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o genoma interativo: piaget ea biologia do século xxi - Associação ...

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O GENOMA INTERATIVO: PIAGET E A BIOLOGIA DO SÉCULO XXIPaulo Candi<strong>do</strong> de Oliveira Filho (USP) - paulo.candi<strong>do</strong>@gmail.comLino de Mace<strong>do</strong> (USP) - limace<strong>do</strong>44@gmail.comIntroduçãoTalvez como introdução caiba admitir que o título desta comunicação é enganoso. Nãotemos neste momento qualquer garantia de que seja possível defender a expressão“Genoma Interativo” de um ataque epistemológico minimamente organiza<strong>do</strong>. Podemosintuir, podemos supor, que a expressão se mostrará produtiva ao final <strong>do</strong> percurso, masdificilmente ela se sustentará em mais que uma esperança de senti<strong>do</strong> ao final destaapresentação, que nada mais é que o início <strong>do</strong> percurso. Mais ainda que nosso olhar,parcial necessariamente, não leva ao relato <strong>do</strong> psicologo nem <strong>do</strong> biólogo, mas sim ao deum estudante que se quer atento, de um coleciona<strong>do</strong>r de dúvidas se desejarmos,tentan<strong>do</strong> extrair um senti<strong>do</strong>, talvez epifenomênico, de fontes dispares e por vezescontraditórias.É quase consenso considerar que Piaget estu<strong>do</strong>u a construção <strong>do</strong> conhecimento no serhumano. Como acontece com qualquer generalização didática, o verdadeiro senti<strong>do</strong> daobra de Piaget é muito mais complexo e sutil, envolven<strong>do</strong> interações entre a Biologia, aFilosofia, a Lógica, a Matemática e, quase que lateralmente, quase que apenas comosuporte empírico, a Psicologia. Em uma primeira aproximação, ainda também simples edidática, poderíamos dizer que Piaget estu<strong>do</strong>u as condições necessárias para aconstrução <strong>do</strong> conhecimento em qualquer organismo vivo. Esta definição tem avantagem de ao menos nos eximir de um erro bastante comum entre psicólogos epedagogos, mesmo entre aqueles que se dedicam ao estu<strong>do</strong> de Piaget, ignorar oudesprezar os trabalhos “biológicos” de Piaget. Ora, uma das premissas que anima estetrabalho é que sequer existe um suposto “Piaget biólogo” aparta<strong>do</strong> e isola<strong>do</strong> de um“Piaget filósofo” e de um “Piaget psicólogo” e que essa leitura fragmentada da obra<strong>piaget</strong>iana foi e é um <strong>do</strong>s grandes entraves ao entendimento de tal obra.Em uma de suas últimas grandes obras, considerada por alguns o resumo mesmo <strong>do</strong>s 60


2anos anteriores de trabalho <strong>do</strong> cientista suíço, “A Equilibração das EstruturasCognitivas” (PIAGET 1975/1976), Piaget escreveA ideia central é que este [o conhecimento] não procede nem da experiênciaúnica <strong>do</strong>s objetos, nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, masde construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas (p.7)Ten<strong>do</strong> um dia retira<strong>do</strong> da Biologia <strong>do</strong>is conceitos básicos de sua teoria, a assimilação e aacomodação, Piaget mostra nessa obra como o jogo de equilíbrio entre estas duas forçasacaba levan<strong>do</strong> à construção das estruturas cognitivas <strong>do</strong> sujeito. O uso <strong>do</strong> neologismo“equilibração” indica exatamente este jogo, esta tensão, um equilíbrio que além de serdinâmico e instável tende sempre a uma estrutura de complexidade maior, <strong>do</strong>nde acomplementação posterior da equilibração pelo adjetivo “majorante”. No processoeternamente instável de assimilação e acomodação a estrutura cognitiva tende a secomplicar e a complicar seu entendimento <strong>do</strong> ambiente e, neste complicar, adquirirpoderes de análise e síntese das relações entre os objetos e entre si e os objetos cada vezmaiores.Não nos parece de forma alguma casual que, ao mesmo tempo em que escrevia o textoque de alguma forma coroa sua obra epistemológica, Piaget se dedicasse também aotexto que melhor sintetiza sua visão <strong>do</strong>s mecanismos da Evolução, “Comportamento,Motriz da Evolução” (PIAGET 1976/1977).Quase dez anos antes Piaget havia publica<strong>do</strong> “Biologia e Conhecimento" (PIAGET1967/1973), expon<strong>do</strong> pela primeira vez sua visão da integração necessária entre a<strong>biologia</strong> e a psicologia e, especialmente, entre o genótipo e o meio, sugerin<strong>do</strong> a ideia deuma terceira via entre o lamarckismo e o neodarwinismo.Piaget retoma o tema no pequeno volume chama<strong>do</strong> “Adaptação Vital” (PIAGET1973/1978) para tanto rebater as acusações de “lamarckismo” contra a obra anteriorquanto para detalhar os mecanismos de interação entre os genes e o meio:Mas antes de deixar ao leitor a tarefa de julgar estas tentativas de interpretação,


3gostaria de fazer uma observação quanto a suas relações com o quesustentamos em nossa obra anterior, Biologia e Conhecimento. A vários denossos colegas as teses ali expostas pareceram mais ou menos manchadas delamarckismo, pois insistíamos na improbabilidade de se conceder ao <strong>genoma</strong>poderes sintéticos mais amplos e melhor organiza<strong>do</strong>s sem que as múltiplasregulações em jogo o informassem por sua vez <strong>do</strong>s êxitos e fracassos dessasconstruções endógenas. (página 5)Assim, pois, esperamos que o presente ensaio, que apresenta um modelopossível para a substituição <strong>do</strong> exógeno pelo endógeno, pareça mais aceitávelem um autor que combateu infatigavelmente o empirismo no terrenoepistemológico e, portanto, o lamarckismo puro no terreno biológico (página6)Mas será no já cita<strong>do</strong> “Comportamento, Motriz da Evolução” (PIAGET 1976/1977) quePiaget vai expor de forma mais completa suas objeções ao consenso biológico da épocae suas ideias sobre os mecanismos da Evolução. A exposição que segue se baseiaprincipalmente nesta obra.ObjetivosAntes porém podemos declarar nossos objetivos, partin<strong>do</strong> daqueles mais insensatos,mais id<strong>ea</strong>is, aqueles que esperamos ver cumpri<strong>do</strong>s antes de morrer, e ir reduzin<strong>do</strong> aospoucos o escopo até chegarmos ao pequeno e modesto objetivo deste texto.O senti<strong>do</strong> amplo deste trabalho, que retorna ao que se convencionou chamar de “Piagetbiólogo” é recuperar o senti<strong>do</strong> da obra de Piaget para o seculo XXI – uma obra que hojeé descartada e atacada sem ser lida ou entendida. Assim, este recuperar precisa aomesmo tempo esclarecer e r<strong>ea</strong>firmar. Esclarecer a sociedade, esclarecer a escola,esclarecer nossos colegas pedagogos sobre o significa<strong>do</strong> da obra de Piaget e aimportância de suas descobertas para a Educação. Ainda que, com Piaget, não nosimportemos demasiadamente com o que a Escola entende ou deixa de entender,acreditan<strong>do</strong> que eventualmente uma acomodação das estruturas burocráticas einstitucionais permitirá a assimilação de tais descobertas.


4Em um senti<strong>do</strong> mais restrito a este programa de pesquisa, nossa intenção é demonstrarcomo as ideias de Piaget sobre a evolução das espécies e a seleção natural anteciparamuma série de acha<strong>do</strong>s da Biologia desde a última década <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, acha<strong>do</strong>s quemodificaram de forma decisiva o entendimento corrente sobre como se deu a evoluçãoda vida no planeta. Isto inevitavelmente acabará nos levan<strong>do</strong> a examinar como, emPiaget, a <strong>biologia</strong> e a epistemologia se encaixam em um to<strong>do</strong> coerente e coeso.Cabe ainda um último fechamento de foco, que nos leve ao modesto objetivo deste textoparticular. Aqui queremos comparar brevemente as ideias de Piaget sobre a Evoluçãocom a visão orto<strong>do</strong>xa e ainda corrente da Biologia e, ao examinar la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong> taispropostas, tentar caracterizar como o ponto de vista de Piaget engloba e aumenta oneodarwinismo. Mencionamos também alguns resulta<strong>do</strong>s surpreendentes obti<strong>do</strong>s empesquisas algo recentes sobre a transmissão de caracteres aprendi<strong>do</strong>s, resulta<strong>do</strong>s que porsi só justificariam algum interesse neste estu<strong>do</strong> que nos propomos a r<strong>ea</strong>lizar. Por fim,concluímos com exposição <strong>do</strong> caminho a seguir em direção a uma visão interativa <strong>do</strong>processo evolutivo e com algumas considerações sobre as consequências e aimportância de se subtrair ao <strong>genoma</strong> seu caráter finalista e inatista.A Síntese ModernaTheo<strong>do</strong>sius Dobzhansky, um <strong>do</strong>s maiores biólogos <strong>do</strong> século 20, uma vez disse “Nadana Biologia faz senti<strong>do</strong> exceto à luz da Evolução” ( DOBZHANSKY, 1973). Estaafirmação pode ser estendida sem reparos a to<strong>do</strong>s os campos <strong>do</strong> conhecimentoderiva<strong>do</strong>s da Biologia, incluin<strong>do</strong> aí toda a Psicologia e sem dúvida alguma toda a teoria<strong>piaget</strong>iana. Afinal, a teoria de Piaget nada mais faz que estabelecer as bases biológicas<strong>do</strong> conhecimento. Não é então nada espantoso que Piaget dialogasse intensamente coma Biologia de sua época e, especialmente, com a teoria da Evolução.Para entender melhor as críticas de Piaget ao neodarwinismo vamos primeiro exporbrevemente as principais teses ali encontradas.Nas décadas de 30 e 40 <strong>do</strong> século XX consoli<strong>do</strong>u-se na Biologia um consenso científicounifican<strong>do</strong> as ideias de Darwin e as descobertas da genética, no que veio a ser


5conheci<strong>do</strong> como a Síntese Moderna, a partir <strong>do</strong> título de um livro <strong>do</strong> grande biólogoJulian Huxley (HUXLEY, 1942). A síntese envolveu descobertas da genética, dagenética de populações, da matemática, da história natural, da taxonomia e dapaleontologia, abarcan<strong>do</strong> desde o papel <strong>do</strong>s genes na transmissão de caracteres até aexplicação da evidência fóssil.As ideias principais que emergiram da Síntese são conhecidas coletivamente como aTeoria Sintética e representam até os dias de hoje a base da <strong>biologia</strong> evolutiva, tantodaquela que é ensinada quan<strong>do</strong> daquela que é praticada e foi a este conjunto deproposições que Piaget designou “orto<strong>do</strong>xia neodarwinista”. Em resumo, a TeoriaSintética da Evolução diz o seguinte 1 :1. As características físicas observáveis(o fenótipo) são diferentes <strong>do</strong> genótipo(conjunto de genes de um indivíduo). As diferenças fenotípicas entre organismosindividuais se devem a diferenças genéticas e a efeitos diretos <strong>do</strong> meio.2. Os efeitos <strong>do</strong> meio sobre o fenótipo de um organismo não afetam os genestransmiti<strong>do</strong>s pelo organismo a seus descendentes. Ou seja, característicasadquiridas não são herdadas. O meio pode, entretanto, afetar a expressão <strong>do</strong>sgenes de um organismo.3. As variações hereditárias se baseiam nos genes, que retém sua identidadeenquanto passam de uma geração para outra. Genes não se misturam com outrosgenes.4. Genes sofrem mutação, em geral numa frequência bastante baixa, geran<strong>do</strong>formas alternativas (alelos). O efeito dessas mutações pode ser indetectável aextremo. A recombinação entre alelos <strong>do</strong> mesmo loci pode amplificar o efeitodas mutações.5. Fatores ambientais (tais como produtos químicos ou radiação) podem afetar afrequência de mutação, mas tais fatores de forma alguma garantem mutaçõesque seriam favoráveis ao organismo.1No intuito de melhor caracterizar a teoria “orto<strong>do</strong>xa”, nós optamos por retirar suas definições deum <strong>do</strong>s livros didáticos mais utiliza<strong>do</strong>s em cursos de pós-graduação sobre Evolução, EvolutionaryBiology (FUTUYMA, 1998). A lista é uma adaptação da lista apresentada aparece nas páginas 26 e 27daquele texto. A tradução é nossa.


66. A evolução é um processo populacional: ela afeta as proporções de indivíduoscom diferentes genótipos dentro de uma população. Ao longo <strong>do</strong> tempo aproporção de um genótipo pode aumentar gradualmente e eventualmentesubstituir totalmente o genótipo alternativo. Isto pode acontecer tanto emdeterminadas populações quanto afetar toda uma espécie.7. A mutação sozinha é insuficiente para modificar o genótipo de toda umapopulação. Tais modificações são causadas por <strong>do</strong>is outros fenômenos,flutuações al<strong>ea</strong>tórias na proporção de um genótipo (“derivação genéticaal<strong>ea</strong>tória”) e ou flutuações não al<strong>ea</strong>tórias devidas à superioridade de umgenótipo quanto à sobrevivência ou à capacidade de reprodução em relação aosgenótipos alternativos (seleção natural).8. Em determinadas circunstâncias mesmo uma pequena pressão da seleção naturalpode gerar grandes mudanças evolutivas em um intervalo de temporelativamente curto. Diferenças muito pequenas entre <strong>do</strong>is organismos podemresultar em pequenas diferenças na sobrevivência ou na capacidade dereprodução. A seleção natural assim poderia explicar pequenas diferenças entreespécies e o aparecimento de novas características.9. A seleção pode alterar uma população para além de sua faixa de variaçãooriginal pelo aumento na proporção de alelos alternativos.10. As populações naturais são geneticamente variáveis.11. Populações de uma mesma espécie em regiões geográficas diferentes diferemem características genéticas.12. É possível demonstrar que a maior parte das diferenças entre espécies diferentese entre populações diferentes de uma mesma espécie se deve a diferençasgenéticas, localizadas principalmente em fatores poligênicos. Esta descobertasustenta a hipótese de que a especiação ocorre em pequenos passos e não atravésde mutações com grande efeito fenotípico.13. A seleção natural continua ocorren<strong>do</strong> nas populações atuais.14. As diferenças entre populações geograficamente dispersas de uma mesmaespécie são frequentemente adaptativas, pois estão muitas vezes correlacionadascom fatores ambientais relevantes.15. O que determina a separação entre espécies são diferenças genéticas e não


7diferenças fenotípicas. Uma espécie é um grupo de indivíduos capazes de sereproduzir entre si. Não há troca genética entre espécies diferentes.16. Mas há uma escala contínua de diferenciação entre populações, tanto em termosfenotípicos quanto no que diz respeito ao isolamento reprodutivo, in<strong>do</strong> desdepopulações quase idênticas até espécies completamente diferentes. Estaobservação corrobora a ideia de que uma espécie ancestral se diferencia em duaspor acumulação gradual de pequenas diferenças e não em um salto mutacionalúnico.17. A especiação em geral ocorre pela diferenciação genética de populaçõesseparadas geograficamente. A separação evita que as pequenas mudançasgenéticas se percam pelo cruzamento entre indivíduos com genótipos diferentes.18. Há inúmeras gradações nas características fenotípicas de espécies <strong>do</strong> mesmogênero, de gêneros diferentes, de famílias diferentes, etc. Isto corroboranovamente a ideia de que as famílias, ordem, classes etc aparecem através <strong>do</strong>acúmulo de pequenas mudanças e não em uma grande salto.19. Apesar de incompleta, a evidência fóssil também apresenta exemplos degradação entre supostos organismos ancestrais e descendentes muito diferentes.Isto novamente suporta a ideia de que a evolução de grandes diferenças se dáatravés de inúmeros pequenos passos.20. Assim, todas as observações da evidência fóssil são consistentes com osprincípios de mudança evolucionária apresenta<strong>do</strong>s acima. Não há entãonecessidade de invocar hipóteses não-Darwinistas tais como mecanismosLamarckistas, evolução ortogenética, vitalismo ou o aparecimento abrupto degrandes mutações.Os vinte pontos acima representam, até hoje, a visão orto<strong>do</strong>xa da teoria moderna daevolução. Veremos que a critica <strong>piaget</strong>iana vai se concentrar em alguns pontos destaestrutura, especialmente o segun<strong>do</strong> (efeitos <strong>do</strong> fenótipo sobre o genótipo), de algumaforma o quinto (a direção <strong>do</strong> efeito <strong>do</strong>s fatores ambientais sobre as mutações) e, porconsequência, o último.Piaget: o comportamento como motor da evolução


8Não temos espaço nesta breve apresentação para uma exposição detalhada de to<strong>do</strong>s osargumentos que Piaget alinha para defender o papel central <strong>do</strong> comportamento naevolução das espécies e especialmente para examinar todas as descobertas recentes daBiologia que corroboram a visão exposta sucessivamente em “Biologia eConhecimento”, “Adaptação Vital” e “Comportamento, Motriz da Evolução”. Estetrabalho será feito em outro momento.Nos propomos aqui a apresentar um breve apanha<strong>do</strong> das ideias expostas na última obramencionada para a seguir explorar um estu<strong>do</strong> recente que exemplifica de forma quasedramática a aproximação da Biologia recente com princípios que Piaget já haviadeduzi<strong>do</strong> há mais de 40 anos.Em “Comportamento, Motriz da Evolução” Piaget examina uma série de propostasdescartadas pela Teoria Sintética da Evolução tal como resumida acima e tal comodefendida pelos principais neodarwinistas de sua época (ver HUXLEY 1943, MAYR1982 e MAYR 1980).Em capítulos sucessivos, Piaget trata das ideias de Lamarck, da seleção orgânica (o“efeito Baldwin” 2 ), das descobertas da etologia sobre o papel <strong>do</strong> comportamento naevolução, da assimilação genética demonstrada por Waddington (posteriorment<strong>ea</strong>ssimilada à Teoria Sintética sob o guarda-chuva da canalização) e das ideias de Weisssobre a hierarquia <strong>do</strong>s sistemas para, a seguir, apresentar uma visão coerente dainfluência <strong>do</strong> comportamento aprendi<strong>do</strong> sobre o genótipo e sobre a evolução dasespécies.Ao retomar e examinar cuida<strong>do</strong>samente ideias descartadas pela orto<strong>do</strong>xia, ao exploraros limites da Biologia corrente de sua época, Piaget não busca afrontar o establishmentcientífico mas sim fazer ciência na sua mais pura concepção. Ele vai tentar determinarpara além <strong>do</strong> discurso fácil da unanimidade quais elementos daquelas teorias2A ideia que ficou conhecida como “efeito Baldwin” poderia ser chamada “efeito Baldwin-Morgan-Osborne, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> apresentada quase que simultan<strong>ea</strong>mente e de forma independente pelos biólogosJames Mark Baldwin, Conway Lloyd Morgan e Henry Fairfield Osborne em 1895 e 1896 (DEPEW,2003/2007)


9desacreditadas pela ciência oficial podem ser úteis para uma construção alternativa,sempre bas<strong>ea</strong>n<strong>do</strong> sua decisão na análise racional à luz <strong>do</strong>s fatos observáveis e deexperimentos reproduzíveis.Tome-se Lamarck, cuja teoria por um la<strong>do</strong> apresenta insigths muito interessantes sobr<strong>ea</strong> relação entre o comportamento e a formação <strong>do</strong>s órgãos mas peca em considerar ocomportamento um fenômeno unicamente externo, determina<strong>do</strong> exclusivamente pelomeio. Como diz Piaget. “Estas dificuldades [em definir as causas <strong>do</strong> surgimento de umcomportamento] provêm inteiramente da sua interpretação empírica <strong>do</strong> comportamento,concebi<strong>do</strong> apenas como determina<strong>do</strong> pelo meio, sem fatores endógenos que fossemhomogêneos com os de organização” (PIAGET, 1976/1977, p. 29).Baldwin, que era também psicólogo, “procura completar (mas não contradizer) odarwinismo através da noção de 'seleção funcional' e sobretu<strong>do</strong> 'orgânica'”. (PIAGET,1976/1977, p. 34). Em uma leitura contemporân<strong>ea</strong>, o “efeito Baldwin” propõe que emdeterminadas condições os comportamentos aprendi<strong>do</strong>s afetam a direção e a velocidadeda evolução por seleção natural. Uma herança cultural através de um númeroindetermina<strong>do</strong> de gerações criaria um espaço no qual seria possível que ocomportamento aprendi<strong>do</strong> se convertesse em adaptações genéticas (DEPEW, 2007, p.3).Piaget, comentan<strong>do</strong> os textos de Baldwin em 1974, observa que Baldwin falha em ligara nova acomodação representada por um comportamento inédito provoca<strong>do</strong> pormudanças no meio a modificações correspondentes no meio interior e é insuficientepara explicar o processo de fenocópia 3 (PIAGET 1976/1977, p. 38/39).O efeito Baldwin tem si<strong>do</strong> objeto de controvérsias desde sua proposição, sen<strong>do</strong>sucessivamente descarta<strong>do</strong> e revivi<strong>do</strong> inúmeras vezes ao longo <strong>do</strong> último século (parauma história mais completa desta ideia, ver DEPEW & WEBER, 2003/2007).Em um artigo de 1953, C. H. Waddington (WADDINGTON, 1953) relata um caso d<strong>ea</strong>ssimilação genética em uma população da mosca de fruta Drosophila megalogaster.3Fenocópia é o processo através <strong>do</strong> qual uma característica que aparece inicialmente apenas nofenótipo de indivíduos de uma espécie acaba, ao longo de gerações, por se fixar no (ou ser “copiada”pelo) genótipo.


1Pupas submetidas a altas temperaturas durante quatro horas desenvolveram uma quebrana veia transversal posterior. Após algumas gerações, o efeito fenotípico começou asurgir em indivíduos não submeti<strong>do</strong>s às altas temperaturas durante o desenvolvimento.Depois disto o fenótipo se fixou em algumas linhagens e apareceu de forma consistenteem indivíduos que se desenvolveram a temperaturas normais e mesmo em temperaturasabaixo <strong>do</strong> normal. Piaget observa que a explicação para o fenômeno de assimilaçãogenética, incorpora<strong>do</strong> à teoria através da canalização genética (tendência <strong>do</strong> genótipo aestabilizar o fenótipo dentro de determinada faixa de variação), exige que o genótipocontenha já genes alelos para as alternativas assimiladas (PIAGET, 1976/1977, p. 61-74). Mas é importante reter o fato de que este processo já mostra de forma conclusiva ainfluência direta <strong>do</strong> meio externo e da epigênese sobre o <strong>genoma</strong>.Piaget examina a seguir as ideias de Paul Weiss (PIAGET, 1976/1977, p. 75-89),especialmente a visão <strong>do</strong> genótipo como uma parte integrante de uma estrutura maiorque começa nos genes, passa pelo sistema epigenético que comanda o desenvolvimentoe termina no próprio ambiente em que o organismo se desenvolve. O acréscimofundamental aqui é a visão <strong>do</strong> organismo como “sistema”, composto de partes emconstante interação entre si e entre si e o to<strong>do</strong>. Diz Piaget:Compreendemos agora o que significa a origem de um carácter inato naperspectiva de P. Weiss: ela não está contida em certos genes por si sós, masconsiste num processo que, começan<strong>do</strong> neles, engloba ainda um sectordetermina<strong>do</strong> da epigênese com o qual os genes estão em interação e apresentano seu trajeto uma certa unidade que o distingue <strong>do</strong>s outros, com os quais pod<strong>ea</strong>liás se combinar. (PIAGET, 1976/1977, p. 87)A ideia central aqui é, vale repetir, a criação de novidades genéticas pela interação entrediversos subsistemas de um sistema maior, este último engloban<strong>do</strong> desde o <strong>genoma</strong> atéo ambiente que contém o indivíduo. Mais ainda:Sucessos tão surpreendentes como os <strong>do</strong>s instintos e da inteligência só podemser explica<strong>do</strong>s de duas maneiras, se se rejeitar a generalidade das origensal<strong>ea</strong>tórias canalizadas apenas pela seleção-sobrevivência (hipótese quedesvalorizaria o próprio conhecimento científico): um constante adivinhar


11profético da parte de genômios chama<strong>do</strong>s a prever a adequação <strong>do</strong>s seusprodutos aos mais diferencia<strong>do</strong>s meios, ou interações entre as diversas etapasda organização, e trata-se agora de saber em que é que essas interações podemconsistir no caso <strong>do</strong>s comportamentos mais simples. (PIAGET, 1976/1977, p.88-89)Ao final da obra aqui examinada Piaget constrói uma visão interativa <strong>do</strong> processoevolutivo, assentada no papel funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> comportamento <strong>do</strong>s organismos como fontede inovações. O comportamento agrega três características que o habilitam a este papel:sua finalidade, suas adequações especializadas e o papel particular das seleçõesexercidas pelo meio interno (intermediário entre o meio exterior e a orientação de novasvariações).Sobre a finalidade, Piaget já havia defini<strong>do</strong> nas primeiras linhas desta obra ocomportamento como “o conjunto das ações que os organismos exercem sobre o meioexterior para modificarem os seus esta<strong>do</strong>s ou para transformarem a sua própria situação,em relação a esse meio”. Condutas sensório-motoras, por exemplo, sãocomportamentos. Também o são as condutas interiores, como as operações mentais.Mas a respiração (que modifica a atmosfera) ou as contrações musculares não sãocomportamentos, pois carecem da finalidade explícita e da intencionalidade implícita nadefinição dada.Na conclusão, a finalidade é um <strong>do</strong>s elementos incorpora<strong>do</strong>s ao papel <strong>do</strong>comportamento no processo evolutivo:[…] sen<strong>do</strong> o comportamento uma ação exercida sobre o meio e visan<strong>do</strong> desde asua ativação atingir um resulta<strong>do</strong> exterior, ele não pode ser assimila<strong>do</strong> a umamutação qualquer, que se produza com toda a independência em relação aoambiente, que este aceitará ou rejeitará tardiamente ten<strong>do</strong> em vista osresulta<strong>do</strong>s não previstos no programa.(PIAGET, 1976/1977, p. 167)Segue que um comportamento exige informações detalhadas sobre o meio onde ele vaise dar, não poden<strong>do</strong> (a menos que retornemos à mais simples leitura empiricista deLamarck) ser gera<strong>do</strong> al<strong>ea</strong>toriamente. Pense-se aqui nos instintos.


1primeira. (PIAGET, 1976/1977, p. 177)Observe-se que na própria conclusão Piaget deixa claro que aceita plenamente aevolução clássica nos moldes neodarwinista e apenas acrescenta a necessidade de umaevolução organiza<strong>do</strong>ra, agin<strong>do</strong> em um patamar diferente, para explicar as insuficiênciasda primeira.Se saltarmos agora mais de 30 anos, podemos examinar rapidamente um artigo quecorrobora algumas das ideias de Piaget. Em “Transgenerational Rescue of a GeneticDefect in Long-Term Potentiation and Memory Formation by Juvenile Enrichment”(JUNKO, A. A.; FEIG, L. A, 2009) os pesquisa<strong>do</strong>res demonstram a transmissãotransgeracional <strong>do</strong>s efeitos de comportamentos aprendi<strong>do</strong>s. Em uma experiência comcamun<strong>do</strong>ngos, descendentes de animais expostos a ambientes enriqueci<strong>do</strong>s naa<strong>do</strong>lescência apresentaram os mesmos efeitos sobre a memória sem terem si<strong>do</strong> expostosaos mesmos ambientes. A transmissão ocorre na embriogênese (pois mesmodescendentes cria<strong>do</strong>s por mães substitutas, estas não expostas àqueles ambientes,apresentam o mesmo efeito). Se tal fenômeno ocorrer nos seres humanos, a memória naa<strong>do</strong>lescência seria influenciada pelas experiências da mãe quan<strong>do</strong> jovem. Não vamosexaminar aqui os detalhes e as consequências deste artigo, apenas o mencionamos comoum <strong>do</strong>s pontos de partida para explorações futuras.ConclusãoComo conclusão gostaríamos de inicialmente retomar a introdução. Parece-nos claroque há valor no confronto das hipóteses de Piaget sobre a Evolução com a SínteseModerna. Neste trabalho, talvez não mais que uma declaração de intenções, apenasesboçamos este confronto, que precisa agora ser acresci<strong>do</strong> das inúmeras comprovaçõesfornecidas pela própria Biologia, pela Psicologia <strong>do</strong> Desenvolvimento, pela PsicologiaEvolutiva, pela Neurologia e pela Etologia. Sabemos que estas comprovações vem s<strong>ea</strong>cumulan<strong>do</strong> nos últimos anos, nosso próximo passo será reuni-las em um to<strong>do</strong> coerente.Esperamos também que tenha fica<strong>do</strong> evidente a continuidade estrutural da teoria<strong>piaget</strong>iana. Os processos e estruturas que sustentam a evolução das espécies são, nas


1palavras de Piaget, análogos àqueles que sustentam a construção <strong>do</strong> conhecimento,poden<strong>do</strong> os processos de construção de conhecimento também ser dispostos ao longo deum contínuo na escala biológica.Em um Congresso de Psicologia Escolar e Educacional nos parece que caberia, comoconclusão, explorar um pouco o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que foi dito acima na direção da escola e daeducação.Nosso objetivo principal, não neste texto mas de forma mais global, é resgatar a teoriade Piaget para o século XXI. Isto nos parece tanto importante quanto oportuno.Importante porque acreditamos que Piaget desenvolveu a mais completa teoria sobre aconstrução de conhecimento que temos, uma teoria que estabelece as bases biológicas<strong>do</strong> conhecer e nos informa tanto sobre as estruturas quanto sobre os processosenvolvi<strong>do</strong>s na construção <strong>do</strong> conhecimento. Oportuno em um momento em que seenfrentam ataques desinforma<strong>do</strong>s contra um “construtivismo” genérico que am<strong>ea</strong>çamfazer regredir to<strong>do</strong>s os avanços pedagógicos descobertos pela Psicologia nos últimoscem anos.Se escolhemos iniciar este caminho muito próximos da Biologia não foi por acaso – aretomada dessas ideias biológicas de Piaget visa um fim específico: discutir a naturezafundamentalmente interativa <strong>do</strong> aprender (e por extensão, necessariamente, <strong>do</strong> ensinar),natureza já estabelecida lá nos processos biológicos. Desta forma esperamos colaborarna desconstrução tanto de ideias inatistas (e muitas vezes mesmo racistas) bas<strong>ea</strong>das emuma leitura simplista genética evolutiva quanto de ideias empiristas que animam osdefensores de uma lendária escola tradicional, no mais das vezes nada mais que aquiloque Paulo Freire chamou de “educação bancária”.Não esperamos ter comprova<strong>do</strong> aqui a validade das teorias de Piaget sobre a Evolução,apenas inicia<strong>do</strong> um caminho que agora nos levará a examinar como cada pontolevanta<strong>do</strong> aqui e outros, à luz <strong>do</strong>s conhecimentos adquiri<strong>do</strong>s pela Biologia, pelaEtologia e pela Psicologia nos últimos 40 anos, em um trabalho que se apresenta tantocomo uma empresa retrospectiva e arqueológica quanto como uma oportunidade de


prospecção de novos caminhos e de busca de novas perspectivas para ideias talvezinjustamente esquecidas.1BibliografiaARAI, J. A.; LI, S.; HARTLEY, D. M.; FEIG, L. A. Transgenerational Rescue of aGenetic Defect in Long-Term Potentiation and Memory Formation by JuvenileEnrichment. The Journal of Neuroscience, February 4 2009 – 29(5); 1496-1502.DEPEW, D.J. & WEBER, B.H. [2003] (2007) Evolution and L<strong>ea</strong>rning: The BaldwinEffect Reconsidered. Cambridge: MIT Press.DEPEW, D. J. [2003] (2007) Baldwin and His Many Effects in DEPEW, D.J. AndWEBER, B.H. [2003] (2007) Evolution and L<strong>ea</strong>rning: The Baldwin EffectReconsidered. Cambridge: MIT Press.DOBZHANSKY, T. (1973). Nothing in biology makes sense except in the light ofevolution. American Biology T<strong>ea</strong>cher 35, 125-129.FUTUYAMA, D. J. (1998) Evolutionary Biology. Sunderland: Sinauer Associates Inc.HUXLEY, J. S. (1942). Evolution: the modern synthesis. Lon<strong>do</strong>n: Allen & Unwin.MAYR, E.; Provine W.B. (orgs) (1980) The Evolutionary Synthesis: Perspectives on theUnification of Biology. Cambridge: Harvard Press University.MAYR, E. (1982) The Growth of Biological Thought: Diversity, Evolution andInheritance. Cambridge: Harvard Press University.PIAGET, J. [1967] (1973). Biologia e Conhecimento. Petrópolis: Vozes.PIAGET, J. [1973] (1978). Adaptación vital y psicología de la inteligencia. Madrid:Siglo XXI de España.


1PIAGET, J. [1975] (1976). A Equilibração das Estruturas Cognitivas. Rio de Janeiro:Zahar Editores.PIAGET, J. [1976] (1977). Comportamento, Motriz da Evolução. Porto: RES Editora .WADDINGTON, C. H. Genetic Assimilation of an Acquired Character. Evolution, Vol.7, n. 2 (Junho, 1953), pp. 118-126.

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