécnicas ultra-sensíveis, comoo PCR 4 e a imuno-histoquímica 5 , encontram-seindícios da presença do T.cruzi no coração de pacientes comCCC; entretanto, tais indícios tambémsão encontrados no coração de chagásicosda forma indeterminada, sem alteraçõescardíacas 6 . Além disso, outrosórgãos, como os rins, são parasitadospelo T. cruzi de forma análoga aocoração 7 , sem apresentarem sinaisde destruição ou dano funcional.Em conjunto, esses dados sugeremque a simples presença do T. cruzinão é suficiente para a indução damiocardite difusa e da destruiçãodo tecido cardíaco.Há algumas décadas, foi postuladaa hipótese auto-imune da patogêneseda CCC, que procurava explicara agressão ao tecido cardíacona CCC na ausência do T. cruzi insitu como um fenômeno secundárioa uma resposta imunológicacontra algum antígeno do T. cruzi,que apresentasse semelhanças antigênicas,ou mimetismo molecular,com um componente cardíaco. Aesse mecanismo - reagir com umantígeno semelhante, porém distintodaquele que gerou a respostaimune - chama-se reação cruzadaimunológica. Tanto as respostas imunesao T. cruzi quanto a auto-imunidadea componentes cardíacos jáforam responsabilizadas como desencadeadoresdo infiltrado inflamatórioe da destruição tecidual naCCC 8 .Informações obtidas com modelosanimais freqüentemente apontampara uma direção que pode serconfirmada por estudos com doentes.Linfócitos T CD4+, ou auxiliadores,de camundongos cronicamenteinfectados com T. cruzi podemtransferir a inflamação cardíacapara camundongos não-infectados.Também foi observado quetanto anticorpos do soro quantolinfócitos T CD4+ de camundongosinfectados reconhecem a miosina cardíaca,a proteína mais abundante do coração(Resultados revisados na ref. 8).Para verificar a validade dos resultadosna doença humana, nosso grupo estudouanticorpos anti-miosina cardíacano soro de pacientes CCC e IND. Anticorposanti-miosina cardíaca purificadospor afinidade a partir de soros depacientes CCC reconheceram especificamenteum antígeno de T. cruzi emum “imunoblot” com proteínas dos parasitas,apresentando-se como duasbandas de 140 e 116 kDa 9 . Identificouseesse antígeno como a proteína recombinanteB13 de T. cruzi 10 . Anticorposde reação cruzada estavam presentesem 100% dos soros de CCC, massomente 14% dos soros IND os apresentavam9 . Uma vez que são oslinfócitos T e não os anticorposos principais envolvidosna destruição ao coração, testamosclones de linfócitos Tobtidos por clonagem in vitroe expandidos a partir de umfragmento de biópsia do coraçãode um paciente portadorde CCC. Foram identificadosclones de linfócitos TCD4+ obtidos de biópsia endomiocárdicade portador deCCC que reconheciam de formacruzada a miosina cardíaca(a principal proteína docoração) e a proteína B13 deT. cruzi 11 . Curiosamente, nenhumclone de célula T reagiua qualquer outro antígenode T. cruzi, o que poderia indicarque, pelo menos nas áreas estudadas, odesencadeador do infiltrado inflamatórioera o reconhecimento cruzado damiosina cardíaca e não a presença do T.cruzi 11 . Estudamos também a produçãode citocinas (mediadores solúveis secretadospor linfócitos modular à inflamação)por linfócitos T presentes nocoração de pacientes CCC. Quando submetidosa estímulo com a fitohemaglutinina,potente ativador de linfócitos,essas células produzem quantidades significativasde IFN-γ e TNF-α, (citocinasinflamatórias, do tipo T1) mas não IL-4(citocina anti-inflamatória, do tipo T2)12. Em conjunto, esses dados indicam apresença, no infiltrado inflamátorio docoração de cardiopatas chagásicos, delinfócitos T reagindo cruzadamente comcomponentes do coração e capazes deproduzir citocinas inflamatórias, capazesde estabelecer uma inflamação do<strong>Biotecnologia</strong> Ciência & Desenvolvimento 21