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Michel Foucault, choses dites, choses vues - Culturgest

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Textos de <strong>Foucault</strong>A escrita[…] Para chegar a descobrir o prazer possível daescrita, foi preciso estar no estrangeiro. Estava naaltura na Suécia e na obrigação de falar ou suecoque sabia muito mal, ou o inglês que pratico combastante dificuldade. O meu mau conhecimentodestas línguas impediu-me durante semanas, mesese mesmo anos de dizer o que realmente queria.Via as palavras que queria dizer a travestirem-se,a simplificarem-se, a tornarem-se como que pequenasmarionetas derisórias à minha frente nomomento em que as pronunciava.Dando por mim nesta impossibilidade de utilizara minha própria linguagem, apercebi-meprimeiro de que esta tinha uma espessura, umaconsistência, que não era simplesmente como oar que respiramos, uma transparência absolutamenteimperceptível, e depois que tinha as suasleis próprias, que tinha os seus corredores, osseus caminhos de facilidade, as suas linhas, assuas inclinações, as suas costas, as suas asperezas,em suma, que tinha uma fisionomia e queformava uma paisagem onde era possível passeare descobrir nas esquinas das palavras, em voltadas frases, bruscamente, pontos de vista que nãoapareciam antes. Nesta Suécia onde tinha de falaruma língua que me era estrangeira, compreendique podia habitar a minha linguagem, com a suafisionomia subitamente particular, como sendo olugar mais secreto mas também mais seguro daminha residência neste lugar sem lugar que constituio país estrangeiro onde nos encontramos.Finalmente, a única pátria real, o único chão ondese pode andar, a única casa onde se pode parare ficar abrigado, é mesmo a linguagem, a que seaprendeu desde a infância. Tratou-se para mim,então, de reanimar esta linguagem, de construirpara mim uma espécie de casinha de linguagemde que fosse senhor e de que conhecesse os recantos.Julgo que foi isto que me deu vontade deescrever. Estando-me recusada a possibilidade defalar, descobri o prazer de escrever. Entre o prazerde escrever e a possibilidade de falar existe umacerta relação de incompatibilidade. Ali onde já nãoé possível falar, descobre-se o encanto secreto,difícil, um pouco perigoso, de escrever.[...] Até esta experiência, a escrita não era paramim algo de verdadeiramente sério. Era mesmoalgo perfeitamente ligeiro. Escrever era fazer vento.Aqui, pergunto-me se não era o sistema de valoresda minha infância que se exprimia nesta depreciaçãoda escrita. Pertenço a um meio médico, um dessesmeios médicos de província que, relativamenteà vida um pouco adormecida de uma cidade pequena,é sem dúvida um meio de certa forma adaptável,ou, como se costuma dizer, progressista. Não deixano entanto de ser verdade que o meio médico emgeral, especialmente na província, permanece profundamenteconservador. [...]Com efeito, o médico – particularmente o cirurgião,e eu sou filho de cirurgião – não é aquele quefala, é aquele que ouve. Ouve a palavra dos outros,não para a levar a sério, não para compreendero que ela quer dizer, mas para perseguir atravésdela os sinais de uma doença séria, quer dizer, umadoença do corpo, uma doença orgânica. O médicoouve, mas é para atravessar a palavra do outro eir ter com a verdade muda do seu corpo. O médiconão fala, age, quer dizer, palpa, intervém. O cirurgiãodescobre a lesão no corpo adormecido, abreo corpo e volta a cosê-lo, opera, tudo isto em silêncio,na redução absoluta das palavras. As únicaspalavras que pronuncia são as palavras breves dodiagnóstico e da terapêutica. O médico só fala paradizer numa palavra a verdade e prescrever a receita.Nomeia e ordena, é tudo. Neste sentido, a palavrado médico é extraordinariamente rara. Foi semdúvida esta desvalorização profunda, funcional dapalavra na velha prática da medicina clínica quepesou sobre mim durante muito tempo e que fezcom que, até há uma dezena, uma dúzia de anos, apalavra, para mim, fosse ainda e sempre vento. [...]Apesar de tudo, qualquer que tenha sido a minhaconversão, devo ter retido da minha infância,e mesmo na minha escrita, um certo número defiliações que deve ser possível encontrar. Porexemplo, o que me impressiona muito é que osmeus leitores imaginam sem grande dificuldade

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