minha cabeça, nesta gaiola de que não gosto, quevou ter de me mostrar e passear-me. Através destagrade que terei de falar, olhar, ser olhado. Sobesta pele estagnada. O meu corpo é o lugar semrecurso a que estou condenado.Penso no fim de contas que é contra ele, ecomo que para o apagar, que se fizeram nascertodas estas utopias. [...] Pode bem ser que a utopiaprimeira, a que é mais inextirpável no corpo doshomens, seja precisamente a utopia de um corpoincorpóreo. [...]Fui tonto há bocado ao julgar que o corpo nuncaestava noutro sítio, que era um aqui irremediávele que se opunha a qualquer utopia. O meu corpo,com efeito, está sempre noutro sítio. Está ligadoa todos os outros sítios do mundo. E, para dizera verdade, só no mundo é que está noutro sítio.Porque é à volta dele que as coisas se dispõem,é relativamente a ele, e relativamente a ele comorelativamente a um soberano, que há um cima, umbaixo, uma direita, uma esquerda, uma frente e umatrás, um próximo e um distante. O corpo é o pontozero do mundo, ali onde os caminhos e os espaçosse vêm cruzar. O corpo não está em parte alguma,está no coração do mundo, este pequeno núcleoutópico a partir do qual sonho, falo, avanço, imagino,percebo as coisas no seu lugar, e as ligo assimpelo poder infinito das utopias que imagino. O meucorpo é como a cidade do sol, não tem lugar, masé dele que saem, que irradiam todos os lugarespossíveis, reais ou utópicos. No fim de contas, ascrianças demoram muito tempo até saberem quetêm um corpo. Durante meses, durante anos, têmapenas um corpo disperso, e tudo isto se organiza,tudo isto só toma literalmente corpo na imagemdo espelho. De uma forma ainda mais estranha, osgregos de Homero não tinham palavras para designara unidade do corpo. Por mais paradoxal queseja, diante de Tróia, sob os muros defendidos porHeitor e os seus companheiros, não havia corpos,havia braços levantados, havia peitos corajosos,havia pernas ágeis, havia elmos faiscantes sobreas cabeças, não havia corpos. A palavra grega quequer dizer corpo só aparece, em Homero, para designaro cadáver. São o cadáver e o espelho quenos ensinam, enfim, que ensinaram aos gregos eque ensinam agora às crianças, que temos um corpo,e que este corpo tem uma forma, que esta formatem um contorno, que neste contorno há umaespessura, um peso, em suma, que o corpo ocupaum lugar. É o espelho e é o cadáver que atribuemum espaço à experiência própria, profundamentee originariamente utópica do corpo. É o espelho eo cadáver que calam e apaziguam, e fecham numaclausura que está agora para nós selada essagrande raiva utópica que arruina e volatiliza acada instante o nosso corpo. É graças ao espelho eao cadáver que o nosso corpo não é puro espírito,nem simples utopia.Ora, se pensarmos que a imagem do espelhose aloja para nós num espaço inacessível, e quenão poderemos nunca estar no sítio onde estaráo nosso cadáver, se pensarmos que o espelhoe o cadáver estão eles próprios num invencíveloutro sítio, descobrimos então que só as utopiaspodem encerrar em si e esconder um instante autopia profunda e soberana do nosso corpo. Talvezseja também preciso dizer que fazer amor ésentir o próprio corpo fechar-se sobre si, é existirfinalmente fora de qualquer utopia, com toda a suadensidade, entre as mãos do outro. Sob os dedosdo outro que vos percorrem, todas as partes invisíveisdo vosso corpo começam a existir. Contraos lábios do outro, os vossos tornam-se sensíveis.Diante dos seus olhos semicerrados, a vossa caraadquire uma certeza, há finalmente um olhar paraver as vossas pálpebras fechadas. O amor, tambémele, como o espelho e como a morte, apazigua autopia do vosso corpo, fá-la calar-se, acalma-a,fecha-a como que numa caixa, encerra-a e sela-a.É por isso que é um parente tão próximo da ilusãodo espelho e da ameaça da morte. E se, apesardestas duas figuras perigosas que o rodeiam, segosta tanto de fazer amor, é porque, no amor, ocorpo está aqui.[Conferência radiofónica de 1966 editada em CD pelo INA]
Moi, Pierre Rivière...<strong>Michel</strong> <strong>Foucault</strong>, tendo participado no dossier,que pensa do filme de René Allio? Como é querecebeu a transposição para imagens destas personagensque viu aparecer progressivamente apartir dos textos?— Não participei minimamente na elaboração dofilme. Não estou a dessolidarizar-me, pelo contrário,mas a minha jogada, ao publicar este texto,era dizer a quem quisesse, médicos, psiquiatras,psicanalistas, comentadores, cineastas, homensde teatro... : “Façam com isto o que quiserem.”René Allio fez uma coisa boa, grande. O facto deter feito representar aquilo nos próprios lugares,por actores amadores que eram camponeses absolutamenteparecidos com os que eram contemporâneosda história, diria quase pelas mesmaspersonagens, tudo isto é importante. O filme nãoafastou a história do que ela foi. Permitiu, pelocontrário, que a história voltasse ao seu ponto departida. Conhecemos esta história porque Rivière,supostamente analfabeto, a escreveu. A maneiracomo Allio usou a voz off, querendo que tudo o queé dito no filme tivesse sido dito no relato (não hánenhum discurso original do filme) é, parece-me,muito novo.[...] Saber tantas coisas sobre pessoasque no fim de contas não foram nada, que nãodeixaram nenhum rasto na história, saber tantascoisas sobre a sua vida, os seus problemas, os seussofrimentos, a sua sexualidade também, é muitoimpressionante. Quanto mais sabemos, menos nofim de contas compreendemos. Acabam por serpequenos fragmentos de vida que se confrontamintensamente. Quanto mais vemos estas personagens,menos as compreendemos. Quanto mais sãoiluminadas, mais obscuras ficam.[...] O que me marcou foi uma coisa que aliásexistia no dossier, mas que o filme de Allio merevelou muito mais; é que este pobre Rivière, emsuma, para se tornar um intelectual, porque pertencea esta classe agrícola, de gente pequena,tem de degolar a mãe, o irmão e a irmã. A nós, eaos nossos equivalentes da época, para nos tornarmosintelectuais, bastava-nos, digamos, umapequena decisão, pegar em papel e numa caneta.Já ele, precisa de pegar num podão para se tornarintelectual, com este gesto que realiza, estegesto ritual, este assassínio real que realiza, enquantoque nós ficamos muitas vezes ao nível doassassínio simbólico, e melhor para nós num certosentido. Ele precisa de pegar num podão parater o direito de escrever, para ter uma históriapara contar, para sair do vulgar.- Sim, mas podemos dizer o contrário. Para chegara este assassínio, era preciso que tivesse tomadoa decisão de escrever, já que, no seu projecto, tratava-seprimeiro de escrever o assassínio futuro,e depois, uma vez feita a narrativa, ir matar. Há aliuma espécie de nó entre a escrita e o assassínioque é formidável.[...][“Pourquoi le crime de Pierre Rivière?” (entrevista com F.Châtelet), Parispoche, 10-16 de Novembro de 1976, pp. 5-7 (textoreproduzido em <strong>Michel</strong> <strong>Foucault</strong>, Dits et Écrits II, 1976-1988,Paris, Gallimard, 2001, pp. 106-108).]