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Michel Foucault, choses dites, choses vues - Culturgest

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que há na minha escrita uma certa agressividade.Pessoalmente, não a sinto de todo desta forma.Julgo nunca ter atacado realmente, nomeadamentealguém. Para mim, escrever é uma actividadeextraordinariamente doce, almofadada. Tenhocomo que uma impressão de veludo quando escrevo.Para mim, a ideia de uma escrita aveludadaé como um tema familiar, no limite do afectivo edo perceptivo, que não pára de assombrar o meuprojecto de escrita, de guiar a minha escrita assimque estou a escrever, que me permite a cadainstante escolher as expressões que quero utilizar.O aveludado, para a minha escrita, é uma espéciede impressão normativa. Fico portanto muito espantadoquando vejo que as pessoas reconhecemprimeiro em mim alguém que tem uma escrita secae mordaz. Após reflexão, penso que são eles quemtem razão. Imagino que haja na minha caneta umavelha hereditariedade do bisturi. Talvez, no fim decontas, eu trace na brancura do papel os mesmossinais agressivos que o meu pai traçava antes noscorpos dos outros quando operava. Transformeio bisturi em caneta. Passei da eficácia da cura àineficácia do livre propósito; substituí a cicatriz nocorpo pelo graffiti no papel; substituí o inapagávelda cicatriz pelo sinal perfeitamente apagável e rasurávelda escrita. Talvez fosse mesmo necessárioir mais longe. A folha de papel, para mim, é talvezcomo o corpo dos outros...O que é certo, o que senti desde logo quando,por volta dos trinta anos, comecei a experimentaro prazer da escrita, é que este prazer de escreversempre comunicou um pouco com a morte dos outros,com a morte em geral. Desta relação entre aescrita e a morte mal ouso falar, porque sei quantoalguém como Blanchot disse sobre este assuntocoisas muito mais essenciais, gerais, profundas,decisivas do que posso dizer agora. Falo aqui ao níveldestas impressões que são como que o avessoda minha escrita. É o outro lado da tapeçaria queprocuro seguir actualmente e parece-me que o outrolado da tapeçaria é tão lógico e no fim de contastão bem desenhado, em todo o caso não mais maldesenhado, que o direito que mostro aos outros.Gostaria de, consigo, me deter um pouco nesteavesso da tapeçaria. E direi que a escrita, paramim, está ligada à morte, talvez essencialmenteà morte dos outros, mas isto não significa que escreverfosse como assassinar os outros e executarcontra eles, contra a sua existência, um gestodefinitivamente homicida que os expulsaria dapresença, que abrisse diante de mim um espaçosoberano e livre. Nada disso. Para mim, escreveré certamente relacionar-me com a morte dos outros,mas é essencialmente relacionar-me com osoutros na medida em que já estão mortos. Falode certa forma sobre o cadáver dos outros. Devoconfessá-lo, postulo um pouco a sua morte. Falandodeles, estou na situação do anatomista que fazuma autópsia. Com a minha escrita, percorro ocorpo dos outros, inciso-o, levanto os tegumentose as peles, procuro descobrir os órgãos e, desvelandoos órgãos, fazer enfim aparecer esse focode lesão, esse foco maligno, essa coisa qualquerque lhes caracterizou a vida, o pensamento eque, na sua negatividade, organizou finalmentetudo aquilo que foram. Esse coração venenosodas coisas e dos homens, eis no fundo aquilo quesempre procurei desvelar. Também compreendoporque é que as pessoas sentem a minha escritacomo uma agressão. Sentem que há nela qualquercoisa que as condena à morte. Na verdade, soumuito mais ingénuo do que isso. Não as condenoà morte. Parto simplesmente do princípio de quejá estão mortas. É por isso que fico tão surpreendidoquando as ouço gritar. Fico tão espantadoquanto o anatomista que sentisse bruscamenteque acordava, sob o seu bisturi, o homem sobre oqual quis fazer uma demonstração. Bruscamenteos olhos abrem-se, a boca põe-se a berrar, o corpoa torcer-se e o anatomista espanta-se: “Olha, afinalnão estava morto.” É, julgo eu, o que me acontececom os que me criticam ou que se insurgemcontra mim depois de me terem lido. É-me sempremuito difícil responder-lhes, a não ser através deuma desculpa, desculpa que eles tomarão talvezpor um traço de ironia mas que é verdadeiramentea expressão do meu espanto: “Olha, afinal nãoestavam mortos.”[…][Extracto de entrevista inédita de 1966 ao crítico Claude Bonnefoy,por ocasião da publicação de Les Mots et les Choses.]

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