21.07.2015 Views

a periodização literária e a literatura portuguesa dos séculos xvi e xvii

a periodização literária e a literatura portuguesa dos séculos xvi e xvii

a periodização literária e a literatura portuguesa dos séculos xvi e xvii

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Língua <strong>portuguesa</strong>: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A <strong>literatura</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>dos</strong> séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.periodização da <strong>literatura</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>dos</strong> séculos XVI e XVII, tendo em vista umaefectiva melhoria da eficácia cognitiva dessa mesma periodização.«E ela existe»! Será bom começar por este postulado sobre a periodizaçãoliterária, que fui buscar a um texto de Helena Buescu, 1 para reafirmar, ainda que sobrenovos fundamentos e motivos, a utilidade e a sensatez da periodização comoinstrumento para a inteligibilidade da <strong>literatura</strong> no seu devir histórico.Negar a História como conceito universal (identificando-a com invenção eimposição europeia/ocidental); negar a validade heurística da periodização; entender osperío<strong>dos</strong> como meras alegorias institucionais de mundividências particulares; designartoda a acção periodológica como simplificação e generalização deturpadoras; designartoda a linearidade evolutiva como aplicação dum preconceito, o organicista; concebê-lacomo afirmação duma identidade colectiva (nacional, social, institucional) e dominadapor essa carga identitária; considerar que a periodização atende apenas à produção,esquecendo a recepção e o consumo; lamentá-la como instrumento de exclusão porefeito <strong>dos</strong> cânones (o período seria o resultado duma falseadora operação de sinédoqueem relação a autores e obras); identificá-la com espírito de classe ou de sobranceriaelitista (ignorando a <strong>literatura</strong> popular, de massas, oral, o best-seller e a não-ficção); e,finalmente, rejeitar a <strong>literatura</strong> como fenómeno autónomo dentro da cultura e sociedade(e até como fenómeno tout court, designando-a como inaceitável autarcia), to<strong>dos</strong> sãodesenvolvimentos, penalizadores <strong>dos</strong> esforços periodológicos, que resultam da intensateorização contemporânea em torno da história literária.1Helena Carvalhão Buescu, Grande Angular. Comparatismo e Práticas de Comparação, [Lisboa]:Fundação Calouste Gulbenkian/Ministério da Ciência e da Tecnologia, 2001, p. 57.2


Língua <strong>portuguesa</strong>: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A <strong>literatura</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>dos</strong> séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.Retomando a frase de H. Buescu, a periodização existe – porque “não é possívelnão periodizar”, como escreveu Fredric Jameson 2 – mas tem tido de se confrontar comum intenso plano de teorização que a denega, quer enquanto possibilidade deseccionamento coerente do tempo em realidades literárias supranacionais, querenquanto possibilidade de se afirmar literária, isto é, conceptualmente autónoma.Eppure si muove. Resta saber se a conservação <strong>dos</strong> actos periodológicos,particularmente os globalizantes, se deve à obsolescência de instituições resistentes ouse, pelo contrário, a sobrevivência da periodização literária tem a ganhar com osdesenvolvimentos teóricos das últimas décadas e pode responder positivamente aosabatimentos a que a têm sujeito.Existem modelos de aplicação de formas de periodização literária quesobrevivam ao cepticismo dominante? A nível supranacional, a única tentativaconsistente que conheço de aplicação no concreto dum modelo de periodização é aquelepresidido por Mario Valdés no âmbito da Associação Internacional de LiteraturaComparada. A crença deste modelo na possibilidade duma periodização literária é,porém, pouca ou nenhuma. A tendência seguida é a de subsumir sob o guarda-chuvacultural a capacidade de historiar a <strong>literatura</strong> das várias regiões do mundo, região aregião. Nesse sentido, este projecto não difere das propostas dum Totosy de Zepetnek,duma Susan Basnett, duma Gayatri Spivak e de to<strong>dos</strong> aqueles que adoptaram umcomparatismo onde a <strong>literatura</strong> não é mais do que uma de muitas manifestaçõesculturais, logo sujeita a mo<strong>dos</strong> de indagação orienta<strong>dos</strong> por essa última circunstância.2Fredric Jameson, A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present, Nova Iorque: Verso,2002, p. 29.3


Língua <strong>portuguesa</strong>: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A <strong>literatura</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>dos</strong> séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.também a absoluta necessidade duma memória colectiva para o (auto)reconhecimentoduma comunidade.2.º Nesta medida, como o tempo histórico arranja maneira de ser medido emtodas as culturas, a periodização constitui um elemento de inteligibilidade natural. Aapreciação individual da obra de arte não impede a constatação de que a natureza dascondições que presidem à sua produção e recepção mudam, mudando por isso, também,a obra em si. Por muito que se atribua a um texto literário uma qualidade transcendenteà passagem do tempo, não parece possível, dentro da racionalidade, negar estapassagem e as mudanças que a implicam, negar que esse mesmo texto jamais seria omesmo se produzido noutras circunstâncias e noutra época.3.º Mas se algumas das críticas à periodização provêm de idealismos de váriostempos e lugares (penso em Benedetto Croce ou em Harold Bloom), o ataque maissistemático à periodização toma geralmente a forma de recusa de generalizações que seentendem apenas como necessidades institucionais. Uma espécie de obsessão pelaafirmação individual, bem típica do nosso tempo, preocupa-se em assinalarmanifestações culturais singulares, e resistentes a formas de institucionalização emregra provenientes de imperia políticos. Se é certo que o particular constitui sempre umdesafio à teoria, daí não se pode depreender que o particular invalida a teoria. Aperiodização é uma teoria ordenadora duma série de objectos particulares cujaexistência deve determinar os princípios gerais. A questão está em saber encontrar osprincipia que explicam a (de outro modo) casuística <strong>dos</strong> fenómenos analisa<strong>dos</strong>. Aprocura desses principia, bem como a crítica e a rejeição de teorias inaplicáveis a certosparticulares, é o objectivo necessário para a inteligibilidade, que é sempre um processode generalização. A instituição que valoriza a busca de tais princípios teóricos é a5


Língua <strong>portuguesa</strong>: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A <strong>literatura</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>dos</strong> séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.Coutinho nos anos 50 do século passado. Com efeito, se textos do professor brasileirosobre a história da poética ocidental podem servir ainda hoje, em minha opinião, comoreferência para o estabelecimento de bases sólidas de periodização literária, tem sido detal ordem o silêncio sobre as sínteses desta matéria da sua autoria que nos vemosobriga<strong>dos</strong>, em nome <strong>dos</strong> desígnios dum estudo humanístico sério, a uma autênticaexumação sua.É certo que Coutinho foi citado ocasionalmente por estudiosos portugueses apropósito de <strong>literatura</strong> brasileira, do “barroco” e de um ou outro aspecto relativo àhistória literária. O professor brasileiro chegou a ser citado extensamente em Portugal arespeito das bases gerais em que deveria assentar uma metodologia da periodizaçãoliterária. 4 Mas em momento nenhum se aproveitou a síntese da evolução teórico-literáriaocidental que Coutinho realizou para se repensarem as categorias e os critérios queregiam a referência aos perío<strong>dos</strong> e épocas da <strong>literatura</strong>. Pelo contrário, a sua enfáticainsistência na necessidade dum estudo histórico da <strong>literatura</strong> qua <strong>literatura</strong>, comreferência a «sistemas de normas», «características estético-estilísticas» e análise dasobras individuais em relação com esses sistemas e características, parece ter tido poucoou nenhum eco na prática histórico-literária. Ainda não se fez o estudo da Poéticaaristotélica e da sua recepção em Portugal, não se estudaram os fundamentosepistemológicos (necessariamente supranacionais) <strong>dos</strong> textos portugueses e brasileirosque reflectem sobre a actividade literária, não se aplicou o estudo das artes históricas dodiscurso à compreensão da produção literária, enfim, não se fez o necessário para arealização <strong>dos</strong> objectivos propugna<strong>dos</strong> por aquele estudioso. Por conseguinte, nãoà <strong>literatura</strong> e filologia <strong>portuguesa</strong>s, bem como as manifestações de intelectuais portugueses em relaçãoa ele, foram já objecto de estu<strong>dos</strong> próprios.4É o caso de V. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 7.ª edição, Coimbra: Almedina, 1986, pp. 433-4.8


Língua <strong>portuguesa</strong>: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A <strong>literatura</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>dos</strong> séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.surpreende que o estudo <strong>dos</strong> perío<strong>dos</strong> literários no mundo de língua <strong>portuguesa</strong> seapoiasse durante várias décadas, quer em orientações psico-sociais, 5quer emextrapolações sobre atitudes gerais <strong>dos</strong> autores perante a vida, 6 com escassa ou nulaatenção aos aspectos poetológicos. 7O livrinho Por uma Crítica Estética, publicado pela primeira vez em 1954 nacolecção “Os Cadernos de Cultura” do Ministério brasileiro da Educação e Cultura,esclarecia sinteticamente, com base na melhor e mais actualizada bibliografia entãodisponível, a dinâmica evolutiva das ciências do discurso desde a Antiguidade até aodealbar do Romantismo, com especial incidência nas heranças grega e romana, e nosseus reflexos renascentistas. Não há, ainda hoje, substituto para este livro em português.Sem dispensar de forma nenhuma a leitura atenta do texto completo, algumas dasafirmações que mais pertinentes se afiguram para a delimitação periodológica <strong>dos</strong>séculos XVI e XVII merecem ser citadas abundantemente:Na Poética de Aristóteles é um conceito poético, e não político ou ético, da <strong>literatura</strong> o queencontramos. Foi o que não viram nem podiam ver os romanos, primeiro porque não conheciam bem ecompletamente a obra de Aristóteles, depois porque a sua própria concepção retórica da <strong>literatura</strong> impediade conceber a <strong>literatura</strong> doutro modo. (...) Quando, no Renascimento, ela foi redescoberta, retraduzida ecomentada pelos humanistas italianos, Robertelo [sic], Minturno, Madio, Scaligero, Castelvetro, não foi aPoética de Aristóteles que ressurgiu mas um amálgama de Horácio e Aristóteles, que precisamentecaracteriza a teoria do Renascimento. (...) Visto através <strong>dos</strong> óculos horacianos <strong>dos</strong> críticos humanistas –pois sabemos que o Renascimento foi mais romano do que helénico – a Poética, e com ela todas as5Exemplo famoso é a Formação da Literatura Brasileira de Antonio Cândido, que se autodefine comouma “história <strong>dos</strong> brasileiros no seu desejo de ter uma <strong>literatura</strong>” (1.ª edição, 1957; cito da terceira, de1969, p. 25).6Exemplo influente é Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa de Vítor Aguiar e Silva(1971), onde se diz, por exemplo, que “os maneiristas desconhecem a alegria e o riso como atitudesexistenciais” (p. 255).7Não deve ver-se nesta asserção mais do que uma constatação histórica, sem quebra do apreço de quesão merecedoras essas duas obras fundamentais da história literária em português.9


Língua <strong>portuguesa</strong>: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A <strong>literatura</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>dos</strong> séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.teorias críticas de Aristóteles, passou a ser encarada como uma preceptística ou tratado de normas e regraspráticas, e interpretada como uma obra retórica. Daí a transferência das teorias retóricas, de Cícero eHorácio, para a teoria poética. (Coutinho 1954: 25-6)O predomínio da retórica ao longo da Idade Média e pelo Renascimento teve como efeito odesconhecimento ou a falsa interpretação, com visão astigmática e óculos retóricos, <strong>dos</strong> grandes trata<strong>dos</strong>de poética de Aristóteles ou Longino. As teorias poéticas nutriam-se, como diz Spingarn, nos trata<strong>dos</strong>retóricos <strong>dos</strong> antigos, e só depois da redescoberta e difusão da Poética é que, sobretudo na Itália <strong>dos</strong>humanistas, os estu<strong>dos</strong> críticos e as discussões se intensificaram no sentido propriamente poético.Todavia, no Renascimento, as teorias poéticas ficaram coloridas de retoricismo (...) Só a dentro do séculoXVII, por toda a Europa, máxime por influência <strong>dos</strong> estu<strong>dos</strong> italianos, é que as teorias poéticas selibertaram da tradição medieval retórica e <strong>dos</strong> estu<strong>dos</strong> puramente métricos, retomando contacto com asteorias críticas e poéticas antigas, numa compreensão mais clara de que a poesia não se compõe somentede assunto e estilo ou forma, porém é dotada de uma estrutura intrínseca e de um movimento internoespecífico. (Ibidem, 38-39)Tendo em devida conta a síntese de Afrânio Coutinho, com os seus postula<strong>dos</strong> de valorimediato para a compreensão das transições entre os perío<strong>dos</strong>, as reelaborações daperiodização literária realizadas nas academias <strong>portuguesa</strong> e brasileira teriamforçosamente de ser outras, mais concretizadas no tipo de conhecimento que existia nasépocas sobre os instrumentos ao dispor <strong>dos</strong> escritores e leitores no exercício das suasrespectivas funções.Claro está que o tipo de análise da <strong>literatura</strong> quinhentista e seiscentista permitidopelo enquadramento formulado em Por uma Crítica Estética – repare-se que me refiroao tipo de enquadramento e periodização, e não à correcção dum retrato que hojenecessitaria de ajustamentos – jamais seria discriminatório nos planos social, sexual,moral ou político, tendo apenas de ser limitado geoculturalmente: seria apropriado paraos séculos XVI e XVII em grande parte da Europa e colónias. Essa limitaçãogeocultural constituiria tão-só a consciência aguda de que não pode extrapolar-se para10


Língua <strong>portuguesa</strong>: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A <strong>literatura</strong> <strong>portuguesa</strong> <strong>dos</strong> séculos XVI e XVII e o seu ensino: novas perspectivas.fora de certo âmbito cultural uma realidade histórica e, muito menos, um paradigmaevolutivo. Ao mesmo tempo, porém, essa limitação não lhe retiraria a capacidadeexplicativa duma realidade suficientemente ampla, supranacional mas não generalista,inteligível mas não redutora.11

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!