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sobre modos de abordagem e ensino da poesia quinhentista

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.SOBRE MODOS DE ABORDAGEM E ENSINO DA POESIA QUINHENTISTAMarcia Arru<strong>da</strong> FRANCO 1RESUMOO presente artigo reflete <strong>sobre</strong> o <strong>ensino</strong> e a pesquisa <strong>de</strong> textos <strong>quinhentista</strong>s, a fim <strong>de</strong> legitimar osestudos históricos culturais <strong>da</strong> literatura antiga, por meio duma <strong>abor<strong>da</strong>gem</strong> multidisciplinar.Preten<strong>de</strong> pensar os <strong>modos</strong> <strong>de</strong> manipulação do texto antigo como documento <strong>de</strong> sua época e <strong>da</strong>sépocas em que foi relido, como um objeto <strong>de</strong> referência útil para o conhecimento histórico <strong>de</strong>diversas temporali<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Neste sentido, a aproximação central nos estudos humanísticos entre novafilologia <strong>de</strong> alta tecnologia, e história material do livro e <strong>da</strong> leitura permite uma revisão <strong>da</strong>historiografia literária e cultural <strong>sobre</strong> o século XVI.PALAVRAS-CHAVE: Século XVI; Ensino; Estética <strong>da</strong> Recepção; História Cultural; NovaFilologia.INTRODUÇÃOPreten<strong>de</strong>mos expor o ponto <strong>de</strong> vista que dirige as nossas pesquisas e aulas <strong>sobre</strong> os textos<strong>quinhentista</strong>s. Ao inserir a fonte poética em uma temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> específica é possível a suaconstrução como documento histórico pelo menos <strong>de</strong> quatro <strong>modos</strong> básicos: 1) O seu duplo sistema<strong>de</strong> referência ao real e ao imaginário será ativado por <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> recepção crítica ou criativa,historicamente <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>. As respostas diversas a um mesmo poema ao longo dos tempos nosfalam mais <strong>de</strong>sses tempos do que dos poemas. O comentário poético e a crítica literária sãopreciosas lupas para o investigador do diálogo entre o presente e o passado, em busca <strong>de</strong> se pensar ocapital simbólico transmitido acerca <strong>da</strong> <strong>poesia</strong> <strong>quinhentista</strong> e a canonização <strong>de</strong>ste período poético.2) Inversamente, a inserção do poema no horizonte <strong>da</strong> sua primeira recepção nos revela o ponto <strong>de</strong>vista do tempo em que a obra foi escrita, ficando à mostra o seu nascimento e vi<strong>da</strong> no universo <strong>da</strong>cultura, <strong>da</strong>í a importância <strong>de</strong> se trabalhar com manuscritos e primeiros impressos, o que implica1Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (USP), Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e CiênciasHumanas (FFLCH), Departamento <strong>de</strong> Letras Clássicas e Vernáculas (DLCV). Av. ProfessorGualberto, 403. Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Universitária. CEP 05508-900. São Paulo, SP, BRASIL. E.mail:mmaf@usp.br23


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.uma reflexão <strong>sobre</strong> a tarefa editorial e <strong>sobre</strong> as categorias autor, obra e leitor, feita pela NovaFilologia e pelos estudos <strong>da</strong> História do Livro e <strong>da</strong> Leitura, isto é, dos primeiros leitores <strong>da</strong> <strong>poesia</strong>em seu tempo: poetas, editores, impressores, tipógrafos, inquisidores, escribas, colecionadores etc3) Através do diálogo do poético com algumas questões coevas (no caso do século XVI português:o comércio <strong>de</strong> especiarias, a <strong>poesia</strong> do Renascimento, a inquisição, as <strong>de</strong>scobertas científicas, ohumanismo, a <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> língua vulgar e do português etc) também é possível fazer emergir o ponto<strong>de</strong> vista do passado. 4) Por fim, a recepção criativa mais próxima do tempo <strong>da</strong> investigação, isto é,aquela feita pelos próprios poetas, erigidos em leitores ou consciência receptiva <strong>de</strong> um temporecente, também po<strong>de</strong> ser manipula<strong>da</strong> como fonte documental, mostrando-nos a vitali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> <strong>poesia</strong>antiga neste <strong>de</strong>terminado momento <strong>da</strong> sua recepção.O caráter dialógico <strong>da</strong> produção poética torna possível reescrever a história <strong>da</strong> literatura apartir <strong>da</strong>s suas formas <strong>de</strong> expressão, isto é, com um critério interno à série literária. Logo a série <strong>de</strong>releituras e reedições <strong>de</strong> uma obra em variados tempos nos conta qual ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>termina ca<strong>da</strong>época em particular. A recepção criativa, como objeto <strong>de</strong> estudos literários, trata<strong>da</strong> do ponto <strong>de</strong>vista retórico e comparatista, <strong>de</strong>ixa entrever como se suce<strong>de</strong>m as gerações <strong>de</strong> poetas, nas suasglosas <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s imagens, e imitação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados autores. Ou o discurso se ur<strong>de</strong> <strong>de</strong> umcódigo poético pré-existente antigo e mo<strong>de</strong>lar ou <strong>de</strong> um novo código que se forja em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>prática poética como a mo<strong>de</strong>rnista ou a romântica. No paradigma comunicacional dos estudosliterários, a ca<strong>de</strong>ia diacrônica <strong>de</strong> registros permite documentar uma história crítica <strong>da</strong> literatura quese exerce como comentário aos textos doutrinários ou objetos <strong>de</strong> referência.A preocupação com o estatuto histórico dos estudos literários tem sido o <strong>de</strong>nominadorcomum dos ensaios publicados e <strong>da</strong>s aulas ministra<strong>da</strong>s. Isto não significou em nenhum momento<strong>de</strong>ixar a especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> do discurso poético <strong>de</strong> lado, ao contrário, é através do sistema <strong>de</strong> dupla24


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.referência ao seu próprio tempo e à série literária que a fonte poética po<strong>de</strong> servir como ferramentado processo <strong>de</strong> conhecimento histórico.Com o propósito <strong>de</strong> assegurar um estatuto histórico aos estudos literários, a sincroniapoética <strong>de</strong>ve ser compreendi<strong>da</strong> como um diálogo <strong>da</strong> obra com outro tempo posterior ao seu econtemporâneo ao do investigador ou consciência receptora, no exercício <strong>de</strong> sua Exotopia.Exotopia, como explica Bakhtin, no nível <strong>da</strong>s interações humanas, significa estar do lado <strong>de</strong>fora <strong>de</strong> alguém, que po<strong>de</strong> assim ser compreendido por seu aspecto externo, invisível a si mesmo,mas visível ao outro. Contando com uma visão <strong>de</strong> conjunto, aquele que está <strong>de</strong> fora tem umaperspectiva <strong>de</strong> compreensão impossível àquele que está <strong>de</strong>ntro. No plano <strong>da</strong> compreensão dopassado, contudo, o pesquisador conta com um conjunto <strong>de</strong> textos cujo diálogo <strong>de</strong>senha oscontornos <strong>de</strong> uma cultura, historicamente <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>. Cabe a ele escutar este diálogo, que <strong>de</strong>veser, no entanto, urdido por uma leitura particular, pois só ela po<strong>de</strong>rá fazer surgir o concerto <strong>da</strong>svozes pretéritas.Finalmente, a título <strong>de</strong> experiência didática, e para construir um elo afetivo com a <strong>poesia</strong> dopassado, ain<strong>da</strong> propomos a nossos alunos exercícios <strong>de</strong> criação poética, por meio do afeiçoamento<strong>da</strong>s técnicas <strong>de</strong> composição trovadoresca e <strong>da</strong> nova <strong>poesia</strong>, <strong>de</strong> modo que possam usar a sua própriacriativi<strong>da</strong><strong>de</strong> e exotopia, por exemplo, pelo <strong>de</strong>slocamento <strong>da</strong>s técnicas do passado para as angústias<strong>de</strong> seu próprio tempo e/ou por meio <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>spersonalização instruí<strong>da</strong> em poeta antigo.DO HISTÓRICO DAS RECEPÇÕES À HISTÓRIA DO LIVRO E DA EDIÇÃOTomemos o exemplo paradigmático <strong>de</strong> Camões, cuja obra é estrutural para o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> <strong>poesia</strong> portuguesa posterior. Ca<strong>da</strong> século constrói o seu Camões. Estas leiturasadquirem uma historici<strong>da</strong><strong>de</strong> própria, advin<strong>da</strong> do confronto entre, <strong>de</strong> um lado, a interpretação que se25


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.faz no presente e a feita no passado próximo <strong>da</strong> investigação, e <strong>de</strong> outro, a obra do Poeta em seutempo, com os seus pares. Para comparar Garcia <strong>de</strong> Orta, o botânico <strong>quinhentista</strong>, e Camões, nolivro <strong>de</strong> quem publica o seu primeiro poema, a história do livro antigo nos fornece subsídios <strong>de</strong>reconstrução do horizonte <strong>quinhentista</strong>. Se quisermos avaliar a recepção oitocentista dos gran<strong>de</strong>s<strong>quinhentista</strong>s, interessa-nos o con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ficalho, o botânico oitocentista, contemporâneo <strong>de</strong> Eça <strong>de</strong>Queirós. Logo, será preciso enten<strong>de</strong>r a dinâmica <strong>da</strong> recepção <strong>da</strong>s obras científicas e literárias, omodo como o botânico e escritor oitocentista pô<strong>de</strong> relacionar um cientista e um poeta do séculoXVI, <strong>da</strong> perspectiva oitocentista, e como hoje os po<strong>de</strong>mos relacionar, com o foco em quinhentos, apartir <strong>de</strong> estudos retóricos, culturais e <strong>da</strong> história do livro.Com isto, estaremos lançando mão <strong>de</strong> uma metodologia <strong>da</strong> teoria literária <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> naEscola <strong>de</strong> Constança, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> fins dos anos sessenta, a Estética <strong>da</strong> Recepção, para ler não apenasobras literárias, mas também científicas. Pelas referências diretas que o discurso científico faz aoreal cotidiano, àquilo que circun<strong>da</strong> a linguagem, cuja <strong>de</strong>scodificação é <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do mundo <strong>da</strong>vi<strong>da</strong>, e justamente por ser um texto impresso <strong>quinhentista</strong>, os Colóquios dos simples e drogas ecousas medicinais <strong>da</strong> Índia po<strong>de</strong>m ser objeto <strong>de</strong> uma leitura teórico-literária que não abdica <strong>de</strong>enten<strong>de</strong>r o ponto <strong>de</strong> vista científico em que foram escritos. Não se trata <strong>de</strong> construir os Colóquioscomo ficção, mas como objeto <strong>da</strong> história cultural <strong>quinhentista</strong>. O paralelo com a obra camonianaacentua a reconfiguração dos campos culturais no século XVI, aproximando as obras <strong>de</strong> ciência e<strong>poesia</strong>, do ponto <strong>de</strong> vista do século XIX, e construindo uma nova interpretação histórica <strong>da</strong>srelações entre Orta e Camões, com o foco no século XVI. Sabemos que o nosso ponto <strong>de</strong> vista nãose confun<strong>de</strong> nem com o do século XVI nem com o do século XIX.Com isso se jorra alguma luz <strong>sobre</strong> o modo <strong>de</strong> conhecer característico do século XIX, <strong>sobre</strong>o contexto cultural <strong>de</strong> Ficalho, on<strong>de</strong> o comentário botânico poético é uma prática legítima <strong>da</strong> crítica26


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.literária. O botânico participa <strong>da</strong> homenagem oficial ao tricentenário <strong>de</strong> Camões, em 1880,amplamente festejado em diversos campos <strong>da</strong> cultura letra<strong>da</strong>, dos dois lados do Atlântico, quando opoema épico ain<strong>da</strong> gozava <strong>de</strong> prestígio e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r institucional, por sua cultura humanística. Alémdisso, do nosso ponto <strong>de</strong> vista, ao examinarmos diretamente as relações <strong>quinhentista</strong>s entre Orta eCamões, também estaremos construindo nossa compreensão historicamente <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>, sabendoque outros olhares verão outras coisas que nos escaparam. Provavelmente será possível através <strong>da</strong>nossa “exotopia” espaço-temporal encontrar as motivações específicas a ca<strong>da</strong> um dos doismomentos pretéritos (o século XIX e o XVI) em que a pesquisa científica foi valoriza<strong>da</strong> no mundolusitano.Para abor<strong>da</strong>r as obras <strong>de</strong> Camões e Orta, nos séculos XVI e XIX, esta pesquisa buscaintegrar enfoques teóricos e metodológicos provenientes <strong>de</strong> diferentes disciplinas, assim como <strong>da</strong>schama<strong>da</strong>s “áreas <strong>de</strong> fronteira”, ou disciplinas limítrofes. A História Cultural vem sendo tributária <strong>de</strong>diversas ciências humanas: a Antropologia, a Sociologia, a História, a Teoria Literária, a NovaFilologia.Aqui importa explicitar os vínculos metodológicos entre História Cultural, Teoria <strong>da</strong>Literatura e Nova Filologia, pois a investigação limita-se a obras impressas pela tipografia lusía<strong>da</strong><strong>quinhentista</strong> e a suas reedições posteriores assim como <strong>de</strong> alguns manuscritos <strong>quinhentista</strong>s, nossasfontes primárias.Em “Os estudos literários hoje”, Bakhtin reflete <strong>sobre</strong> dois aspectos que <strong>de</strong>vem ser levadosem conta num estudo literário <strong>sobre</strong> obras <strong>de</strong> épocas passa<strong>da</strong>s. O primeiro aspecto diz respeito àspossibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> aproximação entre a História Cultural e os Estudos Literários. O segundo, àimpossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se restringirem os estudos históricos <strong>de</strong> literatura ao contexto histórico cultural27


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.em que surgiram as obras, pois estas interagem com outros contextos históricos, congregando novossignificados.Há dois movimentos para o pesquisador <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> épocas antigas: o primeiro é enten<strong>de</strong>rcomo estas obras, suportes materiais <strong>de</strong> sentido, integram-se em um contexto cultural próprio. Osigno impresso comum às diversas manifestações do saber sugere uma configuração concreta <strong>da</strong>sfronteiras entre os campos discursivos <strong>da</strong> História, <strong>da</strong> Poesia, <strong>da</strong> Ciência Natural e <strong>da</strong> Filologia.O segundo movimento que se abre ao pesquisador <strong>de</strong> textos antigos será enten<strong>de</strong>r como asobras foram adquirindo outros sentidos, também históricos, ao serem edita<strong>da</strong>s e li<strong>da</strong>s em outrasépocas, interagindo com outras configurações culturais.MATERIALIDADE DE TEXTOS ANTIGOS E HISTÓRIA CULTURALCabe, neste contexto, explicitar o diálogo existente entre Chartier e Gumbrecht-1 eGumbrecht-2, via Jauss, quanto à questão <strong>da</strong>s teorias <strong>da</strong> leitura e <strong>da</strong> recepção. Chartier consi<strong>de</strong>raque o papel ativo do impressor como doador <strong>de</strong> sentido ao texto foi esquecido pela Estética <strong>da</strong>Recepção, o que eliminou a distância entre as intenções autorais e os “dispositivos que resultam <strong>da</strong>passagem a livro ou a impresso, produzidos pela <strong>de</strong>cisão editorial ou pelo trabalho <strong>da</strong> oficina”. Econtinua: “Esta distância, que constitui o espaço no qual se constrói o sentido, foi muitas vezesesqueci<strong>da</strong> pelas abor<strong>da</strong>gens clássicas que pensam a obra em si mesma, como um texto puro cujasformas tipográficas não têm importância, e também pela teoria <strong>da</strong> recepção que postula uma relaçãodireta, imediata, entre o “texto” e o leitor, entre os sinais textuais manejados pelo autor e o“horizonte <strong>de</strong> expectativa” <strong>da</strong>queles a quem se dirige” (Chartier, 1990, 127).Tendo como alvo Jauss, a questão é <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por um dos mais irrequietos membros <strong>da</strong>Escola <strong>de</strong> Constança: Gumbrecht, na segun<strong>da</strong> fase <strong>de</strong> sua reflexão teórica. Ao propor a questão <strong>da</strong>28


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.“materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comunicação”, além <strong>de</strong> rever o legado formalista <strong>sobre</strong> o lado material <strong>da</strong> formapoética e propor a emergência <strong>de</strong> um campo <strong>de</strong> sentidos não hermenêutico, isto é, não centrado nasubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do leitor, mas sugerido pelo suporte material do texto, Gumbrecht, <strong>de</strong> certa forma,respon<strong>de</strong> a Chartier e <strong>de</strong>sdobra a abrangência <strong>da</strong> Estética <strong>da</strong> Recepção <strong>sobre</strong> as questõestipográficas.No plano <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação teórica, o segundo Gumbrecht põe em suspenso o resultadoalcançado pela Escola <strong>de</strong> Constança, tanto em relação ao estatuto discursivo próprio do poético, nãoi<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> entre a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos fatos e o horizonte do mundo, quanto em relação a uma visãohermenêutica <strong>da</strong> leitura poética. Os questionamentos do último Gumbrecht - a propósito do “camponão hermenêutico” (uma forma <strong>de</strong> interpretação não centra<strong>da</strong> no sujeito) e <strong>da</strong> emergência <strong>de</strong> sentidoa partir <strong>da</strong> “materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comunicação”, como <strong>da</strong>do perceptivo (auditiva ou visualmente) -conferem à ficção uma dimensão concreta que se <strong>de</strong>ixa corrigir pelo horizonte do mundo e <strong>da</strong> qualemerge o sentido num plano objetivo, isto é, que extrapola a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> do leitor e do poeta.A “materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comunicação” só é pensável, segundo Gumbrecht, a partir <strong>de</strong> umaconcepção hjelmsleviana do signo poético (Gumbrecht, 1993, 14-5). Os campos tradicionais dosignificado e do significante são bifurcados: os planos <strong>da</strong> substância do conteúdo e <strong>da</strong> forma doconteúdo dão conta <strong>da</strong> dimensão imaginária e i<strong>de</strong>ativa do poético; os planos <strong>da</strong> substância e <strong>da</strong>forma <strong>da</strong> expressão dão conta <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> perceptual <strong>da</strong> obra poética (Ibi<strong>de</strong>m). O “campo nãohermenêutico” se compõe <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> sentido sugeri<strong>da</strong>s pela dimensão perceptual do poético,sendo esta a acionar o juízo do leitor. A emergência do sentido se dá a partir do ritmo, do códigolingüístico utilizado, <strong>da</strong> imagem tipográfica, dos espaços em branco, enfim, através <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong><strong>de</strong>sperceptuais e materiais <strong>da</strong> escrita. Um estudo <strong>da</strong> “materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comunicação” poética privilegiao uso <strong>de</strong> fontes manuscritas, <strong>da</strong> tipografia antiga e <strong>da</strong>s primeiras edições <strong>da</strong>s obras. O “lugar na29


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.vi<strong>da</strong>” <strong>de</strong> uma obra começa pela história <strong>de</strong> sua edição, manuscrita ou tipográfica, isto é, nomomento <strong>de</strong> sua inserção no mundo <strong>da</strong>s coisas, que, necessariamente, interfere na sua circulação ena situação <strong>de</strong> leitura, ao provocar a emergência <strong>de</strong> outros sentidos.Quando convoca as características perceptuais <strong>da</strong> escrita como um campo <strong>de</strong> emergência dosentido, Gumbrecht está redimensionando, ao inseri-las no contexto <strong>da</strong>s interações, as aquisiçõesformalistas relativas à análise do ritmo, às associações fonológicas, em suma, ao elemento material<strong>da</strong> produção poética, assim como a visuali<strong>da</strong><strong>de</strong> gráfica <strong>da</strong> <strong>poesia</strong>, do impresso etc. Ao mesmotempo os estudos <strong>de</strong> convergência temática e emulação tópica figuram a materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> retórica dosdiscursos humanos, <strong>de</strong>ixando entrever o ponto <strong>de</strong> vista do passado ao se referirem ao seu própriotempo. O estudo <strong>de</strong> uma questão <strong>quinhentista</strong> clássica, como o comércio <strong>de</strong> especiarias ou a <strong>de</strong>fesa<strong>da</strong> língua portuguesa, ou a sátira a um comportamento insuspeitado, como práticas lésbicas ehomoeróticas, a partir <strong>da</strong> escuta <strong>de</strong> variados discursos, o religioso, o poético, o editorial, o teatral, ofilológico, nos <strong>de</strong>sven<strong>da</strong> o ponto <strong>de</strong> vista do passado, escrito por um conjunto <strong>de</strong> textos coevos queo representam como limite <strong>da</strong> sua consciência histórica, ou horizonte hermenêutico. No estudo dotema homoerótico no século XV, o ponto <strong>de</strong> vista do passado emerge, por exemplo, do cotejo entreo Tratado <strong>de</strong> Confissom, <strong>de</strong> 1489, e algumas sátiras quatrocentistas do Cancioneiro Geral <strong>de</strong>Garcia <strong>de</strong> Resen<strong>de</strong> que abor<strong>da</strong>m tal temática.Tanto os métodos <strong>da</strong> pragmática do texto do primeiro Gumbrecht (in Lima, 1979) como osquestionamentos teóricos implicados pela escuta <strong>da</strong> materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comunicação poética <strong>de</strong>vemser encarados como fases <strong>de</strong> um processo reflexivo iniciado pela adoção do paradigmacomunicacional para os estudos <strong>de</strong> literatura. A dimensão material do signo poético, apesar <strong>da</strong>sugestão <strong>de</strong> sentidos vazados <strong>de</strong> um campo não hermenêutico (não centrado na subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> doautor/leitor, mas que emerge do material poético), num estudo concreto <strong>de</strong> literatura, <strong>de</strong>ve ser30


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.reintegra<strong>da</strong> ao plano pragmático <strong>da</strong> comunicação poética. Po<strong>de</strong>-se concluir que o caráter maisprodutivo <strong>da</strong> reflexão <strong>sobre</strong> o poético elabora<strong>da</strong> pelos membros <strong>da</strong> Escola <strong>de</strong> Constança seevi<strong>de</strong>ncia na recuperação <strong>de</strong> um estatuto histórico para os estudos literários.A História Cultural e a Teoria <strong>da</strong> Literatura associa<strong>da</strong>s como disciplinas limítrofescompartilham um mesmo campo <strong>de</strong> saber, <strong>de</strong>terminando objetos, como as obras <strong>da</strong> tipografiaantiga, manipuláveis como documentos para a compreensão <strong>de</strong> épocas passa<strong>da</strong>s, mas não <strong>de</strong> umaperspectiva totalizadora, pois o que importa marcar é o <strong>de</strong>svio diferencial e irredutível <strong>da</strong>s diversasleituras sugeri<strong>da</strong>s pelas próprias obras enquanto suportes materiais <strong>de</strong> sentido à sua e a outrasépocas, a este ou aquele leitor, nesta ou naquela edição.Conceitos como autor, obra, leitura, hermenêutica, representação, materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>, linguagem,próprios <strong>da</strong> Teoria <strong>da</strong> Literatura e <strong>da</strong> Filologia, também ganham a atenção dos historiadores. Aconstrução retórica, por exemplo, tem <strong>de</strong> ser entendi<strong>da</strong> em sua estrutura <strong>de</strong> representação trópica,reconstruindo-se a cartografia do labirinto <strong>de</strong> referências histórico-culturais.De fato, teóricos <strong>da</strong> literatura como Gumbrecht, Jauss e Bakhtin são fun<strong>da</strong>mentais paraquem queira enten<strong>de</strong>r a história <strong>da</strong> leitura proposta por Roger Chartier. Se o conhecimento históricopassa a ser orientado por <strong>de</strong>terminados conceitos advindos <strong>da</strong> Teoria <strong>da</strong> Literatura, a fonte literáriaper<strong>de</strong> primazia e exclusivi<strong>da</strong><strong>de</strong> como objeto <strong>da</strong> leitura teórico-literária. As obras <strong>de</strong> <strong>poesia</strong>, <strong>de</strong>ciência médica ou matemática, <strong>de</strong> história, <strong>de</strong> gramática do Renascimento português po<strong>de</strong>m receberum mesmo tratamento, pois são fontes manuscritas e imprensas <strong>quinhentista</strong>s em língua portuguesa,objeto <strong>de</strong> uma hermenêutica que colocava o leitor no centro <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> sentido. Nunca é<strong>de</strong>mais citar o verso <strong>de</strong> Sá <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong>: “Quantos ledores, tantas as sentenças”. A obra poética, emcontraparti<strong>da</strong>, passa a ser apenas mais uma fonte impressa ou manuscrita para o conhecimentohistórico.31


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.Por contar com um sem número <strong>de</strong> reedições, a fonte literária do Renascimento não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong>ser uma fonte especial. Como nos mostram Jauss e Bakhtin, as diversas leituras feitas <strong>da</strong> obrapoética, por poetas e críticos, fazem <strong>de</strong>la um objeto “metahistórico” capaz <strong>de</strong> sinalizar, através dosregistros <strong>de</strong> recepção, incluídos aí os sinais <strong>da</strong> tipografia <strong>quinhentista</strong>, as sucessivas épocas que aleram, isto é, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar à mostra um sistema <strong>de</strong> valores culturais privativo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> época, quepermite surpreen<strong>de</strong>r não só as diversas visões <strong>de</strong> mundo que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVI se apo<strong>de</strong>raram dostextos renascentistas, como a plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leituras coevas, feitas a ca<strong>da</strong> momento específico <strong>da</strong>história editorial <strong>da</strong> obra, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do discurso ser poético, crítico-literário ou científico. Algoparalelo po<strong>de</strong> ser percebido na recepção <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Orta pelos botânicos europeus e portugueses aolongo dos séculos XVI, XVII, XVIII, XIX, segundo se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> quer <strong>da</strong> leitura do nobre botânicoportuguês quer do estudo <strong>da</strong> história editorial e <strong>de</strong> circulação <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Orta.Todo o interesse histórico-recepcional atestado pelo con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ficalho, não implica umacompreensão <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Orta volta<strong>da</strong> para a época <strong>quinhentista</strong>. De fato, é uma visão <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>do Renascimento que conduz as diversas leituras feitas no século XIX <strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> imprensa<strong>quinhentista</strong>. Por vezes, essa visão, seguramente anacrônica, obscurece uma apreciação dohorizonte histórico <strong>de</strong>ssas obras: o horizonte cultural do império lusía<strong>da</strong>. Daí a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>estudos centrados no tempo <strong>de</strong> produção do objeto <strong>de</strong> referência, cujo horizonte hermenêutico seriaredimensionado no primeiro momento <strong>de</strong> sua circulação.Como nos lembram Gumbrecht e Chartier, os textos impressos <strong>quinhentista</strong>s (ou <strong>de</strong>manuscritos disponíveis e <strong>da</strong>s suas sucessivas reedições) são apenas lugares possíveis <strong>de</strong> sesurpreen<strong>de</strong>r as diversas reconfigurações históricas dos campos <strong>de</strong> saber e <strong>da</strong>s práticas <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong>escrita do R enascimento. Para traçar a relação <strong>da</strong> obra com o tempo em que foi cria<strong>da</strong> é precisoconhecer a sua história editorial, a forma material como circulou pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e pelo mundo dos32


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.leitores, como texto impresso, preso a uma forma <strong>de</strong> manifestação sensível no mundo <strong>da</strong>s coisas. Asedições sugerem a emergência <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados sentidos, à medi<strong>da</strong> que são edita<strong>da</strong>s <strong>de</strong>sta ou<strong>da</strong>quela forma, num ou noutro tempo, por este ou por aquele editor.FILOLOGIA “HIGHTECH” E ESTUDOS HUMANÍSTICOSO objetivo é pensar a prática filológica como central nas humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s, abarcando discursosfilosóficos, lingüísticos, histórico-culturais, literários, editoriais, crítico literários etc. A filologia é oestudo plural do documento antigo. É uma vista pluridimensional do texto ou objeto <strong>de</strong> referência,na medi<strong>da</strong> em que todos os seus níveis <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> sentido são examinados, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o fônico aoortográfico, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a gramática à mancha na página, e ain<strong>da</strong> o significado histórico-cultural efilosófico.No sentido restrito, a filologia se pratica como crítica textual: a ecdótica, parte <strong>da</strong> filologiaque se preocupa com as questões materiais <strong>da</strong> edição; sendo leitura e edição do documento, é aparte <strong>da</strong> filologia que mais se beneficia <strong>da</strong> tecnologia digital para a edição <strong>de</strong> textos antigos,conhecidos pelas inúmeras variantes com que foram conservados.Com Gumbrecht 3, em seu texto, “Fill up the margins! About Commentary and copia”,apren<strong>de</strong>-se que uma filologia hightech ou <strong>de</strong> tecnologia <strong>de</strong> ponta po<strong>de</strong>ria <strong>da</strong>r a visão do poliedro queé qualquer texto. A edição em suporte informático não só possibilita a visualização e leitura <strong>da</strong>svaria<strong>da</strong>s lições do texto manuscrito ou impresso, através do acesso visual a uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> material,que até então esteve restrita ao acesso <strong>de</strong> poucos especialistas, como <strong>sobre</strong>tudo fornece uma33


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.agili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao processo do comentário dos textos múltiplos que põe em circulação. Para Gumbrecht, aestrutura aberta <strong>da</strong> internet possibilita a proliferação dos comentários como cama<strong>da</strong>s <strong>de</strong> sentidossuplementares, agrega<strong>da</strong>s ao sentido do objeto <strong>de</strong> referência, mais ou menos no sentido inverso emque o <strong>de</strong>sconstrutivismo opera em relação a <strong>de</strong>s-leitura dos textos. Para o teórico, a filologiahightech ou cibernética também permite catalisar as humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s em torno do suporte digital que,ao abrigar a imagem <strong>de</strong> qualquer artefato, permite que este seja, mais do que simulado, comentadoem presença.Aí está o futuro <strong>da</strong> filologia. O filólogo <strong>de</strong>verá ser capaz <strong>de</strong> manejar o suporte informáticopara fins editoriais, pois, por exemplo, no caso <strong>da</strong> <strong>poesia</strong> <strong>quinhentista</strong> e medieval, não é poucoescanear os documentos, e ain<strong>da</strong> será preciso transcrevê-los quer diplomaticamente quer osrestabelecendo ao nosso sistema ortográfico atual. Todo um sistema <strong>de</strong> referências cruza<strong>da</strong>s <strong>de</strong>veser acionável para a consulta e comparação <strong>da</strong> série <strong>de</strong> documentos transcrita e fixa<strong>da</strong>, assim comocomenta<strong>da</strong>s as referências culturais dos sistemas <strong>de</strong> versões. A edição na era digital exige o trabalhoem equipe e a<strong>da</strong>ptação dos programas curriculares <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Letras à formação dosciberfilólogos.A emergência <strong>de</strong> uma filologia <strong>de</strong> alta tecnologia sugere uma série <strong>de</strong> questões e campospara o estudo e edição dos textos antigos e para as técnicas <strong>de</strong> <strong>ensino</strong> e interação entre professores ealunos. Em suma, pensar a revolução tecnológica na transmissão <strong>da</strong>s letras, <strong>da</strong> história, <strong>da</strong> botânica,<strong>da</strong> filosofia é reencontrar o lugar central <strong>da</strong> filologia nos estudos humanísticos.CRIATIVIDADE E AFEIÇÃO DO TEXTO ANTIGO NO ENSINO DE LETRASPara concluir este texto, a título <strong>de</strong> exemplo, do terceiro modo <strong>de</strong> se difundir o amor peloestudo e leitura <strong>da</strong> <strong>poesia</strong> do século XVI, vamos ler as redondilhas O Pranto <strong>de</strong> Mário Pardo, <strong>de</strong>34


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.Renato Lacer<strong>da</strong>, Graduando em Letras (Lingüística e Português) pela FFLCH-USP. “Um dostrabalhos <strong>de</strong> aproveitamento <strong>da</strong> disciplina Literatura Portuguesa“, por mim ministra<strong>da</strong> no segundosemestre <strong>de</strong> 2007, no curso <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> FFLCH-USP. Renato Lacer<strong>da</strong> o disponibilizou em seu blogem janeiro <strong>de</strong> 2008, e dá o crédito <strong>da</strong> revisão do ritmo <strong>da</strong> redondilha maior a outro trovador. Comoativi<strong>da</strong><strong>de</strong> acadêmica, importa avaliar a releitura criativa. A disposição e a temática do prantovicentino são sintetiza<strong>da</strong>s, mas há troca do gênero do sujeito poético e <strong>da</strong> forma estrófica. O pranto<strong>de</strong> Mário Pardo, a meio caminho entre a longa duração <strong>da</strong> <strong>poesia</strong> oral e popular, e o trovadorismopalaciano, teve êxito em afeiçoar no presente as técnicas e os temas do passado <strong>quinhentista</strong>:PRANTO DE MÁRIO PARDO. Inspirado no Pranto <strong>de</strong> Maria Par<strong>da</strong>, <strong>de</strong> Gil Vicente. Composto emredondilha. DE RENATO LACERDA— Eu me chamo Mário Pardoe quero apenas beber.Mas carrego um gran<strong>de</strong> fardo:a mim ninguém quer ven<strong>de</strong>r.Estou morto <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong><strong>de</strong> tomar uma cachaça.Percorri to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,mas não acho nem fumaça.Serve pinga, serve vinho:qualquer bebi<strong>da</strong> me alegra.Não me dão nem um pouquinhoe dizem que “regra é regra”.Fui proibido <strong>de</strong> beberpelo prefeito <strong>da</strong> vila.Só por causa <strong>de</strong> um bebê:um que troquei por tequila.Foi na Rua Principalque roubei o molequinho.Eu tava passando mal,precisando <strong>de</strong> um golinho.Por isso todos os baresTentam evitar o Mário.Vai a todos os lugares35


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.num rito quase diário.Quando não encarcerado,sai à busca <strong>da</strong> “marva<strong>da</strong>”.Só quer é ser saciado<strong>de</strong>ssa vonta<strong>de</strong> <strong>da</strong>na<strong>da</strong>.Uma vez esse coitadoven<strong>de</strong>u o pouco que tinha.Chegou a an<strong>da</strong>r pelado:Deu roupa por caipirinha.Não tem mais o que ven<strong>de</strong>r,está bastante arrasado.Como ain<strong>da</strong> quer beber,agora pe<strong>de</strong> fiado.— Vai-te embora, seu bebum,aqui não é seu lugar.Não faço fiado algum,pois todos têm que pagar.O prefeito me proibiu<strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r para você.E ouça bem, seu imbecil:Fiado é na pequepê.Então parte o cachaceiroa fingir-se <strong>de</strong> “coitado”:diz pro Juan Carpinteiroque está muito esfomeado.— ¡Hambre que na<strong>da</strong>, bandido!¡Yo sé que quieres beber!Tu no es hombre sufrido,¡tienes mucho a pa<strong>de</strong>cer!Já sabendo o seu futuro,Mário entra em <strong>de</strong>sespero.Sabe que o <strong>de</strong>stino é duro,e chama o testamenteiro.— Escreve aí, bom amigo:“A minh’alma, que ela vá,se pu<strong>de</strong>r, junto comigo.”Isso é tudo, isso já dá.— Vê se larga <strong>de</strong> preguiça,e acha logo o que dizer!Eu tenho que encher lingüiça36


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, AnaLuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Évora ISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.pro testamento valer.— Pois então escreve aíque Mário não bebeu mais,só porque o povo <strong>da</strong>quimelhor trata os animais.Ninguém chore a minha per<strong>da</strong>:sou só mais um que se vai.Um homem <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> esquer<strong>da</strong>,sem mãe, sem pinga nem pai.E logo <strong>de</strong> abstinênciamorreu o homem sem lar.Ninguém notou sua ausência:só dois cachorros <strong>de</strong> bar.FIMHoje há um fato inexplicado<strong>sobre</strong> a tumba do boçal,pois sem ninguém ter plantadonasceu um canavial!BIBLIOGRAFIA:BAKHTIN, Mikhail.1997 “[Os estudos literários hoje]”, in:-. Estética <strong>da</strong> criação verbal. 2 a ed., São Paulo,MartinsFontes.CHARTIER, Roger.1990 “Textos, impressos, leituras”, in-. História Cultural entre práticas erepresentações. Lisboa, Difel,.p.121-139.1996 Práticas <strong>de</strong> leitura. São Paulo, Estação Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>1998 A aventura do livro, do leitor ao navegador. São Paulo, Unesp.1999 A or<strong>de</strong>m dos livros. Leitores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII,2 a ed., Brasília, UNB.GUMBRECHT, Hans Ulrich.37


Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntarculturas(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernan<strong>de</strong>s, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, OlgaGonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ÉvoraISBN: 978-972-99292-4-3SLT 54 – A literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII e o seu <strong>ensino</strong>: novas perspectivas.1979 Sobre os interesses cognitivos, terminologia básica e métodos <strong>de</strong> uma ciência <strong>da</strong>literatura fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na teoria <strong>da</strong> ação. In: COSTA LIMA, Luiz, seleção, tradução eintrodução. A Literatura e o Leitor. Rio <strong>de</strong> Janeiro; Paz e terra, p.189-205.1993 O Campo não hermenêutico ou A materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comunicação. Ca<strong>de</strong>rnos doMestrado \ Literatura. Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Estado do Rio <strong>de</strong> Janeiro - IL -, 5, p.5-29.1994 Materialities of Communication. Stanford: Stanford University Press.1999 “Fill up your Margins! About Commentary and Copia”. In: Glenn Most (ed.),Commentaries/Kommentare. Goettingenj.2005 Floema. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> teoria e história literária, Especial Hans Ulrich Gumbrecht,IA, DELL-UESB, Vitória <strong>da</strong> Conquista, Outubro.38

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