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ECOS DO TIRO NA PRACA

Os tiros disparados a esmo na Plaza Mayor da cidade de Salamanca, na Espanha, fizeram as primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola, em 19 de julho de 1936. Oitenta anos após o início do conflito, considerado um dos mais hediondos da Europa, as consequências desta tragédia ainda ecoam na história dos moradores da cidade. Principalmente na vida dos três protagonistas dessa obra, que, ainda crianças, tiveram seus pais assassinados durante o regime franquista. Em depoimentos comoventes, os três filhos recordam o passado conturbado e mostram que é possível lutar por justiça sem derramar mais sangue.

Os tiros disparados a esmo na Plaza Mayor da cidade de Salamanca, na Espanha, fizeram as primeiras vítimas da Guerra Civil Espanhola, em 19 de julho de 1936. Oitenta anos após o início do conflito, considerado um dos mais hediondos da Europa, as consequências desta tragédia ainda ecoam na história dos moradores da cidade. Principalmente na vida dos três protagonistas dessa obra, que, ainda crianças, tiveram seus pais assassinados durante o regime franquista. Em depoimentos comoventes, os três filhos recordam o passado conturbado e mostram que é possível lutar por justiça sem derramar mais sangue.

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Ecos do tiro<br />

na praça<br />

Amanda Boucault


Ecos do tiro<br />

na praça<br />

Amanda Boucault


Ecos do tiro<br />

na praça<br />

Amanda Boucault


A todos que sofreram e ainda sofrem<br />

as consequências de uma guerra.


8


AGRADECIMENTOS<br />

Quando vejo o resultado desses quatro anos e meio<br />

de faculdade é difícil não lembrar o carinho e a<br />

consideração daqueles que fizeram parte da minha<br />

trajetória até esse momento tão marcante na minha<br />

vida. Finalizo essa etapa com o coração transbordando<br />

de alegria por saber que sempre pude contar com muitas pessoas,<br />

sempre dispostas a me ajudarem a realizar meus sonhos.<br />

Nominalmente, agradeço ao meu eterno mestre Vinícius<br />

Dreger, por acompanhar meu interesse pela História, desde<br />

quando eu ainda estava no colégio. Ao meu orientador Arnaldo<br />

Lorençato, que também é editor da revista Veja São<br />

Paulo, muito obrigada pelos ensinamentos. Estendo meu<br />

agradecimento a todos os docentes que dividiram seus conhecimentos<br />

comigo. Sem dúvidas, termino a faculdade com<br />

uma visão muito mais ampla do jornalismo e da vida depois<br />

das aulas e orientações dos professores Edson Capoano,<br />

Márcia Detoni, Fernanda Mazza, Vanderlei Dias, José Alves<br />

Trigo, Fernando Moraes, Hugo Harris, Lenize Villaça, e da<br />

doce professora Luciana Dimitrov.<br />

9


Na graduação tive o prazer de trabalhar com profissionais<br />

brilhantes que acreditaram no meu potencial e me incentivaram<br />

a crescer cada vez mais. Meu imenso agradecimento<br />

a todos que dedicaram parte de seu tempo para me ensinar.<br />

Especialmente, à minha grande amiga e, muitas vezes, editora<br />

Mirella. Obrigada pelo carinho diário e por compartilhar<br />

comigo a sabedoria que carrega no significado do seu<br />

nome. Também agradeço à Marcela e à Rosana por darem<br />

letras, linhas e cores a minha imaginação em um projeto<br />

gráfico tão lindo.<br />

Aprender foi minha principal prioridade ao decidir interromper<br />

o curso na Universidade Presbiteriana Mackenzie<br />

para ingressar em um intercâmbio na Universidade de Salamanca,<br />

na Espanha. Adaptar-me a outra cultura não foi<br />

tão difícil quando estava acompanhada de estrangeiros tão<br />

amorosos e divertidos quanto meus amigos brasileiros, que<br />

continuaram sempre por perto apesar da distância. Muito<br />

obrigada a todos pelos momentos inesquecíveis e por acreditarem<br />

nos meus sonhos, por mais loucos que parecessem.<br />

Agradeço ao Fernando por compartilhar as histórias de seu<br />

lindo país.<br />

A concretização desta obra não seria possível sem as aulas<br />

de História da Espanha e orientação da professora Josefina<br />

Cuesta. Também agradeço à Luisa Vicente, responsável<br />

10


pela Associação de Memória e Justiça de Salamanca, por me<br />

apresentar às pessoas que deram vida ao meu livro. Minha<br />

gratidão eterna aos idosos que confiaram a mim suas histórias,<br />

cheias de lágrimas, conselhos, experiências, amor e superação.<br />

Reconstruir lembranças tão especiais foi um grande<br />

desafio e uma honra.<br />

Agradeço também ao incansável apoio da minha família.<br />

Meu pai Rubens, que investe de coração em todos os meus<br />

sonhos. E minha mãe Claudia, por me mostrar que frente<br />

a qualquer adversidade sempre há um motivo para ficar<br />

contente. Mariana e Bianca, minhas irmãs, vocês são as<br />

duas estrelas que brilham em cada lado meu. Suas palavras<br />

de ânimo e admiração são essenciais para qualquer coisa<br />

a que me dedico.<br />

Poucos parágrafos não é espaço suficiente para reconhecer<br />

todos que contribuíram para o meu crescimento e realização<br />

deste trabalho. Agradeço a Deus por colocar no meu caminho<br />

pessoas tão incríveis que me permitem ser quem eu sou.<br />

Agora, tenho o orgulho de dizer que também sou jornalista.<br />

Amanda Boucault<br />

11


“Os espanhóis não esqueceram voluntariamente sua história,<br />

mas sim, por recordá-la, decidiram não repeti-la”<br />

Santos Juliá


SUMÁRIO<br />

Rompendo o silêncio 14<br />

Imagem de guerra e paz 28<br />

Na plataforma do passado 72<br />

Lar é onde mora o coração 108


16


ROMPEN<strong>DO</strong> O SILÊNCIO<br />

A<br />

manhã de 19 de julho de 1936 parecia reservar um<br />

típico domingo de verão em Salamanca. Como de<br />

costume, às 11h, dezenas de famílias saíram da missa<br />

na Catedral de Santa María, e foram aproveitar o dia de<br />

folga na Plaza Mayor, coração da cidade espanhola. Geralmente,<br />

enquanto as crianças brincavam de esconde-esconde<br />

entre os arcos da praça, seus pais se reuniam nos restaurantes,<br />

bares e cafeterias para comentar as últimas novidades e<br />

se refrescar com uma jarra de sangria. O ponto de encontro<br />

ficava ainda mais agradável quando a luz do sol encontrava<br />

a pedra cor de areia que compõe a estrutura. O efeito, inclusive,<br />

parece despertar certo tipo de magia que encanta os<br />

moradores e visitantes até hoje, mesmo após mais de dois séculos<br />

da construção da praça. Mas, nessa data, não foi o belo<br />

cenário da Plaza Mayor que marcou a memória das pessoas<br />

e a história da cidade.<br />

A cena de alegria corriqueira foi perdendo espaço quando as<br />

notícias sobre o levante do exército espanhol em Marrocos,<br />

comandado pelo general Francisco Franco, começaram a ser<br />

o tema em comum das rodas de conversas. As manchetes<br />

17


1936<br />

dos jornais regionais El Adelanto e La Gaceta traziam mais<br />

informações: as cidades de sul ao norte da Espanha começavam<br />

a se voltar contra a República.<br />

As preocupações dos moradores acerca do futuro do país se materializaram<br />

quando a cavalaria, acompanhada de um grupo de<br />

militares armados, invadiram a Plaza Mayor. Os diálogos nas terrazas<br />

se transformaram em um silêncio absoluto, dominado por<br />

pensamentos de pavor. A tropa se posicionou no círculo central<br />

e, diante de todos, o tenente Marcelino Velasco leu em voz alta a<br />

declaração do Conselho de Defesa Nacional da Espanha:<br />

18


Divulgação/ internet<br />

2016<br />

– A Espanha está em guerra – anunciou em tom firme.<br />

Enquanto o militar detalhava cada um dos doze decretos<br />

fundamentais que regeriam a sociedade a partir de então, o<br />

burburinho começava a aumentar por todos os lados, tornando<br />

praticamente impossível entender o que ele dizia. O<br />

tenente tomou ar para continuar a leitura, mas foi interrompido<br />

por um potente brado:<br />

– Viva a República!<br />

19


Velasco não conseguiu reconhecer que o responsável por<br />

aquele ato rebelde foi um dos garçons que trabalhava no café<br />

Astoria, porém assistiu um breve coro se formar, entoado<br />

por outros contrários ao novo governo que, motivados pela<br />

coragem do rapaz, berraram:<br />

– Viva a Revolução Social!<br />

A atitude rebelde teve uma resposta à altura. O tenente atirou em<br />

direção ao céu e, com uma ordem aos soldados, fez com que as<br />

palavras de oposição fossem substituídas por gritos de desespero.<br />

– Atirem, sem distinção!<br />

A diretriz de Velasco foi seguida à risca. As descargas dos<br />

soldados eram sucessivas e não miravam nenhum alvo específico<br />

causando um grande alvoroço no local. A multidão<br />

gritava desesperada e corria atropeladamente em direção a<br />

qualquer um dos arcos buscando as saídas da praça.<br />

Assim que notou ter voltado ao comando, o tenente Velasco<br />

deu nova ordem para que cessassem fogo. Os soldados<br />

obedeceram e se colocaram em marcha para deixar a Plaza<br />

Mayor, seguindo pela rua San Pablo rumo às pontes Romano<br />

e Enrique Esteban. O ponto era estratégico para controlarem<br />

as entradas principais do sul da cidade de Salamanca.<br />

20


A presença dos militares na Plaza Mayor não durou muito,<br />

mas foi suficiente para deixar um rastro de morte no local.<br />

Naquele domingo 19 de julho, seis pessoas foram assassinadas:<br />

três jovens rapazes com menos de 30 anos, dois senhores<br />

de meia idade, e uma menina, Celestina, que tinha apenas<br />

catorze anos. Seus corpos permaneceram estirados no chão<br />

até a chegada da única ambulância da Cruz Vermelha que<br />

havia na cidade. As vítimas foram levadas ao hospital mais<br />

próximo, enquanto médicos e moradores socorriam voluntariamente<br />

os outros feridos no local.<br />

O episódio ficou popularmente conhecido como “O tiro da<br />

praça” e foi a primeira manifestação violenta da Guerra Civil<br />

Espanhola na cidade de Salamanca. A conflagração, que<br />

terminou três anos depois, com um triste saldo de mais de<br />

500 mil mortos, é considerada um dos acontecimentos mais<br />

trágicos da Europa. É também um prólogo à atrocidade da<br />

Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), iniciada cinco meses<br />

após o fim do conflito espanhol.<br />

Em 1936, a Espanha enfrentava problemas provenientes da<br />

estrutura social e da história política do país no último século.<br />

A República tentou transformar muitos fatores de uma vez: a<br />

relação entre a Igreja e o Estado, o Exército, a divisão de terras,<br />

a educação e a desigualdade social. A proposta de reformas fomentou<br />

muitas expectativas, e a falta de apoio suficiente para<br />

21


sustentar as mudanças provocou um desgaste no governo. Em<br />

meio à instabilidade política, a sociedade espanhola se dividiu<br />

em duas. Um lado permanecia leal aos princípios democráticos,<br />

incentivado pelo movimento operário e sua retórica de<br />

divisão de classes que ganhava cada vez mais força. Gradualmente,<br />

a insatisfação com o governo também criou adeptos<br />

ao nacionalismo comandado pelo general Francisco Franco.<br />

Neste momento, o totalitarismo, representado fundamentalmente<br />

pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano, ameaçava<br />

os regimes democráticos da Europa. Só que ao contrário<br />

de Hitler e Mussolini, Franco enfrentou uma forte resistência<br />

militar e civil para instaurar seu regime totalitário na Espanha.<br />

O que se esperava ser um golpe de Estado rápido para tomar<br />

o poder, da noite para o dia, se transformou em uma guerra<br />

interna em que logo se inseriu a intervenção estrangeira. As<br />

forças nacionalistas estavam em vantagem, por possuir apoio<br />

da maior parte do Exército, da Igreja Católica e dos nazistas<br />

e fascistas. Já os republicanos encontravam dificuldades com<br />

as tropas mal equipadas e despreparadas.<br />

A Guerra Civil Espanhola não foi apenas um conflito de ideologias<br />

políticas, foi uma guerra de classes que defendiam<br />

diferentes concepções de ordem social. Uma guerra religiosa<br />

entre o anticlericalismo e o catolicismo que nomeou Franco<br />

chefe dos três poderes pela Graça de Deus. Uma guerra con-<br />

22


duzida pela violência e marcada pelo extermínio do contrário.<br />

Em muitas cidades espanholas, como é o caso de Salamanca,<br />

não foi uma guerra de trincheiras e armas em punho. A paz<br />

aparente somente ocultou o silêncio coletivo conseguido por<br />

meio do terror. Grupos de homens, normalmente trajados<br />

com a camisa azul da Falange, partido único de Franco, e às<br />

vezes acompanhados pela guarda civil, se apresentavam na<br />

casa das pessoas e as levavam à força de suas famílias. Alguns<br />

prisioneiros eram incorporados à aglomeração inumana das<br />

prisões. Outros eram logo fuzilados à beira das estradas ou<br />

em campos abertos. Ainda hoje, não se sabe o que aconteceu<br />

com muitos cidadãos espanhóis.<br />

A vitória das tropas franquistas sobre a oposição, em 1º de<br />

abril de 1939, instaurou a última das ditaduras estabelecidas<br />

na Europa antes da Segunda Guerra Mundial. E a única que<br />

sobreviveu após o término do conflito, em setembro de 1945.<br />

Enquanto as democracias do mundo se preocupavam em reestabelecer<br />

a ordem no continente, Franco maquiou seu governo,<br />

delineou a Falange e retocou a base com a Igreja Católica.<br />

A imagem foi aceita pela sociedade que viveu em meio<br />

ao medo e a incerteza sobre o futuro durante as quase quatro<br />

décadas de ditadura.<br />

A morte de Franco, na madrugada de 20 de novembro de 1975,<br />

deu abertura para o processo de transição democrática. No<br />

23


momento em que o principal objetivo era reestabelecer a paz,<br />

muitos espanhóis acabaram por reprimir as histórias dolorosas<br />

causadas pelo regime franquista, estabelecendo um tipo de pacto<br />

de silêncio. Com o passar do tempo, a população pode acertar<br />

as contas pendentes com os anos governados pelo ditador. Em<br />

2007, o governo socialista instaurou a Lei da Memória Histórica,<br />

principal legislação voltada para o reconhecimento das vítimas<br />

do período. Mas, a sociedade ainda divide opiniões sobre as possíveis<br />

consequências de recordar o passado.<br />

Este livro é o resultado do trabalho de jornalismo feito por<br />

mim, uma brasileira motivada em compreender a devastadora<br />

realidade da sociedade naqueles tempos e determinada a<br />

mostrar os principais efeitos na vida dos espanhóis oitenta<br />

anos após o início da Guerra Civil Espanhola.<br />

Por meio de uma bolsa de estudos concedida pela Universidade<br />

Presbiteriana Mackenzie, eu interrompi o curso de jornalismo<br />

em São Paulo durante um semestre para ingressar na faculdade<br />

de História da Universidade de Salamanca, na Espanha.<br />

O intercâmbio, que aconteceu entre janeiro e junho de 2015,<br />

me proporcionou mais conhecimento sobre o país e ampliou<br />

minha visão sobre o dever do jornalismo em dar voz às histórias<br />

que formam a identidade de uma sociedade. Conhecer<br />

pessoas com referências e culturas diferentes das minhas, fez<br />

com que eu refletisse mais sobre quem sou. E escutar as tragé-<br />

24


dias que afetaram as vítimas da repressão franquista reforçou<br />

a importância de aproveitar o tempo que temos ao lado de<br />

quem amamos. Meu maior propósito é valorizar aqueles que<br />

cruzaram meu caminho e contribuir para a recuperação da história<br />

da Espanha, principalmente, a de Salamanca, cidade que<br />

me conquistou todos os dias em que me cedeu abrigo e se<br />

tornou parte da minha própria memória.<br />

Emília Rodriguez Fernandez, José Pascual Mateos (Pepe) e<br />

Luís Calvo Rengel são os três personagens principais deste<br />

livro. Eles são donos de trajetórias singulares, mas unidas<br />

por uma dolorosa semelhança: seus pais foram fuzilados du-<br />

Estátua “Tiro de Gracia”, criada pelo artista plástico espanhol Jose Luis Pinto<br />

Amanda Boucault<br />

25


Obelisco em homenagem<br />

às vítimas do franquismo<br />

Amanda Boucault<br />

rante a guerra espanhola,<br />

quando ainda eram crianças.<br />

A tragédia entrou<br />

em tantos lares, geração<br />

após geração, que não sabia<br />

quais critérios adotar<br />

para escolher quem faria<br />

parte deste trabalho. Deixei<br />

que o destino fizesse<br />

essa seleção por mim.<br />

Ou melhor, que Luísa<br />

Vicente, a responsável<br />

pela Associação de Memória<br />

e Justiça de Salamanca,<br />

me apresentasse<br />

os futuros protagonistas<br />

deste livro.<br />

Em 1º de maio de 2015,<br />

fui ao cemitério da cidade<br />

para uma homenagem<br />

às vítimas da Guerra Civil<br />

Espanhola, preparada<br />

pela organização. Lá<br />

estavam cerca de setenta<br />

pessoas, entre elas Luís e<br />

26


Emília. Juntos, assistimos a um ritual póstumo em que os<br />

nomes das vítimas e a forma como morreram eram relembrados<br />

enquanto panos brancos eram colocados no chão,<br />

uma maneira de simbolizar o enterro que muitas famílias não<br />

puderam realizar.<br />

Um obelisco e uma parede repleta de registros das pessoas<br />

assassinadas durante o regime franquista dão formas ao<br />

memorial, que naquele dia ganhou uma escultura comemorativa.<br />

Quem ali estava para rememorar seus entes queridos<br />

depositou cravos vermelhos sobre a escultura. Nesse cenário,<br />

Luísa me apresentou meus primeiros personagens. A responsável<br />

pela associação também me colocou frente a frente<br />

com Pepe pouco antes do meu retorno ao Brasil.<br />

Cada encontro com o trio foi especial e surpreendente para<br />

mim. Abrir o coração para uma desconhecida, sobretudo uma<br />

jovem niña brasileira que pouco sabia sobre a vida naquela<br />

época e a cultura enraizada na Espanha, não deve ter sido uma<br />

decisão fácil para eles − ainda mais se considerarmos as décadas<br />

que os espanhóis optaram manter as atrocidades do regime<br />

franquista em silêncio. No entanto, superaram qualquer<br />

dificuldade e me receberam para contar histórias extraordinárias<br />

regadas por lágrimas, mas que cultivam amor, esperança,<br />

superação e conquistas. As lições que aprendi nessas conversas<br />

foram muito mais edificantes do que podem imaginar.<br />

27


As experiências desses três filhos da guerra, que atualmente<br />

têm em média 80 anos, ressaltou outro ponto em comum: a<br />

saudade. A palavra pode ser exclusiva da língua portuguesa<br />

e, por isso, não fazer parte do vocabulário deles, mas é nítido<br />

que conhecem muito bem seu significado. O escritor<br />

brasileiro Guimarães Rosa definiu o sentimento como “saudade<br />

é ser, depois de ter”, e é exatamente isso que aqueles<br />

que passam por situações trágicas, como Emília, Luís e Pepe,<br />

precisam considerar. Apesar de, infelizmente, não voltarem<br />

mais, os momentos vividos ao lado daqueles que amamos e<br />

perdemos nos tornam quem somos, e constroem as bases<br />

para decidirmos quem queremos ser.<br />

Para muitos, a vingança é um caminho para driblar a ausência<br />

causada pela morte. A ideia de retirar do outro algo que lhe<br />

foi roubado para que este sinta a mesma dor, no entanto, não<br />

faz parte da bagagem de sentimentos que os três carregam.<br />

Emília diz sem pestanejar que, ainda que tivesse uma arma e<br />

o nome da pessoa que matou seus pais, não teria coragem de<br />

puxar o gatilho: “não vale a pena”, afirma. Pepe também não<br />

guarda rancor dos militares que exterminaram tantas vidas:<br />

“eles me dão pena, isso sim”, repete. Luís é um dos que acredita<br />

no poder do perdão.<br />

Oitenta anos depois da Guerra Civil Espanhola, completados<br />

neste ano de 2016, Emília, Luís e Pepe, assim<br />

28


Amanda Boucault<br />

Memorial da Guerra Civil Espanhola<br />

como muitos espanhóis, ainda são obrigados a conviver<br />

com as consequências da tragédia que impactou efetivamente<br />

suas vidas. Mas, em vez de guardarem em silêncio<br />

sua dor, eles decidiram recordar o passado, para que<br />

essa história nunca mais se repita. Chego ao final deste<br />

livro com uma certeza universal: as guerras são capazes<br />

de destruir inutilmente milhares de vidas, mas enquanto<br />

relembrarmos aqueles que morreram, sua memória permanecerá<br />

viva.<br />

29


Arquivo pessoal<br />

30


IMAGEM DE GUERRA E PAZ<br />

Luís Calvo Rengel<br />

Nenhum dos lados da Plaza Mayor de Salamanca<br />

tem a mesma medida, mesmo assim, ela é considerada<br />

perfeita aos olhos de quem a visita. Durante<br />

o dia, o sol reflete na pedra de sua estrutura, colorindo o<br />

cenário com tons dourados. À noite, a iluminação artificial<br />

mantém o efeito encantador. A paisagem é uma das preferidas<br />

de Luís Calvo Rengel, que veio ao mundo em 7 de março<br />

de 1931, na rua Meléndez, número 27, paralela ao cenário<br />

turístico. Desde a infância até os atuais 85 anos, Luís permanece<br />

conectado à praça. Afinal, mais do que fazer parte de<br />

sua rotina, o espaço remete a boa parte das lembranças da<br />

família. Alguns acontecimentos marcantes ocorreram bem<br />

ali, entre os 88 arcos. Outras recordações o levam longe dos<br />

arredores do centro histórico, em uma viagem que cruza o<br />

oceano. Foi em Cuba, mais especificamente na capital Havana,<br />

que seus pais casaram e tiveram o primeiro filho e seu<br />

único irmão. Todas essas memórias se concentram, porém,<br />

em uma única imagem: a foto que seu pai tinha nas mãos<br />

quando foi fuzilado.<br />

Crescer naquela vizinhança de Salamanca também gerou<br />

Luís Calvo Rengel • 31


O medalhão<br />

de Franco<br />

permanece<br />

na praça<br />

recordações felizes. Luís e outros rapazes costumavam flertar<br />

com as moças da cidade nos jardins que decoraram a<br />

praça até 1954, quando houve uma reforma. A mudança,<br />

no entanto, não incomodou os planos do rapaz para os encontros<br />

porque naquele mesmo ano, por coincidência, ele<br />

casou com Luísa. O amor floresceu e ganhou novas formas.<br />

Com uma letra a mais no nome, a esposa completou<br />

sua vida e, juntos, viram os cinco filhos, oito netos e<br />

três bisnetos brincarem por entre os arcos que contornam<br />

o mais famoso ponto de encontro da cidade. As colunas,<br />

adornadas com medalhões idealizados para homenagear intelectuais,<br />

heróis e governantes significativos para a história<br />

da Espanha, também ganharam mais personagens ao longo<br />

do tempo. Mesmo a contragosto de Luís, que considera o<br />

general Francisco Franco, responsável pela maior tragédia<br />

de sua família, indigno de ser um dos símbolos que fazem<br />

parte do lindo cenário da Plaza Mayor.<br />

A intimidade com a praça é tanta que, com facilidade, ele<br />

sabe onde estão as marcas das balas<br />

perdidas que perfuraram os<br />

arcos no ataque que deu início<br />

à Guerra Civil Espanhola em<br />

Salamanca. Em julho de 1936,<br />

quando Luís tinha apenas cinco<br />

anos, Franco subia ao poder por<br />

32


Divulgação/ internet<br />

Plaza Mayor de Salamanca, 1936<br />

meio de um golpe militar se comprometendo com o povo<br />

espanhol: “Entreguem-me a Espanha e eu prometo que meu<br />

pulso não tremerá, que minha mão estará sempre firme”, declarou.<br />

Durante três anos intensos, o general que emprestava<br />

o estilo do bigode e ideais fascistas de Hitler, conduziu o país<br />

a um conflito civil que tirou a vida de centenas de milhares<br />

de pessoas. Com a mesma firmeza que assinou a imensa<br />

quantidade de sentenças de mortes, o militar comandou as<br />

tropas nacionalistas a seguirem espalhando terror entre os<br />

espanhóis durante as quase quatro décadas da ditadura.<br />

Na madrugada de 20 de novembro de 1975, aos 82 anos,<br />

Franco morreu e os espanhóis viram nascer a esperança de<br />

que, enfim, poderiam viver em paz com um novo governo<br />

Luís Calvo Rengel • 33


democrático. Por pura ironia, seis anos antes de sua morte, o<br />

ditador foi diagnosticado com Parkinson, doença que atinge<br />

a coordenação motora e a memória. A enfermidade pode até<br />

ter deixado lacunas em sua mente sobre as atrocidades que<br />

ordenou, mas as famílias destruídas por suas decisões não tiveram<br />

o privilégio de apagar da memória durante toda a vida<br />

o rastro de lembranças trágicas causadas pelo militar. Franco<br />

não cumpriu com sua promessa inicial e os muitos espanhóis<br />

que foram firmes na lealdade à República sofreram as consequências<br />

de contrariar o regime instaurado por ele, caso de<br />

Juan, que legou os princípios socialistas e democráticos aos<br />

filhos, em especial ao caçula Luís.<br />

O posicionamento político do pai surgiu muito antes do nascimento<br />

dos dois filhos. Em 1918, a Primeira Guerra Mundial<br />

chegou ao fim e, apesar de não haver participado do<br />

conflito diretamente, a Espanha não ficou a salvo da crise<br />

econômica que arrasou a Europa. Juan, então com 18 anos,<br />

entrou com o pai Barnabé e o irmão mais velho, Benigno, em<br />

um barco lotado de europeus que consideravam a América<br />

um porto seguro. A embarcação atracou em Havana, capital<br />

de Cuba, onde decidiram começar nova vida. E deu certo.<br />

Assim como os outros jovens, os filhos de Barnabé aproveitavam<br />

as noites de domingo no Club Villarino. A gaita<br />

e o tamboril, instrumentos tradicionais espanhóis, davam<br />

34


itmo ao baile e os faziam recordar da terra natal. A música<br />

agitada embalava romances na hora da dança. Como os<br />

irmãos eram excelentes dançarinos, as meninas chegavam a<br />

fazer fila para aproveitar o molejo dos espanhóis na pista.<br />

Até que um dia, Juan se perdeu nos passos ao notar a presença<br />

de uma moça, a mais bela do salão, em sua opinião.<br />

Olhou-a fixamente até que ela percebesse seu interesse e<br />

a expressão apaixonada que já não podia evitar. O hábito<br />

de interagir com as garotas facilitou a aproximação de<br />

Juan, que sem pensar duas vezes, se aproximou e tirou-a<br />

para dançar. Enquanto a conduzia, descobriu algumas semelhanças.<br />

O alvo de sua paixão chamava Remedios e, por<br />

um acaso do destino, também havia nascido em Salamanca.<br />

As coincidências só aumentaram: ela havia imigrado a Cuba<br />

no mesmo ano em que Juan, quando tinha 13 anos, com a<br />

irmã mais velha Áurea e o cunhado Pepe.<br />

Daquele dia em diante, Juan e Remedios formaram um par.<br />

O romance acalorado os levou a viver como um casal, coisa<br />

condenada naquele período: desfrutar dos prazeres do sexo<br />

sem ter estabelecido laços matrimoniais. Um dia, Remedios<br />

descobriu estar grávida. Assim que deram a notícia a Barnabé<br />

e a Áurea, o pai de Juan e a irmã de Remedios, organizaram<br />

um casamento antes que o ventre da jovem desse sinais<br />

de que nele crescia uma criança. Arrumada às pressas pela situação<br />

social embaraçosa, a cerimônia foi celebrada em abril<br />

Luís Calvo Rengel • 35


de 1924, na igreja de Carmelo del Vedado. Poucos meses<br />

depois, no dia 7 de novembro, comemoravam a chegada de<br />

Miguel, o primogênito do casal.<br />

Mesmo casado e pai de uma família, Juan ainda era jovem e<br />

desejava viver aventuras. Decidiu, então, tirar a habilitação<br />

de motorista para participar de uma corrida de automóveis<br />

que acontecia todo domingo em Mariano, um município da<br />

grande Havana. Com a ajuda do pai, comprou um carro de<br />

segunda mão que batizou de “bólido”. Conquistou o terceiro<br />

lugar e ganhou o prêmio em dinheiro de 3.000 pesos, equivalente<br />

ao preço do veículo. Duas semanas depois, quis tentar<br />

a sorte novamente, esperando mais lucro. O resultado foi<br />

uma tragédia para o orçamento da família: o carro deslizou e<br />

saiu da pista, perda total. Juan, por sorte, teve apenas alguns<br />

ferimentos leves.<br />

O susto serviu como lição de amadurecimento para Juan, que<br />

encontrou uma maneira de conciliar a paixão pelos carros<br />

com mais segurança. O trabalho de motorista, com registro<br />

em carteira profissional, também o colocou em contato com<br />

a ideologia socialista. No início do século 20, o movimento<br />

operário ganhava força em Cuba e, incentivado por seu chefe,<br />

Juan participou de reuniões sindicalistas para conhecer<br />

mais os princípios aos quais permaneceu leal até o fim de<br />

sua vida.<br />

36


Em meados de 1930, quando a situação política espanhola<br />

parecia mais promissora, a família decidiu retornar à terra<br />

natal. O casal alugou um pequeno sobrado na rua Meléndez,<br />

paralela a Plaza Mayor de Salamanca. Assim que se instalaram,<br />

Juan encontrou um trabalho como chofer particular e<br />

outro, noturno, como condutor do caminhão de bombeiros.<br />

Além de seguir com a profissão de motorista, não abandonou<br />

os ideais que aprendeu em Cuba, logo, filiou-se a União<br />

Geral dos Trabalhadores (UGT) e ao Partido Socialista Espanhol<br />

(PSOE). Com melhores condições financeiras, Juan<br />

e Remedios puderam planejar a chegada de um irmão para<br />

brincar com Miguel, que estava com sete anos. A gestação<br />

tranquila da mãe e já dentro dos padrões morais vigentes deu<br />

à luz a Luís em um parto feito em casa, no sábado, 7 de março<br />

de 1931. Com o crescimento da família, o casal resolveu<br />

alugar outra casa, um pouco maior, situada na Plaza San Juan<br />

Batista, número 3, a poucos quarteirões da Plaza Mayor.<br />

A vida seguiu uma rotina durante cinco anos. Nos dias da<br />

semana, Juan trabalhava para ganhar o sustento da família, e<br />

também frequentava a Casa del Pueblo. No local, se reunia<br />

com os companheiros sindicalistas e socialistas para comentar<br />

o desenvolvimento da política espanhola e discutir propostas<br />

que idealizavam uma divisão de classes sociais mais<br />

justa. Enquanto isso, Remedios se dedicava às tarefas domésticas<br />

e ao cuidado dos filhos. Miguel frequentava o colégio<br />

Luís Calvo Rengel • 37


pela manhã e aproveitava as horas livres para brincar com os<br />

amigos do bairro e também com o caçula Luís, que ainda não<br />

estudava. O final de semana era o momento da família estar<br />

toda reunida. Aos domingos, o pai aproveitava a folga do<br />

trabalho diurno para levar os meninos ao tradicional almoço<br />

na casa dos avós paternos, que viviam a poucos quarteirões,<br />

na rua Libreros, número 27, 3º andar. Após a refeição, seguiam<br />

o costume espanhol de fazer a siesta, aquela soneca<br />

depois do almoço. Pela tarde, passeavam pelo Parque de la<br />

Alamedilla ou faziam piqueniques à beira do rio Tormes, nas<br />

proximidades da Ponte Romano.<br />

De repente, a vida tranquila que conheciam deixou de existir.<br />

A manhã de 19 de julho de 1936 até começou como um típico<br />

domingo em Salamanca. Remedios, então com 32 anos,<br />

arrumou os dois filhos para que o marido os levasse ao almoço<br />

na casa dos avós. Quinze minutos antes do meio-dia,<br />

Juan e os meninos já estavam de saída. Enquanto caminhava<br />

agarrado à mão do pai, Luís se distraía com a beleza do sol<br />

passando por entre as folhas das árvores e tentava não pisar<br />

nas linhas do chão de paralelepípedo, um de seus passatempos<br />

favoritos.<br />

Antes de virarem a esquina em direção a Plaza Mayor, quando<br />

passavam em frente ao prédio da Telefónica, que até hoje<br />

se encontra na Plaza de los Bandos, os três se depararam<br />

38


com uma cena inusitada: um esquadrão de militares protegidos<br />

por capacetes de aço e equipados com fuzis nas mãos.<br />

Parte da tropa seguia a cavalo e mais dezenas de soldados<br />

marchavam a pé, dominando a rua Zamora. A imagem fez<br />

com que as batidas do coração de Juan acompanhassem o<br />

trote rítmico dos cavalos. Nas reuniões que participava, os<br />

membros do partido já estavam comentando a possibilidade<br />

do país ser dominado pela onda fascista que ameaçava os<br />

regimes democráticos na Europa. Mas, não se esperava que<br />

a tomada de poder acontecesse da noite para o dia, e muito<br />

menos, sem a resistência do povo.<br />

Mais cedo do que imaginavam, porém, aconteceria o que tanto<br />

temiam: a Espanha entraria em guerra. Ao ver a força do<br />

exército diante de seus olhos, Juan pensou na segurança de<br />

seus filhos, que não entendiam a dimensão da presença dos<br />

militares na cidade. De imediato, tomou Luís no colo e pediu<br />

que Miguel seguisse seus passos acelerados de volta a casa.<br />

Não muito longe de onde estava sua família, Remedios escutou<br />

um disparo, o primeiro que desencadearia em uma tragédia<br />

brutal na Plaza Mayor. Mas, nesse momento, ela não deu<br />

muita importância ao ruído. Poderia ser apenas algum carro<br />

velho dando problema na rua. Assim que ouviu a sequência<br />

de tiros, saiu imediatamente de casa para ver o que estava<br />

acontecendo: pessoas passaram correndo e gritando “nos<br />

Luís Calvo Rengel • 39


matam! nos matam!”. Diante da cena apavorante, Remedios<br />

só conseguia pensar no marido e nos filhos. Na porta de entrada,<br />

esperava aflita com o terço agarrado à mão, tentando<br />

identificar os rostos familiares na multidão. Graças a Deus,<br />

eles logo surgiram no final da rua.<br />

Enquanto Juan e Miguel recuperavam o fôlego, o pequeno<br />

Luís chorava. Logo em seguida, o sapateiro da loja vizinha<br />

chegou esbaforido e contou o que havia presenciado a um<br />

grupo de moradores atentos e horrorizados:<br />

“Os militares dominaram a Plaza Mayor. A Espanha está em<br />

guerra. O tenente Marcelino Velasco que a declarou. Não<br />

deu para escutar de tanto burburinho do povo. Mas ele continuou<br />

falando. Cada vez mais alto. Um jovem socialista, foi<br />

o Arcadio Lucas, deu um grito de ‘Viva a República!’. A coragem<br />

do rapaz motivou mais vivas. O tenente ficou possesso<br />

e deu ordem para atirarem. Todo mundo começou a correr<br />

para todos os lados tentando sair da praça o mais rápido possível.<br />

Foi horrível”.<br />

Devido às circunstâncias alarmantes, Juan recomendou que<br />

todos se recolhessem em suas casas e não saíssem até que a<br />

situação se acalmasse. Naquele domingo, ele não levou os<br />

meninos ao tradicional almoço com os avós e a família não<br />

teve tranquilidade para fazer a siesta. Também não houve<br />

40


passeio pelo Parque de la Alamedilla, muito menos merenda<br />

à beira do rio Tormes. Apesar da tensão que carregava o<br />

clima da vizinhança e impedia os cidadãos a seguirem a vida<br />

habitual, Juan não podia faltar ao trabalho noturno. Mesmo<br />

sem muito apetite, jantou com a família e, por volta das<br />

21h30, foi ao quartel dos bombeiros onde passaria a noite de<br />

guarda no caminhão.<br />

Na casa da família, o medo, agravado pelo som dos disparos<br />

que ecoavam a quilômetros de distância, levou o pequeno<br />

Luís direto para a cama dos pais. Envolvido nos braços<br />

da mãe, o menino, pouco a pouco, se deixou vencer pelo<br />

cansaço até que, enfim, caiu no sono. Remedios, por outro<br />

lado, quase não pregou os olhos à espera do marido, único<br />

capaz de amenizar o tumulto de pensamentos atordoados<br />

em sua mente. No entanto, assim que registrou a hora de<br />

saída do serviço, mais precisamente às 6h30, Juan não voltou<br />

direto ao lar.<br />

Certamente, ele sabia que a decisão de encontrar os companheiros<br />

do partido era arriscada e poderia acabar com mais<br />

vidas além de sua própria. Mas, acreditava que se unisse forças<br />

com os outros trabalhadores, encontraria uma forma de<br />

garantir a segurança de sua família em meio à grandiosidade<br />

da desordem que o general Franco havia causado na Espanha.<br />

Mesmo declarada a proibição de reuniões longe dos<br />

Luís Calvo Rengel • 41


olhos das autoridades, Juan foi à Casa del Pueblo, situada na<br />

rua San Pablo, número 72, a poucas ruas de onde os militares<br />

haviam fixado seus postos após o ataque na Plaza Mayor<br />

afim de controlar as principais entradas da cidade.<br />

Esperou um minuto para certificar-se de que o caminho estava<br />

livre e, então, quando chegou ao edifício deu duas batidas<br />

consecutivas na porta. Um de seus companheiros entendeu o<br />

código e permitiu a entrada por reconhecer que se tratava de<br />

um membro do partido. Ao entrar, Juan cumprimentou os<br />

outros socialistas e sindicalistas que, perplexos, comentavam<br />

indignados o acontecimento daquele domingo.<br />

– Atiraram para todos os lados na praça! – lembrou um senhor<br />

horrorizado.<br />

– Um caminhão carregado de militantes prontos para defender<br />

a República está chegando das cidades de Béjar e Ciudad<br />

de Rodrigo – avisou um que estava ao telefone.<br />

– Acho difícil passarem pela fronteira... – disse outro homem.<br />

Do fundo da sala, quatro jovens universitários integrantes da<br />

Juventude Socialista Unificada se levantaram em um ímpeto<br />

e se manifestaram entusiasmados:<br />

42


Arquivo pessoal<br />

A partir da esquerda, Juan é o terceiro. Seis dos homens na foto foram fuzilados na guerra<br />

– Temos armas! Vamos à luta!<br />

Era uma ideia. Mas, mesmo empenhado em defender a República,<br />

o grupo carecia de armas suficientes e não estava<br />

preparado para revidar o ataque. Além do que, agir com violência<br />

era a última medida que passava pela mente de pais de<br />

família e simples operários.<br />

Naquele momento, só puderam sentar e acompanhar as notícias<br />

que chegavam pelo rádio. A cidade de Sevilha, por onde<br />

Luís Calvo Rengel • 43


entraram as tropas nacionalistas que vinham de Marrocos, já<br />

havia sido dominada. Como um dominó desenfreado, Córdoba,<br />

Granada, Cádiz, Valladolid, Segóvia, Pamplona e Zaragoza,<br />

além de toda a região da Galícia, ao norte do país,<br />

também estavam se rendendo ao nacionalismo de Franco. A<br />

única esperança estava nas grandes cidades, Madri e Barcelona,<br />

que ainda resistiam à tomada do poder.<br />

Terminado o informe do locutor, um a um eles foram deixando<br />

o edifício para voltarem a suas casas. Juan chegou só<br />

pelas 9h, três horas depois do horário habitual. Passou pela<br />

porta e logo encontrou Remedios com os braços cruzados<br />

esperando uma explicação pelo atraso. Enquanto a esposa<br />

observava Luís esmigalhar o pedaço de pão sujando toda a<br />

mesa do café da manhã, o marido justificou a atitude, dizendo<br />

que precisava encontrar seus companheiros do partido<br />

para se inteirar sobre a dimensão dos acontecimentos e assim,<br />

decidir a melhor maneira de agir.<br />

– Acreditam que logo vão começar a prender “a gente de<br />

esquerda” – comentou com a esposa, preocupado.<br />

Mesmo inquieto, Juan foi ao quarto e tentou descansar já<br />

que não havia dormido nas últimas 24 horas. Conseguiu<br />

tirar um cochilo até Remedios avisá-lo que o almoço estava<br />

servido. Após a refeição, disse à esposa que, novamente,<br />

44


voltaria a se encontrar com seus companheiros. Remedios<br />

contraiu os lábios para conter as palavras dentro de sua<br />

boca, respondeu apenas com um olhar preocupado, e deixou-o<br />

ir. A preocupação foi em vão, felizmente, às 20h, o<br />

marido estava de volta.<br />

Na mesa de jantar, Juan comentou com a esposa que alguns<br />

amigos do Partido Socialista foram presos. Também disse a<br />

Remedios que a situação estava cada vez mais grave, já que<br />

o prefeito Casto Prieto Carrasco e outros republicanos e comunistas<br />

da cidade haviam sido detidos. Naquele momento,<br />

o mais velho, Miguel, observava e compreendia cada palavra<br />

dita pelos pais, mas não participava da conversa. Luís, por<br />

sua vez, apenas prestava atenção nos adultos e também no<br />

grão-de-bico que teimava em fugir de seu garfo. Terminada<br />

a refeição, Juan foi ao trabalho noturno. Desta vez, retornou<br />

ao lar às 6h e também foi descansar até a hora do almoço.<br />

O sono novamente foi interrompido, dessa vez com batidas<br />

na porta. Eram quase 10h e Remedios foi logo ver quem<br />

chamava. Antes de ir ao encontro da esposa, Juan jogou<br />

uma água no rosto, alisou a camisa com as mãos e observou<br />

seu reflexo no espelho. Curioso, Luís havia seguido a mãe, e<br />

também esperava na porta. Dois policiais perguntavam pelo<br />

senhor Juan Calvo Moronta, que deveria se apresentar na delegacia<br />

para prestar declaração de onde havia passado a noite<br />

Luís Calvo Rengel • 45


do domingo 19. A pressa dos oficiais para levar Juan só permitiu-lhe<br />

alguns minutos para despedir-se da família. Antes<br />

de sair de casa, ele deu um beijo na mulher e no pequeno<br />

Luís, já que o filho mais velho estava brincando na rua com<br />

os amigos. Para tranquilizá-los disse:<br />

– Não fiz nada de errado, nada temo. Não se preocupem,<br />

volto na hora do almoço.<br />

Antes de virar a esquina, Juan olhou para trás e acenou.<br />

O gesto de adeus ficou gravado na memória de Luís por<br />

toda sua vida. Juan não cumpriu a promessa de voltar na<br />

hora do almoço. Aquela foi a última vez que o garoto viu<br />

o pai em liberdade.<br />

Naquela terça-feira, 21, cerca de 100 pessoas, homens e mulheres,<br />

foram levados de suas casas à delegacia. As acusações<br />

apresentavam suspeitas e denúncias como provas. Todos que<br />

pertenciam aos partidos ou sindicatos de esquerda, eram<br />

adeptos à maçonaria, frequentavam as Casas del Pueblo,<br />

eram republicanos, socialistas, comunistas, anarquistas, ou<br />

simplesmente simpatizavam com a causa, eram considerados<br />

rebeldes. A classificação, no entanto, desconsidera o fato de<br />

que eles não defenderam seus ideais com armas, já que em<br />

Salamanca não há registros de homicídios ou agressão física<br />

a outra pessoa por parte dos militantes. Na delegacia, eram<br />

46


interrogados, torturados psicológica e fisicamente, e submetidos<br />

a humilhações caso não delatassem outros suspeitos.<br />

Logo após a partida do marido, Remedios começou a cronometrar<br />

o tempo no relógio. Aos olhos da esposa, os ponteiros<br />

marcavam os segundos e minutos cada vez mais devagar.<br />

Por volta das 15h, depois de improvisar um almoço para os<br />

meninos, ela decidiu ir à casa do irmão mais velho do marido,<br />

Benigno, com um sanduíche que havia preparado para o<br />

esposo caso ele estivesse com fome na delegacia. O cunhado<br />

insistiu que levaria a merenda em seu nome, pois reconhecia<br />

que aquele não era um ambiente para uma mulher e queria<br />

poupá-la de qualquer trauma possível.<br />

Benigno não pode ver o irmão na delegacia, mas asseguraram<br />

que entregariam seu lanche. Também lhe disseram que<br />

Juan continuaria detido pelo menos até o dia seguinte e sugeriram<br />

que o irmão também trouxesse algo para ele jantar. No<br />

final da tarde, Benigno voltou com a refeição, e novamente,<br />

tentou, sem sucesso, ver Juan. Ao questionar o motivo, foi<br />

tranquilizado por um oficial que comentou que deveriam estar<br />

trabalhando para a liberação do irmão.<br />

Na manhã seguinte, Benigno foi levar o café da manhã<br />

preparado cuidadosamente por Remedios e também foi<br />

impedido de vê-lo. Outro policial disse que estavam es-<br />

Luís Calvo Rengel • 47


Prisão Provincial de Salamanca, 1936<br />

perando a ordem judicial para transportar Juan à Prisão<br />

Provincial de Salamanca. Indignado, Benigno reclamou da<br />

falta de informação e da desorganização dos funcionários,<br />

já que em um dia disseram-lhe que o irmão ia ser liberado<br />

e, no seguinte, o estavam mandando para a prisão. Sem<br />

dar muita importância e com pouca paciência, o policial<br />

respondeu em tom irônico:<br />

– Se quiser, prendo você também.<br />

48


Divulgação/ Museu Domus Artium<br />

Por volta do meio-dia, Juan entrava em um caminhão junto<br />

a outros quinze homens fadados ao mesmo destino. A Prisão<br />

Provincial de Salamanca, construída em 1931 na Avenida<br />

Aldehuela de los Guzmanes, era cercada por um muro de<br />

tijolos de quatro metros de altura e vigiada por sentinelas nas<br />

guaritas em cada canto. O único acesso ao interior era por<br />

uma pequena porta que permitia a passagem de uma pessoa<br />

por vez. Outra forma de entrar era por um largo portão de<br />

aço onde caminhões carregados de presos e os carros dos<br />

oficiais estacionavam.<br />

Luís Calvo Rengel • 49


Na terça-feira, 21 de julho de 1936, Juan registrava sua entrada<br />

no presídio. Acorrentado a outros prisioneiros, ele seguiu<br />

em fila única até a cela número 10, que a partir daquele<br />

momento e por tempo indeterminado, estaria confinado a,<br />

quem sabe, viver seus últimos dias. Assim que entrou, Juan<br />

reconheceu alguns membros do Partido Socialista que, provavelmente,<br />

estavam ali pelo mesmo motivo. Ao notarem a<br />

chegada de um novo integrante ao grupo, os homens se levantaram<br />

e se identificaram: Martín Vallejo, Alberto Martín,<br />

Isaac Viñals, Félix Palomero, Juan Sáez Casado e Arcadio<br />

Lucas – o corajoso que deu o primeiro grito na Plaza Mayor.<br />

Projetada para abrigar até duas pessoas, cada cela media quatro<br />

metros quadrados e tinha um beliche de metal, um sanitário<br />

e uma pia. Durante o período da Guerra Civil Espanhola<br />

e para comportar os presos que chegavam diariamente tiraram<br />

a maioria das camas. Dessa forma, em cada cela ficavam<br />

amontoadas até treze pessoas. Livre mesmo estavam as baratas<br />

e os piolhos que circulavam pelas dependências. Sem<br />

camas, os prisioneiros apenas dormiam sobre uma manta,<br />

que durante o dia ficava enrolada para ganharem mais espaço.<br />

Passavam as noites com as cabeças nos pés do outro e<br />

encostados nas paredes úmidas.<br />

Os dias na prisão eram todos iguais. Levantavam-se às 7h,<br />

junto com o despertar do sol. Em seguida, eram encaminha-<br />

50


dos ao refeitório para tomar o café com leite aguado e o pão<br />

amanhecido servido na cadeia. O melhor horário da rotina<br />

era às 10h, quando os presos podiam receber visitas. Minutos<br />

antes desse horário, Remedios, muitas vezes acompanhada<br />

do pequeno Luís, amanhecia na fila de familiares que se formava<br />

naquela pequena porta que dava acesso à prisão. Eles<br />

traziam comida, tabaco, roupas, utensílios de higiene e um<br />

repertório de palavras de conforto. Muitas formas de dar<br />

amor e tentar amenizar a injustiça que estavam vivendo.<br />

O local onde ocorriam as visitas era uma sala de apenas dez<br />

metros quadrados, dividida por duas grades de barras grossas<br />

de aço, separadas por uma distância aproximada de dois metros,<br />

formando um corredor. O espaço estreito era ocupado<br />

por funcionários da prisão, que circulavam de um lado ao outro,<br />

impedindo o contato direto entre os presos e visitantes.<br />

Por turno, eram liberados dez presos e cada um tinha direito<br />

de receber apenas dois visitantes por dia. Nesses momentos,<br />

Remedios notava que os ponteiros se apressavam em seu relógio.<br />

Os quinze minutos que tinha ao lado do marido passavam<br />

vertiginosamente.<br />

A sala parecia um galinheiro no horário de visita na falta de<br />

um lugar reservado para conversarem. Aos gritos, Remedios<br />

tentava dizer ao marido que ainda não haviam declarado a<br />

sentença e que, logo, ele poderia voltar para casa. Pelo me-<br />

Luís Calvo Rengel • 51


nos, era o que a esposa gostaria de acreditar. Do outro lado<br />

das grades, Juan pronunciava as palavras devagar. Uma a<br />

uma. Para que a esposa mandasse muitos beijos e abraços<br />

a toda família. Com as mãos nos ouvidos para isolar o som,<br />

Luís tentava entender o que dizia seu pai. Juan abaixou-se<br />

para ficar da altura do filho e deu um abraço em si mesmo,<br />

foi a maneira que encontrou para fazer o filho sentir seu carinho.<br />

Luís retribuía atirando beijos ao ar.<br />

Enquanto Juan dava atenção ao filho, Remedios observava<br />

como o marido havia emagrecido, sua pele estava pálida,<br />

quase tão transparente quanto a camisa já gasta pelo suor.<br />

Assim que se levantou e notou o olhar preocupado da esposa,<br />

Juan disse:<br />

– Estou bem, Remedios. Tudo vai ficar bem.<br />

A visita havia acabado. Um grupo de funcionários entrou na<br />

sala para conduzir os presos de volta a suas celas e do outro<br />

lado, também apressaram os familiares a saírem. Ambos resistiam<br />

para passar pelo menos mais alguns minutos na presença<br />

daqueles que amavam.<br />

A cena se repetiu durante um ano, dois meses e treze dias.<br />

Juan tentava encontrar forças para manter uma imagem saudável<br />

diante da família que se revezava para aproveitar o ho-<br />

52


ário das visitas. Remedios ia dormir com a esperança de que<br />

no dia seguinte acordaria com a notícia de que seu marido<br />

estaria livre para voltar para casa.<br />

Após o horário da visita, os presos podiam aproveitar o pátio<br />

para tomar sol até o meio-dia, quando voltavam ao refeitório<br />

para o almoço. Nas duas horas que sentiam a brisa fresca do<br />

vento, deitavam na grama para admirarem o céu. Ansiavam<br />

pela liberdade dos pássaros que cortavam as nuvens.<br />

O momento ao ar livre era outra forma de rever os familiares.<br />

Aos domingos, Remedios, Miguel e Luís, se uniam a um<br />

grupo de esposas e filhos de presos numa colina que ficava a<br />

300 metros da prisão. A inclinação do terreno permitia que<br />

eles vissem o pátio e, daquele ponto, tentavam identificar os<br />

rostos. Quando reconheciam, gritavam com toda a força que<br />

cabia em seus pulmões para que os familiares soubessem<br />

que, mesmo distantes, continuavam juntos.<br />

O contato era breve e sempre acompanhado de muitas lágrimas.<br />

Para poupar os filhos do sofrimento de ver o pai<br />

sem poder abraçá-lo, Remedios deixou de frequentar o local<br />

após um tempo. Havia outras formas de lamentar a ausência<br />

do marido e uma única lágrima no rosto dos filhos<br />

era devastadora.<br />

Luís Calvo Rengel • 53


A refeição servida das 12h às 13h e das 20h às 21h, era basicamente<br />

a mesma: legumes, batata ou arroz, pão, e às vezes,<br />

bacalhau ou arenque. Sortudos eram os dias que havia carne<br />

ou alguma fruta. O estômago de Juan e de seus companheiros<br />

não estava acostumado à comida servida na prisão, tão<br />

diferente dos ensopados de suas esposas ou das carnes guisadas<br />

de suas mães. Mas comiam para preencher o vazio que<br />

sentiam e sustentar o corpo vivo com a esperança de que um<br />

dia retornariam a suas famílias.<br />

Na maior parte do tempo, estavam encarcerados, o ambiente<br />

era preenchido por um silêncio ensurdecedor, interrompido<br />

apenas pela tosse frequente dos presos que sofriam de tuberculose.<br />

O frio que começava a entrar pelas frestas da janela<br />

no final de setembro, junto à pouca luz que não era suficiente<br />

para esquentar a cela sem calefação, também agravavam as<br />

condições. Os homens doentes transpiravam e a febre era<br />

mais uma forma de delirar naquele lugar. De imaginar que<br />

estavam em casa ao lado da família, de voltar ao tempo em<br />

que eram felizes ou de sonhar com uma sociedade em que a<br />

liberdade era um direto de todos. Quando retomavam a razão,<br />

os presos questionavam os porquês de estarem naquela<br />

situação. A incerteza ameaçava a consciência a cada tilintar<br />

do bastão dos guardas nas grades da prisão. Teriam tomado a<br />

decisão certa? Valia a pena passar por todo aquele sofrimento?<br />

O que há de errado em lutar pela liberdade, pelo que se<br />

54


acredita? Nada. E se morressem por causa disso, deixariam<br />

um sobrenome do qual seus filhos poderiam se orgulhar.<br />

Um dia, Remedios foi sozinha visitar Juan. Deixou Luís com<br />

os avós e Miguel no colégio. A esposa se agarrou às grades<br />

para aproximar-se mais do marido. Um funcionário cruzou o<br />

caminho que separava o casal. As dúvidas lutavam contra as<br />

esperanças de Juan, que disse à mulher:<br />

– Acho que já vai chegar a minha hora, Remedios.<br />

Ele fixou seus olhos nos dela, que o contemplava com o<br />

mesmo carinho da primeira vez que se viram. Em uma mirada,<br />

Remedios carregava a admiração que sentia ao ver o<br />

homem determinado e honrado que havia se tornado aquele<br />

jovem impetuoso que conhecera na boate. O barulho da sala<br />

impediu que ela escutasse o que Juan havia dito.<br />

– O que? – gritou e aproximou ainda mais o rosto no espaço da grade.<br />

– Te amo com toda minha alma, Remedios.<br />

– Eu também. Também te amo, meu amor.<br />

Antes de ir, Remedios conseguiu que um dos funcionários<br />

entregasse uma foto que guardava em sua carteira para o ma-<br />

Luís Calvo Rengel • 55


ido. A lembrança o faria recordar do bem mais precioso que<br />

possuía e pelo qual valia a pena todos os dias de luta: sua<br />

família. Estavam todos reunidos naquela imagem feliz: Remedios<br />

e os filhos Miguel e Luís.<br />

No dia 24 de junho de 1937, o Tribunal de Justiça de Salamanca<br />

decretou Juan Calvo Moronta condenado à pena<br />

de morte, por auxílio à rebelião. Toda a família e os amigos<br />

se organizaram e conseguiram reunir mais de duzentas assinaturas<br />

de pessoas significativas da direita política em um<br />

documento que pedia o indulto de Juan ao generalíssimo<br />

Francisco Franco. Quanto mais era postergada a execução<br />

da sentença, crescia a esperança da liberação.<br />

Às 22h30 do dia 3 de outubro de 1937, os autofalantes da<br />

Prisão Provincial de Salamanca anunciaram quatro nomes:<br />

– Félix Palomero Rivas, Isaac Viñals Jiménez, Arcadio Lucas<br />

Velasco e Juan Calvo Moronta.<br />

Logo em seguida, um funcionário entrou na cela de número<br />

10 e disse:<br />

– Arrumem suas coisas. Às 23h, os senhores entram<br />

na capela.<br />

56


Todos sabiam o que isso significava. Admitir os pecados em<br />

vida para enfrentar a morte em seguida. Antes de ser acorrentado,<br />

Juan despediu-se de Juan Sáez Casado, Alberto Martín<br />

Prieto e Martín Vallejo Casado, os prisioneiros da cela<br />

que, por pura sorte do destino, não haviam sido chamados:<br />

– Até a eternidade, companheiros.<br />

Em silêncio e em ordem, os quatro detentos deixaram a cela<br />

rumo à capela. Assim que entraram, o diretor da cadeia, que<br />

os esperava, avisou:<br />

– Senhores, em algumas horas vocês estarão sozinhos de<br />

frente para a morte. Quem quiser deixar o orgulho de lado e<br />

fazer as pazes com Deus, aqui está o padre – disse apontando<br />

para o religioso.<br />

Nem todos eram ateus, então admitiram seus pecados e rezaram<br />

o Pai Nosso pela última vez. Todos entendiam que só<br />

Deus ou o Franco poderia salvá-los daquele triste fim, mas<br />

Juan e muitos outros prisioneiros que se negaram a desculpar-se<br />

por lutar pelo que acreditavam, pensavam que nenhuma<br />

das duas autoridades parecia se importar.<br />

Terminada a missa, o diretor voltou à capela para informarlhes<br />

que durante a noite não lhes faltaria café, papel e lápis<br />

Luís Calvo Rengel • 57


para escreverem cartas de despedida aos familiares. Juan sentia-se<br />

aliviado quando transferia suas dores e angústias para<br />

o papel. Não sabia o que dizer aos filhos e a esposa além de<br />

reforçar o amor que tinha pela família. Não estava arrependido<br />

e gostaria que, um dia, os filhos reconhecessem a importância<br />

de sua escolha em lutar por seus princípios.<br />

Poucas horas depois de encontrar com os presos na capela, o<br />

diretor da prisão apareceu novamente na cela de número 10,<br />

e disse aos três prisioneiros que restaram:<br />

– Juan Sáez Casado, Alberto Martín Prieto e Martín Vallejo<br />

Casado, recolham suas coisas. A pena de morte dos senhores<br />

foi alterada para 30 anos de prisão.<br />

Não há motivo concreto para a decisão de levarem uns e<br />

deixarem os outros. O destino não nos deixa escolher a hora<br />

que chegamos ou partimos. Mas, está em nossas mãos decidir<br />

como vamos conduzir o começo ao fim.<br />

Em 4 de outubro de 1937, por volta das 6h, Juan e seus companheiros<br />

entravam no caminhão em direção ao Campo del<br />

Marín, área reservada do cemitério de Salamanca. Das janelas<br />

da cadeia, os prisioneiros gritavam:<br />

– Viva a República! Viva a Revolução Social!<br />

58


E reforçavam seu repúdio aos militares fascistas:<br />

– Assassinos, assassinos!<br />

Em menos de trinta minutos, o caminhão chegou ao destino<br />

final. Juan e os companheiros foram conduzidos até uma<br />

parede e posicionados a poucos metros do pelotão de fuzilamento.<br />

Enquanto carregavam os fuzis, os militares ofereceram-lhes<br />

o “privilégio” de cobrirem os olhos com uma<br />

venda. Nenhum deles aceitou.<br />

– Preparar!<br />

O sol começava a surgir no horizonte.<br />

– Apontar!<br />

A claridade tornava mais difícil permanecer com os olhos<br />

abertos, mas os condenados não os fecharam.<br />

– Viva a República! Viva a Revolução Social!<br />

– Fogo!<br />

Se não bastasse o disparo, os militares ainda faziam o que<br />

ficou conhecido como “tiros de graça”, tiros à queima-roupa<br />

Luís Calvo Rengel • 59


Luís no memorial da Guerra Civil Espanhola<br />

Arquivo pessoal<br />

para certificarem-se de que os corpos já estirados no chão<br />

estavam realmente mortos. Quando as execuções terminavam,<br />

não faltavam fascistas que esperavam perto do lugar de<br />

extermínio para escutarem o que para eles era um espetáculo.<br />

Depois do ato de crueldade, uniam-se ao oficial e aos militares<br />

para parabenizá-los com dinheiro e bebidas por realizarem<br />

suas funções bravamente. Uma atitude entre o desprezível<br />

e o hediondo, um elogio à covardia.<br />

60


Assim que souberam que Juan havia entrado no caminhão<br />

rumo ao cemitério de Salamanca, o pai Barnabé e o irmão<br />

Benigno pegaram o carro de um amigo emprestado e foram<br />

para o local. Não chegaram a tempo de impedir o assassinato<br />

brutal, mas puderam evitar que Juan fosse enterrado em uma<br />

vala comum, como aconteceu com muitos outros. Compraram<br />

um caixão de trinta pesetas e celebraram um enterro<br />

simples naquele momento, enterrando-o na cova do campo<br />

C número 335. Como o sepultamento foi imediato, nem Remedios<br />

nem os meninos participaram da breve cerimônia de<br />

despedida, mas durante anos e por inúmeras vezes visitaram<br />

o túmulo de seu amado.<br />

Quando Remedios encontrou Barnabé e Benigno em casa<br />

após o enterro, os três desataram a chorar. No dia 4 de<br />

outubro de 1937, parte do coração da família foi soterrada<br />

a metros abaixo da terra. Remedios perdeu seu chão, sem<br />

saber a profundidade do abismo que enfrentaria. Diante da<br />

mulher que acabou de ser separada para sempre do amor<br />

de sua vida, o sogro e o cunhado tentaram parecer fortes<br />

e entregaram-lhe uma lembrança: uma carta de despedida,<br />

que Juan escreveu antes de ser executado, e a foto que segurou<br />

até o momento final e que mostrava seus pequenos e a<br />

amada esposa. Dessa forma, Barnabé e Benigno esperavam<br />

que o amor da família prevalecesse frente à tristeza profunda<br />

que sentiam.<br />

Luís Calvo Rengel • 61


A dor entregue junto à notícia da morte de Juan foi devastadora<br />

para os meninos. Pensando em evitar mais sofrimento,<br />

Remedios resolveu deixar a imagem e as palavras de adeus do<br />

marido longe do filho pequeno. Naquela época, Luís, então<br />

com seis anos, estava aprendendo a ler e a mãe não queria<br />

que as primeiras sílabas que identificasse fossem carregadas<br />

de tamanha dor. A reação de Miguel, com doze anos, reforçou<br />

essa decisão. O primogênito do casal chegou a ler as últimas<br />

palavras do pai, mas o sofrimento foi tão grande que ele decidiu<br />

nunca mais debruçar seus olhos sobre aquela despedida.<br />

Com o passar do tempo, a carta ficou guardada e acabou<br />

esquecida na gaveta, a ferida causada pela execução foi cicatrizando<br />

e a vida, gradualmente encontrando um novo rumo.<br />

Remedios, Miguel e Luís se mudaram para a casa dos pais<br />

de Juan. Morar junto era uma forma de preencher o vazio<br />

da perda e se ajudarem a seguir em frente. O avô Barnabé<br />

trabalhava como cuidador de crianças no Asilo de la Veja,<br />

uma associação pública que oferecia alimentos, vestimentas,<br />

educação básica, moral e religiosa, e assistência médica a meninos<br />

de cinco a doze anos, localizado no final da avenida<br />

Paseo de Canalejas. Remedios logo começou a limpar a casa<br />

de uma família e a lavar roupa para outras pessoas pela tarde<br />

no rio Tormes. A pureza que deve envolver a infância foi absorvida<br />

por uma enxurrada de dúvidas e desilusões para Luís<br />

e Miguel. A vida boa e completa havia ficado no passado e<br />

62


Divulgação/ internet<br />

Mulheres à beira do rio Tormes. Ao fundo, o centro histórico da cidade<br />

nunca mais mostraria suas formas. O jeito foi crescer tirando<br />

proveito das belezas que a cidade ainda fornecia e dos pequenos<br />

detalhes que fazem toda a diferença, como o abraço da<br />

mãe e a convivência com os avós.<br />

O tempo seguiu seu curso e exatamente uma década após<br />

a morte do pai, Luís, com 15 anos, apresentou à família sua<br />

Luís Calvo Rengel • 63


primeira namorada, uma jovem aprendiz de costureira que<br />

trabalhava em uma oficina próxima à sua casa. Com ela compartilhou<br />

as incertezas e descobertas da adolescência durante<br />

dois anos até que, um dia, conheceu outra moça, que lhe<br />

causou maior interesse. O namoro estava quase completando<br />

um ano e meio quando o garoto saiu com um amigo para<br />

aproveitar as tradicionais feiras de rua, que durante o mês de<br />

setembro, ainda enchem a cidade de Salamanca com barracas<br />

de comidas típicas e artesanato local, além de uma variedade<br />

de atividades culturais. Em meio à alegria do ambiente de<br />

festa, os sorrisos de duas garotas chamaram a atenção dos<br />

rapazes. Depois de trocarem olhares fascinados, decidiram<br />

se aproximar. Chamavam-se Rosa e Luísa. A coincidência do<br />

nome pode ter influenciado a escolha do rapaz, que sem pestanejar<br />

decidiu abandonar a namorada por aquela, que desde<br />

o primeiro momento, o trouxe a certeza de que estava diante<br />

da mulher que seria a mãe de seus filhos.<br />

Mais rápido do que imaginavam, nasceu Maria Nieves, a primogênita<br />

do casal. Em 12 de outubro de 1954, casaram-se<br />

no “cartório das pressas”, Luísa com 19 anos, grávida de seis<br />

meses, e Luís com 23 anos, e com seu mais largo sorriso.<br />

Com o tempo, a família foi crescendo e ganhou mais quatro<br />

filhos, Juan Fausto, Maria Luisa, Paquita e Luis Miguel. Sem<br />

tanta pressa vieram os oito netos, Claudia, Jennifer, Teresa,<br />

Elena, Victor, Alejandro, Natalia e Sara.<br />

64


Durante grande parte de sua vida, Luís trabalhou como<br />

mecânico industrial na fábrica de fertilizantes Mirat S.A..<br />

Como a empresa ficava em frente à prisão de Salamanca,<br />

ele reviveu diariamente as lembranças tristes da infância.<br />

A movimentação dos caminhões carregados com presos<br />

e a fila de parentes ansiosos na porta da cadeia os remetiam<br />

a seus últimos momentos com o pai. Em vez<br />

de ansiar pela vingança dos assassinos de Juan, o filho<br />

optou por honrar sua integridade e, assim como o pai,<br />

lutar por justiça. E esperar um destino melhor para os<br />

familiares que aguardavam o horário de visitas. Desde o<br />

primeiro dia de trabalho até gozar de sua aposentadoria,<br />

então, Luís esteve engajado nas causas trabalhistas dos<br />

operários.<br />

A luta de muitos familiares que sofreram com os atos<br />

cruéis cometidos na Guerra Civil Espanhola foi essencial<br />

para a mudança da sociedade imperada por Franco.<br />

O ano de 1975, em particular, marcou a história do país<br />

e a vida de Luís. Os ventos frios do inverno rigoroso<br />

do mês de novembro trouxeram um forte resfriado a<br />

Franco, então com 82 anos, que agravou os problemas<br />

de saúde recorrentes da idade já avançada. Uma cirurgia<br />

mal sucedida para estancar uma hemorragia interna,<br />

deixou o ditador em coma por pouco mais de um mês.<br />

Mesmo com as mãos trêmulas, o governante espanhol<br />

Luís Calvo Rengel • 65


Divulgação/ internet<br />

Espanhóis saúdam Franco em sua visita a Plaza Mayor<br />

manteve-se como um carrasco e ainda assinou as últimas<br />

sentenças de morte de seu regime no leito do Hospital<br />

de la Paz, em Madri. Na madrugada de 20 de novembro<br />

de 1975, a notícia do falecimento do ditador foi instantaneamente<br />

divulgada em todos os meios de comunicação<br />

do mundo. Enquanto uns choravam a morte do tirano,<br />

outros celebravam com a esperança de que o acontecimento<br />

definisse uma nova etapa para o país.<br />

Nesse mesmo ano, Luís conseguiu com sua capacidade<br />

de diálogo fazer com que 300 operários se unissem a<br />

União Geral dos Trabalhadores (UGT), e sem pretender,<br />

foi nomeado secretário geral do sindicato, em Salaman-<br />

66


ca. Pouco tempo depois, após participar de um congresso<br />

do Partido Socialista Espanhol (PSOE) ingressou no<br />

partido e foi indicado para um cargo na secretaria provincial<br />

de Política Sindical.<br />

Três anos após Franco ser enterrado na Abadía de la<br />

Santa Cruz del Valle de los Caídos, cerca de 40 km de<br />

Madri, no município San Lorenzo de El Escorial, os espanhóis<br />

conseguiram a aprovação do referendo de uma<br />

nova constituição democrática. Nas primeiras eleições<br />

municipais democráticas, Luís foi o único deputado socialista<br />

a ser eleito. E nas eleições de 1982, seguiu na<br />

candidatura, ganhando com o partido a presidência e<br />

vice-presidência da deputação. Durante doze anos foi<br />

conselheiro da Prefeitura de Salamanca, os doze anos<br />

que a Espanha esteve governada pelo Partido Socialista<br />

Espanhol. Entre suas realizações, Luís gosta de contar<br />

que contribuiu para levar água e mantimentos aos 362<br />

povoados carentes da cidade, melhorar as estradas e trabalhar<br />

para o fomento da cultura tradicional.<br />

Quando já estava aposentado, em 2002, Luís voltou à fábrica<br />

desativada para ver parte do edifício da Prisão Provincial<br />

de Salamanca ser transformado no centro de arte<br />

contemporânea Dominus Artium (DA2) – antes símbolo<br />

da repressão franquista, o lugar se converteu em um es-<br />

Luís Calvo Rengel • 67


Divulgação/Museu Domus Artium<br />

Interior do Museu Domus Artium 2002, a antiga prisão de Salamanca<br />

paço de expressão cultural, e ainda preserva características<br />

originais, como algumas celas e as portas de ferro.<br />

A cada conquista e sucessos da transição democrática, lembrava-se<br />

do pai e desejava que Juan estivesse presente para<br />

se orgulhar de ter seguido seus passos e para ver o resultado<br />

da luta que ele e seus companheiros começaram, mas ainda<br />

sentia o vazio da impossibilidade da despedida.<br />

68


Até que um dia, já com 61 anos, Luís notou que a mãe estava<br />

diferente, parecia esconder algo. Remedios havia passado<br />

o dia todo isolada no quarto que vivia na casa do filho,<br />

em La Vega, bairro de Salamanca. Então, à noite, ele bateu<br />

à porta e entrou para ver se ela estava bem. Encontrou-a<br />

sentada na cama, chorando, com um papel e uma foto enrugada<br />

nas mãos. Remedios, em idade avançada e debilitada<br />

por algumas enfermidades, não queria se despedir da vida<br />

sem a certeza de que Luís e o irmão soubessem o quanto<br />

estava orgulhosa da existência que construíram. Ao ver o<br />

filho, entendeu que aquela ocasião seria única: ele conheceria<br />

um pouco mais do pai por meio de um testamento<br />

sentimental que permanecera inédito aos olhos dele todos<br />

aqueles anos. Ela, então, entregou-lhe um pedaço de papel<br />

que segurava e disse:<br />

– Toma filho, isso é teu porque sei que conservarás com o<br />

mesmo cuidado que eu tive durante anos.<br />

Luís sem entender direito o que aquilo significava, olhou<br />

com curiosidade para compreender o tom emocionado da<br />

mãe. Quando percebeu que se tratava do bilhete de despedida<br />

do pai, logo foi tomado pelas lágrimas. Não imaginava<br />

que décadas após a morte de seu pai ainda teria um novo<br />

contato com ele. Leu com os olhos embaçados pela água que<br />

corria sem controle:<br />

Luís Calvo Rengel • 69


Queridíssima esposa e filhos,<br />

Estou na capela desde as onze da noite,<br />

estou tranquilo porque vou com a consciência<br />

tranquila, só levo o sentimento de não haver<br />

sobrevivido para desfrutar de vosso carinho,<br />

nada tenho que recomendar-lhes porque sei que<br />

vossos sentimentos são os que eu desejo. Eu bem<br />

sabia que meu último momento estava próximo,<br />

já acabou o estoque de comida que tu levaste e<br />

sofrido como uma mártir, perdoe-me Remedios<br />

do meu coração e leva o tanto que te amei. Não<br />

me canso de dizer-te que dê muitos beijos e<br />

abraços aos nossos filhos, que a todos os levo no<br />

meu coração. Quando receberás esta carta já não<br />

existirá seu Juan, adeus para sempre...<br />

Juan Calvo Moronta<br />

70


Remedios também entregou a fotografia que mostrava um<br />

dia feliz entre eles, no Parque de la Alamedilla. No verso do<br />

papel, totalmente enrugado pelo tempo, o pai havia escrito:<br />

Queridíssima esposa e fi lhos,<br />

Até as últimas horas da minha<br />

vida conservei esta lembrança<br />

querida, conservem-na sempre<br />

como lembrança de que é sangue<br />

de vosso sangue e carne de vossa<br />

carne e nunca se esqueçam de<br />

mim por que eu, até o último<br />

momento, os terei gravados em<br />

meu coração. Adeus para sempre<br />

minha esposa, adeus para sempre<br />

meus fi lhos, já não voltarão a ver<br />

vosso esposo e pai.<br />

Luís Calvo Rengel • 71


O único documento que Juan deixou à família foi escrito<br />

poucas horas antes de enfrentar o pelotão de fuzilamento.<br />

Os traços do texto eram firmes, como se nem sequer<br />

tivesse tremido ao escrever tão emocionante despedida.<br />

“Ali nos deixava a mais bonita herança, a única riqueza<br />

que possuía, a grande lição de sua vida, sua integridade,<br />

honra e lealdade à República, seu valor”, define Luís.<br />

Enquanto lia a mensagem de Juan, Luís confirmava que,<br />

mesmo sem saber, havia seguido os últimos desejos do<br />

pai. “Idolatrei o autor da minha vida e tratei de seguir<br />

o exemplo de vida que ele me deixou”. A lembrança<br />

também chegou às mãos de Miguel, que aos 68 anos,<br />

preferiu manter a decisão que tomou na adolescência de<br />

nunca mais ler o que o pai havia escrito para não encarar,<br />

novamente, aquelas palavras, que além de simbolizar o<br />

fim, falavam sobre injustiça, frustração e vazio.<br />

Luís ainda teve que enfrentar o sofrimento de enterrar<br />

sua mãe e o irmão mais velho alguns anos depois. A vida<br />

não foi fácil para o caçula da família Calvo Rengel, mas<br />

ele conseguiu transformar a dor em luta. O vazio em<br />

paz. A Plaza Mayor, por exemplo, foi palco do início da<br />

tragédia de sua família e de seu país, mas ele também<br />

sabe que os acontecimentos, por mais horrendos que sejam,<br />

podem trazer algo bom. Enquanto passeia pela pra-<br />

72


ça, Luís, agora um senhor de 85 anos, relembra cenas do<br />

passado certo de que o futuro será mais feliz. A imagem<br />

de Franco deixou de ser o centro das atenções enquanto<br />

caminha com sua esposa por entre os arcos, acompanhado<br />

pelos bisnetos Luis Lazar, Jordi e Noelía. Ver a<br />

terceira geração após seu pai correndo naquele mesmo<br />

espaço traz outros tons ao local. E essa cena promete<br />

ficar ainda mais colorida: recentemente, Luís soube que<br />

ganhará mais dois bisnetos, uma menina e um menino,<br />

que mesmo sem nomes definidos, já entraram para a história<br />

da família e para o coração do bisavô.<br />

Luís Calvo Rengel • 73


Amanda Boucault<br />

74


<strong>NA</strong> PLATAFORMA <strong>DO</strong> PASSA<strong>DO</strong><br />

José Pascual Mateos, o Pepe<br />

O<br />

antigo edifício em que mora Pepe fica a poucos<br />

metros da estação de trem de Salamanca. A proximidade<br />

permite escutar o vai e vem dos vagões<br />

– sons que ecoam como uma trilha sonora de suas lembranças,<br />

levadas a quilômetros por hora até se chocarem ao seu<br />

encontro. José Pascual Mateos, o extenso nome é conhecido<br />

apenas em sua certidão de nascimento, os familiares e amigos<br />

o tratam pelo apelido carinhoso. Hoje, aos 89 anos, Pepe está<br />

aposentado do ofício de maquinista, que exerceu por mais da<br />

metade de sua vida. Mesmo responsável por conduzir milhares<br />

de passageiros aos respectivos destinos, ele tinha consciência<br />

de que seu próprio caminho não estava em suas mãos.<br />

Aos nove anos, em 1936, uma freada brusca redefiniu o rumo<br />

de sua trajetória: o pai foi levado pela guerra e seu paradeiro<br />

ficou desconhecido por quase seis décadas. A dor da ausência<br />

e a esperança pelo reencontro o acompanharam em diferentes<br />

passagens da vida, mas não foram os únicos impulsos na viagem<br />

para descobrir o destino de seu pai. Ao longo do tempo,<br />

recebeu apoio da esposa, dos filhos e de amigos.<br />

Antes de Pepe chegar à plataforma da vida, em 6 de junho<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 75


Eduardo Mateos Rodrigues<br />

Arquivo pessoal<br />

de 1927, sua família embarcou<br />

em um trem que<br />

já estava em movimento<br />

acelerado. As promessas<br />

de recuperação econômica<br />

que preenchiam o<br />

discurso do general Primo<br />

de Rivera mudavam<br />

o curso da política espanhola<br />

com a ditadura, em<br />

1923. Nesse mesmo ano,<br />

o pai, Eduardo Mateos<br />

Rodrigues, então com 20<br />

anos, cumpria o serviço<br />

militar em Madri. No<br />

escritório onde trabalhava<br />

não se falava em outra<br />

coisa além das ideias<br />

do homem com bigode<br />

cheio e nariz empinado<br />

que declarava a si mesmo<br />

como o “cirurgião de<br />

ferro”, capaz de suturar<br />

com firmeza e precisão<br />

os problemas que afetavam<br />

o país. Mas o rapaz,<br />

76


por outro lado, só conseguia se preocupar em conquistar a<br />

bela morena que servia café na empresa. Eduardo havia descoberto<br />

o amor que preencheria todos os dias de sua vida.<br />

Ele encontrou nos olhos da governanta Modesta Pascual Elices<br />

um motivo para enfrentar a incerteza daqueles tempos. E a<br />

moça se apaixonou pelo sorriso que demonstrava a segurança<br />

e abrigo que lhe faltava. O sentimento recíproco era a única<br />

certeza do casal sobre o futuro, o suficiente para decidirem traçá-lo<br />

juntos. Assim que Eduardo concluiu o dever, voltaram à<br />

Salamanca para casarem na cidade-natal do casal e que sempre<br />

esteve em seus planos de vida. Em meio ao caos, mas em um<br />

ambiente repleto de amor, foi que chegou Pepe, o protagonista<br />

desta história. A família ficou completa com o nascimento<br />

dos outros filhos, Agustín e Marcelino, anos depois.<br />

Enquanto intelectuais e universitários lideravam protestos<br />

contra a ditadura que dominava a Espanha e os conservadores<br />

firmavam acordos para, por fim, despacharem Primo<br />

de Rivera para a França, a família aproveitava uma pequena<br />

parte do humilde salário de eletricista de Eduardo para fazerem<br />

atividades juntos. Quantas tardes de verão desfrutaram<br />

com as crianças no Parque de la Alamedilla ou à beira do rio<br />

Tormes. Um chocolate quente com churros em alguma das<br />

cafeterias da Plaza Mayor era um luxo, mas passear pela praça<br />

era uma riqueza que não custava uma única moeda. Os meni-<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 77


nos apostavam corrida de um lado para o outro sob os olhos<br />

atentos dos pais que, às vezes, se distraíam com a beleza do<br />

espaço público assim que o sol pintava os arcos com cor de<br />

ouro. A família vivia em uma pequena casa na Plaza de la<br />

Cruz Verde, que Modesta cuidava com a mesma dedicação<br />

que reservava aos filhos.<br />

Se em casa os dias eram de felicidade, a vida naqueles tempos<br />

ficava mais conturbada a cada dia. A Segunda República conduzia<br />

uma dança das cadeiras no governo e a tensão política<br />

invadia as ruas e chegava aos moradores pelas ondas de rádio<br />

e pelas manchetes dos jornais. Em 1934, a companhia espanhola<br />

Iberdrola, responsável pelo abastecimento de energia<br />

de Salamanca, onde Eduardo trabalhava há alguns anos, o<br />

transferiu para Armenteros, um povoado a pouco menos de<br />

uma hora de distância da cidade onde nasceu. Em meio à crise<br />

daquela época, ele não poderia desperdiçar a oportunidade<br />

de somar algumas pesetas ao apertado orçamento familiar.<br />

Não levou muito tempo para que o casal conquistasse o carinho<br />

da nova vizinhança em Armenteros. Eduardo ganhou<br />

prestígio ao liderar um grupo musical com novos amigos que<br />

virou o entretenimento do povoado já que o rádio não era<br />

um eletrodoméstico encontrado em todos os lares. Das suas<br />

mãos saíam os sons da bandurria, instrumento típico espanhol,<br />

semelhante a uma guitarra pequena. No restante do<br />

78


Eduardo e Modesta no dia do casamento<br />

Arquivo pessoal<br />

tempo, fazia brinquedos engenhosos, construídos para a diversão<br />

de seus filhos e das outras crianças. Também passava<br />

horas ensinando os pequenos a pescarem.<br />

O cenário de paz durou dois anos até a guerra espanhola se<br />

tornar um pesadelo real. Em 18 de julho de 1936, quando<br />

Pepe estava com nove anos e um dia antes das tropas do general<br />

Franco declararem oficialmente o conflito civil na pro-<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 79


víncia de Salamanca, Eduardo avisou a esposa que começaria<br />

seu trabalho às cinco horas da manhã, duas horas mais cedo<br />

do que de costume. Era a forma de evitar o calor insuportável<br />

do verão, que beirava os 40°C. Buscar uma ocupação era<br />

também uma maneira de se livrar dos pensamentos sobre a<br />

guerra iminente da qual tanto comentavam os outros funcionários<br />

que se reuniam na Casa del Pueblo. Eduardo, ocasionalmente,<br />

frequentava o sindicato aberto aos operários para<br />

ficar a par das notícias, mas não tomava partido.<br />

Antes de o sol raiar, já estava quase finalizando os testes de<br />

pontos de luz espalhados para iluminar a plantação de hortaliças,<br />

e se preparava para reparar os que estavam falhando.<br />

Por volta das dez horas, Pepe obedeceu à ordem de sua mãe e<br />

seguiu a estrada de terra batida até o campo para levar o café<br />

da manhã ao pai. Eduardo viu uma oportunidade de desfrutar<br />

de um momento a sós com seu primogênito e fez uma<br />

pausa. Sentou-se ao lado do filho em uma tábua de madeira<br />

sustentada por tijolos que servia como banco. Enquanto o<br />

pai descansava seu olhar no verde da paisagem, o menino,<br />

ainda sem altura suficiente para encostar os pés no chão, balançava<br />

as pernas e observava os sinais de preocupação que<br />

roubavam o sorriso, sempre presente, do rosto de seu pai.<br />

Com pouco apetite, Eduardo disse a Pepe:<br />

– Não estou me sentindo muito bem, pode terminar meu<br />

80


café da manhã.<br />

Os gritos de Modesta, mesmo a muitos metros de distância,<br />

invadiram a tranquilidade daquele momento e agravaram o<br />

medo que alimentava Eduardo há dias.<br />

– Eduaaaaaaardo! – prolongou o nome do esposo deixando<br />

ecoar ao máximo seu desespero.<br />

Pai e filho levantaram-se em um salto tão precipitado que<br />

desmontaram a estrutura em que estavam sentados. Um pouco<br />

desnorteado, Eduardo buscou a origem do som e recolheu,<br />

o mais rápido que pode, as ferramentas para voltar ao<br />

lar. Assim que encontrou o marido, Modesta, entre soluços e<br />

lágrimas, tentava explicar o que lhe afligia.<br />

– Uns homens vestidos de azul vieram te buscar aqui. Acusaram-te<br />

de ter arma de fogo em casa e mandaram apresentar<br />

na delegacia.<br />

Como sempre fazia em momentos de angústia, Eduardo envolveu<br />

a mulher em seus braços e disse confiante:<br />

– Quem não tem pecado, nada deve temer. Vou lá agora mesmo,<br />

não te preocupes, Modesta.<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 81


Eduardo não queria demorar. Lavou-se com rapidez e vestiu<br />

a melhor roupa que havia no armário: uma camisa de linho<br />

branca recém-passada pela esposa e uma calça azul de tecido<br />

leve. Escolheu seus sapatos brancos, já engraxados, como<br />

um dos acessórios. Cuidadosamente, também pegou o relógio<br />

de bolso, com corrente de prata, herança de seu pai. Por<br />

seu significado emocional, era sempre uma escolha indispensável<br />

quando sabia que a ocasião era importante.<br />

Antes de sair, pediu a mulher uma peseta caso tivesse que<br />

almoçar na cidade.<br />

– Aqui tem cinco pesetas. Que Deus te acompanhe.<br />

Enquanto a imagem do marido sumia no horizonte, a mulher<br />

colocou a mão direita no peito, como se pudesse conter o<br />

aperto que sentia em seu coração, e acenou com a outra. “Até<br />

sempre”, disse como de costume.<br />

Depois da partida, a angústia. As horas passavam e nada de<br />

Eduardo retornar. Preocupada, Modesta adiantou o jantar<br />

das crianças, e sem muito jeito, colocou-as na cama. Saiu, então,<br />

pela vizinhança em busca de informações sobre o marido,<br />

mas ninguém sabia onde estava ou se atrevia a dizer algo<br />

pelo medo que pairava nos moradores naqueles dias – ao<br />

menos dois conhecidos do povoado já haviam sumido e ela<br />

82


temia ser esse o mesmo destino do esposo.<br />

Modesta passou a noite em claro, rezando para que o turbilhão<br />

de incertezas castigando sua mente não se tornasse<br />

realidade. No dia seguinte, comunicou ao restante da família<br />

que Eduardo havia desaparecido e foi pessoalmente buscar<br />

mais informações sobre o marido na sede da empresa, que<br />

atualmente é ocupada pelo luxuoso Hotel Alameda Palace,<br />

em Salamanca. Deixou os filhos sob os cuidados dos parentes<br />

e seguiu sozinha até a capital de carona. Tão logo chegou<br />

ao edifício, subiu direto ao escritório do diretor da Iberdrola,<br />

que ficava no primeiro andar. De poucas palavras, mas muito<br />

trabalho a fazer, o homem sequer levantou da cadeira para<br />

receber Modesta. Ao notar sua presença, recostou-se no assento,<br />

tirou os óculos, apoiados na ponta do nariz para ler<br />

um documento, olhou-a fixamente e disse seco e direto:<br />

– Seu marido foi fuzilado.<br />

As palavras do diretor foram como tiros que a atingiram em<br />

cheio. Certamente, não era a primeira vez que aquele homem<br />

anunciava aquela notícia a alguém, considerando o período<br />

tão turbulento. O diretor da companhia comunicou a morte<br />

com a crueldade objetiva de um médico que informa o fim<br />

de um paciente terminal aos familiares. Acreditava que quanto<br />

mais rápido e sem rodeios, menos doloroso seria para a<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 83


pessoa diante dele. A estratégia não funcionou com Modesta,<br />

que tremia abalada pela perda do pai de seus filhos, pela<br />

perda do grande amor. A notícia era uma infecção que se<br />

alastrava em seu corpo e contaminaria todos aqueles ligados<br />

a Eduardo. Em estado de choque, não conseguiu vencer o<br />

nó que travava as palavras em sua garganta. O executivo deu<br />

continuidade ao palavrório padrão e avisou que, dentro de<br />

alguns dias, passariam para recolher o material elétrico da<br />

empresa, que estava em posse de Eduardo até ser tirado da<br />

vida, e entregar o pagamento do trabalho do mês à esposa.<br />

Depois de um interminável minuto e ainda atordoada, ela<br />

saiu da sala sem dizer uma única palavra, aproveitando-se da<br />

chegada da secretária que entrou para dar um recado.<br />

Pensamentos atrozes invadiram a cabeça de Modesta enquanto<br />

suas pernas a conduziam pelas ruas de paralelepípedos<br />

até a Casa de las Conchas, onde estava a carona que a<br />

levaria à Armenteros. Como Eduardo havia morrido? Ele teria<br />

sofrido muito? Teriam-no torturado para arrancar alguma<br />

confissão? Como contar aos meninos? Também imaginava<br />

o futuro sem o marido ao mesmo tempo em que vinham as<br />

lembranças de felicidade ao lado dele. A confusão de imagens<br />

a impediu de prestar atenção no trajeto que fazia até o<br />

carro que a aguardava. Ia desgovernada ao endereço combinado.<br />

A dor de saber que seu amado não estava mais ao<br />

alcance de sua voz e de que todos os momentos comparti-<br />

84


Divulgação/ internet<br />

Atualmente, a Casa de las Conchas funciona como biblioteca pública<br />

lhados, sempre intensos, agora seriam apenas parte de um<br />

sonho bom, fazia com que ela buscasse na memória como<br />

fora feliz. Lembrar era ter de volta o seu amor. Era retornar<br />

ao período em que tinha sua família completa, um tempo de<br />

prazer que jamais voltaria a desfrutar. Foi instantaneamente<br />

confortada ao recordar o sorriso de Eduardo, seu doce<br />

abrigo. A expressão de felicidade do marido estava nítida no<br />

dia do casamento, quando, diante do padre, ouviram o tão<br />

esperado “eu vos declaro marido e mulher”. Aquele mesmo<br />

sorriso que invadia seu rosto sempre que abraçava os filhos.<br />

Tantos momentos juntos. Passeios no parque. Pesca à beira<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 85


io. Paellas de domingo. Pepito. Café da manhã para o papai.<br />

Vá com cuidado. Homens fardados. Tudo ficará bem. Pavor.<br />

Arma de fogo. Delegacia. A camisa recém-passada a combinar<br />

com os sapatos brancos. Traje de um homem distinto.<br />

O tique-taque do relógio. Um beijo. O último beijo. Cinco<br />

pesetas. Que Deus te acompanhe. Coração na mão. Adeus na<br />

outra. Até sempre. Acabou.<br />

Num piscar de olhos, as cenas do passado foram substituídas<br />

pela tristeza que sentia no presente assim que Modesta viu<br />

Antonio Calama Sanz, o médico da família, vindo em sua<br />

direção. Com as mãos trêmulas e os olhos transparecendo<br />

uma dor profunda, ela não conseguiu encontrar palavras para<br />

descrever o que acabara de ouvir do chefe do marido.<br />

– Seu Antonio...<br />

– Não precisa dizer nada, Modesta – interrompeu-a, comovido.<br />

O médico conhecia bem a situação. Nas últimas horas, havia<br />

atestado a hora da morte de vários homens e mulheres<br />

que estavam nas mesmas condições do marido de Modesta.<br />

Testemunha ocular das atrocidades da guerra. O cadáver de<br />

Eduardo havia sido encontrado em um terreno à margem de<br />

uma estrada, em Pelabravo, município a dez quilômetros de<br />

Armenteros, por uma mulher e uma criança que iam lavar<br />

86


oupa no rio da região. Antonio foi o responsável por examinar<br />

o corpo do pai de Pepe. Não havia sinais de hematomas<br />

em sua pele, somente as marcas das balas, diferentemente de<br />

vários outros cadáveres que o médico examinara. Por uma<br />

dessas incompreensíveis graças divinas, Eduardo não sofrera<br />

outras torturas físicas. Mas ferido no coração, não resistiu<br />

e acabara assim como tantas outras vítimas do franquismo<br />

arrancado da vida, de sua família. Mais uma entre as muitas<br />

tragédias provocadas pela Guerra Civil Espanhola.<br />

– Se servir para tranquilizar a senhora, ele não foi martirizado<br />

– disse Antonio à Modesta.<br />

Assim como nas viagens de trem, a vida segue ainda que haja<br />

assentos vazios. Sem muito tempo para assimilar os últimos<br />

acontecimentos, Modesta percebeu que não tinha dinheiro<br />

suficiente para transferir o marido da vala comum em que<br />

estava em Pelabravo para o cemitério de Salamanca, cidade<br />

onde ele nasceu e gostaria de ser enterrado. Nem poderia<br />

fazer uma cerimônia à altura do homem, marido, pai e amigo<br />

que foi Eduardo. Assim como outras mulheres que perderam<br />

seus esposos por causa da guerra, Modesta não embarcou<br />

em uma busca incansável pelo paradeiro de Eduardo. Elas<br />

entendiam que contrariar a lei do regime poderia levar também<br />

a vida de seus filhos. A única possibilidade ao alcance de<br />

Modesta era se conformar com o pensamento de que a alma<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 87


de seu esposo descansava em paz.<br />

Além disso, precisava encontrar coragem para dizer aos filhos<br />

o que havia acontecido. Quando chegou ao lar, em Armenteros,<br />

foi recebida pelos parentes que estavam cuidando de Pepe,<br />

Agustín e Marcelino. Os familiares logo perceberam que a notícia<br />

trazida por Modesta era devastadora e deixaram a mãe a<br />

sós com os garotos. Ela abaixou-se para ficar do tamanho deles,<br />

que estavam atemorizados pelo que ouviram das conversas<br />

dos adultos, antes da chegada da mãe. Modesta disse:<br />

– O papai sempre vos amou muito e se ele pudesse nunca<br />

teria partido, mas ele se foi. Sois muito pequenos para entender<br />

com clareza a dimensão do que estou dizendo, mas<br />

quero que nunca vos esqueçáis de como Eduardo era honesto<br />

e cuidadoso. Ele sempre estará convosco porque sois<br />

parte dele.<br />

– E onde ele está, mamãe? – disse Pepe.<br />

– O que fizeram com teu pai foi cruel. Não permitiram que<br />

nós pudéssemos nos despedir dele.<br />

Com nove anos, Pepe, o mais velho dos irmãos, enchia a<br />

mãe de perguntas sobre o paradeiro de Eduardo. Aos poucos<br />

e com o passar dos anos, Modesta, que também não tinha<br />

88


espostas, tentava esclarecer as dúvidas dos filhos, da melhor<br />

maneira possível.<br />

Para aliviar a dor da ferida aberta pela morte de Eduardo, a<br />

esposa passou a lavar, costurar e passar roupa para outras<br />

pessoas. A atitude, que servia para ocupar a cabeça na maior<br />

parte do tempo, também era uma forma de garantir o sustento<br />

da família. O trabalho árduo e diário, no entanto, não<br />

foi suficiente para manter o lar que havia construído com<br />

seu amado.<br />

Ela e os filhos teriam de se mudar, deixar Armenteros rumo<br />

a um destino ainda desconhecido. Abandonar a casa, de certa<br />

forma, era dar um passo na direção contrária a de Eduardo.<br />

Despedir-se das paredes que acolheram tantas refeições em<br />

família e também do quintal onde o marido, sempre que podia,<br />

aproveitava para brincar com os meninos. Mudar-se era<br />

como deixar parte da história de Eduardo para trás.<br />

Sugeriram à Modesta que começasse a nova vida na cidade de<br />

Béjar, ao sul da capital Salamanca, um dos lugares mais promissores<br />

para os espanhóis na época. Foram muitos os que<br />

seguiram esses passos e depositaram seu suor em diversos tipos<br />

de trabalho, principalmente nas muitas fábricas de tecidos,<br />

que ganharam fama, inclusive, fora das fronteiras do país. A<br />

família precisou ficar separada durante um ano. Pepe, Agus-<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 89


tín e Marcelino viveram com a avó materna, em Colmenar de<br />

Montemayor, enquanto a mãe juntava dinheiro suficiente para<br />

buscar os filhos e instalá-los na cidade. No meio do ano de<br />

1937, as crianças voltaram a morar com Modesta, que conseguiu<br />

recuperar os móveis que havia deixado na antiga casa para<br />

dar um ar familiar à nova moradia. A cena da mudança foi tão<br />

marcante para o primogênito, que quase oito décadas depois,<br />

ainda recorda em detalhes de carregar uma muda de roupa nas<br />

costas e um colchão nos braços. “Sempre que assisto a um<br />

filme dramático em que os personagens passam por situação<br />

semelhante, me lembro desse dia”.<br />

Pepe, então com dez anos, não demorou muito para adaptarse<br />

à nova rotina. Frequentava uma escola rudimentar que,<br />

como as outras nos tempos da guerra espanhola, estava devassada.<br />

Cada banco escolar duplo acomodava três crianças.<br />

Aos empurrões e cabeçadas, espiavam o único livro, compartilhado<br />

entre seis alunos. Apesar do ensino precário, Pepe<br />

nunca faltou ao colégio. Sabia que não fazia parte da turma<br />

de alunos privilegiados com meios para comprar uma enciclopédia.<br />

Também não tinha chance como esse grupo de,<br />

quem sabe, tornar-se médico, advogado ou engenheiro. Mas<br />

mesmo sem recursos, pode entrar no mundo da leitura da<br />

mesma forma que seus colegas de sala por causa da solidariedade<br />

da família para a qual Modesta trabalhava. Vinham de lá<br />

as obras que chegavam às suas mãos. Essa aproximação fez<br />

90


otar o gosto pelos livros que nutre até hoje e preenche diversas<br />

prateleiras em seu apartamento em Salamanca, repleto<br />

de títulos dos russos Tolstói e Dostoiévski, clássicos franceses,<br />

além de ganhadores dos prêmios Goncourt e Pullitzer.<br />

Já não é mais como em sua difícil infância, quando precisava<br />

pegar emprestado dos patrões de sua mãe. Na tenra idade,<br />

devorou, em apenas um ano, todas as obras de Júlio Verne.<br />

Naquelas páginas encontrou heróis valentes que enfrentaram<br />

desafios, perderam batalhas, mas no fim sempre alcançaram<br />

vitória. Nas horas de leitura, Pepe se lembrava da falta de informação<br />

sobre o real paradeiro de seu pai e se questionava<br />

em qual fase dessa jornada ele próprio estava. Os ensinamentos<br />

de Verne, um de seus autores favoritos, deram a energia<br />

para continuar acreditando no reencontro: “Nunca se fez<br />

nada grande sem uma esperança exagerada”, “Os obstáculos<br />

existem para serem vencidos”.<br />

A vida seguia sem grandes revelações sobre o fim de Eduardo.<br />

Todos os dias pela manhã antes do início das aulas,<br />

Pepe se unia aos outros alunos nas filas organizadas no pátio<br />

do colégio. No mesmo instante em que começava a tocar o<br />

Cara al Sol, dezenas de bracinhos se estendiam para frente<br />

imediatamente, como puxados por um fio de marionete. Um<br />

professor começou a notar que Pepe ficava inerte. E, de forma<br />

alguma, acompanhava os colegas entoando o hino. Certa<br />

vez, o mestre questionou:<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 91


– Por que não cantas, Pepito? É o hino da nação!<br />

– Porque não vou cantar o hino dos que mataram meu pai –<br />

disse ao cruzar os braços.<br />

A atitude rebelde levou o garoto à diretoria. Mas não o intimidou<br />

a dar a mesma justificativa ao diretor do colégio.<br />

– Então não cantes, meu filho.<br />

A reação positiva foi inesperada, mas importante para Pepe.<br />

O diretor ficou do lado do menino e ordenou que sua decisão<br />

fosse respeitada por todos. Esse cuidado, quase paterno,<br />

foi essencial para seu desenvolvimento. Sabendo as<br />

dificuldades financeiras da família, o diretor também o liberava<br />

meia hora antes do horário de saída das aulas para que<br />

pudesse entregar marmitas para os operários da região. Em<br />

troca de uma moeda, pegava e levava as refeições preparadas<br />

por suas mulheres. Enquanto as carregava, com agilidade<br />

para não esfriar, sentia o aroma dos pratos e tentava<br />

adivinhar o que os outros iriam almoçar. Mesmo faminto,<br />

lembrava-se da obrigação e do dinheiro que receberia e não<br />

mexia em nada. “Que irônico, não é? Eu dava comida aos<br />

homens enquanto eu mesmo tinha mais fome que um cachorro<br />

abandonado”, recorda.<br />

92


Se de segunda a sexta-feira frequentava a escola, as manhãs<br />

de domingo estavam reservadas para o dever religioso.<br />

Pontualmente às 10h, os alunos se encontravam no colégio<br />

e saiam enfileirados, marchando até a igreja para assistir à<br />

missa. Como a mãe estava sempre ocupada com os serviços<br />

para sustentar a família, raramente acompanhava o garoto.<br />

Pepe também não tem lembranças do pai na igreja porque<br />

Eduardo era ateu. Ainda assim, o filho nunca o ouviu dizer<br />

uma palavra sequer contra Deus, defendia a verdade acima<br />

de tudo. Uma lição ficou guardada na memória de Pepe: “Se<br />

você não acredita em Deus, por que mentir? E se acredita,<br />

para que ofendê-Lo?”.<br />

As marmitas e as obrigações escolares estiveram com Pepe<br />

até 6 de junho de 1941, dia em que completou catorze anos e<br />

começou uma nova etapa. Nessa idade concluía-se o ensino<br />

básico, e como não precisava mais ficar horas em frente à<br />

lousa, o garoto tinha mais tempo para ajudar a mãe a conseguir<br />

dinheiro para a família. Então, já no dia seguinte de seu<br />

aniversário, trocou as entregas de comida pelo trabalho de<br />

ajudante em uma farmácia.<br />

Modesta também fez concessões. Com o passar do tempo,<br />

a ferida que ardia em seu coração foi cicatrizando. Em 1942,<br />

ela aceitou o pedido de casamento de um homem, que conhecera<br />

havia pouco. Gimiro era uma boa pessoa, um viúvo<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 93


que precisava de alguém para cuidar dele e da casa. Modesta,<br />

então com 37 anos, encontrou no novo marido um braço<br />

para acompanhá-la nos passeios de fim de tarde e um exemplo<br />

masculino para ajudá-la na criação dos meninos. Com a<br />

união, a família voltou a viver na capital Salamanca.<br />

Retornar à cidade onde se casou e deu à luz aos filhos de<br />

Eduardo não deve ter sido fácil para Modesta. Sentir-se outra<br />

vez nos cenários que presenciaram tantos momentos<br />

felizes em família: os arcos dourados à luz do sol da Plaza<br />

Mayor, as risadas de crianças brincando no Parque de la<br />

Alamedilla, o cheiro da grama molhada que acompanha o<br />

curso do rio Tormes. E também voltar a ver lugares que<br />

marcaram seus piores pesadelos, como o edifício onde recebeu<br />

a notícia da morte de seu primeiro marido e o ponto<br />

onde encontrou o médico que confirmou a fatalidade da<br />

guerra sobre sua família.<br />

Mas, cada viagem é única. Quem partiu nunca retorna igual,<br />

ainda que volte ao lugar que um dia esteve. Modesta era outra<br />

mulher, mais forte e disposta a reconstruir a vida. Guardaria<br />

para sempre a lembrança de Eduardo: o grande amor de sua<br />

vida e o pai de seus filhos. O mesmo aconteceu com os garotos.<br />

Pepe, Agustín e Marcelino também tiveram de se adaptar<br />

à nova vida em Salamanca. Aos poucos, criaram um carinho<br />

pelo padrasto que os apoiou e os incentivou a ingressarem<br />

94


na profissão de maquinista na companhia ferroviária Renfe,<br />

onde ele exercia um cargo administrativo.<br />

Gimiro era um bom pai, porém, nunca poderia substituir<br />

Eduardo, nem apagar o fato de Pepe não ter tido a oportunidade<br />

de ajudar a organizar o enterro do pai. O adolescente<br />

continuava preso à crença de que ele ainda poderia estar vivo.<br />

A esperança renascia quando via notícias nos jornais sobre<br />

familiares que voltaram a suas casas tempos depois de declararem<br />

o fim da guerra espanhola, em abril de 1939. “E se ele<br />

não morreu? Se escapou?”, pensava Pepe. Agarrar-se à ideia<br />

de que o pai estava vivo era uma forma mais confortável de<br />

lidar com o vazio de sua ausência.<br />

Muitos espanhóis também acreditaram, iludidos, que Franco<br />

seria derrubado com a queda de Hitler e a rendição da<br />

Alemanha, em 8 de maio de 1945. Porém, enquanto as democracias<br />

se preocupavam em colocar ordem na Europa, o<br />

general fez uma faxina em seu governo, reestruturou seu partido<br />

político, a Falange, e reforçou a aliança com o Vaticano.<br />

O terreno estava limpo para seguir em frente com a ditadura<br />

que estabeleceria a incerteza e o medo na sociedade por quase<br />

quatro décadas.<br />

Em 1946, um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial,<br />

Pepe completou dezoito anos e deixou a mãe, o padrasto e os<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 95


irmãos em Salamanca rumo à Madri para cumprir o serviço<br />

militar na área de ferroviários. Como maquinista, era responsável<br />

por conduzir centenas de passageiros diariamente. Nas<br />

idas e vindas, prestava atenção em todos os rostos que se dispersavam<br />

no tumulto da estação, certo de que em alguma das<br />

plataformas poderia identificar aquele típico sorriso sempre<br />

estampado no rosto do pai.<br />

Ocasionalmente, Pepe era liberado do serviço aos finais de<br />

semana e aproveitava para visitar a família em Salamanca.<br />

A viagem de três horas de trem era recompensada pela alegria<br />

do reencontro. Certa vez, quando chegou a casa, abriu<br />

a porta e deparou-se com uma cena estarrecedora: todos os<br />

móveis estavam revirados e a mãe chorava em meio a uma<br />

pilha de livros jogada no chão.<br />

– Filho, não sabes o que aconteceu... A polícia veio aqui e<br />

revistou a casa toda. – disse Modesta assim que o viu.<br />

– Mas por que isso?!<br />

– E eu que sei! Rasgaram os colchões e olharam atrás de todos<br />

os quadros pra ver se havia algum documento escondido.<br />

Para amenizar a saudade e preencher os vazios do peito, Modesta<br />

costumava ler e reler as cartas que lhe enviavam, entre<br />

96


elas, a do filho mais velho. Ela tinha o costume de guardar os<br />

envelopes embaixo do vidro que segurava a toalha rendada<br />

da mesa da sala. A quantidade de papéis chamou a atenção de<br />

um dos oficiais, que imediatamente começou a esquadrinhar<br />

cada parágrafo enviado à Modesta. Aflita, a mãe tentava explicar<br />

para o homem que tinha um filho cumprindo o serviço<br />

militar como voluntário em Madri e sempre que podia lhe<br />

mandava notícias.<br />

No escritório em que trabalhava, já haviam ensinado a Pepe<br />

sobre os perigos dessas correspondências. Ele já sabia que<br />

qualquer carta colocada na caixa de correio do quartel poderia<br />

ser aberta por um superior antes de chegar ao remente.<br />

Ciente da censura prévia imposta pela ditadura ficou mais<br />

criterioso sobre o que escreveria para a mãe. A saúde frágil<br />

de Modesta também era motivo para o filho poupá-la das<br />

calamidades da repressão.<br />

Sem ter provas incriminatórias, o oficial abandonou as cartas<br />

e foi embora. “Éramos vigiados, e mal desconfiávamos”,<br />

concluiu. Na época, ele não tinha tanta certeza, mas evitava<br />

qualquer atitude que o fizesse ter o mesmo destino do pai. Na<br />

companhia ferroviária Renfe, onde trabalhou por mais de quatro<br />

décadas, contou apenas para três amigos íntimos que seu<br />

pai havia sido fuzilado durante a Guerra Civil Espanhola. “Tinha<br />

certeza que encontrariam uma forma de me demitir ou me<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 97


punir por isso. Em Salamanca, morreram muitos ferroviários”.<br />

Nem tudo era ruim na vida de Pepe. Felizmente, ele repetiu<br />

um encontro feliz que o pai teve: descobriu o amor. Assim<br />

como Eduardo, Pepe retirou de uma paixão a força para enfrentar<br />

os tempos difíceis da ditadura. Em uma de suas visitas<br />

à Salamanca, conheceu uma encantadora morena de olhos<br />

claros que morava na vizinhança. Até concluir o serviço militar<br />

em Madri, Pepe, sempre que podia, voltava à cidade-natal<br />

para ver Otília, que em pouco tempo se tornou sua noiva. O<br />

casamento também não demorou muito para se realizar. As<br />

frequentes viagens profissionais de Pepe trouxeram experiência<br />

ao casal, que aprendeu a cultivar paciência e confiança.<br />

Hoje se orgulham da convicção de que um sempre pertenceu<br />

exclusivamente ao outro. Com três filhos, dois netos e um<br />

bisneto, o casamento chegou às bodas de vinho. O símbolo<br />

que representa os setenta anos de união é como o amor de<br />

Pepe e Otília: o tempo só o tornou melhor. Provavelmente,<br />

o segredo dessa história é que eles souberam apreciar o sabor<br />

de cada momento.<br />

O trabalho de Pepe separava temporariamente o casal. Enquanto<br />

ele conduziu todos os tipos de locomotivas existentes<br />

– movidas a vapor, a carvão, e algumas mais modernas abastecidas<br />

com diesel –, sua esposa organizou os serviços da<br />

casa e deu diretrizes aos passos dos filhos. Entre os trajetos<br />

98


Divulgação/ internet<br />

Estação de trem de Salamanca<br />

que Pepe realizou estavam o de Salamanca à Madri, e roteiros<br />

mais distantes como aquele que ia até a cidade de Vigo, que<br />

fica ao norte da Espanha. Pepe e Otília viveram assim por<br />

anos. Em 1987, aos 60, ele se aposentou com um benefício<br />

por ter estendido em cinco anos seu tempo de trabalho.<br />

“Minha mulher ficou louca de felicidade. Desde que me aposentei,<br />

não paramos mais em casa”. Pepe, então, deixou de<br />

conduzir as pessoas aos seus respectivos destinos para traçar<br />

de maneira diferente sua própria rota. Acomodado no assento<br />

do passageiro ao lado da esposa, pode admirar as lindas<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 99


paisagens que despontavam por todos os cantos.<br />

A procura pelo pai, ele não abandonou não importava onde<br />

quer que fosse. Em 15 de junho de 1977, uma semana após<br />

completar cinquenta anos, a Espanha celebrava as primeiras<br />

eleições democráticas do país. A nova constituição colocava<br />

em vigor a Lei da Anistia, que favoreceu a recuperação de<br />

documentos que registraram a Guerra Civil Espanhola e os<br />

36 anos da ditadura franquista. A principal preocupação da<br />

transição era reestabelecer a paz. Muitos espanhóis escolheram<br />

ignorar a possibilidade de reviver o passado para afastar<br />

da mente as atrocidades do período, e passaram a considerar<br />

a lei um pacto de silêncio.<br />

Com o passar do tempo, a população ganhou mais uma opção<br />

de acertar as contas pendentes com os anos governados<br />

pelo ditador Franco. Em 2007, três décadas após a primeira<br />

ação em prol dessa causa, o governo socialista aprovou a Lei<br />

de Memória Histórica, que até hoje divide opiniões na Espanha.<br />

Para muitos membros do Partido Popular e de setores<br />

mais tradicionalistas, essa legislação representa um atraso<br />

para o desenvolvimento da democracia no país porque eliminar<br />

os símbolos franquistas seria como apagar parte da<br />

história do país. Para eles, recordar o passado só serviria para<br />

abrir feridas que já estão cicatrizadas.<br />

100


Para Pepe, seguir em frente significava manter viva a memória,<br />

essa ponte que liga o passado ao presente. Afinal, foi em<br />

sua infância e no convívio com o pai que aprendeu lições importantes<br />

que definiram o homem que ele se tornou. Então,<br />

concluiu que poderia perdoar, mas jamais esquecer.<br />

Um dia, por um daqueles acasos inexplicáveis, Pepe conheceu<br />

um homem cujo avô foi fuzilado em Pelabravo durante<br />

a guerra civil, a mesma cidade em que disseram estar enterrado<br />

seu pai. Numa conversa, perceberam as coincidências<br />

em suas histórias, e juntos, decidiram ir à busca do paradeiro<br />

de seus familiares. Entraram em contato com o Tribunal de<br />

Justiça de Pelabravo solicitando o documento que registrava<br />

o nome das pessoas que foram enterradas na região naquele<br />

período. Menos de uma semana depois, o telefone de Pepe<br />

tocou. O caminho para o reencontro já estava sendo trilhado.<br />

– Por favor, o senhor José Pascual Mateos está?<br />

– Sim, sou eu.<br />

– Recebemos uma carta tua pedindo os papéis do falecimento<br />

de teu pai.<br />

– Ficaria muito agradecido se me mandassem.<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 101


– Não vou te mandar apenas um, mas sim catorze documentos.<br />

Na outra ponta da linha, o funcionário do Tribunal de Justiça<br />

de Pelabravo reforçava que era filiado ao Partido Popular,<br />

mas apesar de sua escolha política estava disposto a ajudar<br />

Pepe e seu novo amigo na busca pelas vítimas da Guerra Civil<br />

Espanhola. Mesmo que estivesse certo de que o passado<br />

não deveria ser revirado, esse homem ajudou Pepe em sua<br />

missão. Embora muito grato pela iniciativa e companheirismo,<br />

Pepe não se recorda do nome desse homem nem do<br />

neto do fuzilado que o ajudou.<br />

Poucas semanas após esse contato, Pepe recebeu um envelope<br />

com as declarações dos sepultamentos de Pelabravo. Suas<br />

mãos tremiam enquanto lia as informações sobre a morte de<br />

Eduardo. Quando reconheceu detalhes do último dia de vida<br />

de seu pai, seus olhos marejados leram:<br />

“No dia 19 de julho de 1936, enterra-se um homem<br />

com as seguintes características: cabelo preto, calça<br />

de pano azul, camisa de linho branca, calça sapatos<br />

brancos, cinco preto de couro e um relógio de bolso com<br />

uma corrente de prata.”<br />

A descrição era idêntica ao que ele buscou nas pessoas que<br />

102


cruzaram seu caminho. O mesmo funcionário com quem falou<br />

ao telefone convidou Pepe e o novo amigo para tomarem<br />

um café em Pelabravo e os avisou que uma surpresa os<br />

aguardava. Partiram de Salamanca rumo ao povoado onde<br />

haviam combinado o encontro, que aconteceu por volta das<br />

16h de uma quinta-feira.<br />

Na época da guerra, o funcionário tinha doze anos, idade<br />

suficiente para, mesmo décadas depois, lembrar-se dos caminhões<br />

lotados com presos que eram levados da prisão para<br />

o cemitério, onde seriam fuzilados. E também dos gritos de<br />

desespero e dos disparos que ouviu frequentemente.<br />

– Os mortos eram enterrados numa parte separada, no fundo<br />

do cemitério, sem identificações, como se fossem demônios<br />

– assegurou.<br />

Após alguns minutos de conversa, o senhor se levantou para<br />

receber outro homem, aparentemente mais velho e cansado,<br />

que entrava no estabelecimento. Essa era a surpresa que o<br />

funcionário do Tribunal de Justiça de Pelabravo havia preparado:<br />

o encontro com o coveiro das vítimas da guerra.<br />

Durante o período em que a Espanha enfrentava o conflito,<br />

aquele senhor era um jovem de dezessete anos que vivia em<br />

Pelabravo. Como ainda não havia completado a maiorida-<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 103


de para servir como militar, fora recrutado para a tarefa de<br />

enterrar os corpos das vítimas dos abusos franquistas. Os<br />

olhos do rapaz eram poupados de assistir aos fuzilamentos,<br />

mas seus braços eram fundamentais assim que os disparos<br />

cessavam. Quando a morte já havia levado as almas, ele, com<br />

auxílio de outros dois colegas, entravam no campo para recolher<br />

os cadáveres, e retirar peça por peça das roupas e todos<br />

os adornos que estavam usando em seus momentos finais.<br />

Sentado em frente aos descendentes daqueles que ajudou<br />

a enterrar, o senhor, visivelmente tocado pelas recordações<br />

tristes, contou que colocava os corpos nus de barriga para<br />

baixo porque sentia vergonha de deixá-los expostos daquela<br />

maneira. “Eram pessoas que tinham nome, sobrenome,<br />

familiares e sentimentos”, disse. Ressuscitar lembranças dolorosas<br />

deixava Pepe desolado, mas ele sabia que precisava<br />

continuar ouvindo. A recompensa de reencontrar o pai parecia<br />

cada vez mais próxima.<br />

Eduardo e os outros treze mortos da guerra foram enterrados<br />

no cemitério de Pelabravo em 1936, perto de onde foram<br />

fuzilados. Algumas décadas depois, talvez pelo crescimento<br />

da cidade ou por uma tentativa de manter a morte afastada<br />

de todos, os corpos foram transferidos para outro lugar,<br />

dois quilômetros mais distante. O remanejamento dos que ali<br />

descansavam foi feito com base nas informações das lápides.<br />

Dessa forma, Eduardo e os outros, sepultados como indi-<br />

104


gentes, permaneceram no terreno, que em pouco tempo foi<br />

revitalizado. O espaço, que ficava ao lado da igreja da cidade,<br />

virou um parque bem arborizado e muito frequentado por<br />

casais de namorados e crianças que o usavam como campo<br />

de futebol.<br />

A vida agitada do ex-cemitério e as muitas décadas que haviam<br />

passado dificultavam a identificação do exato local em<br />

que os catorze homens permaneciam. A busca de Pepe começou<br />

em 2004, então com 77 anos. Primeiro, veio a burocracia<br />

para conseguir a permissão de cavar o local. O trabalho<br />

com as enxadas começou apenas quatro anos mais tarde.<br />

Um arqueólogo, sensibilizado pela história, se dispôs a ajudar<br />

na escavação, mas a mão de obra foi feita pelos próprios<br />

familiares e amigos das vítimas. O Estado não se responsabiliza<br />

pela exumação dos mortos pela guerra.<br />

A liberação para retirar o primeiro lote de terra chegou quando<br />

Pepe estava com 81 anos. Mais do que nunca, para achar<br />

o pai precisava da ajuda dos filhos Eduardo, Ángel Luis e<br />

Manuel Martín. Eles, por sua vez, tinham compromissos de<br />

trabalho e fizeram a escavação pouco a pouco. Após alguns<br />

meses de tentativas frustradas, retiraram seis corpos que estavam<br />

um ao lado do outro. A cada homem retirado da cova,<br />

uma nova expectativa nascia. Mas todas em vão, nenhum de-<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 105


les era Eduardo. A menos de três metros de distância, encontraram<br />

outros seis corpos. O pai de Pepe também não estava<br />

entre eles.<br />

Parecia um chiste sem nenhuma graça do destino. Tanto esforço<br />

para achar Eduardo por Salamanca, Pelabravo e agora,<br />

mesmo há poucos metros abaixo do solo, parecia estar tão<br />

distante. O cansaço da velhice somado à desilusão de tantas<br />

procuras inúteis, fizeram Pepe perder as forças. Após horas<br />

com a pá em punho, chamou um de seus filhos e disse:<br />

– Tenta você senão vamos desistir.<br />

Percebendo o desgosto do pai, o filho assumiu o posto de<br />

coveiro na tentativa de desenterrar o avô. Aquele reencontro<br />

era importante demais para a família e ele não podia ficar<br />

de braços cruzados. A convicção de Pepe o fez cavar mais<br />

fundo. De repente, a pá metálica chocou-se com um objeto<br />

e fez um estalo. Todos em volta foram atraídos pelo som<br />

e se aproximaram para ver o que fora encontrado. A terra<br />

escondia um sapato, ainda calçando um esqueleto intacto.<br />

A esperança de Pepe se renovara. Ele reassumiu a enxada e<br />

começou a arrancar toda a terra que o afastava do pai. A determinação<br />

era tanta que parecia se tratar de uma cena de resgate<br />

de soterramento, uma busca por sobreviventes. Embora<br />

com idade avançada, Pepe encontrava forças para continuar<br />

106


cavando. No fundo, ele sabia que achar o pai era uma forma<br />

de devolver a possibilidade de voltar a respirar em paz.<br />

O barulho que chamou a atenção veio do impacto entre a pá<br />

e um esqueleto. Naquele local, havia dois corpos, os únicos<br />

ainda vestidos. Paralelo a um homem que trajava roupas finas<br />

e fora enterrado com o chapéu sobre o peito, estava Eduardo.<br />

Assim que viu a calça de tecido azul e a camisa de linho,<br />

Pepe começou a chorar. Os sapatos brancos, agora completamente<br />

sujos de terra, só reforçaram a certeza que o filho<br />

tinha: ele estava diante do pai novamente.<br />

Quando olhou para os restos mortais de Eduardo, voltou a<br />

ser um menino. Inspirou e expirou o ar com força, como se<br />

descarregasse dos pulmões toda angústia que carregara por<br />

mais de oito décadas. Quis gritar, dizer ao mundo que a busca<br />

havia chegado ao fim. Havia conseguido realizar a missão<br />

de sua vida. Queria contar aos irmãos, abraçar os netos, mostrar<br />

o orgulho que sentia a esposa.<br />

A falta de outra pessoa o deixou decepcionado. Infelizmente,<br />

Modesta se despediu da vida sem ter notícias sobre<br />

o real paradeiro de seu grande amor. A mãe de Pepe<br />

faleceu em 1957, aos 52 anos, vítima de câncer no ovário.<br />

Cinquenta e um anos antes de os restos mortais de Eduardo<br />

serem encontrados.<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 107


Um grupo de arqueólogos da Universidade de Competência<br />

de Madri se ofereceu para fazer a análise de D<strong>NA</strong> da ossada.<br />

O resultado positivo era apenas uma satisfação burocrática.<br />

Pepe não duvidava de que aquele era seu pai. A Associação<br />

de Memória e Justiça de Salamanca forneceu os caixões e<br />

cuidou do sepultamento. Hoje, Eduardo está enterrado no<br />

cemitério de Salamanca, perto do monumento que homenageia<br />

as vítimas da Guerra Civil Espanhola.<br />

Pepe e Otília<br />

Amanda Boucault<br />

108


Depois que Pepe resolveu suas pendências com o passado,<br />

estava livre para viver o presente com a certeza de um futuro<br />

completo. Ele havia retomado a direção de sua vida.<br />

A ausência do pai o fez virar homem ainda menino e, em<br />

muitos momentos, o fez refém do destino. Mas os anos, assim<br />

como os vagões que trazem novos passageiros e levam<br />

a diferentes paisagens, mostraram que perdas e ganhos são<br />

necessários para todos os viajantes. São elas que os deixam<br />

prontos para se entregar a aventuras e encontrar novas<br />

companhias.<br />

Acompanhado da esposa, sua melhor parceria, viajou a Paris,<br />

Viena, Praga e Budapeste. Na Espanha, não restou um<br />

único cantinho para conhecer. As descobertas também se<br />

estendem a Portugal. Quando está no país, caminha pelas<br />

ruas das cidades como se circulasse por seu próprio bairro.<br />

“Quase falo português, pego um jornal e leio como se<br />

estivesse em espanhol”, fala cheio de orgulho. Pepe tem<br />

certeza de que a felicidade não é um ponto de chegada. Ela<br />

é o caminho que escolhemos seguir.<br />

José Pascual Mateos, o Pepe • 109


Divulgação/Toño Glez<br />

110


LAR É ONDE MORA O CORAÇÃO<br />

Emília Rodriguez Fernandez<br />

O<br />

tempo deu novas marcas ao semblante de Emília<br />

Rodriguez Fernandez, agora, prestes a completar<br />

90 anos. As linhas em seu rosto traçam muitas histórias<br />

e também expressam fragilidade. A aparência apenas<br />

camufla a força da mulher à frente de seu tempo que, entre<br />

outras conquistas, foi a primeira a se divorciar na cidade de<br />

Salamanca. Enfrentar os olhares de reprovação da sociedade<br />

não foi nada comparado aos infortúnios que passou quando<br />

era criança. Ela perdeu não só o pai, mas também a mãe,<br />

mortos pelos homens de Franco.<br />

A trajetória de Emília se divide entre antes e depois do dia 19<br />

de julho de 1936, início da Guerra Civil Espanhola. Perder os<br />

pais aos nove anos e ter que se afastar de sua irmã mais velha<br />

Concepción, ainda na infância, a fizeram colecionar despedidas,<br />

sofrimentos e casas. A guerra também refletiu na idade adulta,<br />

quando precisou deixar a Espanha e foi privada da convivência<br />

dos filhos. Com isso percebeu que morada, residência e abrigo<br />

podem até ser alguns, dos muitos, sinônimos para casa, mas o<br />

que define um lar não são os móveis ou as pessoas que compartilham<br />

o mesmo teto: lar é onde mora o coração.<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 111


Emília Rodriguez Fernandez nasceu na agitada Madri, em 22<br />

de dezembro de 1926, mas a primeira casa que recorda é no<br />

povoado de Guijuelo, em Salamanca. As memórias mais fortes<br />

vêm do jardim que havia no quintal da pequena residência<br />

que viveu com seus pais e a irmã, dois anos mais velha que a<br />

caçula. A moradia era simples na opinião dos adultos que iam<br />

visitar a família, mas para Emília e Concepción servia como<br />

cenário para muitas brincadeiras, principalmente entre março<br />

e setembro, meses de verão e primavera na Espanha, quando<br />

Crisantos e Jesusa permitiam novas aventuras às filhas.<br />

Sempre via a mãe na cozinha estreita onde ela costumava preparar<br />

as refeições, apenas servidas quando ela, o pai e a duas<br />

Calle Alcalá, Madri, 1920<br />

Divulgação/Internet<br />

112


pequenas estivessem à mesa. Eram dois quartos alinhados em<br />

um corredor, o dos pais e outro dividido pelas irmãs. Havia<br />

ainda uma salinha de estar, que, principalmente nos meses antes<br />

do fatídico 19 de julho de 1936, recebia discussões entusiasmadas<br />

de adultos que idealizavam um país melhor. Eram<br />

nelas e em milhares de outras crianças que eles pensavam para<br />

tentar trilhar novos planos. Naquela época, aos nove anos, era<br />

cedo para distinguir o que era felicidade, mas quando olha para<br />

o passado, Emília reconhece que aquele cenário emanava paz,<br />

sensação que foi destruída pela guerra.<br />

A família foi morar naquela casa em Guijuelo em 1930. Além<br />

de acompanharem Crisantos, que era advogado e havia sido<br />

transferido para um cargo no Tribunal de Justiça no povoado,<br />

a expectativa era a de substituir a movimentação da capital<br />

– e Madri já era bem agitada na época –, para garantir mais<br />

tranquilidade e segurança para criar as filhas. Conseguiram<br />

alugar uma casa bem próxima ao novo emprego do pai, que<br />

ficava na rua Alfonso XIII, número 2.<br />

De fato, durante quatro anos, a rotina acompanhou a calmaria<br />

da cidade. Pelo desejo da mãe, católica e praticante, Emília<br />

e Concepción frequentavam o colégio de freiras do bairro.<br />

Aprenderam a rezar o Pai Nosso e a Ave Maria antes mesmo<br />

de saberem ler e escrever. Ali também começaram a usar agulha<br />

e linha. Começaram pregando botões e logo já estavam<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 113


dando os primeiros arremates no ponto cruz. Jesusa fazia<br />

questão que levassem essas lições para casa e incentivava a dedicação<br />

às tarefas domésticas. A mãe queria que elas tivessem<br />

conhecimento de todas as áreas, mas desejava intensamente<br />

que o futuro das filhas não ficasse limitado apenas a varrer o<br />

chão, comandar o fogão e lavar roupa. Jesusa era comunista<br />

e, assim que se instalou no povoado, conseguiu unir outras<br />

mulheres do bairro em um grupo que defendia a liberdade<br />

dos direitos femininos na sociedade. As convicções políticas<br />

da esposa não atrapalhavam seu casamento. Pelo contrário,<br />

Crisantos era apaixonado pela mulher que conseguia equilibrar<br />

em harmonia o amor e cuidado com a família sem deixar de<br />

lutar pelo que acreditava. E o marido seguia a mesma linha de<br />

pensamento. Apesar de não ser filiado a nenhum partido, não<br />

escondia a afinidade com a esquerda política.<br />

As ideias e atitudes defendidas pelo casal, no entanto, eram<br />

contrárias às daqueles que estavam no poder. O choque de<br />

princípios, intenso e com consequências devastadoras, foi na<br />

manhã do domingo 19 de julho no confronto entre militares<br />

e civis que defendiam uma Espanha diferente daquela que<br />

Franco tentava impor. Assim que a notícia do conflito, que<br />

deixou seis mortos no chão da Plaza Mayor de Salamanca<br />

naquele dia, chegou aos ouvidos dos moradores de Guijuelo,<br />

Jesusa e Crisantos começaram a imaginar o que aconteceria<br />

com suas vidas dali em diante. O casal sabia que estava na<br />

114


mira dos falangistas, membros leais ao partido do ditador<br />

Franco que liderava o levante contra a República. Eles temeram,<br />

mas, pensaram que talvez estivessem a salvo da repressão<br />

fascista por viverem em um povoado menor, afastado da<br />

constante movimentação da capital da província.<br />

Jesusa e Crisantos não foram poupados. Na madrugada de<br />

segunda-feira, 20 de julho, dia seguinte à tragédia, uma forte<br />

batida na porta da casa despertou o casal de súbito. O marido<br />

saiu apressado da cama para ver quem chamava. Enquanto<br />

calçava os chinelos, a esposa corria para vestir o penhoar.<br />

O quarto deles era o mais distante da entrada da casa. No caminho<br />

até a porta ficava o quarto das meninas, que dormiam<br />

um sono profundo e tranquilo. À medida que as batidas ficavam<br />

mais intensas, os dois se espremiam no corredor tentando<br />

fazer o mínimo de ruído possível para não despertar<br />

as filhas. Eles supunham quem os aguardava do lado de fora.<br />

Antes de colocar a mão na maçaneta, Jesusa deu um breve<br />

suspiro e olhou para o marido, que fez sinal para que ela<br />

abrisse. A esposa obedeceu. Deram de cara com dois oficiais:<br />

– O senhor é Crisantos Rodriguez Esteban? – indagou um deles.<br />

– Temos ordens para levá-lo à delegacia – completou o outro,<br />

como se fosse um jogral.<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 115


Crisantos sabia que estava em uma situação complicada. Tentou<br />

organizar os pensamentos e resgatar ensinamentos da<br />

época em que cursou Direito para resolver aquele impasse.<br />

Por seu conhecimento como advogado, tinha ciência de que<br />

não poderia desacatar autoridade, no entanto, estava certo<br />

de que aceitar aquela intimação poderia trazer consequências<br />

desastrosas. Ele observou que os policiais não haviam apresentado<br />

nenhum documento oficial que o obrigaria a ir à delegacia.<br />

Resolveu arriscar com essa justificativa. O fato de ser<br />

um funcionário do tribunal, posição carregada de privilégios,<br />

também o deixou mais confiante para reagir. Após uns segundos,<br />

que pareceram horas para Jesusa que acompanhava<br />

a tudo atônita, ele respondeu em voz firme:<br />

– Na verdade, não vejo nenhuma intimação com os senhores,<br />

por isso quem deveria prestar algum tipo de declaração<br />

são os senhores a mim.<br />

Os oficiais ficaram surpresos com a resposta. Agora era a vez<br />

deles de pensarem em outra justificativa para reverter o jogo,<br />

rapidamente. Não deu tempo. Ainda tomavam fôlego para<br />

tentar alguma continuação, quando Crisantos avisou que não<br />

iria a lugar nenhum àquela hora e foi fechando a porta. Nem<br />

tão lento para que desse tempo de repensarem a situação,<br />

nem tão forte para não irritar os militares. Os oficiais não<br />

tiveram outra opção a não ser irem embora.<br />

116


Apesar de aparentemente insensata, a resposta teve resultado<br />

positivo e afugentou os jovens oficiais. O casal aguardou até<br />

que o som do carro dos militares sumisse para bem longe<br />

dali. Quando um grande silêncio dominou a parte externa<br />

da casa, Jesusa e Crisantos voltaram a respirar aliviados. Pelo<br />

menos temporariamente. Eles tinham certeza que não haveria<br />

outra chance para despistar as autoridades dentro daquela<br />

casa. Não havia suspeitas, em breve os falangistas retornariam.<br />

A dúvida era quando.<br />

Além da raiva que devem ter causado aos oficiais, que não<br />

conseguiram cumprir as ordens de levar Crisantos, havia outro<br />

motivo que poderia antecipar o retorno: havia uma arma<br />

de fogo na casa. O pai de Emília tinha a permissão do trabalho<br />

para ter o revólver, mas, não havia acatado as ordens<br />

recentes do conselho de guerra espanhol e declarado a arma<br />

na delegacia. Preocupados, o casal quis buscar um lugar mais<br />

seguro para a família e decidiu dificultar o trabalho das autoridades<br />

mudando de povoado. Escolheram passar uma temporada<br />

na casa de uma das tias de Crisantos, em Berrocal<br />

de Salvatierra, ao sul de Salamanca. Apenas um amigo de<br />

confiança sabia qual seria o paradeiro da família.<br />

O sol nem havia declarado a chegada de um novo dia e Jesusa<br />

já estava diante da cama das filhas. As meninas esboçaram<br />

movimentos preguiçosos, tentando ignorar a presença da<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 117


mãe, que gesticulava agitadamente as convidando a levantar.<br />

Elas, com os olhinhos pregados de sono tentavam se acomodar<br />

nos travesseiros, evitando atender o pedido. Mesmo com<br />

dó de atrapalhar o descanso das meninas, Jesusa insistiu, da<br />

maneira mais suave que pode:<br />

– Bom dia, meus amores. Levantem. Vocês precisam se arrumar<br />

porque hoje faremos uma viagem.<br />

Jesusa também tentou parecer animada para esconder a preocupação<br />

com o que estava por vir. A ideia de viajar em família<br />

deu certo. Emília e Concepción venceram a preguiça<br />

e começaram a perguntar para onde iriam. Enquanto isso,<br />

a mãe colocava algumas mudas de roupa em uma maleta.<br />

Com os travesseiros nas mãos, as meninas entraram no carro<br />

e partiram para o abrigo temporário, que ficava a menos de<br />

uma hora da casa da família.<br />

Na casa da tia, as meninas tiveram de encontrar um novo<br />

lugar para brincar. O jardim mágico que lhes proporcionava<br />

tantos momentos de divertimento nas férias havia ficado<br />

para trás, junto com muitos outros brinquedos. Elas não<br />

imaginavam que, ainda que estivessem em casa, naquelas circunstâncias,<br />

estariam proibidas de brincarem fora de casa,<br />

ainda que fosse no quintal. Mesmo para duas crianças criativas,<br />

de nove e onze anos, foi complicado encontrar diversão<br />

118


nos cômodos daquela casa, sempre repletos de adultos com<br />

caras preocupadas.<br />

Três semanas depois da mudança, na noite de 8 de agosto de<br />

1936, antes do jantar ser servido, Crisantos resolveu sair para<br />

caminhar um pouco. Estava preocupado com o futuro e precisa<br />

organizar as ideias. Quase quarenta minutos depois, sabia que a<br />

família já o aguardava sentada à mesa e achou prudente tomar<br />

o rumo de volta. A poucos metros da rua da tia ouviu um som<br />

que o fez arrepiar. Um carro do exército se aproximava repleto<br />

de jovens que cantavam entusiasmados o hino da Falange:<br />

¡España una!<br />

¡España grande!<br />

¡España libre!<br />

¡Arriba España!<br />

Ficou paralisado. Segundos intermináveis passaram e movido<br />

por uma ação quase mecânica, deu meia-volta e seguiu<br />

pelo caminho contrário ao dos militares. Com medo de ser<br />

seguido, começou a andar sem olhar para trás. Quando se<br />

deu conta, estava diante da casa de um conhecido que morava<br />

na região. Crisantos sabia que não poderia permanecer por<br />

ali muito tempo pois era procurado e poderia comprometer<br />

a vida de outras pessoas. Era culpa demais para carregar. Já<br />

vinha se sentindo muito mal por ter entrado no rol de ini-<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 119


migos dos falangistas e colocado sua Jesusa e as meninas no<br />

centro do furacão. Mesmo assim pediu abrigo para pernoitar.<br />

O amigo aceitou recebê-lo em casa, mas o aconselhou a sumir.<br />

Quanto mais distante estivesse, menos risco causaria aos<br />

demais. Crisantos nem conseguiu pregar os olhos refletindo<br />

sobre tudo. Deixaria quem mais amava sem ao menos poder<br />

se despedir. Ou avisar sobre sua decisão. Os questionamentos<br />

não foram maiores do que a opinião do amigo. No outro<br />

dia foi embora, para nunca mais voltar.<br />

A tentativa de fugir e poupar a família não durou muito. Quatro<br />

dias depois da fuga, Crisantos foi capturado pelos militares<br />

franquistas e levado ao quartel da Guarda Civil de Guijuelo.<br />

As barbaridades que sofreu durante os dezesseis dias<br />

em que esteve com os falangistas provavelmente nunca serão<br />

divulgadas. Crisantos não teve oportunidade de falar com<br />

ninguém de sua família nesse período. Mas, ainda que tenha<br />

sofrido as inimagináveis crueldades recorrentes em períodos<br />

de guerra, é certo que ele se manteve fiel aos seus ideais e<br />

não disse uma palavra sequer que pudesse comprometer sua<br />

família ou seus amigos. A lealdade era uma afronta às ordens<br />

de Franco e resultava em prisão ou morte. No dia 28 de agosto,<br />

Crisantos e outros dois homens que também haviam sido<br />

detidos entraram em um caminhão, que, aparentemente, iria<br />

em direção à Prisão Provincial de Salamanca.<br />

120


Mas o destino final chegou antes. Pelo menos para Crisantos e<br />

os companheiros. Na metade do caminho, o veículo parou e os<br />

três prisioneiros obedeceram uma ordem do motorista para descerem.<br />

Estavam em um terreno baldio no povoado de Martinamor.<br />

Os oficiais não levaram muito tempo, e, sem piedade, assassinaram<br />

brutalmente o pai de Emília e os outros dois presos.<br />

Os militares retornaram ao caminhão, que seguiu viagem. Os<br />

três cadáveres foram recolhidos apenas no outro dia por outro<br />

grupo de militares responsável por retirar e enterrar os corpos<br />

em uma vala comum no cemitério de Martinamor.<br />

Na casa da tia, onde estavam Jesusa e as meninas, o clima era<br />

de pânico. Todas estavam desesperadas, ansiosas por notícias<br />

de Crisantos. A decisão do pai de Emília de não retornar<br />

quando percebeu a presença dos falangistas foi assertiva, mas<br />

não conseguiu evitar o pior. Os militares realmente foram<br />

procurá-lo naquela noite e deixaram o recinto quando se certificaram<br />

de que ele não estava ali.<br />

Mas na madrugada de 9 de agosto, enquanto Crisantos refletia<br />

sobre sua decisão de fugir, os militares retornaram à casa<br />

da tia-avó de Emília. Assim que ouviram as batidas na porta,<br />

correram na esperança de encontrar Crisantos. Mas logo perceberam<br />

que eram os militares de volta. A frustração durou<br />

menos de um minuto e foi transformada em horror. Perceberam<br />

que os oficiais não vieram buscar o pai, e sim, a mãe.<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 121


Dois homens fardados perguntavam quem era Jesusa Fernandez<br />

Posada. Com esperança de que viessem trazer notícias do<br />

marido, ela se identificou e perguntou como poderia ajudar.<br />

– Temos ordens para levá-la à delegacia – respondeu um deles.<br />

– Será apenas uma breve declaração. Logo estará de volta a<br />

casa – explicou o outro militar parecendo manifestar algum<br />

tipo de compaixão para com as duas crianças que observavam<br />

atentamente a cena.<br />

Jesusa sabia que aquele poderia ser o último momento que teria<br />

com as filhas. Então, aproveitou a demonstração de sentimento<br />

do oficial e pediu cinco minutos para falar com as filhas, antes de<br />

acompanhá-los. Atordoada e sem saber como aproveitar o pouco<br />

tempo que tinha, pegou as meninas pelas mãos e correu para<br />

quarto. Colocou as duas sentadas na cama e começou a procurar<br />

algumas pesetas e uma pasta de documentos. Entregou o dinheiro<br />

a Concepción que, agora, aos onze anos, estava prestes a se tornar<br />

responsável por Emília. Jesusa tirou os brincos e o relógio que<br />

usava e também deu a filha mais velha, que apenas recebeu a herança<br />

sem saber mais o que fazer. A mãe não imaginava o que iria<br />

acontecer e naqueles minutos quis passar todos os ensinamentos<br />

possíveis a suas duas pequenas. Queria falar sobre como estava<br />

com medo do que poderia acontecer com as duas, caso Crisantos<br />

e ela não voltassem. Mas não havia tempo para transformar em<br />

122


palavras tantos pensamentos confusos. Ela achou por bem resumir<br />

tudo o que mais queria dizer em uma frase e um gesto. Deu<br />

um beijo na testa de cada uma das meninas e disse:<br />

– Nunca esqueçam que as amo. Que Deus lhes bendiga.<br />

Antes de entrar no carro dos oficiais, Jesusa parou em frente<br />

a tia do marido. Não havia muita intimidade entre as duas,<br />

mas ela era grata pelo que aquela senhora havia feito por sua<br />

família. Com um olhar cúmplice, tentou mostrar sua gratidão<br />

e a suplicar para que, caso o pior acontecesse, ela cuidasse de<br />

suas meninas como as mais belas joias da coroa espanhola.<br />

O pressentimento de Jesusa estava certo, aquela foi a última<br />

vez que viu Emília e Concepción.<br />

Após essa despedida, Emília ficou algum tempo sem saber o<br />

que aconteceu com a mãe. Ainda criança, contaram que Jesusa<br />

ficou detida por dias, depois foi assassinada pelos falangistas e<br />

enterrada em Martinamor, um povoado de Salamanca.<br />

Conheceu os detalhes dos últimos dias da vida de Jesusa<br />

quando já era adulta. Décadas depois de despedir-se de sua<br />

mãe, Emília reencontrou-se com uma mulher que havia trabalhado,<br />

quando jovem, na casa da família. Isabel tinha muito<br />

carinho por Jesusa e foi visitá-la enquanto esteve detida no<br />

quartel da Falange.<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 123


Sentaram-se em um café na Plaza Mayor, a mesma praça<br />

onde todo o conflito começou, para atualizar as novidades.<br />

Em uma das conversas surgiu o tema da mãe de Emília. Isabel,<br />

então disse:<br />

– Agora que já estamos muito maduras, vou contar o que<br />

aconteceu com Jesusa.<br />

Emília sentiu um misto de medo e curiosidade enquanto Isabel<br />

dava detalhes sobre o que sabia.<br />

– Prenderam a Jesusa no quartel da Guarda Civil de Guijuelo<br />

por dois dias. Para fazê-la contar quem eram as companheiras<br />

de partido, fizeram-na beber azeite de rícino, um tipo<br />

de purgante que produz náuseas, vómitos, cólicas e diarreia<br />

aguda. Ela não disse nada do que eles queriam e decidiram<br />

levá-la à Prisão Provincial de Salamanca. Colocaram-na no<br />

caminhão com outras presas, mas o carro parou no povoado<br />

de Miranda de Azán. Mandaram-nas descer e ali mesmo as<br />

fuzilaram. Era final da tarde de 10 de agosto de 1936. No dia<br />

seguinte, recolheram os cadáveres e enterraram ela e as outras<br />

em uma vala comum no Cemitério de Miranda de Azán.<br />

Na busca por informações sobre o caso de Jesusa, Isabel<br />

conversou com os oficiais que presenciaram a viagem da mãe<br />

de Emília em direção à morte. Eram jovens falangistas da<br />

124


Divulgação/Toño Glez<br />

cidade de Béjar e disseram-lhe que, por causa daquele veneno,<br />

Jesusa nem tinha forças para se erguer, que “apertaram o<br />

gatilho pela pena de vê-la viver daquela maneira”.<br />

Isabel também contou à Emília quais foram as últimas palavras<br />

de sua mãe antes de se despedir da vida:<br />

– Meu Deus, meu Senhor, a ti entrego minhas filhas e minha alma.<br />

Relembrar a dor que a mãe sofreu antes de morrer traz muito<br />

amargura à Emília, que muitas vezes se arrepende por ter co-<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 125


nhecido esses detalhes tão dolorosos. “Isabel não precisava<br />

ter dito”, pensa. Também faz a senhora, de 89 anos, repensar<br />

sobre os sentimentos pelos pais. “Eu gostava muito do meu<br />

pai, acho que até mais dele do que de minha mãe. Mas, hoje,<br />

reconheço que quando ela foi embora e eu soube por tudo o<br />

que ela passou, me deixou muita angústia por ela”, diz. “Tem<br />

vezes que eu me deito antes de dormir e me lembro deles, do<br />

que pensariam se soubessem de tudo o que eu e minha irmã<br />

passamos depois”.<br />

Poucos dias depois da partida dos pais, os oficiais voltaram à<br />

casa da tia em busca das duas meninas. A tia-avó, que estava<br />

com 80 anos, já não tinha forças para confrontar os militares<br />

e pedir que não as levassem, mesmo que soubesse que era o<br />

desejo de Jesusa. Ela também deveria temer as consequências<br />

à própria vida ao lutar pela guarda das meninas e as deixou ir.<br />

As pequenas, então, foram levadas até o quartel da Falange,<br />

onde foram registradas como “filhas de rebeldes”. No escritório<br />

do partido do regime franquista eram armazenados<br />

em fichas de papel todos os nomes das crianças e dos pais<br />

fuzilados na guerra, com o motivo da morte. Era uma estratégia<br />

para conhecer os potenciais inimigos. Temiam que os<br />

descendentes retornassem em busca de vingança. Grande<br />

parte desses documentos está no Arquivo Geral da Guerra<br />

Civil Espanhola, na cidade de Salamanca, até hoje.<br />

126


Se não bastasse estarem marcadas por toda a vida, pela ausência<br />

dos pais e nos documentos, as meninas foram obrigadas a<br />

vivenciar mais uma cena traumática. Após serem fichadas no<br />

quartel, os oficiais levaram Emília e Concepción até a casa em<br />

que viviam em Guijuelo, no lugar que consideravam seu lar.<br />

Mais uma vez conseguiram borrar uma lembrança de paz com<br />

resquícios de tormenta. Elas não puderam entrar. Do portão<br />

ficaram olhando o jardim em frente da antiga casa. Aquele espaço<br />

familiar que as levou para tantos lugares na imaginação.<br />

O Arquivo Geral da Guerra Civil Espanhola,<br />

em Salamanca, também funciona como museu<br />

Divulgação/Internet


Tentaram olhar apenas para as flores que agora já estavam<br />

murchas. Quase um reflexo da vivacidade que antes tinham e<br />

que fora transformada em sofrimento. Assistiram caladas os<br />

militares retirarem os móveis e os empilharem, sem muito cuidado,<br />

diante do caminhão. A ideia era vender todos os bens<br />

que eram delas por direito para conseguir mais dinheiro para<br />

eles. “Não tínhamos a ninguém e os falangistas também não<br />

nos deixaram viver em nenhum lugar”, lembra Emília.<br />

Em pouquíssimo tempo, as meninas que viviam em amor e dentro<br />

de uma casa feliz, só tinham uma a outra, além das roupas que<br />

estavam no corpo. Ao vê-las nessa situação miserável, as freiras de<br />

um colégio próximo, as abrigou. Um casal apareceu interessado<br />

em aumentar a família, já que não podiam ter filhos. Escolheram<br />

levar Concepción. E nem iriam deixá-la perto da irmã. Mesmo<br />

com a loja de embutidos, conhecida pelos espanhóis como charcutería,<br />

que tinham em Gijuelo, eles moravam em Sevilha.<br />

Mais uma vez, sem mais nem menos, Emília perdeu o que lhe<br />

restava. Ficou no colégio de freiras longe da irmã. Quase um ano<br />

após a partida de Concepción, um casal de meia idade, Daniel e<br />

Gloria, que não tinha filhos se dispuseram a criá-la e a levaram<br />

de Guijuelo para a capital Salamanca. O abandono já era o principal<br />

companheiro de Emília e a dor de tantas perdas, foram deixando<br />

ela mais desconfiada e com dificuldades de envolvimento<br />

emocional. Mil questionamentos surgiram. Será que conheciam<br />

128


meus pais? Querem me levar para a casa deles por pena? A única<br />

certeza que tinha era a de que eles poderiam até tentar, mas<br />

jamais conseguiriam ser substitutos a altura dos pais dela. “Não<br />

adianta dizer que porque te adotaram são bons. Nunca serão<br />

nossos pais de verdade. Quando você conhece seus pais, sabe<br />

que aqueles substitutos não são seus pais”, afirma.<br />

De novo, Emília foi obrigada a mudar de lugar. Mas essa mudança<br />

não era nada agradável. Sua mãe não estava lá para acordá-la<br />

com doçura, sua irmã já não ia mais fazer planos com ela, nem<br />

seu pai a protegeria. Ela estava sozinha, apenas acompanhada<br />

por algumas pessoas. Tudo era diferente com a nova família.<br />

Precisou mudar de colégio e vizinhança. Aprender a conviver<br />

com as novas meninas com quem brincava na rua. Ainda precisava<br />

lidar com as opiniões de quem preferia que ela estivesse<br />

morta. Durante os anos do regime franquista, os filhos de fuzilados<br />

eram tratados pelos partidários do ditador como uma praga<br />

a ser exterminada. “Por que pegaram uma filha de rebelde para<br />

criar?”, “Essa gente de esquerda!”, ”Para a tranquilidade de todos,<br />

deveriam ter acabado até com seus descendentes”, diziam<br />

os moradores da vizinhança leais a Franco.<br />

Mas entre tanto horror, o que mais doía era passar os dias sem<br />

a irmã, a única família que lhe restara. Logo que a Guerra Civil<br />

Espanhola acabou, em 1939, Emília recebeu uma visita de<br />

Concepción, que conseguiu, depois de muita insistência, que<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 129


seus pais adotivos a levassem até o encontro da irmã. Emília<br />

nem pode acreditar quando seus olhos encontraram os de<br />

Concepción, depois de três anos. O abraço foi silencioso,<br />

apenas as lágrimas pareciam trazer realidade àquela cena tão<br />

desejada pelas duas. Elas tinham tanto a dizer. Tantos dias de<br />

dor vividos na solidão. Emília sabia que no mundo inteiro,<br />

não havia outra pessoa que pudesse ser tão conectada a ela<br />

como Concepción. Uma era parte da outra e sabia cada dúvida<br />

e dor que haviam enfrentado nesses anos de afastamento.<br />

Mesmo com tanto a dizer, o contato durou cerca de uma<br />

hora – pouco tempo para colocar em dia os últimos acontecimentos<br />

de suas vidas, mas o suficiente para saber que a<br />

irmã mais velha também não estava feliz com a nova família.<br />

Nem ao colégio a levavam, passava a maior parte do tempo<br />

ajudando nas tarefas da casa e da loja dos pais adotivos. Outro<br />

motivo de decepção para Concepción foi ter perdido o<br />

relógio e os brincos da mãe, únicos bens que deixara às filhas,<br />

durante a mudança para a casa dos novos pais.<br />

Por tudo o que havia passado, Emília, que estava prestes a completar<br />

14 anos, agia como se fosse adulta. Era dona da sua própria<br />

vida. Protagonista de sua história, sabia que não queria nunca<br />

mais ficar longe de Concepción. Como ainda eram menores<br />

de idade, o jeito era fugir. Aqueles não eram seus pais e já haviam<br />

passado tempo demais sendo reféns das vontades alheias.<br />

130


Começaram a arquitetar<br />

a ideia de viverem<br />

juntas. Mas no meio<br />

do caminho havia um<br />

grande problema: onde<br />

morar? Tanta coisa ainda<br />

por decidir e os pais<br />

adotivos de Concepción<br />

entraram no quarto<br />

para avisar que era hora<br />

de partir. A visita havia<br />

acabado e, em um instante,<br />

todos os planos<br />

das irmãs foram desfeitos<br />

no ar. Como se<br />

alguém tivesse aberto a<br />

janela e deixado o vento<br />

carregar aquelas ideias,<br />

que nem tiveram muito<br />

tempo de sair do papel.<br />

Depois daquele encontro,<br />

as meninas passaram mais três anos sem se ver.<br />

Arquivo pessoal<br />

Emília não era tão passiva como a irmã mais velha. Não descansaria<br />

até encontrar um lugar em que pudessem ficar juntas. Tentou<br />

recordar-se de algum adulto capaz ajudá-las. Alguém que não<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 131


tivesse morrido por causa da guerra. Lembrou-se de um irmão<br />

de sua mãe. Começou um processo para descobrir o paradeiro<br />

dele. Afinal, antes de perder tudo, nunca viu necessidade de decorar<br />

o telefone ou o endereço do tio. Depois de muita procura,<br />

entrou em contato com ele e implorou para que aceitasse receber<br />

suas sobrinhas. Então, cinco anos depois de conviver com os pais<br />

adotivos, conseguiu mudar-se para uma nova casa, um lugar que<br />

a deixava mais perto da ideia de ter sua família de volta. O tio<br />

concordou em buscá-la em Salamanca para levá-la a sua casa na<br />

cidade de Avilés, em Astúrias. Tão logo se acomodou, Emília pediu<br />

para que abrigassem também Concepción.<br />

Pouco tempo depois, as irmãs estavam juntas outra vez. Dormir<br />

e acordar perto da irmã, e na casa do irmão de sua mãe,<br />

faziam Emília retomar as esperanças de um futuro bom. Mas<br />

o destino pregou outra peça na menina. Aquele lugar estava<br />

longe de ser um lar. O tio e a esposa não tinham filhos, mas<br />

concordaram em criar as sobrinhas dela. Na casa, já estavam<br />

as filhas da irmã dela que haviam passado por situação semelhante<br />

e perdido a mãe. O tio tinha boa vontade, mas a esposa<br />

não aturava crianças. O ambiente era familiar, mas estava longe<br />

de ser agradável. Emília e Concepción eram deixadas de lado e<br />

não se davam muito bem com as outras crianças da casa.<br />

Na época, Emília estava com 16 anos, idade em que, moças<br />

como ela, sem ofício nem benefício, não tinham muitas opções<br />

132


além de procurar um casamento. Não era de nada ruim a ideia<br />

de que alguém trouxesse mais amor à sua vida. Construir uma<br />

família dela poderia ser a solução para seus problemas, pensava.<br />

Uma amiga foi a responsável por apresentar Emília a seu<br />

futuro marido. Ela era sua antiga vizinha, alugava o segundo<br />

andar da casa de Daniel e Gloria, em Salamanca. Lá, morava<br />

com o marido, os filhos e o primo Tomás, um homem elegante<br />

que tinha 30 anos.<br />

Os cabelos negros com cachos nas pontas e os olhos cor de<br />

jabuticaba de Emília chamaram a atenção de Tomás assim que<br />

a viu em uma de suas visitas à amiga. Ele, que passou pela sala<br />

quando as moças tomavam um café, nem imaginava que seria<br />

fisgado pela jovem. A primeira vez em que ele reparou nela definiu<br />

uma nova fase na vida de Emília. Depois de um breve<br />

namoro de poucos meses, marcaram a data do casamento. Tomás<br />

já tinha idade suficiente para não esperar mais nada. Em 22<br />

de julho de 1943, subiram ao altar. Ela não se casava por uma<br />

paixão arrebatadora, mas não hesitou ao dizer “sim, eu quero”.<br />

Queria um futuro melhor dali em diante e depositava suas esperanças<br />

em Tomás, um homem que intuía ser um bom pai para<br />

seus filhos e alguém para preencher a solidão de seus dias.<br />

Após a união, o casal alugou uma casa em Salamanca para morar.<br />

Lá também ficava o negócio da família, uma padaria que os<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 133


dois decidiram abrir juntos. Montaram toda a estrutura no cômodo<br />

em que a janela abria para a rua. Enquanto Tomás cuidava<br />

do abastecimento do estoque, Emília trabalhava no escritório<br />

fazendo contas e coordenando os funcionários que faziam as<br />

entregas. A vida amorosa, porém, não era boa como a parceria<br />

nos negócios. Os quinze anos de diferença entre os dois dificultavam<br />

ainda mais a convivência. Às vezes, Tomás a tratava<br />

como uma menina e fazia com que os anos que os separavam<br />

parecessem séculos. Em outras, a jovem conseguia demostrar a<br />

mulher que havia se tornado quando ainda criança.<br />

Antes mesmo de completar um ano de casamento, já aguardavam<br />

a chegada de uma filha. A boa notícia de que uma<br />

criança estava a caminho enchia a casa de esperança e alegria.<br />

Mesmo mais de seis décadas depois, quando questionada sobre<br />

o dia do nascimento de seus três filhos, Emília não confunde<br />

as datas. “Josefa nasceu dia 15 de maio de 1944, quinze<br />

dias antes do previsto. Tomás chegou no dia certo: 5 de abril<br />

de 1947. E Gloria, veio com sete meses, em 8 de maio de<br />

1950” . As memórias da época em que eles eram pequenos<br />

são doces. A caçula era serelepe, saltava enquanto caminhava<br />

e Emília tinha que sair correndo atrás dela. Quando o filho<br />

tinha seis anos e Gloria, 3, mesmo pequenina ela já vencia<br />

as brincadeiras dele. Josefa, a primogênita, se deixava levar<br />

pelos jogos imaginados pelos irmãos. Enquanto ela estava<br />

no colégio, Gloria e Tomás ficavam com Emília, que preci-<br />

134


Arquivo pessoal<br />

Gloria, Tomás e Josefa com o traje de charro, veste tradicional na Espanha<br />

sava contar com uma ajudante para dar conta de criar duas<br />

crianças pequenas e ainda administrar a padaria. “Eles não<br />

se desgrudavam quando eram pequenos. Quando um queria<br />

algo o outro dava”, recorda com saudade.<br />

Enquanto Emília se desdobrava para acompanhar cada passo<br />

dos filhos, Tomás era cada dia mais distante. A cada ano<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 135


parecia ficar menos envolvido com a vida de Josefa, Tomás<br />

e Gloria. Mal se esforçava para fazer as refeições em família,<br />

até que, em uma manhã de janeiro de 1953, quando estavam<br />

prestes a completar dez anos de casados, Emília despertou e<br />

o travesseiro ao seu lado estava vazio. A dor de ser abandonada,<br />

sem haver uma conversa, um aviso, era novamente real<br />

em sua vida. Ela chorou. Um choro sem som, mas capaz de<br />

produzir um eco eterno no coração. Sentiu-se despedaçada,<br />

como se um teto de concreto fosse despejado sobre todos<br />

seus sonhos e planos.<br />

Mas dessa vez teria que ser diferente. Se uma vez ela havia<br />

conseguido renascer em meio ao caos, agora poderia usar o<br />

amor dos filhos como semente. Ela tinha pelo menos três<br />

motivos para passar por cima dessa dor e voltar a dar frutos.<br />

A vida tinha feito de Emília uma mulher forte demais para se<br />

deixar abater com facilidade.<br />

Em princípio, a sensação de solidão foi semelhante ao vazio<br />

que os pais e a irmã deixaram, mas pensando melhor,<br />

a situação era completamente diferente. Crisantos, Jesusa e<br />

Concepción não tiveram escolha. Havia um governo opressor<br />

punindo quem estivesse contra, mas e no caso de Tomás?<br />

Quais eram os motivos para ele simplesmente virar as costas<br />

para sua família? Ele foi embora sem deixar um recado, ao<br />

menos uma tentativa de explicar o porquê abandonou uma<br />

136


esposa e três crianças, sendo que a mais nova estava com três<br />

anos. Deixou todos com el culo al aire. Outra vez, Emília precisou<br />

jogar com as cartas que o destino impôs.<br />

Naquela época, os homens comandavam tudo dentro de<br />

casa. Perante a justiça, as mulheres não tinham direito a nada.<br />

Na casa dela não era diferente e Tomás era dono de todas as<br />

propriedades do casal. Então, quando ele vendeu todo o negócio<br />

que Emília o ajudou a construir antes de partir, ela não<br />

tinha direitos para exigir qualquer coisa que seja dele.<br />

Desde aquele dia, desejou nunca mais vê-lo e aprendeu que<br />

não deveria entregar seu destino nas mãos de ninguém. Nem<br />

se deu ao trabalho de continuar lamentando por ele ou por<br />

tudo que havia deixado de existir por causa de sua decisão. E<br />

nem tinha tempo para isso, tinha três crianças para alimentar<br />

e credores a pagar, inclusive o aluguel da casa.<br />

Sem marido e sem dinheiro, Emília teve que construir do<br />

zero uma nova vida. Se antes carregava a alcunha de “filha<br />

de rebeldes” e tinha que lidar com as pessoas que desejam<br />

que tivesse morrido igual a seus pais, agora ela precisava lidar<br />

com os olhares de pena e reprovação por ter sido abandonada<br />

pelo marido. E por querer seus direitos “agindo como<br />

um homem” e querendo trabalhar. Não viu alternativa além<br />

de rrecorrer a Daniel e Gloria, seus pais adotivos, que, como<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 137


conheciam Josefa, Tomás e Gloria desde bebês, tinham criado<br />

um carinho pelas crianças e aceitaram cuidar delas enquanto<br />

a mãe trabalhava para sustentá-las. Os laços que haviam<br />

criado não foram dissolvidos quando Emília decidiu ir<br />

morar com o tio e irmã.<br />

Emília era jovem e ao mesmo tempo muito experiente. Aos<br />

27 anos, estava diante de outro caminho que já parecia estar<br />

cheio de espinhos. Ficar longe dos filhos para que eles<br />

tivessem o que comer. Sentiu a dor de ficar sozinha novamente,<br />

e, dessa vez mais intensa: sabia que Josefa, Tomás<br />

e Gloria sentiam o mesmo. Ela não via outra opção, e, na<br />

plataforma da estação de Salamanca esperou o trem para<br />

embarcar a Madri. Obviamente não queria deixar os filhos,<br />

mas ficou sabendo que a cidade espanhola oferecia mais<br />

oportunidades no momento em que grande parte dos espanhóis<br />

estava desempregada. Além do que, foi onde conseguiu<br />

uma casa para morar. Vivia de favor num quartinho<br />

de um primo de Daniel e Gloria que aceitou abrigar Emília<br />

durante um tempo. Na casa também moravam a esposa e<br />

dois filhos, um menino e uma menina.<br />

Poucos dias depois de chegar à capital espanhola, Emília<br />

já estava trabalhando como atendente de um restaurante.<br />

Mesmo com muitas tarefas para fazer, a saudade dos filhos<br />

se manifestava a qualquer hora do dia e, em nenhum<br />

138


momento, a preocupação em sua mente a deixava concentrar-se<br />

completamente no serviço. Será que estariam agasalhados?<br />

Comeram bem? Fizeram a lição de casa? As perguntas<br />

constantes apenas agravavam a angústia de não estar<br />

presente para saber as respostas. Logo as semanas viraram<br />

meses e perto de completar um ano naquele cargo, ela percebeu<br />

que o salário não seria suficiente para manter uma<br />

casa própria tão rápido quanto gostaria. A ideia de passar<br />

tanto tempo afastada de Josefa, Tomás e Gloria também<br />

motivou a decisão de desistir do trabalho em Madri para<br />

voltar a Salamanca.<br />

Quando retornou à cidade, Emília trouxe a pequena poupança<br />

que conseguiu juntar e seguiu com as jornadas estafantes<br />

de trabalho. Ainda sim, precisou da ajuda da irmã e de seus<br />

pais adotivos para completar o orçamento destinado primordialmente<br />

ao sustento dos três filhos. A situação instável durou<br />

quase quatro anos até que, em 1958, a reserva econômica<br />

se esgotou. Como estava cada vez mais difícil encontrar um<br />

emprego para pagar as contas, Emília viu como única chance<br />

no momento a possibilidade de trabalhar em outro país,<br />

onde a economia aparentava estar melhor que a da Espanha.<br />

Mesmo não querendo se separar dos filhos novamente, tomou<br />

mais uma decisão que acabou por empurrá-la para mais<br />

longe deles: mudar-se para França. Tentaria a sorte em Paris.<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 139


Emília não sabia nenhuma palavra de francês, por isso, escolheu<br />

levar Josefa consigo. A primogênita estava com 14 anos<br />

e havia aprendido o básico do idioma no colégio. A princípio,<br />

a mãe teve que deixar Tomás e Gloria sob os cuidados de<br />

seus pais adotivos porque não tinha meios para sustentar as<br />

três crianças no novo destino. Também pediu cinco mil pesetas<br />

emprestadas a amigos para fazer os passaportes. Acompanhada<br />

da filha mais velha, embarcou no trem que vinha de<br />

Portugal rumo a Paris.<br />

Apesar de distante, Tomás, com quem ainda era casada no<br />

papel, continuava retendo os passos de Emília, sempre determinada<br />

em seguir em frente. Antes de deixar a Espanha,<br />

ela não conseguiu fazer uma carteira de trabalho porque,<br />

Estação de trem de Salamanca<br />

Divulgação/Internet<br />

140


para isso, era preciso a autorização do marido. Segundo a lei<br />

espanhola da época, em caso de abandono, a mulher teria<br />

de esperar cinco anos da ausência do cônjuge para retirar o<br />

documento. Ela precisou aguardar todo esse tempo, acorrentada<br />

a uma lei retrógrada, para dar mais um passo em sua<br />

vida. Quando se dirigiu ao tribunal para declarar que Tomás<br />

a deixou, Emília disse a única informação que sabia sobre<br />

o paradeiro do marido: ele partira para São Paulo, a maior<br />

cidade do Brasil. Não seria nada fácil encontrá-lo. Para piorar,<br />

o consulado brasileiro alegou que não tinha registro da<br />

chegada dele ao país. A probabilidade de Tomás ter entrado<br />

ilegalmente no Brasil dificultou ainda mais o processo para liberação<br />

da carteira de trabalho, que chegou às mãos de Emília<br />

apenas em 1960. Foram pouco mais de dois anos pulando<br />

de um emprego para outro em busca de registro profissional.<br />

Desejava as garantias asseguradas pelos diretos trabalhistas.<br />

Mas assim como muitos imigrantes, vivia profissionalmente<br />

à margem da sociedade. Acreditava ainda que essa era a<br />

possibilidade de estar, enfim, junto aos três filhos novamente.<br />

Assim que recebeu a carteira de trabalho, empenhou-se<br />

em buscar Tomás e Gloria em Salamanca. Primeiro, levou<br />

o menino de 14 anos para Paris, durante o verão de 1960. A<br />

caçula, de 11 anos, conseguiu trazer no ano seguinte.<br />

Anos antes quando chegou apenas com Josefa, Emília alugou<br />

um quarto para as duas em uma pensão. No edifício<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 141


viviam muitas estrangeiras que, provavelmente, também<br />

haviam perdido pais e maridos, mortos, exilados, presos ou<br />

desparecidos, além de suas casas, terras e negócios. Italianas,<br />

alemãs e outras espanholas. Várias nacionalidades, mas<br />

o mesmo destino: Paris. Elas lavavam, passavam roupa e<br />

costuravam porque eram as únicas tarefas que foram instruídas<br />

a fazer na vida.<br />

Na pensão, ela fez amizade com as vizinhas italianas que,<br />

apesar de em geral não suportarem espanhóis, amavam<br />

Emília. Pelo convívio diário com as estrangeiras, elas rapidamente<br />

aprenderam formas de se comunicar entre si. As<br />

amigas italianas, inclusive, adoravam mimar Josefa, talvez<br />

na falta de seus filhos que também deveriam estar distantes.<br />

“Comeste Pepita? Manja che te fa bene!”, diziam.<br />

Quando escutava a expressão que significa “come que te faz<br />

bem”, a bambina já sabia que logo preparariam um dos<br />

pratos deliciosos da gastronomia italiana.<br />

As condições na pensão eram precárias e todas as inquilinas<br />

compartilhavam um único banheiro, com apenas uma<br />

bacia de barro para lavar os pés. Um dia, Emília teve a<br />

ideia de pintar essa bacia e pediu a autorização para colocar<br />

uma ducha em cima. Tinham a partir daquele momento<br />

uma maneira mais decente de se limpar. “Não sei por<br />

que ninguém nunca tinha feito isso antes”, costuma dizer.<br />

142


Divulgação/Internet<br />

Arco do Triunfo, Paris, 1960<br />

A rotina de Emília era exaustiva. Acordava às 4h30 da<br />

manhã para chegar pontualmente às 5h em uma loja de<br />

brinquedos, onde ficava limpando e organizando tudo<br />

até às 7h30. Precisava estar na porta do segundo trabalho<br />

às 9h. Era um consultório médico onde permanecia<br />

até as 18h e fazia tudo o que era necessário. Como não<br />

gostava de ficar à toa, passava a roupa e ajudava com<br />

as contas. A função rendia um bom salário. Emília foi<br />

criando vínculos emocionais com os patrões. Quando a<br />

esposa do médico ficou doente, até se dispôs a aplicar<br />

injeções na patroa. “Ela gostava muito de mim, chorou<br />

quando eu voltei para a Espanha. Não voltei à França,<br />

mas escrevia para ela”.<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 143


Em seguida, foi trabalhar na residência de um casal de<br />

russos, donos de muitos hotéis na capital francesa. Eles<br />

contavam com muitos funcionários imigrantes que dispunham<br />

de casinhas com um quarto, uma salinha, um banheiro<br />

e uma cozinha. Os patrões até traziam caviar da<br />

Rússia para Emília, que nunca conseguiu gostar das ovas<br />

de esturjão, consideradas uma das iguarias mais caras do<br />

planeta. Havia dias que ela acordava pela manhã e via a<br />

montanha de dinheiro recolhida nos restaurantes dos hotéis<br />

no dia anterior em cima da mesa da sala. Ficava enlouquecida.<br />

“Não deixem todo esse dinheiro na mesa!”, dizia.<br />

“E se alguém entrar na casa? Vocês não me conhecem.<br />

Guardem o dinheiro no quarto e em um cofre”. Uma pequena<br />

parte daquele montante seria mais que suficiente<br />

para resolver as dificuldades de muitos imigrantes como<br />

ela. Os patrões nem dariam falta de alguns francos. Mas,<br />

Emília sabia que não era certo pegar um pedaço de pão<br />

sequer sem antes pedir. Passou quase um ano trabalhando<br />

para o casal. Por alguns meses, também foi passadeira em<br />

uma lavanderia, onde teve a oportunidade de aprender a<br />

usar uma máquina de lavar roupa, uma novidade na Europa<br />

na época.<br />

Tinha ainda mais trabalho todas as noites. Era quando limpava<br />

todo o segundo andar de um edifício comercial no Boulevard<br />

Marseille até as 20h. Enquanto se desdobrava para che-<br />

144


gar à casa a tempo de preparar a janta dos filhos, Emília via<br />

outras famílias se desmoronando. A relação de outro casal<br />

para o qual foi trabalhar por um tempo era cheia de problemas<br />

e não suportava ser colocada no meio deles. O patrão<br />

era médico e vivia brigando com a mulher porque ela bebia<br />

muito. Havia vezes que chegava do trabalho de mau humor e<br />

Emília tinha que levar as duas crianças deles correndo para o<br />

quarto. Se não bastasse, a esposa ainda pedia que ela mentisse<br />

ao patrão sobre onde ia enquanto ele trabalhava. “Os espanhóis<br />

são dos que te mandam calar a boca e te batem. Não<br />

sou mulher que se deixa bater assim. Sempre ganhei meu<br />

pão”, era a lógica de Emília.<br />

Ela também enfrentou dificuldades para acompanhar o desenvolvimento<br />

dos filhos. Assim que chegou a Paris, matriculou<br />

Josefa na Aliança Francesa, mas de maneira alguma a<br />

garota frequentava as aulas. Aos 15 anos, assim que terminou<br />

o ensino básico, trocou os estudos por um trabalho de babá<br />

– já “ganhava paella”, como se diz na Espanha para juntar o<br />

próprio pé de meia. O mesmo aconteceu com Tomás. Pouco<br />

depois de o filho chegar à França, aos 16 anos, ele já começou<br />

a trabalhar na área de mecânica e eletricidade de carros<br />

em uma das fábricas da Citröen.<br />

Nos primeiros anos em Paris, como não estava ao lado<br />

dos filhos, Emília não podia se certificar que Gloria e To-<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 145


Divulgação/Internet<br />

Paris, 1960<br />

más iam ao colégio em Salamanca. Ela fazia de tudo para<br />

mandar dinheiro todos os meses para pagar pela educação<br />

deles, mas nem sempre conseguia. No momento de necessidade,<br />

lembrava-se de seus pais verdadeiros e pensava<br />

o que aconteceria se estivessem vivos para ajudá-la na<br />

criação dos filhos. Era grata aos adotivos, Daniel e Gloria,<br />

por terem acolhido as crianças, mas sabia que tudo seria<br />

diferente se Josefa e Crisantos não tivessem sido assassinados<br />

na guerra. “Se fossem avós de verdade, obrigariam<br />

que fossem ao colégio. E se eu não tivesse dinheiro para<br />

pagar pela educação deles, tirariam do próprio bolso”, é<br />

uma de suas convicções.<br />

146


Emília não conheceu a Cidade Luz dos cartões-postais. Os<br />

diversos trabalhos lhe tomavam o tempo todo e mal lhe<br />

deixavam prestar atenção nos belos cenários, que ficam<br />

ainda mais deslumbrantes com a iluminação noturna. Enquanto<br />

caminhava pelas ruas, indo de um emprego a outro,<br />

observava aqueles que podiam aproveitar o luxo da capital<br />

francesa e imaginava como seria ter aquela vida. “Paris eu<br />

conheço como a palma da minha mão, menos o cinema e<br />

essas coisas. Até tinha dinheiro para ir, mas não tinha tempo<br />

para me divertir”.<br />

Sua única diversão era o rádio. Um mês antes de Emília completar<br />

34 anos, em novembro de 1960, Edith Piaf gravou<br />

pela primeira vez a música Non, Je Ne Regrette Rien. No<br />

rádio da casa de um de seus patrões, Emília escutou a trilha<br />

que falava sobre passado e futuro, perdas e ganhos, arrependimentos<br />

e vitórias. Assim como a cantora francesa, ela não<br />

lamentava nada de sua vida. Lutou para não se deixar levar<br />

pelo ritmo de suas frustações e fez o que pode para criar<br />

amor onde pensava que jamais poderia existir. A bela canção<br />

expressava os ideais de liberdade ensinados por seus pais,<br />

vítimas de Franco.<br />

A França fazia parte de sua vida agora, mas a Espanha<br />

ainda dominava o coração de Emília. Apesar de tudo, do<br />

outro lado da fronteira estava seu lar. Em 1965, retornou a<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 147


Salamanca por um curto período para iniciar um negócio,<br />

que lhe permitisse viver por lá no futuro. Abriu um serviço<br />

de transportes com um parente, como um passaporte<br />

para a volta. Comprou um carro da marca Barreiros para<br />

usar no transporte de mercadorias e, já nessa época, tinha<br />

a intenção de dar ao filho que era quase maior de idade.<br />

Dez anos depois, em abril de 1975, conseguiu trocar o veículo<br />

por um modelo mais novo, um Pegaso, que Tomás já<br />

conduzia. Quando o filho se casou, Emília passou o negócio<br />

para seu nome, assim como a licença para transportar<br />

mercadorias que pagou durante anos. Enquanto um funcionário<br />

e o filho tocavam o negócio, ela continuou trabalhando<br />

em Paris para manter as despesas. Só em 1977,<br />

quase vinte anos após embarcar rumo a Paris, tinha uma<br />

quantia suficiente para deixar a França e voltar de vez para<br />

Salamanca. Nunca mais retornou à capital francesa. “Voltamos<br />

à Espanha porque foi onde nascemos e vivemos a<br />

vida. Voltamos as nossas raízes”.<br />

Em 1971, aos 45 anos, Emília, já cansada de tanto sofrer<br />

por ainda estar atrelada ao marido, fez uma declaração de<br />

falecimento de Tomás. Não restava dúvidas de que ele havia<br />

morrido para ela e como não tinha dado notícias, certamente<br />

não vivia mais. Tomás deve ter tido um susto quando soube<br />

que seu nome estava estampado no obituário dos jornais da<br />

Espanha. Para provar que continuava vivo, enviou uma carta<br />

148


ao tribunal informando o endereço em que vivia no Brasil.<br />

Na opinião de Emília, o marido apenas provou que estava<br />

vivo porque o juiz não poderia mais forçá-lo a cumprir com<br />

as obrigações de pai de filhos pequenos. “Ele só fez isso porque<br />

meus filhos eram maiores de idade e não tinha mais a<br />

obrigação de pagar pensão”.<br />

Mesmo assim, Emília precisou esperar mais dez anos para<br />

ganhar o título que tanto se orgulha e finalmente desatar-<br />

Cidade de Salamanca nos dias de hoje<br />

Divulgação/Internet<br />

149


se de todas as amarras<br />

que lhe prendiam a<br />

Tomás. “Fui a primeira<br />

mulher a se divorciar<br />

em Salamanca. Ai<br />

que alívio!”. Aprovada<br />

em 7 de julho de 1981,<br />

a lei do divórcio marcou<br />

os primeiros anos<br />

da democracia na Espanha.<br />

Já nos primeiros<br />

meses, os tribunais<br />

estavam repletos de<br />

pedidos. O ministro<br />

da justiça e membro<br />

da Unión de Centro<br />

Democrático (UCD),<br />

Francisco Fernández<br />

Ordóñez, foi quem liderou<br />

a elaboração e<br />

aprovação no parlamento: “Não podemos impedir que os<br />

matrimônios se rompam mas podemos impedir o sofrimento<br />

dos matrimônios acabados“, declarou aos jornais<br />

na época. Adolfo Suárez era o líder da UCD no momento<br />

e enfrentou a forte oposição da Igreja Católica.<br />

Arquivo pessoal<br />

150


Os filhos também seguiram seus caminhos, bem diferente<br />

do que Emília havia imaginado. Assim como as datas do<br />

nascimento, os dias dos casamentos são relembrados por<br />

ela, até hoje. Josefa casou-se aos 27 anos, em 17 de outubro<br />

de 1971. Tomás em 25 de fevereiro de 1984, com<br />

37 anos. E Gloria não quis se casar “porque diz que nela<br />

ninguém manda”.<br />

Cada um é de um jeito e a vida acabou os afastando.<br />

“Eram muito apegados, mas quando casaram, ah como<br />

mudaram”. Essa é uma de suas preocupações. A mais velha<br />

herdou o caráter de Emília: dá um soco na mesa e<br />

a discussão logo acaba, mas em seguida é dócil. “Se eu<br />

te ofendo em um momento de cabeça quente, eu mesma<br />

te procuro depois e me desculpo. Porque há pessoas que<br />

te fazem mal e não reconhecem”, é uma das crenças de<br />

Emília. Atualmente, Josefa vive com o marido em Ponferrada,<br />

cidade a 2h30 de Salamanca, e de vez em quando<br />

visita a mãe. A primogênita tem uma filha, de 30 anos, que<br />

se casou recentemente porque estava grávida. A bisneta<br />

se chama Gloria, como sua caçula. O filho Tomás vive<br />

em Salamanca e, às vezes, passa para ver a mãe. É com<br />

Gloria que Emília permanece a maior parte do tempo, já<br />

que agora vivem juntas em um apartamento próximo a<br />

Avenida Mirat.<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 151


Resultado do trabalho pesado de uma vida inteira, Emília<br />

dispõe do apoio de uma bengala para caminhar longas<br />

distâncias. Mas o desgaste do corpo não enfraqueceu seu<br />

espírito, sempre disposto. “Não pense que fico sentada<br />

na cadeira o dia inteiro. Só às 15h30 quanto passa o<br />

Saber y Ganar”. Quando acerta as questões de conhecimentos<br />

gerais do programa de perguntas e respostas,<br />

exibido todos os dias no canal 2 da televisão espanhola,<br />

ela prova que todo o esforço valeu a pena. Apesar de<br />

dedicar grande parte de sua vida a trabalhos domésticos<br />

e ao cuidado dos filhos, outro grande orgulho de Emília<br />

é ter conquistado a possibilidade de fazer cursos de datilografia<br />

e contabilidade.<br />

Leu quantos livros pode e ainda pretende ler muitos mais<br />

se o problema que tem na vista não atrapalhar. A dificuldade<br />

a impede de enxergar com claridade. Emília carrega<br />

na profundidade do seu olhar o reflexo de um longo e<br />

intenso trajeto repleto de aprendizados e superações. “Eu<br />

me acostumei a não confiar em todo mundo. Mesmo assim,<br />

sou muito aberta e observadora. Conheço como as<br />

pessoas são só de olhar para elas”.<br />

Outro motivo que a deixa honrada é a conquista da casa<br />

própria em La Vega, bairro de Salamanca. “Antes eu não<br />

podia nem comprar uma casa porque mulher não assi-<br />

152


nava contrato sem o marido”, conta. O espaço tem dois<br />

quartos, dois banheiros e uma cozinha grande. A sala de<br />

estar dá vista para a varanda e o jardim que fez questão<br />

de manter na entrada, mesmo depois da reforma que a<br />

casa ganhou.<br />

Às vezes, sentimos que não pertencemos a lugar nenhum.<br />

Outras, que nosso mundo cabe dentro de um<br />

abraço. Nos dilemas que enfrentou, Emília fez questão<br />

de aprender. Trabalhou para transformar o ódio em perdão<br />

e a vontade em luta. Mostrou que o esforço de sua<br />

mãe para que as mulheres conquistassem mais direitos<br />

não foi em vão e ainda abriu caminho para que muitas<br />

seguissem seus passos, rumo a um destino melhor. Dos<br />

países que visitou, das muitas pessoas que conheceu e<br />

das tantas casas que morou, aprendeu que a felicidade<br />

não depende do tempo, do lugar, do dinheiro ou do destino:<br />

cada um pode ser responsável por construir um lar<br />

por onde passar.<br />

Emília Rodriguez Fernandez • 153


SOBRE A AUTORA<br />

Amanda Boucault<br />

é jornalista brasileira<br />

e nasceu<br />

em 1994. Cursou a Universidade<br />

Presbiteriana Mackenzie,<br />

pela qual foi contemplada<br />

com uma bolsa<br />

de estudos para um intercâmbio<br />

de um semestre<br />

na faculdade de História<br />

da Universidade de Salamanca,<br />

na Espanha. O resultado<br />

desse aprendizado<br />

internacional é o livro que<br />

você tem agora nas mãos.<br />

Celina Filgueiras<br />

155


Capa: Rosana Clemente<br />

Projeto gráfico: Marcela Amaral


Os tiros disparados a esmo na Plaza Mayor da cidade de<br />

Salamanca, na Espanha, fizeram as primeiras vítimas da<br />

Guerra Civil Espanhola, em 19 de julho de 1936. Oitenta<br />

anos após o início do conflito, considerado um dos mais<br />

hediondos da Europa, as consequências desta tragédia<br />

ainda ecoam na história dos moradores da cidade. Principalmente<br />

na vida dos três protagonistas dessa obra, que,<br />

ainda crianças, tiveram seus pais assassinados durante o<br />

regime franquista. Em depoimentos comoventes, os três<br />

filhos recordam o passado conturbado e mostram que é<br />

possível lutar por justiça sem derramar mais sangue.<br />

158

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