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uma retórica de fidalguia: a representação dos negros na poesia ...

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.e um estilo do séc. XVII. Já a produção secular do soldado/poeta (1650 a 1662), mesmo<strong>de</strong> notória fama em seu tempo, é pouquíssimo estudada nos ambientes acadêmicos,tanto brasileiro quanto português. Sobre o lado pouco estudado <strong>de</strong> Chagas, sãoimportantes as afirmações <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Belchior Pontes (1971):Do Fonseca pouco nos dizem os biógrafos, os cronistas, interessa<strong>dos</strong><strong>na</strong>turalmente em exaltar o Venerável, e justificadamente interessa<strong>dos</strong>também portanto em esquecer o que no mundo fora António daFonseca Soares. E quando se lhe referem é para do confrontoFonseca-Chagas, pelo contraste, se agigantar o perfil penitente doúltimo. Duas perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong>s distintas num só homem: a do Fonseca,poeta estrói<strong>na</strong>, soldado e D. Juan, <strong>na</strong>morador <strong>de</strong> primas e não primas,<strong>de</strong>sflora<strong>dos</strong> da honra alheia, autor <strong>de</strong> cente<strong>na</strong>s <strong>de</strong> romances, <strong>de</strong>sonetos e glosas, <strong>de</strong> madrigais e décimas, e a do Chagas, penitente,director <strong>de</strong> almas, pregador apostólico, varatojano austero, conhecidoautor das Cartas Espirituais, e ainda <strong>de</strong> elegias impreg<strong>na</strong>das <strong>de</strong> <strong>uma</strong>dolorida religiosida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> cânticos espirituais, <strong>de</strong> sermões e <strong>de</strong> outrasobras, alg<strong>uma</strong>s miúdas, prenhes <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sencantado amargor, frutoprovavelmente da sua experiência munda<strong>na</strong>l. Estas duas vidas, aprimeira frívola e <strong>de</strong>sregrada, a segunda asceticamente penitente ereparadora das faltas cometidas, ajustam-se perfeitamente ao ritmovital do seu tempo. Po<strong>de</strong>ríamos, integrando a vida e a obra totais doFonseca-Chagas no século XVII, consi<strong>de</strong>rá-la como representativa dasua época, e não seria injustificado um estudo que se intitulasse «FreiAntónio das Chagas – um homem e um estilo do século XVII». Opoeta António da Fonseca Soares, o Fonseca, teve gran<strong>de</strong> voga noseu tempo, prolongou-se a fama e chegou até Verney, motivo por queo escolhe para bo<strong>de</strong> expiatório da sua impie<strong>dos</strong>a crítica: «Ouvi gabarmuito um soneto do Chagas» (...) e sem sair do Chagas que parece amuitos que é bom poeta «escolhi este autor, porque é mui conhecidoe louvado e procurado <strong>de</strong> muitos» (...). Ora as obras do Fonsecaficaram inéditas. Digo Fonseca, por querer dar o seu a seu dono. DoFonseca são os romances, os sonetos, etc., que o Chagas tanto<strong>de</strong>sejava <strong>de</strong>struir, prometendo rezar e discipli<strong>na</strong>r-se por quem lheremetesse qualquer cópia <strong>dos</strong> seus versos <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>.Em trabalho escrito em 1992, Maldo<strong>na</strong>do (p.410) observa a negligência pelaqual passa a obra fonsequia<strong>na</strong> ainda <strong>na</strong> atualida<strong>de</strong>:Mais <strong>de</strong> quarenta anos <strong>de</strong>correram <strong>de</strong>ste trabalho primeiro da doutoraBelchior Pontes, mas os textos, esses permanecem inéditos e algunsem risco <strong>de</strong> jamais po<strong>de</strong>rem ser li<strong>dos</strong>. E, continuando a citar Resen<strong>de</strong>,é tempo “para os q mays sabe seespertem a folguar” <strong>de</strong> trazer o52


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.conhecimento do público a face inédita do talentoso e irreverente“Capitão Boni<strong>na</strong>” e <strong>de</strong> tantos outros vota<strong>dos</strong> ao mesmo <strong>de</strong>stino.A nossa inclusão da obra <strong>de</strong> Fonseca num contexto ‘luso-brasileiro’ explicasepelo fato <strong>de</strong> que gran<strong>de</strong> parte da obra secular do poeta tenha sido escrita num períodoem que, ainda no exército português, passa <strong>na</strong> Bahia. Segundo PONTES, (1953, p. 29)passa três anos no Brasil. Silva (1971, p.105-8, passim) aproxima nosso poeta aouniverso brasileiro com um fato notório: alguns sonetos atribuí<strong>dos</strong> a Gregório <strong>de</strong> Matos,constantes <strong>na</strong> edição das Obras <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Matos compilada pela Aca<strong>de</strong>miaBrasileira <strong>de</strong> Letras (Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1923-1933), seriam <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Fonseca Soares.Ainda aproximando Fonseca ao Brasil, Maldo<strong>na</strong>do (1992, p.409) faz menção ao epíteto“o mais canoro cysne <strong>de</strong> nosso século”, atribuído ao nosso “Capitão Boni<strong>na</strong>” peloDesembargador Luís <strong>de</strong> Siqueira da Gama, membro da Aca<strong>de</strong>mia Brasílica <strong>dos</strong>Esqueci<strong>dos</strong>, durante <strong>uma</strong> seção <strong>de</strong>dicada a home<strong>na</strong>geá-lo.Nosso estudo sobre o Fonseca parte do ms. 2998 que constitui um corpus <strong>de</strong>104 romances, a maioria sendo <strong>poesia</strong> munda<strong>na</strong>, erótica e satírica. Para este simpósio,fizemos um pequeno recorte no universo poético <strong>de</strong>sses romances, procurandoexplicitar um aspecto da obra que se inserisse <strong>na</strong> questão do intercâmbio cultural <strong>na</strong> áreada influência língua portuguesa. O aspecto escolhido foi a representação seiscentista <strong>dos</strong>grupos étnicos e da instituição da escravidão no contexto do Império Português,subjacente <strong>na</strong>s figurações poéticas que se operam em torno do contraste negro/brancono contexto da <strong>poesia</strong> erótica e satírica <strong>de</strong> Fonseca.Embora a <strong>poesia</strong> <strong>de</strong> Fonseca não tematize diretamente a questão daspopulações usadas como força <strong>de</strong> trabalho escrava (tal como fez no mesmo século, porexemplo, Antonio Vieira), a presença do contingente africano do Império Ultramarino53


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.Sendo parte <strong>de</strong> um retrato da mulher <strong>de</strong>sejada, essas estrofes estãoincumbidas <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver seus cabelos e olhos. A primeira estrofe já indica um caráterardiloso 6 do cabelo feminino, negro. Os fios da tessitura do cabelo são engenhosamentemanipula<strong>dos</strong>: são, ao mesmo tempo, matéria-prima da arma <strong>de</strong> Cupido e <strong>uma</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong>captura. Note-se que a posição disfórica <strong>de</strong> ‘negro’ é apontada metalingüisticamente eas três estrofes que seguem <strong>de</strong>senvolvem o mesmo conceito “juntando dous extremos”,em <strong>uma</strong> série <strong>de</strong> antíteses como negro/luz (“<strong>negros</strong> sim, mas tão lustrosos”),negro/senhor (“tudo é senhor, sendo negro”) e negro/belo (“escuro, sim, mas tãoLindo”).A multiplicida<strong>de</strong> semântica <strong>de</strong> /negro/ é ainda explorada <strong>na</strong> última estrofe,n<strong>uma</strong> redistribuição cruzada <strong>de</strong> semelhanças e <strong>de</strong>ssemelhanças: “os rasga<strong>dos</strong> olhos<strong>negros</strong>/ <strong>negros</strong> qual minha ventura/ rasga<strong>dos</strong> como meu peito”. Note-se os olhos“rasga<strong>dos</strong>” como referência a olhos oblíquos <strong>de</strong> etnias orientais ou ameríndias, ambaspartes do Império Português <strong>de</strong> então. Esses olhos são postos como <strong>negros</strong>, portantomaus ou enga<strong>na</strong>dores, n<strong>uma</strong> antífrase, já a ventura e o peito do Eu são <strong>negros</strong> e rasga<strong>dos</strong>sem nenh<strong>uma</strong> antífrase, mas sim no pólo negativo <strong>de</strong>sses conceitos.A presença africa<strong>na</strong> como pólo negativo <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>uma</strong> antítese engenhosaconstruída para o louvor da mulher <strong>de</strong>sejada também é visto <strong>de</strong> passagem no romance94, on<strong>de</strong> se contrapõem ‘duquesa <strong>de</strong> Florença’ e ‘negro <strong>de</strong> Angola’:Sutilmente as sobrancelhasem os seus arcos compostasDuquesas são <strong>de</strong> Florençaquando são <strong>negros</strong> <strong>de</strong> Angola6 Infra comentaremos a tópica <strong>na</strong>ção, <strong>de</strong>ntro da qual é ligada a origem africa<strong>na</strong> a essa falha <strong>de</strong> caráter.57


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.Vê-se, curiosamente, <strong>uma</strong> semelhança com o romance anterior, havendo <strong>uma</strong>ligação ‘sobrancelha/arcos/origem africa<strong>na</strong>/caráter enga<strong>na</strong>dor/esquivança amorosa’,cuja repetição, num contexto seiscentista, certamente aponta para a cristalização dametáfora, o que n<strong>uma</strong> <strong>poesia</strong> <strong>de</strong> retrato, é coisa alçada ao status <strong>de</strong> um lugar-comum,baseado <strong>na</strong>s tópicas da <strong>na</strong>ção e origem, as quais comentamos adiante.O trabalho com o conceito ‘negro’ ainda é visto no romance 70, no qualFonseca explora o antigo lugar-comum da <strong>poesia</strong> erótica, que Veyne (1983) chama <strong>de</strong>“ilustre escravidão”. Transcrevemos o romance <strong>na</strong> íntegra:Preso me ten<strong>de</strong>s no laçoFilis pois neste favorfoi laço da liberda<strong>de</strong>quando da tenção foi nóNeste azul, negro ferradome ten<strong>de</strong>s pois nesta corquantas em vós era celestehoje em um ferrete foiPois nestoutro cor <strong>de</strong> ca<strong>na</strong>quem não vê que fez atrozvossa vaida<strong>de</strong> caprichoda insígnia da minha florNo jogo do truque 7 entendoFilis que mui <strong>de</strong>stra soispois que sobre os meus azaresfizestes este primor 8Mui gentil homem contudo<strong>de</strong>ixais hoje o meu amorpois nestes laços se vêquão bem prendido se pôsJá agora tem outro jeitoas minhas venturas poisnão sendo mui <strong>de</strong>satadasvão parecendo melhorSe pois com tais prendas ricohoje me <strong>de</strong>ixais [ma o sol]quem é homem <strong>de</strong>stas prendas7 “Truque <strong>de</strong> taco. Jogo conhecido , q’ se faz n<strong>uma</strong> mesa comprida , cuberta <strong>de</strong> hum panno ver<strong>de</strong>, bemestendido , & bem pregado.Joga.se com bolas peque<strong>na</strong>s <strong>de</strong> marfim , e com taco , que lhes dão o impulsocom varias <strong>de</strong>strezas , a ~q se chamão primores , tabilha , falquete &c.(...)” (BLUTEAU, p. 317)8 “Primor no jogo do Truque He quando se atira a h<strong>uma</strong> bola por tabilha estando encuberta.”(BLUTEAU, p. 742)58


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.que dote terá maiorO romance começa com a situação paradoxal <strong>de</strong> um eu liberto/cativo, o qualse vê como um “negro ferrado”; trata-se do não-branco i<strong>de</strong>ntificado ao não-livre, o qualcontrastará com o “gentil homem” discreto, pólo eufórico que <strong>de</strong>nota a posição do eupoemáticoapós receber as “prendas” do jogo do amor, alegorizado no “truque”. Oconceito central é o ‘laço’ (um “azul” e outro “cor <strong>de</strong> ca<strong>na</strong>”), or<strong>na</strong>to da roupa que setransforma em or<strong>na</strong>to do poema, quando é usado para capturar o ‘negro ferrado’ em queo Eu se transforma em seu doce vício, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>smedido.Ao falar das alegorias ‘amante-escravo’ e ‘amor-jogo’, Paul Veyne,referindo-se à elegia erótica roma<strong>na</strong>, comenta a imagem como <strong>uma</strong> variação <strong>de</strong> <strong>uma</strong>metaforização do amor como guerra:(...) entre o Amor e os homens, há <strong>uma</strong> guerra, <strong>na</strong> qual o Amor querescravizar os h<strong>uma</strong>nos; pois, ou se é senhor ou se é escravo; não hámeio termo. Esta guerra <strong>de</strong> amor, longe <strong>de</strong> ser <strong>uma</strong> metáfora surrada,era <strong>uma</strong> fantasia sobre <strong>uma</strong> idéia que a moral do tempo levava muitoa sério, a idéia <strong>de</strong> assegurar a autarcia do indivíduo (...). (1983, p.204)Mil e quinhentos anos <strong>de</strong>pois do Propércio comentado por Veyne, FonsecaSoares ainda se utiliza do mesmo repertório <strong>de</strong> imagens, agora filtradas por sua éticacortesã e sua moral cristã contra-reformista. As guerras, tanto as reais quanto as <strong>de</strong>amor, ainda fazem escravos; e um regime aristocrático semelhante ainda indica <strong>uma</strong>cisão radical e, assim como no tempo <strong>de</strong> Propércio, não há meio-termo em ser senhor eser escravo. O ato <strong>de</strong> servir, porém, toma <strong>uma</strong> qualificação nova no cristianismo: “ohomem se enobrece servindo <strong>uma</strong> mulher, amando-a em vão.” (VEYNE, 1983, p. 214)A autarquia do fidalgo ainda é um valor, porém, nos termos da lei <strong>na</strong>tural divi<strong>na</strong>,59


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.inclusive conforme os evangelhos, é também valorizado que um cavaleiro sirva a seu reie a sua dama assim como um escravo sirva a seu senhor.O amante-jogador também é comentado por Veyne como sendo <strong>uma</strong> dasconseqüências do tipo da mulher esquiva, referência à dura puella cantada porPropércio: “Recusar seus favores é o melhor meio <strong>de</strong> submeter seu amante, que, comoum jogador, obsti<strong>na</strong>-se e investe ainda mais (...)” (id., p. 210).E esse jogo feminino acaba redundando num jogo maior, peculiar do séculoXVII, em cujas regras é aceitável a um homem <strong>de</strong> armas submeter-se voluntariamente:o jogo mundano da <strong>poesia</strong>, cujo público cortesão recebia o trabalho do conceito e ainserção em <strong>uma</strong> jocosida<strong>de</strong> auto-irônica como <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> prudência e discrição.A habilida<strong>de</strong> do poeta que, <strong>na</strong> emulatio retórica, dispunha <strong>de</strong> maneira nova umrepertório universalmente conhecido <strong>de</strong> conceitos e lugares-comuns, era entendidacomo engenhosida<strong>de</strong> e instrumento <strong>de</strong> prestígio intelectual. Muitas vezes essa <strong>poesia</strong> éacusada <strong>de</strong> ‘frívola’, ‘contami<strong>na</strong>da por um excesso <strong>de</strong> or<strong>na</strong>mentação’. Todas asvariações virtuosísticas em torno do conceito ‘negro’ são mostra, entretanto, que oor<strong>na</strong>mento não é um simples ‘enfeite’, mas sim <strong>uma</strong> relação complexa entreimagem/conceito, cuja <strong>poesia</strong> <strong>dos</strong> seiscentos trabalha à moda <strong>de</strong> um exercício cujosfundamentos estão apoia<strong>dos</strong> <strong>na</strong> dialética <strong>de</strong> fundo platônico e aristotélico, a respeito dasquais não nos cabe esmiuçar aqui. Essa relação dialético-retórica característica dobarroco levou João Adolfo Hansen (1989, p. 234 e ss.) a criar o termo or<strong>na</strong>to dialético,o qual é corroborado pela doutri<strong>na</strong> aristotélica onipresente nos trata<strong>dos</strong> seiscentistassobre <strong>poesia</strong> (notadamente o <strong>de</strong> Emanuele Tesauro).Num outro espectro retórico-poético, o satírico, a imagem do escravo (negro)é retomada no romance 80. Peça <strong>de</strong> cunho <strong>na</strong>rrativo, seu conteúdo satírico reflete a60


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.dramaticida<strong>de</strong> inerente ao gênero (HANSEN, 1989, p. 41); a perso<strong>na</strong> pru<strong>de</strong>nte intervémteatralmente <strong>na</strong> perturbação da or<strong>de</strong>m, o comportamento vicioso, esperando purificar(catarticamente) o corpo místico do Estado.As primeiras estrofes dão voz a um <strong>na</strong>rrador que apresenta a ce<strong>na</strong> ridículaque se <strong>de</strong>sdobrará: duas comadres que ‘tem mudança por sobrenome’, intemperadas eindiscretas, levam suas diferenças ‘à praça’ com gritos e com ‘bofetadas que chovem’.Entre os insultos coloca<strong>dos</strong> <strong>na</strong> voz das comadres estão os tipos viciosos característicosda socieda<strong>de</strong> cortesã do período, como a figura da feiticeira, e a <strong>de</strong>squalificação daorigem. Transcrevemos o trecho em que há o diálogo:Disse <strong>uma</strong> dize malvadanão dissestes que três noutespara anbruxar um meninote converteste num bo<strong>de</strong>Mentes velhaca, eu podiadizer-te, nem por remoque<strong>de</strong> mim esse testemunhotu patifa és a que fostePreza pelo secularfeiticeira tão enormeque eu te vi com estes olhoslevar um gibão <strong>de</strong> açoutesEm mim açoutes maga<strong>na</strong>quando <strong>na</strong> rua das floresum negro te <strong>de</strong>u no rabomuitas palmadas e coucesCouces em mim! tal [mentira]que h<strong>uma</strong> patifa <strong>dos</strong> montesQue andou sempre a Regalheirame tenha a mim tão grã tosseDos montes! não vereis ma<strong>na</strong>a cidadoa tão nobreque vejo aqui <strong>de</strong> galizametedinha em um AlforjeMentes michella que fuicá baptizada em São Jorgecom que sou filha da praiae tu viestes <strong>de</strong> Arronches61


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.A diatribe começa com <strong>uma</strong> comadre <strong>de</strong>squalificando a outra como bruxa, aqual, ainda pior, é incompetente <strong>na</strong> feitiçaria. O conflito parte então para as<strong>de</strong>squalificações das origens e posições sociais: <strong>uma</strong> é acusada <strong>de</strong> ser açoitada empúblico, ofensa rebatida pela <strong>de</strong>squalificação, ainda maior, <strong>de</strong> que a primeira foiaçoitada por um ‘negro’. Caras ao imaginário fidalgo, a limpeza <strong>de</strong> sangue e a origemilustre são invertidas como instrumento para o rebaixamento retórico: como um toposdo gênero epidítico, elas remontam ao capítulo IX do livro II da Arte Retórica <strong>de</strong>Aristóteles, on<strong>de</strong> o filósofo grego aponta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, ao louvar ou vituperaralguém, a<strong>na</strong>lisar “se as ações <strong>de</strong> um homem são dig<strong>na</strong>s <strong>de</strong> seus antepassa<strong>dos</strong>” (p. 63). Alinhagem escrava combi<strong>na</strong>-se com a linhagem bárbara, inventariada retoricamente nosSeiscentos como topos da ‘<strong>na</strong>ção’ ou “Patria”. Essa última é nomenclatura usada peloFrei Sebastião <strong>de</strong> Santo Antonio, preceptista autor <strong>de</strong> um Ensaio <strong>de</strong> Rhetorica,conforme o methodo e doutri<strong>na</strong> <strong>de</strong> Quintiliano, <strong>de</strong> 1779, que <strong>de</strong>fine a tópica da seguintemaneira:Po<strong>de</strong>-se argumentar <strong>dos</strong> lugares referi<strong>dos</strong> pelos mo<strong>dos</strong> seguintes. DaPatria: Que menos se podia esperar <strong>de</strong> hum Africano , astuto ,enga<strong>na</strong>dor , supersticioso , e barbaro? Estes saõ os <strong>de</strong>feitos que emgeral attribuem a esta Naçaõ. (p. 89)Esse trecho do Frei Sebastião além <strong>de</strong> servir <strong>de</strong> exemplo do uso <strong>de</strong> lugar<strong>na</strong>ção, também é exemplo do viés pelo qual são vistos os africanos, oriun<strong>dos</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong>terra <strong>de</strong> muçulmanos, pagãos (“supersticioso” 9 ) e bárbaros: astutos e enga<strong>na</strong>dores comoo Pigmeu ou o ‘negro <strong>de</strong> Angola’, citado supra. A caricatura do negro que açoita dandocoices como um animal <strong>de</strong> carga é, portanto, <strong>uma</strong> construção <strong>de</strong> mundo às avessas,9 Talvez seja a maneira pela qual o seiscentos tenha qualificado o animismo das <strong>na</strong>ções negras que osportugueses encontraram <strong>na</strong>s colônias africa<strong>na</strong>s.62


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.colocando um pagão não-nobre e não-livre n<strong>uma</strong> posição <strong>de</strong> senhor, <strong>de</strong>formação a qualé possível somente como sátira ou ridículo.Nesse trabalho procuramos expor alguns subsídios para a compreensão dohorizonte <strong>de</strong> expectativas peculiar <strong>na</strong> qual a <strong>poesia</strong> do ms. 2998 foi produzida. Ahostilida<strong>de</strong> quanto às populações escravas, explícita em certos usos do conceito ‘negro’,é claríssima; os pressupostos retóricos, poéticos e teológicos <strong>de</strong> Fonseca, mostram quesuas idéias e as <strong>de</strong> seus contemporâneos sobre o assunto diferem irremediavelmente dasnossas. O elitismo escravocrata, racista e misógino hoje nos causa estranheza, e mesmoenoja, ainda mais quando aplicado tão <strong>na</strong>turalmente num contexto <strong>de</strong> <strong>poesia</strong> amorosa.Não queremos, entretanto, cair <strong>na</strong> acusação <strong>de</strong> a<strong>na</strong>crônicos e daí nosso breve esforço <strong>de</strong>situar essa <strong>poesia</strong> no seu <strong>de</strong>vido tempo, com suas <strong>de</strong>vidas condições <strong>de</strong> produção erecepção.Referências bibliográficasALMEIDA, C. M. <strong>de</strong> O. M. Romances <strong>de</strong> ausência e sauda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Antonio da FonsecaSoares, Transcrição <strong>de</strong> romances extraí<strong>dos</strong> do Códice no 3549 da Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l.Uma leitura comparada do códice no. PBA132, e códices 3368, 3566, 6104, 6269, 6430,8575, 8576, 8581, 8614, 9321, 9322 da mesma Biblioteca, precedido <strong>de</strong> um breveestudo histórico e literário. Dissertação <strong>de</strong> mestrado em Literatura e Culturaportuguesas. FCSH – Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências e Sociais e H<strong>uma</strong><strong>na</strong>s, Departamento <strong>de</strong>Literatura Portuguesa, Universida<strong>de</strong> Nova <strong>de</strong> Lisboa, 1992.ANTONIO, Frei S. S. Ensaio <strong>de</strong> Rhetorica, conforme o methodo e doutri<strong>na</strong> <strong>de</strong>Quintiliano, e as reflexões <strong>dos</strong> authores mais celebres, que trataram <strong>de</strong>sta materia.Lisboa: Offici<strong>na</strong> Luisia<strong>na</strong>, 1779.ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução <strong>de</strong> Antonio Pinto <strong>de</strong> Carvalho.São Paulo: Ediouro, [19-].BELCHIOR, M. <strong>de</strong> L. Os Homens e os Livros (Séculos XVI e XVII) Lisboa: Verbo,1971. Disponível em http://books.google.com. Acesso em 27/10/2006.63


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.BLUTEAU, R. Vocabulario Portuguez e Latino. UERJ. 1 CD-ROM.CHAGAS, Frei Antonio das Chagas. Cartas Espirituais. Selecção, prefácio e notas peloprof. M. Rodrigues Lapa. Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1957.DAVENPORT, F. G. European Treaties bearing on the History of the United States andits Depen<strong>de</strong>ncies to 1648. Washington, D.C.: Carnegie Institution of Washington, 1917.Disponível em:http://books.google.com.br/books?id=zwaayWuslnMC&dq=European+Treaties+bearing+on+the+History+of+the+United+States+and+its+Depen<strong>de</strong>ncies&printsec=frontcover&source=bl&ots=0t5GXQwXAV&sig=XwPUc_BCvSHDas88ujufCENGF5o&hl=pt-BR&ei=J5mtStrpIKMtgeoucGbCA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1#v=onepage&q=mahomet&f=false, acesso 9 set 2009.HANSEN, J. A. A sátira e o engenho. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.HANSEN, J. A. Padre Antônio Vieira. Sermões. In: Mota, Lourenço Dantas. (Org.).INtrodução ao Brasil. Um Banquete no Trópico. São Paulo: Editora SENAC, 1999, p.25-53.Ms. 2998 da Sala <strong>de</strong> Reserva<strong>dos</strong> da Biblioteca Geral da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra.Ms. 345 da Sala <strong>de</strong> Reserva<strong>dos</strong> da Biblioteca Geral da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra.PIMENTEL, A. Vida munda<strong>na</strong> <strong>de</strong> um fra<strong>de</strong> virtuoso. Lisboa: Livraria Antonio MariaPereira, 1889.PONTES, M. L. B. Frei António das Chagas: um homem e um estilo do séc. XVII.Lisboa: Sa da Costa, 1953.SILVA, V.M.P.A. Maneirismo e Barroco <strong>na</strong> Poesia Lírica Portuguesa. Coimbra:Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, 1971.TOSI, Giuseppe. Aristóteles e a escravidão <strong>na</strong>tural. In: Boletim do CPA, Campi<strong>na</strong>s, nº15, jan./jun. 2003. Disponível em http://www.puc-rio.br/parcerias/sbp/pdf/11-giuseppe.pdf, acesso 7 set 2009.VEYNE, Paul. A elegia erótica roma<strong>na</strong>. Tradução Milton Meira do Nascimento e Mariadas Graças <strong>de</strong> Souza Nascimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.64


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.AnexosRomance 32510152025303540Entregai vosso senti<strong>dos</strong>enhora a meu sentimentovereis o inferno que gozovereis a gloria em que penoEntristecem-me lembrançase com lembranças me alegrocustam muito valem poucopreço têm, e não tem preçoDig<strong>na</strong>s <strong>de</strong> inveja a respeitodig<strong>na</strong>s <strong>de</strong> lástimas creiose <strong>de</strong> inveja pela causa<strong>de</strong> lástima pelo efeitoEnchem <strong>de</strong> tormento, e glorianossos favores meu peito<strong>de</strong> glória por alcançá-los,por perdi<strong>dos</strong> <strong>de</strong> tormento,Sempre que contemplo o rosto,que sempre o rosto contemploassombro gran<strong>de</strong> da terra ,e mapa <strong>de</strong> Céu pequeno.Oh que <strong>de</strong>leite, ai que pe<strong>na</strong>ora gozo, ora pa<strong>de</strong>çoo <strong>de</strong>leite porque o via pe<strong>na</strong> porque o não vejoQuando o cabelo me lembradon<strong>de</strong> o gigante Pigmeuforma corda para o arcotece para a re<strong>de</strong> enre<strong>dos</strong>Negros sim, mão tão lustrososque juntando dous extremostudo é gala sendo Luto,tudo é senhor, sendo negroEscuro, sim, mas tão Lindoque tem com raro portentomais que a beleza <strong>de</strong> Escuroa escurida<strong>de</strong> do beloQuando <strong>na</strong> i<strong>de</strong>ia retratoos rasga<strong>dos</strong> olhos <strong>negros</strong><strong>negros</strong> qual minha venturarasga<strong>dos</strong> como meu peitoQuando as flores imaginodas faces, don<strong>de</strong> o Deus cego4550556065707580já qual abelha mel tirajá qual áspi<strong>de</strong> põe venenoQuando o <strong>na</strong>riz bem compostometa da beleza e jeito,lírio branco em jardim culto,Láctea via em Céu serenoQuando consi<strong>de</strong>ro a bocamas quando a não consi<strong>de</strong>roquanto florida <strong>na</strong>s corestanto florida em conceitosAquele rubi divinoque parece doce e beloda mais néscia a formosuraDa mais feia por discretoPois quem o vê não a ouvindocuida não ten<strong>de</strong>s engenho,ou que sois menos fermosaquem o ouve, não o vendo.Desta sorte o tempo passove<strong>de</strong>-vos que passatempo,vivo e morro em um instante,em um instante gozo, e penoDizer quanto me lembraisnesta em sofrível <strong>de</strong>sterro,não quero amor como posso,não posso amor como queroDe amor retórico gran<strong>de</strong>em [vossas] prendas o tenho,e quando a todo me falta<strong>na</strong> parte o todo con<strong>de</strong>noAquele branco listãoque junto ao vosso plebe<strong>uma</strong>is gala tomou que <strong>de</strong><strong>uma</strong>is branco ficou que vejoAos dois venturosos cravosque tomaram no outro tempomais púrpura em [vossa] bocamais fragrância, um [vosso] alento.Talvez aos [neis] <strong>de</strong> vidro [ ]tal aos [neis] do cabelocompostos <strong>de</strong> mil firmezas,e <strong>de</strong> mil lembranças, feitos.65


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.859095100Dá meu coração mil contasdiz minha fé mil extremosfaz mil quebros minha musaMas quando não vejo as prendasno céu o Clory vos vejomas não nos retrata o céucomo vos pinta meu peitoDe noute as estrelas claras<strong>de</strong> dia o Sol sempre belosão dulcíssima tiraniavossa cópia e meu objetoMas que digo sol estrelasse junto do vosso gestoo Sol fica estrela breveA estrela raio pequeno.Outro retrato mais fino105110115trago amores em mim mesmo,mas tão sobre<strong>na</strong>turalque <strong>na</strong>tural o não creioArtífice foi Cupido,vossa beleza o sujeitosuas setas o pincelo meu coração o lençoAqui meni<strong>na</strong> <strong>dos</strong> olhosolhos d’alma, alma do peitovos vejo, e cego do novo,vejo-nos, e me RecreioAqui vivereis eter<strong>na</strong>mas ai que o contrário temo,pois o lenço é cera todoe todo o Sol é bocejoRomançe 80510152025Quem dissera que no diaem que as comadres a noutecust<strong>uma</strong>m sempre ajuntar-sea fazer [filhor esdoces]Houve duas que fizeramcom <strong>de</strong>scompassadas nozesmuita soma <strong>de</strong> pancadasmuita catervas <strong>de</strong> coucesCui<strong>de</strong>i que por ser entrudoquando mil pulhas se ouvem<strong>uma</strong> a outra se empulhavapatenteando seus podresPorem <strong>de</strong>pois que as ouvipublicar tão <strong>de</strong>sconformesbem conheci que há mulheres,que não prestam para odresQuem dantes visse a amiza<strong>de</strong>e seus íntimos amoresdiria que venceriamem adoração ao bronzeMas como as mais <strong>de</strong>las temmudança por sobrenomelogo se mudam e pelejampor qualquer palhinha podresArrenegai da comadreque coze o que bebe, e comenum ano, e que só num diatudo o que coze <strong>de</strong>scoze303540455055Que <strong>de</strong> comadres fariammui esplêndi<strong>dos</strong> pago<strong>de</strong>sao tempo que estas duasdavam <strong>na</strong> honra seus cortesQuantas vezes ambas juntasestando amigas conformesmurmurariam <strong>dos</strong> Ricosdizendo as faltas <strong>dos</strong> pobresOh quantas <strong>de</strong> soalheiro<strong>de</strong> seus agu<strong>dos</strong> estoquesda língua foram feridasque são feridas <strong>de</strong> morteQuantas vezes <strong>uma</strong> a outramelhor que a seus confessores<strong>de</strong>scobriram alguns segre<strong>dos</strong>que agora quem quer os ouveEu nunca comadres vigritarem como em açouguee no cabo às espetadasdão bofetadas que chovemPutas se chamam, e disputamNo que sabem quanto po<strong>de</strong>me saindo tudo a praçanão fica <strong>na</strong>da no foleDisse <strong>uma</strong> dize malvadanão dissestes que três noutespara embruxar um meninote converteste num bo<strong>de</strong>66


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.60657075Mentes velhaca, eu podiadizer-te, nem por remoque<strong>de</strong> mim esse testemunhotu patifa és a que fostePreza pelo secularfeiticeira tão enormeque eu te vi com estes olhoslevar hum gibão <strong>de</strong> açoutesEm mim açoutes maga<strong>na</strong>quando <strong>na</strong> rua das floreshum negro te <strong>de</strong>u no rabomuitas palmadas e coucesCouces em mim! tal mentiraque <strong>uma</strong> patifa <strong>dos</strong> montesQue andou sempre a Regalheirame tenha a mim tão grã tosseDos montes! não vereis ma<strong>na</strong>a cidadoa tão nobreque vejo aqui <strong>de</strong> galizametedinha em um Alforje80859095Mentes michella que fuicá baptizada em São Jorgecom que que sou filha da praiae tu viestes <strong>de</strong> ArronchesEstas e outras palavrasque não é bem que se contempassaram as ditas comadresno dia que é <strong>de</strong> seu nomeMas que a que não é <strong>de</strong> essênciaque haja comadres, quem foge<strong>de</strong> tomar alg<strong>uma</strong>s, livra<strong>de</strong> que nenh<strong>uma</strong> o <strong>de</strong>sonreSa a historia foi comprida[poque] os mo<strong>de</strong>rnos autores[<strong>na</strong>o não] mais larga a hum romanceQue Três Coplas sobre dozePara linguão tão compridoduas regrinhas não po<strong>de</strong>m<strong>na</strong>rrar o que [entreo] os arescom alari<strong>dos</strong>, e vozesRomance 945101520Teve a bela raparigaas ga<strong>de</strong>lho<strong>na</strong>s tão louras,que inda hoje em anéis <strong>de</strong> ourose conservam as memóriasSolto o cabelo <strong>dos</strong> ombrosou recolhido <strong>na</strong> coifaou era inveja ao ventoou guarnição da lisonjaA branca testa <strong>de</strong> nevetanto andava vencedoraque sempre em campanha livrecândida ostenta victóriasSutilmente as sobrancelhasem os seus arcos compostasDuquesas são <strong>de</strong> Florençaquando são <strong>negros</strong> <strong>de</strong> AngolaOs olhos <strong>de</strong> bem rasga<strong>dos</strong>se metem a valento<strong>na</strong>no bairro da boa vista[comorauel] <strong>na</strong> bem postaDuas meni<strong>na</strong>s os servemtão lindas graves, e airosasque inda que andam <strong>na</strong>s capelasas veneram por senhoras2530354045Ambas vestem <strong>de</strong> esperançasdireitamente a la modae sem ter <strong>na</strong>da <strong>de</strong> jeitosão mais que todas jeitosasDe pesta<strong>na</strong>s se guarnecemcujas bem agudas pontasem competências <strong>de</strong> balasse topam <strong>uma</strong>s com outrasMaçãs o rostinho ven<strong>de</strong>e flores tão preciosaspois é barata <strong>de</strong> tu<strong>dos</strong>endo mui cara <strong>de</strong> RosasNão lhe falo <strong>na</strong>s orelhasporque temo que lhas comamPor rosquinhas <strong>de</strong> alfenimalg<strong>uma</strong>s <strong>de</strong>stas gulosasDo <strong>na</strong>riz não sei que digamas que a bela Senhoraesteve muito arriscadaa ir por hum triz a RomaCom boca beiços, e <strong>de</strong>ntesencanta suspen<strong>de</strong> assombrato<strong>dos</strong> <strong>de</strong>ixa a boca abertase acerta <strong>de</strong> abrir a boca67


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Her<strong>na</strong>n<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, A<strong>na</strong>LuísaVilela, A<strong>na</strong> Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLG 30 – A Língua Portuguesa no intercâmbio cultural resultante <strong>dos</strong> relatos <strong>de</strong> viagem.5101520No remate da carinhaadre<strong>de</strong> misteriosacovinhas faz on<strong>de</strong> a graçacom um rio vendo se escondaDe cristal <strong>de</strong>sce a gargantacompasso tão vagaroso<strong>de</strong> modo que em breve espaçoa vista trespassa todaAs mãos não são <strong>de</strong> papelque aquelas peque<strong>na</strong>s folhas<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser açuce<strong>na</strong>por serem flor <strong>de</strong> lisboaTudo o mais do lindo corpojulgo a atenção [rigoza]qual será <strong>na</strong> própria peçaquem era tal <strong>na</strong>s amostrasOs pés por carta <strong>de</strong> menossempre per<strong>de</strong>rão a polhanem ja mais fizerão uazaposto leuarão a sota68

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