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_INTR_EST_LITERÁRIOS

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Introdução aos<br />

Estudos<br />

Literários<br />

utilizando o conceito de narrador num sentido mais amplo do que o<br />

proposto pelo fi lósofo alemão. Reserva a ele o conceito apenas para<br />

o que estamos chamando de narrador clássico.<br />

(...) De maneira ainda simplifi cada, pode-se dizer que o narrador<br />

olha o outro para levá-Io a falar (entrevista), já que ali não está para<br />

falar das ações de sua experiência. Mas nenhuma escrita é inocente.<br />

Como correlato à afi rmação anterior, acrescente¬mos que, ao dar fala ao outro, acaba<br />

também por dar fala a si, só que de maneira indireta. A fala própria do narrador que se<br />

quer repórter é a fala por interposta pessoa. A oscilação entre repórter e romancista,<br />

vivenciada sofridamente pelo personagem (Hemingway), é a mesma experimentada,<br />

só que em silêncio, pelo narrador (brasileiro). Por que este não narra as coisas como<br />

sendo suas, ou seja, a partir da sua própria experiência?<br />

Antes de responder a essa pergunta, entremos num outro conto espanhol de<br />

Edilberto Coutinho, “Azeitona e vinho”. Em rápidas linhas, eis o que acontece: um velho<br />

e experiente homem do povoado (que é o narrador do conto), sentado numa bodega,<br />

toma vinho e olha um jovem toureiro, Pablo (conhecido como EI Mudo), cercado de<br />

amigos, admiradores e turistas ricos. Olhando e observando como um repórter diante<br />

do objeto da sua matéria, o velho se embriaga mais e mais tecendo conjeturas sobre<br />

a vida do outro, ou seja, o que acontece, aconteceu e deveria acontecer com o jovem<br />

e inexperiente toureiro, depositando nele as esperanças de todo o povoado.<br />

Os personagens e temas são semelhantes aos do conto anterior, e o que importa<br />

para nós: a própria atitude do narrador é semelhante, embora ele, no segundo conto,<br />

já não tenha mais como profi ssão o jornalismo, é alguém do povoado. O narrador tinha<br />

tudo para ser o narrador clássico: como velho e experiente, podia debruçar-se sobre<br />

as ações da sua vivência e, em reminiscência, misturar a sua história com outras que<br />

convivem com ela na tradição da comunidade. No entanto, nada disso faz. Olha o mais<br />

novo e se embriaga com vinho e a vida do outro. Permanece, pois, como válida e como<br />

vértebra da fi cção de EC uma forma precisa de narrar, ainda que desta vez a forma<br />

jornalística não seja coincidente com a profi ssão do narrador (onde a autenticidade<br />

como respaldo para a verossimilhança?). Trata-se de um estilo, como se diz, ou de uma<br />

visão do mundo, como preferimos, uma característica do conto de EC que transcende<br />

até mesmo as regras mínimas de caracterização do narrador.<br />

A continuidade no processo de narrar estabelecida entre contos diferentes<br />

afi rma que o essencial da fi cção de EC não é a discussão sobre o narrador enquanto<br />

repórter (embora o possa ser neste ou naquele conto), mas o essencial é algo de<br />

mais difícil apreensão, ou seja, a própria arte do narrar hoje. Por outro lado, paralela<br />

a esta constatação, surge a pergunta já anunciada anteriormente e estrategicamente<br />

abandonada: por que o narrador não narra sua experiência de vida? A história de<br />

“Azeitona e vinho” narra ações enquanto vivenciadas pelo jovem toureiro; ela é<br />

basicamente a experiência do olhar lançado ao outro.<br />

Atando a constatação à pergunta, vemos que o que está em jogo nos contos de<br />

EC não é tanto a trama global de cada conto (sempre é de fácil compreensão), nem a<br />

caracterização e desenvolvimento dos personagens (sempre beiram o protótipo), mas algo<br />

de mais profundo que é o denso mistério que cerca a fi gura do narrador pós-moderno.<br />

O narrador se subtrai da ação narrada (há graus de intensidade na subtração, como<br />

veremos ao ler “A lugar algum”) e, ao fazê-Io, cria um espaço para a fi cção dramatizar a<br />

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