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Planejamento familiar: novos tempos. In - Centro Ruth Cardoso

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<strong>Ruth</strong> <strong>Cardoso</strong>"Falar sobre violência assume, quase sempre,foros de denúncia num discurso ondenada é poupado. Se não fosse exagero,dir-se-ia que o discurso erudito dos brasileirossobre a violência é um falar que,sobre ser escandaloso, é também violento..."(Roberto da Matta — As raízesda violência no Brasil).Não é só o discurso sobre a violênciaque é escandaloso. Falar da diminuiçãoda fecundidade no Brasil é também entrarem assunto controverso em que osdiversos contendores desqualificam, desaída, os argumentos que contrariam suasposições. São visões radicais e incompatíveis.Esta polarização, visível quandose trata de violência urbana ou de planejamento<strong>familiar</strong> ocorre também emoutros campos, quando os problemas docotidiano são explicados a partir de visõespolíticas globalizantes nas quais servemmais como apoio para denúnciasinflamadas do que como questões queexigiriam uma reflexão analítica.No debate sobre planejamento <strong>familiar</strong>é preciso medir as palavras. Cada expressãousada será o signo de um complexoideológico que tem suas raízes na maneirade ver a conservação ou a mudançada estrutura econômica. Estas posiçõestotalizantes, quando cristalizadas, servemde freio à análise e dificultam a leiturados fatos. Devo dizer que não acreditona neutralidade do pensamento científicoe não pretendo defender uma posiçãode desvinculação política. Entretanto,acho necessário tomar distância para ampliara compreensão sobre a realidade eestar sempre disponível para a revisãodo que já foi dito. No que diz respeitoao planejamento <strong>familiar</strong>, é tempo de setentar uma releitura destes discursos comolhos abertos para as novidades que talvezlevem a reinterpretações.Ao ser retomada agora a discussão,depois de um longo esquecimento, pareceque surgiram as condições para aelaboração de uma posição não diretamentecomprometida com as já históricascontendas entre natalistas e antinatalistas.Não foi só o tempo que desgastouo debate, foram também as mudançasocorridas na sociedade e a presença de<strong>novos</strong> atores em nossa arena política.2 NOVOS ESTUDOS N.º 3


Seria no mínimo ingênuo retomar osmesmos discursos utilizados nos anos 50e vitalizados nos anos 60, sem contextualizá-lospara o Brasil-80.A primeira presença nova a ser constatadaé a do movimento de mulheresque, agora, tem sua voz relativamentereconhecida. Sem superestimar a forçadeste movimento, podemos reconhecerque sua simples existência abre campopara uma reavaliação das posições ditasnacionalistas de esquerda por oposiçãoàs identificadas com a direita internacionalista.Os grupos feministas, em seu trajetopolítico, estiveram sempre oscilando entreorientações partidárias e autonomiapara suas reivindicações. Nestecontexto, o planejamento <strong>familiar</strong> semprefoi área conflitiva. Era difícil paraas mulheres aceitar sem discussão o laissez-faireem matéria de controle da reprodução,como pregava a esquerda. Poroutro lado, não podiam se confundir como antinatalismo proposto pela direita.Como o debate estava altamente radicacriamcondições para a igualdade entrehomens e mulheres. As donas-de-casada periferia, ao saírem do gueto domésticopodem demonstrar seu interesse porassuntos sobre os quais não tinham voz.Mas um rápido inventário das mudançassociais ocorridas nestes últimos dezanos não pode deixar de anotar a presençaforte da Igreja. Para o nosso tema,as transformações e a força do catolicismosão extremamente significativas, especialmenteporque esteve ligada à formaçãode grupos populares.Se antes a Igreja era opositora intransigentede qualquer tipo de interferênciano processo reprodutivo, hoje se mostraaberta para a discussão. As linhas de açãodecorrentes da Teologia da Libertaçãoprovocaram um redirecionamento do pensamentocatólico, que voltou-se para avida cotidiana procurando enfrentar problemasconcretos. Neste movimento, areflexão ganhou conteúdo político e teveque ser inovadora, procurando uma perspectivadiferente para enfrentar velhosproblemas. E, com relação ao planejalizadoquando as feministas começarama se manifestar (meados dos anos 70),este assunto sempre foi incômodo.Mas não pode haver prática feministasem tocar nos temas da sexualidade, controledo corpo, respeito pelos desejosdas mulheres, direito ao aborto etc. Ecomo sufocar a discussão, uma vez queela aponta para a necessidade de garantiràs mulheres das classes populares o acessoaos instrumentos da contracepção?A verdade é que os grupos feministas,independentemente de sua vontade expressa,começaram a desmentir na práticaa premissa básica dos adeptos donatalismo. Estes viam na pobreza a únicarazão para o desejo das mulheres controlaremsua fecundidade. O feminismo legitimaoutras razões para esta condutae faz surgir uma nova noção de autonomiaindividual que cria para as mulheresuma identidade política. A presençamaciça de lideranças femininas nos movimentosreivindicativos atesta uma crescenteconsciência de direitos e um aumentode participação. Denunciando asinjustiças sociais, elas ao mesmo tempomento <strong>familiar</strong>, a mudança foi enorme,tanto na teoria 1 quanto na prática.Tanto a Igreja quanto as mulheresfeministas foram mudando suas posiçõesteóricas ao enfrentar o desafio da mobilizaçãopopular. É curioso que, até 1977,os argumentos da hierarquia católica pudessemser usados por um jornal feminis-ta como o Brasil-Mulher 2 que, comentandoo Programa de Prevenção à Gravidezde Alto Risco lançado nessa época,citava as opiniões do Cardeal AloísioLorscheider, Dom Eugênio Sales e deDom José Maria Pires, bispo da Paraíbaque afirmou: "A mulher brasileira nãoprecisa de pílulas de graça, mas sim decomida para ela e seus filhos." É aindamais curioso que neste artigo não apareçanenhuma mulher dando sua opinião.Podemos tomar este fato como sintomade um encoberto mal-estar gerado peladificuldade de compatibilizar o feminismocom a tradicional posição natalistada esquerda? Naquele momento isto eratarefa difícil, em função do clima repressivoem que vivíamos.Agora o momento é outro, e as dife-1 Basta lembrar, entre outros,os artigos recentes do P.Charbonneau, publicados naFolha de S. Paulo ou o livrode Hubert Lepargneur —Demografia ética e Igreja, pu-blicado em 1983.²Brasil-Mulher, n.° de agostode 1977-78.NOVEMBRO DE 1983 3


PLANEJAMENTO FAMILIAR: NOVOS TEMPOSrenças podem e devem aparecer à luz dodia para que a discussão seja mais objetivae menos polarizada. Nos anos 50,quando este debate nasceu, o enfrentamentoideológico entre "nacionalistas" e"entreguistas" era reflexo de um cortepolítico profundo que opunha visões diversasdos caminhos desejáveis para nossaindustrialização. O processo de substituiçãode importações então em cursoera lido de maneira diversa por cada umadestas tendências que, ao se defrontaremcom problemas concretos de política econômica,ofereciam soluções opostas.Nesse contexto, os nacionalistas percebiamuma grande população como umfator de riqueza para o país e a limitaçãoda natalidade, como um objetivo impatrióticodaqueles que abdicavam da soberanianacional.Hoje em dia, muita água já rolou sobesse moinho. O processo de internacionalizaçãoda economia caminhou a passoslargos e não estamos mais discutindoopções de política econômica; estamosenfrentando uma crise de difícil soluçãosob controle e evitar a alienação da economianacional. Entretanto, deixam a desejarquando insistem na conexão necessáriaentre grande população e grandepotência e bloqueiam em nome da naçãoo acesso a todos os recursos modernosda anticoncepção.Tudo isto, hoje, soa um pouco falso.A expansão dos meios de comunicaçãocriou novas redes de informação e atuasobre o comportamento, especialmenteno que diz respeito ao relacionamentoentre os sexos, os contatos entre pais efilhos, a tolerância com relação a <strong>novos</strong>estilos de vida. Os movimentos pelosdireitos das minorias e pela garantia dosdireitos individuais marcaram o panoramapolítico das últimas décadas e deixaramseu saldo positivo na defesa dos direitosindividuais. Atualmente, no Brasil,é difícil fazer passar um discurso queesteja estruturado somente a partir derazões de Estado. E é por isso que acontribuição das mulheres e da Igrejapara este debate provoca mudanças deenfoque, uma vez que traz o testemunho3No momento existe umaC.P.I. no Congresso Nacionalque examina a questão do<strong>Planejamento</strong> Familiar e sãofreqüentes as manifestaçõessobre o assunto, tanto no Senadoquanto na Câmara Federal,assim como na imprensa.O senador Roberto Campos,ao incluir o tema em seudiscurso de estréia devolveulhevisibilidade.que exige uma análise realista e corajosa.Por que, então, justamente agora que aeconomia está desaquecida, vamos requentarvelhos discursos sobre o planejamento<strong>familiar</strong>?Ninguém mais pode acreditar nas afirmaçõesdo senador Roberto Campos ouda senadora Eunice Michillis, para quemas benesses do crescimento econômico setornarão acessíveis à maioria no momentoem que os pobres deste país decidiremter menos filhos. Depois de tanta críticaao modelo econômico vigente, todo opovo sabe que não participou do "bolo"quando se supunha que ele existia, e queagora participa com altas quotas no combateà inflação e ao endividamento. Éóbvio que a diminuição da taxa de natalidadenão é uma panacéia econômica.Mas é verificável a conexão entre desenvolvimentosocial e econômico e fracanatalidade. Podemos lutar para que osdois objetivos se cumpram, e não mantê-losseparados como quer aquele antigodebate. Os argumentos nacionalistaseram e são válidos e devem ser reafirmadosna luta para manter a economiadesta prática política nova.Ninguém mais defende com convicçãoo laissez-faire reprodutivo, mas tambémninguém pode propor claramente o controleda natalidade porque a expressãotornou-se sinônimo de imposição autoritária.O debate deslizou para o campodo direito dos casais (para os católicos)ou das mulheres (para as feministas) afastando-sedo dilema natalismo x antinatalismo.E surgiu uma nova expressão —"paternidade responsável" — que pareciagarantir uma ambígua concordânciaporque permitia uma inequívoca manifestaçãoa favor dos direitos individuaise, portanto, exorcizava o medo do controleno Estado.E tudo parecia bem neste novo espaçocompartilhado por grupos diferentes atéque assistimos às novas ofensivas do velhoantinatalismo 3 , que fizeram reviverdeclarações natalistas de velho estilo.No domingo 14/08/83, O Estado deS. Paulo, iniciou a publicação dos resultadosde uma mesa redonda sobre natalidadeque reuniu especialistas com diversasposições. Esteve presente o senador4NOVOS ESTUDOS N.º 3


Roberto Campos reafirmando seus já conhecidosargumentos: " . . . tanto pelaevidência histórica como pela análise teóricase chega à conclusão de que ospaíses pobres devem procurar apressaro processo natural de decréscimo do crescimentodemográfico resultante dos fatoresconvencionais: educação, incrementoda renda e habitação." Em contraponto,manifestou-se o Gal. Andrade Serpa, "oproblema do Brasil é o problema de criaruma grande nação, baseada nesta raçacósmica de mulatos, brancos, negros eíndios. . . como é que se vem inventarproblemas e dificuldades para impedirque até o ano 2000 tenhamos a populaçãoque permitirá ao nosso país dominarseu território?"Os demais participantes foram menosestereotipados em suas apresentações eprocuraram analisar a questão por ângulosmais atuais.Mas resta sempre alguma coisa subjacentenestes debates. Há unanimidadecontra a intervenção estatal autoritária,mas não se define claramente quais oshá liberdade de informação e que qualquermulher pode conseguir os anticoncepcionaisque escolher. Nem uma coisanem outra são verdadeiras. Numa sociedadecomo a nossa, onde todo o processode comunicação é controlado, garantir ainformação correta a todas as classes, emtodas as regiões, demanda um programabem articulado. E não se trata apenas deinformar. É preciso que o Estado permitaa produção de anticoncepcionais —atualmente importados — e promova aatenção necessária para uma sua utilizaçãocompletamente segura.Esta é a questão que sempre fica escondidanos debates. Levantá-la significaabalar o precário consenso que reúne osque vocalizam o direito dos casais de decidiro número de filhos que desejam. Odenominador comum que une as diferentesposições é mais uma construção discursivado que um acordo real, porquenão leva — e até impede — à formulaçãode propostas práticas.Para dar um passo novo nesta discussãoseria necessário reconhecer a nelimitesconvenientes da atuação governamental.E isto ocorre num momento emque apenas uma minoria aceita um controletotal sobre a natalidade. Em pesquisapublicada pela Folha de S. Pauloa 19/06/83, vemos que apenas 6,9%daqueles que aceitam a ação governamentalna área do planejamento <strong>familiar</strong> consideramadmissível a imposição do númerode filhos por família. Outros24,9% acreditam que o papel do Estadoé apenas orientar e facilitar o acesso amétodos de controle da natalidade. E aestes 31,8%, se opõem 68,2% dos consultadosque consideram o planejamentocomo assunto exclusivo dos casais.Esta amostra espelha bem o estado daquestão do ângulo da sociedade. A maioria(74,6%) é a favor de que se controlea natalidade, mas não deseja interferênciana vida privada. Houve uma legitimaçãoda prática anticonceptiva sem que se colocasseem discussão as condições quetornam possível esta mesma prática.Quando deixamos para o espaço privadoas decisões sobre a natalidade, estamosimplícita ou explicitamente supondo quecessidade de uma política de saúde quegaranta a todas as mulheres (de qualqueridade ou estado civil) a informação àassistência que necessitem para exercero direito de optar por ter ou não terfilhos, usando os métodos que escolham,sem qualquer constrangimento.Nestes termos, o direito de controlara fecundidade não está limitado aos casaise nem só àquelas mulheres que têmo privilégio da assistência médica privada.Para que seja um direito de todas,é preciso que o Estado o promova, semimpô-lo. Do mesmo modo que aplaudimosiniciativas públicas que complementama carência alimentar das crianças fornecendoa merenda escolar — apesar deque é obrigação <strong>familiar</strong> provê-las —,precisamos aceitar que só uma atuaçãodemocrática do Estado pode colocar àdisposição dos mais carentes recursos queestão fora de seu alcance. São estas razõesque justificam a presença pública naárea de habitação, educação, saúde etc.Apesar de alguns destes programasserem enganadores e pouco democráticos,seus críticos não negam a legitimidadeNOVEMBRO DE 1983 5


PLANEJAMENTO FAMILIAR: NOVOS TEMPOSda atuação do Estado. O objetivo dodebate sobre habitação popular não épropor uma retirada da ação estatal, massim uma ampliação da interferência, desdeque com participação da população.Entretanto, quando se fala da necessidadede uma política de planejamento<strong>familiar</strong> parece ser estratégico manteruma aparente frente de resistência aoautoritarismo do Estado. Isto leva a umimobilismo que, por sua vez, cria condiçõespara a reentrada em cena do velhodiscurso antinatalista, uma vez que elepropõe uma política, mesmo que nemsempre coerente ou desejável.Ainda amarrados às velhas posiçõesnacionalistas, os opositores do antinatalismosentem-se à vontade para defenderos direitos individuais, mas têm dificuldadepara formular limites e definir mecanismosde controle democrático.Como todos os que falam em planejamento<strong>familiar</strong> recriminam o controle danatalidade imposto, o que distingue astendências diversas é o uso maior ou meoprimeiro lugar entre os recursos decontrole da fecundidade.Estes números merecem uma reflexão.É difícil mantermos a ilusão da livre escolhaquando há uma grande concentraçãoem apenas dois métodos.Métodos anticoncepcionais em uso entremulheres casadas entre 15 e 44 anos (SP)Métodos %Esterilização feminina 16.1Pílulas 27.8<strong>In</strong>terrupção 7.3Ritmo 5.2Condom 6.6Implante —Outras 0.9Nenhum 36.1Fonte: Nakamura, M.S. e Fonseca, S.P.B. São Paulo,"State contraceptive prevalence suricy" PE SMI/PUC/78. Citado em Berquó, op. cit.Com as dificuldades atuais, as mulheresprocuram auxílio onde o encontram.A diminuição da natalidade certamentecorresponde ao seu desejo, mas não en-4BERQUÓ Elza, algumasconsiderações de caráter demográficosobre o Estado deSão Paulo. Mimeo, Cebrap.nor dos argumentos liberais que procurammanter a separação entre o espaçopúblico e o privado. A autonomia da famíliavolta a ser invocada, tal como ofoi quando se lutava contra a expansãoda educação pública ou ainda quando seimpôs o uso de vacinas. Esta volta àutopia do Estado ausente tem pouco aver com a realidade brasileira. Se procurarmoschegar mais perto dela, vamosperceber justamente a falta de condiçõespara a liberdade de opções individuais.As pesquisas recentes atestam uma diminuiçãosignificativa da taxa de fecundidadeno Brasil, nos últimos dez anos.No Estado de São Paulo, esta queda ocorreu,principalmente, pelo aumento do usode anticoncepcionais, tanto nas áreas urbanascomo nas rurais 4 . Em 1978, entrevistascom mulheres casadas entre 15e 44 anos de idade mostraram que apenas36.1% não usavam nenhum métodoanticoncepcional enquanto 16.1% tinhamsido esterilizadas e 27.8% eramconsumidoras de pílulas. O número delaqueaduras tubárias (esterilização feminina)nos Estados do Nordeste ocupacontram apoio na rede de atendimentomédico. A rede se expande, ainda quecom uma má qualidade geral do serviço.Hoje em dia um número maior de mulherespode se submeter a cirurgias que,no passado, eram inacessíveis por seucusto. E é provável que, em função dasdeficiências de atendimento, as mulheresoptem (ou sejam levadas a optar) pelaesterilização definitiva em lugar de utilizarmétodos caros e que exigem assistênciacontínua. Estas condições favorecema indução da esterilização atendendo aosinteresses hospitalares, mas o grande númerode laqueaduras não pode ser explicadoexclusivamente por esta razão. Muitasmulheres, depois de dois ou três filhos,desejam a esterilização que as liberapara uma vida sexual mais prazerosa.Desde que a sociedade passou a aceitaroutros papéis femininos além da funçãomaterna, a vida reprodutiva das mulheresse encurtou. Neste contexto, e considerandoas dificuldades que enfrentam asclasses populares, não é de assustar que,quando têm acesso ao atendimento médico,seja fácil convencê-las (se já não6 NOVOS ESTUDOS N.º 3


estão convencidas) de que a laqueaduratubária é uma solução confortável. Poroutro lado, abusos médicos e o autoritarismoquase sempre presente na relaçãotradicional médico-paciente, também têmseu lugar neste cenário.É certo que os médicos enfrentam sériasdificuldades para prescrever qualqueroutro anticoncepcional razoavelmente seguroalém da pílula e da laqueadura.Recorrer ao DIU, ao diafragma ou mesmoàs geléias, está fora do alcance dapopulação de baixa renda. A alta difusãoda pílula se deve ao fato de que é freqüentementeusada sem orientação médica,expondo suas usuárias a transtornosgraves. Basta que tenhamos umavaga idéia das dificuldades que existempara conseguir uma consulta na rede públicapara imaginarmos que ela dificilmenteserá procurada para controles periódicos.E, se procurada, é preciso contarque fornecer ou não informaçõessobre anticoncepção é assunto a ser decididopor cada médico, e é comum queas mulheres encontrem barreiras quandométodo para evitar a concepção mas, namaioria dos casos é um recurso dianteda falta de opção.Estas razões são suficientes para demonstrara necessidade de um programaglobal que procure remover os obstáculosque as mulheres encontram quando desejamcontrolar seu próprio destino. E oúnico caminho viável aponta para o aperfeiçoamentoda assistência à saúde. Maso ponto de partida tem que ser o reconhecimento,em alto e bom som, da legitimidadedo planejamento <strong>familiar</strong>, paraem seguida preparar médicos e paramédicospara este atendimento, garantindolhesos recursos necessários para que possamindicar e prescrever qualquer métodoanticoncepcional que lhes pareça adequado.Também é condição necessária paraqualquer programa ter êxito que as questõesligadas à reprodução sejam mais livrementediscutidas, de modo que os médicosnão sejam os únicos a deter informaçõessobre as vantagens ou desvantagensde cada método. A reprodução éassunto que interessa a todos e que nãoprocuram ajuda. Com este panorama, épossível supor que uma parte dos 43.9%de mulheres que recorrem a laqueadurasou anovulatórios, o faça por falta deoutras opções.Se isto é verdade, é urgente que seprograme uma ação mais eficiente pararesponder a esta demanda. Não cabe discutirse vamos ou não controlar a natalidade,uma vez que a população já planejasua fecundidade, como mostram astaxas decrescentes de natalidade e as pesquisasde opinião 5 confirmam. Estas informamque 31% daqueles que têm rendaabaixo de 2 salários-mínimos e 34%dos que ganham entre 2 e 5 salários-mínimosacreditam que o governo deveatuar, ainda que sem imposições, nestecampo. É significativo que o número demulheres que tem esta opinião seja maiorque o de homens porque, sem dúvida,elas conhecem melhor as dificuldades queenfrentam para evitar a gravidez.Se juntarmos a este quadro o exorbitantenúmero de abortos que, apesar dailegalidade, são realizados, teremos umquadro mais realista. O aborto não é umNOVEMBRO DE 1983pode ser tratada como uma especialidadefechada. Em outros países, os grupos feministase ecológicos têm tido um papelimportante na divulgação de informaçõestécnicas de interesse geral e também nacrítica da postura médica que justifica,em nome da ciência, muitos preconceitosdo senso comum.Quando a prática da anticoncepção jáé aceita como normal, parece esdrúxuloque recomece o debate sobre planejamento<strong>familiar</strong> nos termos em que ele secolocava quando era um privilégio dasclasses médias e altas em áreas urbanas.Agora, trata-se de exigir um atendimentoeficiente que garanta às mulheres de todasas classes, de qualquer idade, solteirasou casadas, o direito de escolheremse querem ou não ter filhos e em quemomento.Estas são as razões pelas quais umapolítica de planejamento <strong>familiar</strong> é umapolítica social inadiável no Brasil.<strong>Ruth</strong> <strong>Cardoso</strong> é professora de Antropologia da Universidadede São Paulo.Novos Estudos Cebrap, São Paulo,v. 2, 3, p. 2-7, nov. 835Folha de S. Paulo, 19/06/83.

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