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Michel Foucault, choses dites, choses vues - Culturgest

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O espelho[...] As utopias são colocações sem lugar real. Sãocolocações que estabelecem com o espaço real dasociedade uma relação geral de analogia directaou invertida. É a própria sociedade aperfeiçoadaou é o avesso da sociedade mas, de qualquermodo, estas utopias são espaços que são fundamentalmenteirreais.Há igualmente, e isto provavelmente emtodas as culturas, em todas as civilizações, lugaresreais, lugares efectivos, lugares que sãodesenhados na própria instituição da sociedade,e que são espécies de contra-colocações, espéciesde utopias efectivamente realizadas nasquais as colocações reais, todas as outras colocaçõesreais que se podem encontrar no interiorda cultura, são simultaneamente representadas,contestadas e invertidas, espécies de lugaresque estão fora de todos os lugares, ainda que noentanto sejam efectivamente localizáveis. A esteslugares, porque são absolutamente outros relativamentea todas as colocações que reflectem ede que falam, chamarei, por oposição às utopias,as heterotopias; e julgo que entre as utopias eestas colocações absolutamente outras, estasheterotopias, haveria sem dúvida uma espécie deexperiência mista, mediana, que seria o espelho.O espelho, no fim de contas, é uma utopia, já que éum lugar sem lugar. No espelho, vejo-me ali ondenão estou, num espaço irreal que se abre virtualmentepor trás da superfície, estou lá, ali ondenão estou, uma espécie de sombra que me dá amim mesmo a minha própria visibilidade, que mepermite olhar-me ali onde estou ausente: utopiado espelho. Mas é igualmente uma heterotopia,na medida em que o espelho existe realmente, eem que tem, no lugar que ocupo, uma espécie deefeito de retorno; é a partir do espelho que medescubro ausente no lugar onde estou já que mevejo ali. A partir deste olhar que de certa formase dirige para mim, do fundo deste espaço virtualque está do outro lado do vidro, regresso a mim erecomeço a dirigir os meus olhos para mim mesmoe a reconstituir-me ali onde estou; o espelhofunciona como uma heterotopia no sentido emque torna este lugar que ocupo no momento emque me olho ao espelho ao mesmo tempo absolutamentereal, em ligação com todo o espaço queo envolve, e absolutamente irreal, porque é obrigado,para ser percebido, a passar por esse pontovirtual que está ali. [...][“Des Espaces autres”, conferência no Cercle d’études architecturales,14 de Março de 1967, publicada em Architecture,Mouvement, Continuité, nº 5, Outubro de 1984 e recolhida emDits et Écrits II, 1976-1988, Paris, Gallimard, 2001.]O corpo utópicoO lugar que Proust, docemente, ansiosamente,vem ocupar de novo de cada vez que acorda, aesse lugar, a partir do momento em que tenho osolhos abertos, já não posso escapar. Não que euesteja, por ele, pregado ali, já que no fim de contasposso não só mover-me e mexer-me como possomovê-lo, mexê-lo, mudá-lo de lugar. Só que, pois é,já não me posso deslocar sem ele. Não o posso deixarali onde está para me ir embora, eu, para outrosítio. Posso perfeitamente ir ao fim do mundo, possoperfeitamente tapar-me de manhã debaixo doscobertores, fazer-me tão pequeno quanto possa,posso perfeitamente deixar-me derreter ao sol napraia, ele estará sempre no sítio onde eu estiver.Ele está aqui, irreparavalmente, nunca noutrosítio. O meu corpo é o contrário de uma utopia.Aquilo que nunca está sob um outro céu. É o lugarabsoluto, o pequeno fragmento de espaço com oqual, no sentido estrito, faço corpo. O meu corpo,topia impiedosa.E se, por sorte, eu vivesse com ele, numa espéciede familiaridade usada, como com umasombra, como com as coisas de todos os dias quefinalmente já não vejo e que a vida tornou baçascomo as chaminés, os telhados que se encavalitamtodas as tardes à frente da minha janela. Mastodas as manhãs, a mesma presença, a mesma ferida.Diante dos meus olhos desenha-se a inevitávelimagem que o espelho impõe: cara magra, ombrosencurvados, olhar míope, cabelos nenhuns,realmente nada bonito. E é nesta feia concha da

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