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Publicação Mensal Ano XX - Nº <strong>233</strong> Agosto de 2017<br />
Ipsa conteret...
Sebastião C.<br />
Venerado<br />
sobre os<br />
ombros do<br />
Imperador<br />
São Bernardo é um dos sóis da Igreja Católica<br />
e da devoção mariana. É o Doctor Mellifluus<br />
– Doutor Melífluo – que como ninguém elogiou<br />
a bondade e a misericórdia de Nossa Senhora.<br />
Ele é, por excelência, o homem da penitência e<br />
da mortificação, como também da polêmica com os<br />
adversários da Igreja do seu tempo.<br />
Este Santo Abade de Claraval era, ao mesmo<br />
tempo, um homem dulcíssimo e uma tocha ardente.<br />
Ninguém sabia falar da Santíssima Virgem com<br />
tanta unção quanto ele. De outro lado, era um polemista<br />
tremendo que alcançou sucessos extraordinários.<br />
Certa vez, estando na Alemanha, São Bernardo<br />
entrou numa cidade onde se encontrava também o<br />
Imperador do Sacro Império Romano Alemão, o<br />
mais alto dignatário temporal da Cristandade. A fama<br />
de santidade do Abade cisterciense era tal que<br />
todo o povo foi correndo de encontro a ele. E São<br />
Bernardo teria sido esmagado pela multidão se o<br />
próprio Imperador não o tivesse tomado nos braços<br />
e feito montar sobre seus ombros. Desta maneira,<br />
foi ele um Santo que se apresentou à veneração pública<br />
montado num imperador! Glória extraordinária<br />
para uma época que possuía, muito mais do que<br />
outras, o sentido do valor simbólico dessas coisas.<br />
(Extraído de conferência de 17/4/1971)<br />
São Bernardo - Catedral<br />
de Colônia, Alemanha
Sumário<br />
Publicação Mensal Ano XX - Nº <strong>233</strong> Agosto de 2017<br />
Ano XX - Nº <strong>233</strong> Agosto de 2017<br />
Ipsa conteret...<br />
Na capa, Nossa Senhora do<br />
Rosário de Lepanto - Igreja<br />
de São Domingos, Espanha.<br />
Ipsa conteret: do latim, Ela<br />
esmagará (Gn 3, 15).<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
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Serviço de Atendimento<br />
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Editorial<br />
4 Grandiosa e inevitável guerra<br />
Piedade pliniana<br />
5 Oração da despretensão e<br />
das santas proezas<br />
Dona Lucilia<br />
6 Senso do holocausto<br />
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
12 Duas influências<br />
Hagiografia<br />
20 Perfeito guerreiro e<br />
devoto de Nossa Senhora<br />
Calendário dos Santos<br />
24 Santos de Agosto<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
26 O maior prazer da vida<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Um hino a Nossa Senhora<br />
Última página<br />
36 Rainha da Contra-Revolução<br />
3
Editorial<br />
Grandiosa e<br />
inevitável guerra<br />
N<br />
ão é deste mundo a concórdia sem jaça, a paz perfeita e eterna entre todos os homens.<br />
Nesta terra de exílio, as carências, as dissensões, as catástrofes são inevitáveis. E uma visão<br />
cristã da vida leva, ao mesmo tempo, a circunscrevê-las quanto possível e a resignar-se<br />
a elas porque inevitáveis.<br />
São Luís Maria Grignion de Montfort 1 nos mostra a vida dos povos como uma grandiosa, trágica e<br />
incessante guerra entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o belo e o feio. Batalha sem a qual a existência<br />
terrena, desfalcada do seu significado sobrenatural, perderia sua dignidade.<br />
Comentando as palavras do Gênesis (3,15): “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua posteridade<br />
e a dela. Ela te pisará a cabeça e tu armarás traições ao seu calcanhar”, observa com profundidade<br />
o grande Santo: “Uma única inimizade Deus promoveu e estabeleceu, inimizade irreconciliável,<br />
que não só há de durar, mas aumentar até o fim: a inimizade entre Maria, sua digna Mãe, e<br />
o demônio; entre os filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer; de modo<br />
que Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou contra o demônio. Ele Lhe deu tanto ódio a esse<br />
amaldiçoado inimigo de Deus, tanta clarividência para descobrir a malícia dessa velha serpente, tanta<br />
força para vencer, esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso, que o temor que Maria inspira ao demônio<br />
é maior do que o inspirado por todos os Anjos e homens e, em certo sentido, o próprio Deus.”<br />
Ao longo da História, os filhos de Nossa Senhora batalharão até o fim do mundo contra os filhos<br />
de Satã. E a vitória final será dos primeiros, pela interferência da Mãe de Deus: “Deus estabeleceu<br />
inimizades, antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os<br />
filhos e escravos do demônio. Os filhos de Belial, escravos de Satã, amigos do mundo (pois é a mesma<br />
coisa) sempre perseguiram e perseguirão aqueles que pertencem à Santíssima Virgem. Mas a humilde<br />
Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse orgulhoso, e tão grande será a vitória final, que<br />
Ela chegará ao ponto de esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela descobrirá sempre sua<br />
malícia de serpente, desvendará suas tramas infernais, desfará seus conselhos diabólicos, e até ao fim<br />
dos tempos garantirá seus fiéis servidores contra as garras de tão cruel inimigo.”<br />
A supressão dessa luta por uma reconciliação ecumênica entre a Virgem com sua posteridade e<br />
a serpente com sua raça, rumo a uma era na qual a cessação utópica do entrechoque acarrete uma<br />
composição entre todos os direitos e interesses, uma interpenetração de todas as línguas sob um governo<br />
universal feito de fartura e despreocupação: eis a grande utopia contra a qual as massas se devem<br />
precaver; eis o regresso (ou antes, o retrocesso) à orgulhosa Torre de Babel, que de todos os modos<br />
o neopaganismo procura reerguer; eis a bandeira toda tecida de ilusão e de mentira com que, em<br />
todas as épocas, os demagogos procuram arrastar as massas insurrectas 2 .<br />
1) Cf. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Ed. Vozes: Petrópolis, 1961. 6ª ed., pp. 54-57.<br />
2) Excertos do artigo Volta à Torre de Babel? Publicado em “Folha de São Paulo”, 12/8/1980.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Oração da<br />
despretensão<br />
e das santas<br />
proezas<br />
Teodoro Reis<br />
Nossa Senhora da Luz - Convento<br />
da Luz, São Paulo, Brasil<br />
Óminha Senhora, Mãe de justiça<br />
e de misericórdia, modelai<br />
a minha alma de tal<br />
maneira que, inteiramente despretensioso,<br />
eu seja capaz das mais santas<br />
proezas. Afastai de mim a consideração<br />
de minhas qualidades naturais<br />
e até das sobrenaturais que<br />
a graça, implorada por Vós, possa<br />
me alcançar. Abri minha alma para<br />
o exame sincero, leal, varonil de<br />
meus defeitos, sem buscar atenuantes<br />
e pretextos para indulgências falsas<br />
para comigo. Dai-me a verdadeira<br />
contrição pelas minhas faltas e o<br />
propósito de nunca reincidir nelas.<br />
Assim, ó minha Mãe, serei verdadeiramente<br />
capaz de realizar todas<br />
as proezas por Vós, porque sei bem<br />
que só aos despretensiosos Vós concedeis<br />
as grandes vitórias.<br />
(Composta em 4/2/1980)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Senso<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
do<br />
holocausto<br />
Dona Lucilia não concebia as alegrias do Céu como um eterno<br />
prolongamento de Hollywood. Mas sabia que os sofrimentos desta<br />
vida terrena, suportados com paz e serenidade, preparam uma<br />
eternidade onde tudo se compensa, se acerta, se arranja e a axiologia<br />
se satisfaz inteiramente. Ela possuía um senso do holocausto levado<br />
ao último grau, e fazia todas as coisas para adorar Nosso Senhor,<br />
compreendendo que sua atitude causava alegria ao Coração d’Ele.<br />
Dona Lucilia possuía um vocabulário<br />
elevado, mas doméstico,<br />
de uma senhora<br />
do seu tempo. Ela não sabia construir<br />
uma bonita frase, entretanto nunca<br />
cometia um erro de gramática.<br />
Muitas vezes eu prestava atenção.<br />
Mesmo certos defeitozinhos,<br />
por exemplo, repetir uma palavra na<br />
mesma frase, não saía. Era tudo proporcionado,<br />
direito, bem arranjado.<br />
E de uma doçura que era preciso ter<br />
conhecido para fazer uma ideia.<br />
A mãe perfeita<br />
Mamãe era muito educada, mas<br />
seu modo de ser não se explicava em<br />
termos de educação. Ela até utilizava<br />
as regras de educação, mas no<br />
modo de usá-las entrava uma bondade<br />
muito grande. Nela não havia<br />
uma só aplicação de regras de educação<br />
em que não entrasse sua alma.<br />
A atitude fria, meramente protocolar,<br />
ela não tinha. Nem sei se era capaz<br />
disso.<br />
Para mim, ela foi a mãe perfeita.<br />
Em geral, quando eu chegava da cidade,<br />
encontrava-a fazendo alguma<br />
coisinha, escrevendo uma carta no<br />
meu escritório, ou então no quarto<br />
dela arranjando as coisas numa gaveta<br />
com objetos que ela mexia e remexia<br />
de todo jeito.<br />
Quando a encontrava no meu escritório,<br />
via que ela passara muito<br />
tempo lá me esperando e me querendo<br />
bem, contente de estar num<br />
ambiente que, para o olhar dela, es-<br />
6
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
tava marcado por mim. Na realidade,<br />
era assinalado por ela, mas para<br />
seu olhar de mãe era marcado por<br />
mim, porque eu trabalhava muito no<br />
escritório e passava, portanto, bastante<br />
tempo lá.<br />
Assim, ao entrar no escritório eu<br />
o encontrava impregnado de bem-<br />
-querer e de esperar. Mas tenho a<br />
impressão de que se eu, Deus me livre,<br />
tivesse feito alguma coisa má para<br />
mamãe, ela me receberia do mesmo<br />
modo, e talvez com mais afeto<br />
ainda. Esse é o ponto que é preciso<br />
notar. Então, toda a doutrina de<br />
Nosso Senhor no Evangelho sobre o<br />
perdão dos pecados se entende com<br />
esse exemplo mais próximo de nós, e<br />
que ilustra.<br />
Há um corolário disso: ela não<br />
era inimiga de ninguém, primeiro<br />
ponto. Mas o segundo ponto é: não<br />
era indiferente a ninguém. Essa indiferença<br />
que se tem para com um<br />
anônimo, ela não possuía. Qualquer<br />
pessoa era um filho de Deus, um católico,<br />
e ela não queria que sofresse<br />
qualquer coisa ruim. Daí, por exemplo,<br />
embora quase não conhecesse<br />
os rapazes que vinham em casa, se<br />
estivessem lendo um texto qualquer,<br />
no hall, ela, passando ali perto, logo<br />
mandava um recado pela empregada<br />
para não lerem ali porque prejudicaria<br />
as vistas, devido à pouca luz<br />
no ambiente.<br />
Respeito não em pé<br />
de guerra, mas de<br />
coração aberto<br />
Da parte dela, todos os agrados<br />
e cuidados possíveis. Isso era contínuo.<br />
Entretanto – para se ver como<br />
era sua psicologia –, ela sabia que<br />
comigo algumas deliberações tomadas,<br />
não tem conversa, estão tomadas.<br />
Quando eu era mocinho tomei o<br />
hábito de ler deitado. Constava no<br />
tempo dela que ler deitado<br />
fazia mal para a vista.<br />
Não sei se é verdade. E<br />
mamãe, mais de uma vez,<br />
me chamou a atenção com<br />
sua característica afabilidade:<br />
“Filhão, você está lendo<br />
deitado, faz mal para a vista!” Mas eu<br />
reputava ser a posição ideal para ler,<br />
estudar. Portanto, tinha que ser!<br />
Eu, sem a mínima brutalidade,<br />
uma vez disse para ela: “Mãezinha,<br />
não insista, porque não vou mudar<br />
esse hábito!” Até ela morrer, nunca<br />
mais insistiu. Ela percebeu que era<br />
uma deliberação que tomei, e não tinha<br />
conversa. E, portanto, não valia<br />
a pena mexer. Resignação.<br />
Dona Lucilia tinha uma forma de<br />
sensibilidade como não conheci em<br />
ninguém. Vou dizer mais: fui muito<br />
beneficiado com isso, porque se eu<br />
não tivesse conhecido nela, teria dificuldade<br />
de compreender como é.<br />
Porque há certas coisas que um livro<br />
não mostra. Essa forma de sensibilidade,<br />
para quem não era um brutamontes,<br />
ou um animal, era tocante.<br />
Inclusive nisso: se ela estivesse<br />
sentada ao meu lado, já estou vendo...<br />
Naturalmente, ela considerava<br />
o adjetivo “animal” altamente depreciativo.<br />
Imediatamente ela bateria<br />
levemente na minha mão, mas<br />
eram três toques com muito afeto<br />
para comigo e muita compaixão para<br />
com o outro: “Não, coitado, afinal<br />
de contas nós o queremos bem, vamos<br />
perdoar!”<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Hall de entrada e escritório<br />
na residência de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
7
Dona Lucilia<br />
Contudo, em matéria de regra,<br />
dever é dever, então tem que cumprir.<br />
Essa é uma outra questão. Mamãe<br />
não era uma pessoa a quem se<br />
faltasse com o respeito. Ela sabia<br />
muito bem fazer-se respeitar. Entretanto,<br />
não era em pé de guerra, um<br />
respeito de lança em riste, mas um<br />
respeito de coração aberto.<br />
Isso se tornou tão raro que nem<br />
sei o que dizer!<br />
<strong>Dr</strong>. Antônio protege<br />
e defende em juízo<br />
um inimigo...<br />
Para falar do lado natural,<br />
Dona Lucilia contava<br />
episódios da vida de<br />
seu pai que faziam ver<br />
que havia algo de hereditário<br />
nisso.<br />
Naquele tempo, a<br />
campanha eleitoral<br />
de um político se fazia<br />
ao longo de um<br />
percurso de trem,<br />
porque não havia<br />
estrada de rodagem,<br />
mas o político<br />
descia numa estação<br />
ou noutra e conversava<br />
com quinze, vinte<br />
pessoas. Assim, fazia<br />
uma viagem política. No<br />
trajeto entre Pirassununga<br />
e São Paulo meu avô tinha,<br />
em várias cidades, muitas<br />
relações e influência eleitoral.<br />
Havia numa dessas cidades um<br />
opositor, chamado Morais, que disputava<br />
a influência com meu avô, e<br />
cuja senhora se dava muito bem com<br />
a minha avó. Ela dizia, sem rebuços,<br />
à minha avó: “Meu marido não tem<br />
juízo. Ele deveria ser amigo do <strong>Dr</strong>.<br />
Ribeiro 1 e segui-lo. Eu tenho em <strong>Dr</strong>.<br />
Ribeiro uma confiança que não possuo<br />
em meu marido.”<br />
Um dia meu avô estava viajando e<br />
o trem parou numa cidade, onde ele<br />
percebeu um reboliço e perguntou<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
o que era. Contaram-lhe que o Morais<br />
fora acusado de um crime naquela<br />
cidade, fugira para São Paulo,<br />
tinha sido preso pela polícia e levado<br />
de volta para o interior. Então, os<br />
inimigos do Morais, amigos do meu<br />
avô, estavam esperando a chegada<br />
do acusado, que seria julgado lá<br />
no dia seguinte, para recebê-lo com<br />
<strong>Dr</strong>. Antônio Ribeiro<br />
dos Santos<br />
vaias. Ele não tinha sequer quem lhe<br />
fizesse a defesa, pois os advogados<br />
tinham se esquivado de defendê-lo,<br />
por “respeito humano”, para não serem<br />
mal vistos na cidade. E o Morais<br />
estava no desespero.<br />
Meu avô disse-lhes: “Espanta-me<br />
que vocês, por cima de um inimigo<br />
vencido, estejam fazendo isso. Fi-<br />
quem sabendo que eu vou esperar o<br />
Morais, e lhes peço para não darem<br />
vaias, porque vou dar o braço a ele,<br />
e se vocês o vaiarem estarão vaiando<br />
a mim. Não permito que um inimigo<br />
meu, derrotado, seja esmagado dessa<br />
maneira.”<br />
Chegou o trem trazendo o Morais<br />
com os guardas. Meu avô se aproximou,<br />
cumprimentou-o muito cordialmente<br />
e disse:<br />
– Morais, você quer ir comigo à<br />
prisão? Se for no meu braço, eu<br />
lhe garanto que não haverá ninguém<br />
que o vaie.<br />
– Ribeiro – respondeu<br />
ele –, nesta situação em<br />
que estou, eu aceito.<br />
Foram os dois caminhando<br />
até a prisão,<br />
que ficava perto da<br />
estação de trem, em<br />
meio aos inimigos<br />
do Morais quietos,<br />
por causa da presença<br />
do meu avô.<br />
Chegando à cadeia,<br />
meu avô disse<br />
a ele:<br />
– Você está sem<br />
advogado. Nós não<br />
nos damos, mas se você<br />
quiser, eu interrompo<br />
minha viagem, pouso<br />
aqui e preparo sua defesa.<br />
O Morais aceitou.<br />
Meu avô passou a noite trabalhando.<br />
No dia seguinte, pelo<br />
que contava mamãe, tinha produzido<br />
uma defesa maravilhosa e arranjou<br />
um jeito de o Morais ser solto.<br />
Era compreensível por não se<br />
tratar de um bandido profissional,<br />
mas de um homem de condição que,<br />
de repente, por uma questão eleitoral,<br />
cometeu um crime.<br />
Esse jeito de meu avô tratar o<br />
Morais não impediu que este depois<br />
fizesse canalhadas contra ele, do que<br />
nós aqui estamos certos, porque a<br />
gratidão é muito rara.<br />
8
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
fazia isso evidentemente com a intenção<br />
de que eu seguisse o bom<br />
exemplo. Isso era patente. Aliás, ela<br />
fazia muito bem, estava em seu papel<br />
de mãe.<br />
Ela me contou o caso do Morais<br />
mais de uma vez, mas nunca manifestou<br />
um azedume contra ele. Mamãe<br />
explicava bem direito como o<br />
Morais era ruim, para eu compreender<br />
a generosidade do pai dela. Se o<br />
Morais estivesse vivo e precisasse de<br />
mamãe, ela ia fazer o que fosse necessário,<br />
àquela hora.<br />
Residência dos Ribeiro dos Santos, em São Paulo, onde<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> passou sua infância e juventude<br />
...e vai levar-lhe socorro<br />
na hora da morte<br />
Anos depois, meu avô mudou-<br />
-se para São Paulo, perdeu o contato<br />
com o Morais, nem pensou mais<br />
nisso. E era uma noite fria, de garoa,<br />
não havia ainda telefone em<br />
São Paulo, batem à porta da casa.<br />
Alguém trazia uma carta da mulher<br />
do Morais para meu avô, dizendo:<br />
“<strong>Dr</strong>. Ribeiro, nós estamos na situação<br />
mais atroz que pode haver. Meu<br />
marido está morrendo de tuberculose.<br />
Nós nos encontramos em péssimas<br />
condições: não temos víveres<br />
nem cama, estamos dormindo num<br />
colchão sobre o solo, e não possuímos<br />
sequer remédios. Mas será que<br />
posso contar ainda com a sua generosidade<br />
para dar um dinheiro para<br />
o Morais se nutrir, etc.?”<br />
Naquela hora da noite, meu avô<br />
mandou vir um tílburi, uma forma<br />
de carrinho que havia antigamente<br />
e, apesar da garoa, etc., ele foi à casa<br />
do Morais, já levando víveres, cobertores<br />
e outras coisas para o Morais<br />
e sua mulher. Chegando lá, perguntou<br />
qual era a receita do médico, foi<br />
a uma farmácia; o farmacêutico dormia,<br />
mas ele fez que abrissem a farmácia<br />
e comprou o remédio.<br />
Logo depois, o Morais morreu<br />
com a cabeça apoiada num travesseiro<br />
nos braços do meu avô, o qual, se<br />
não me engano, havia levado o travesseiro.<br />
E o Morais com uma doença<br />
contagiosa, que naquele tempo<br />
era quase incurável...<br />
Mamãe contava essa história,<br />
com muito entusiasmo pelo pai. E<br />
Uma senhora russa de<br />
alta condição social pede<br />
conselho a Dona Lucilia<br />
Houve também o fato que se deu<br />
num hotel, em Paris. Certo dia, uma<br />
senhora russa de alta condição social<br />
bateu à porta do quarto de mamãe<br />
e disse:<br />
– Madame, a senhora me permite?<br />
Eu percebo na senhora tanta<br />
bondade que, embora eu não possua<br />
nenhum direito de vir expandir<br />
minha dor com a senhora, venho<br />
pedir licença, tenha paciência comigo.<br />
Vou expor à senhora o sofrimento<br />
que eu tenho, e vou perguntar se<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
9
Dona Lucilia<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
a senhora tem um conselho para me<br />
dar...<br />
Podem imaginar se o pedido foi<br />
atendido... Ela estava feita para<br />
atender!<br />
– Entre, por favor, sente-se, vamos<br />
conversar.<br />
A senhora contou que tinham detectado<br />
nela um câncer. Era uma doença<br />
incurável, e ela estava apavorada.<br />
Aqui entravam os jeitinhos de<br />
Dona Lucilia. Ela possuía certa experiência<br />
de doença, como tem uma<br />
dona de casa atenta a essas coisas<br />
para o cumprimento do dever, mas<br />
não tinha um senso clínico especial.<br />
Mas ela dava um jeitinho nas coisas.<br />
Ela ouviu tudo e disse:<br />
– Olhe, o médico deu à senhora<br />
certeza de que isso é câncer mesmo<br />
e que é incurável?<br />
– Sim, Madame, o médico deu.<br />
– Mas, olhe aqui, os médicos podem<br />
se enganar. Eu aconselho a senhora<br />
ir ao <strong>Dr</strong>. Fulano, que é um<br />
grande médico aqui em Paris e po-<br />
de fazer um exame melhor. E quero<br />
muito aconselhar a senhora a ir lá.<br />
E a senhora espere, tenha confiança<br />
em Deus que isso se arranja.<br />
A russa chorou, acabou secando<br />
as lágrimas e foi ao médico. E depois,<br />
no hotel, não se encontraram<br />
mais. Passado algum tempo, mamãe<br />
recebeu uma carta da russa dizendo<br />
que não sabia como agradecer.<br />
Tinha ido consultar o médico, e este<br />
lhe dera um remédio que a curou,<br />
afastando aquele pesadelo.<br />
A ação de mamãe é de natureza a<br />
recompor, e o afeto que ela tinha para<br />
com os outros era desinteressado.<br />
Ela queria o bem dos outros, porque<br />
é bom, em si, que os outros estejam<br />
bem. A ordem criada por Deus pede<br />
isso. E, portanto, é por amor de<br />
Deus que ela o fazia.<br />
Queria o bem das<br />
pessoas, sem esperar<br />
nenhuma retribuição<br />
Por exemplo, esse episodiozinho<br />
dos jovens lendo no hall pouco iluminado,<br />
ela se inquietou<br />
porque<br />
era uma tristeza,<br />
na concepção oculista<br />
dela, que estivessem<br />
comprometendo<br />
a própria vista.<br />
Isso, em si, é um<br />
mal por não ser de<br />
acordo com a ordem<br />
das coisas, mas também<br />
porque vão ficar<br />
sofrendo, com prejuízo,<br />
por perderem algo<br />
que Deus lhes deu,<br />
que é uma boa vista. E<br />
ela queria o bem deles,<br />
sem esperar nenhuma<br />
retribuição. Vê-se que<br />
no fundo estava a ideia<br />
do amor de Deus.<br />
Mamãe possuía uma<br />
noção de ordem muito<br />
clara, acompanhada da<br />
ideia de que nesta Terra essas coisas<br />
não têm recompensa, mas as grandes<br />
tristezas da vida preparam no<br />
Céu alegrias nobres e serenas, como<br />
eram nobres e serenas essas tristezas.<br />
A alegria no Céu ela não concebia<br />
de pandeiro na mão, como um eterno<br />
prolongamento de Hollywood.<br />
Mas era uma coisa diferente. Toda<br />
a paz, toda a serenidade que ela tinha<br />
aqui, no meio da tristeza, preparava<br />
uma eternidade onde tudo isso<br />
se compensa, se acerta, se arranja, e<br />
onde a axiologia se satisfaz nos seus<br />
últimos postulados. É a Fé católica,<br />
evidentemente.<br />
Entrava muito uma adoração pessoal<br />
a Nosso Senhor e, sabendo que<br />
o Coração d’Ele ficaria alegre com<br />
sua atitude, ela a fazia para adorá-<br />
-Lo. Todas essas razões constituem<br />
um senso harmônico, e um senso do<br />
holocausto levado ao último grau.<br />
Não vi ninguém levar o holocausto<br />
até o ponto onde ela levou.<br />
Eu já a conheci assim, e ela foi<br />
desse modo o tempo inteiro!<br />
10
Só aceitava cartas<br />
manuscritas<br />
Lembram-se daquela história de<br />
eu, quando criança, passar da minha<br />
cama para a dela e sentar-me<br />
em cima do seu peito para acordá-<br />
-la? Abria os olhos dela com as minhas<br />
mãos. Eu percebia que ela passava<br />
de um sono profundo imediatamente<br />
para uma atitude de perdão.<br />
Mal ela notava que era eu quem estava<br />
ali, sentava-se logo de uma vez.<br />
Não era uma atitude ambígua para<br />
ver se começava a dormir dali a pouco,<br />
não. Ela renunciava a retomar o<br />
sono. Abria um parêntese no sono<br />
e brincava comigo, dizia coisas, me<br />
agradava, etc.<br />
Eu me sentia tão invadido por<br />
aquela bondade que as angústias<br />
da noite fugiam. Lembrei-me disso<br />
quando, lendo a vida de Santa Teresinha<br />
do Menino Jesus, vi-a falar<br />
das tentações que tinha de noite. Então<br />
ela diz que não compreendia por<br />
que no Ofício as carmelitas rezavam:<br />
“Para que fujam os sonos maus, e os<br />
fantasmas noturnos...” E isto porque<br />
havia angústias noturnas.<br />
Tenho a impressão de que eu<br />
acordava angustiado. Sentia-me isolado,<br />
inseguro, mal, numa espécie<br />
de naufrágio. Além disso, era doente,<br />
fraco. Então, passava para a cama<br />
dela, mas sem a mínima hesitação.<br />
Eu sabia que ia ser bem recebido<br />
a qualquer hora da noite. E quando<br />
ela me fazia deitar de novo em<br />
minha cama, eu me lembro de que<br />
mais de uma vez me vinha a reflexão:<br />
“Propriamente eu me arranjo<br />
com ela. Com mamãe posso me<br />
arranjar até o fim, porque ela não<br />
me recusa nada!” Acho que isso me<br />
acalmava, então dormia bem.<br />
No dia seguinte, era mais confiança,<br />
mais querer bem, mais respeito,<br />
mais admiração...<br />
Aliás, é preciso dizer, eu a queria<br />
bem até onde me seja possível querer<br />
bem a uma pessoa! Naturalmente,<br />
Nosso Senhor, Nossa Senhora estão<br />
acima de toda comparação. Mas<br />
até onde podia querer bem uma pessoa,<br />
eu a queria totalmente bem.<br />
Mas, vejam bem, ela não tinha essas<br />
bondades relaxadas. As menores<br />
coisinhas, ela insistia comigo. Quando<br />
eu saía de São Paulo, sempre lhe<br />
escrevia cartas, e ela gostava, lia, relia<br />
e as guardava. Mas eu omitia de<br />
pôr data, porque toda a vida tive<br />
preguiça de escrever. E tinha um defeito<br />
qualquer na mão, por onde escrever<br />
me doía um pouco; além disso,<br />
letra muito feia. Tudo isso fazia<br />
com que eu não gostasse de escrever.<br />
E ela só queria carta escrita à<br />
mão, não aceitava batida à máquina.<br />
Dizia que carta à máquina era inexpressiva,<br />
e que ela não me sentia na<br />
carta à máquina. E tinha razão. Eu<br />
era datilógrafo rapidíssimo e em cinco<br />
minutos saía uma carta enorme,<br />
evidentemente transbordante de carinho.<br />
Mas ela não queria. Afirmava<br />
que tomava como não recebida.<br />
Eu cedi porque ela tinha o direito<br />
de querer isso de mim. Mas, por preguiça<br />
de escrever, não punha a data.<br />
Ela, na resposta, lembrava: “Filhão<br />
querido, quando me escreveres, não<br />
esqueças de pôr data em cima...” Eu<br />
na próxima vez esquecia, ela insistia<br />
de novo. Isso era feito com tanta doçura,<br />
que eu ficava literalmente encantado!<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
31/8/1985)<br />
1) <strong>Dr</strong>. Antônio Ribeiro dos Santos, avô<br />
materno de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
11
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Duas<br />
influências<br />
Na década de 1920, a sociedade, influenciada<br />
pela Igreja Católica, possuía polidez, distinção,<br />
elegância. Mas tudo isso foi perecendo pela<br />
influência da Revolução. Fala-se da invasão<br />
dos bárbaros que arruinaram o Império<br />
Romano do Ocidente. Porém, a entrada da<br />
Revolução escangalhou a civilização mais do<br />
que a invasão dos bárbaros.<br />
12<br />
Igreja do Sagrado Coração de Jesus,<br />
em São Paulo, no início do século XX
J. P. Ramos<br />
Igreja do Sagrado Coração de Jesus - São Paulo, Brasil<br />
Desde minha mais tenra infância,<br />
fui considerando<br />
a Igreja Católica Apostólica<br />
Romana com enlevo cujo fundo<br />
era a Fé. Como a ideia de uma instituição<br />
divina foi se formando aos<br />
meus olhos?<br />
Semelhante aos<br />
bancos de coral<br />
Eu via as pompas paroquianas.<br />
A Igreja do Sagrado Coração de Jesus<br />
não era propriamente uma Matriz,<br />
mas a capela de um colégio, situado<br />
na Paróquia de Santa Cecília.<br />
Igreja de dimensões modestas para<br />
nosso olhar de hoje em dia, porém<br />
grandes para a São Paulinho daquele<br />
tempo, onde eu entrava cheio de respeito<br />
porque me parecia um grande<br />
monumento. Sempre fui muito atraído<br />
por tudo quanto é monumental,<br />
imponente, grandioso. Eu me adentrava<br />
cheio de respeito pelo edifício<br />
e pelo que lá se passava. Graças<br />
a Deus tinha Fé e sabia ser ali a Igreja<br />
verdadeira do Deus verdadeiro, e<br />
era levado sobretudo pela adoração<br />
a Deus presente no Santíssimo Sacramento.<br />
Eu ia lá para assistir às cerimônias,<br />
à Missa, à bênção do Santíssimo,<br />
de vez em quando um casamento,<br />
mas tinha minha atenção voltada<br />
para um ponto especial, que só consegui<br />
explicitar mais tarde, mas foi<br />
criando densidade no meu espírito.<br />
Realmente, a explicitação não é<br />
senão o último afloramento de uma<br />
verdade. Assim como os bancos de<br />
coral são formados no oceano, a partir<br />
bem do fundo e vão subindo – em<br />
certo momento aquilo aflora e constitui<br />
uma ilha –, isso de modo semelhante<br />
também ocorre na mente humana.<br />
São impressões que vão se sedimentando<br />
e se colocando de modo<br />
harmônico umas junto às outras, e<br />
constituem no subconsciente a enorme<br />
torre “submarina” de uma convicção<br />
ou de uma ideia que vai surgir.<br />
Em certo momento dá-se a explicitação<br />
na qual a ideia acaba de se<br />
formar e nascer. Vou descrever um<br />
pouco como se deu comigo.<br />
Gestos, atitudes, modos<br />
de falar que exprimem<br />
a mentalidade<br />
Desde pequeno, eu era muito<br />
atraído pelas formas e sobretudo pelas<br />
cores. Agradava-me o colorido<br />
da pintura de um mosaico sobre o<br />
tabernáculo, representando o Padre<br />
Eterno, tendo ao peito uma pomba,<br />
símbolo do Espírito Santo, e o Santíssimo<br />
Sacramento, indicando a Segunda<br />
Pessoa da Santíssima Trindade.<br />
Era tudo muito adequado.<br />
O tabernáculo, que me parecia feito<br />
de ouro, era espesso, sólido, bem<br />
trabalhado. Os candelabros, os vitrais,<br />
as pinturas nas paredes – sóbrias,<br />
distintas, tranquilas –, as formas<br />
dos paramentos litúrgicos, os<br />
gestos e as palavras do celebrante –<br />
13
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
J. P. Ramos<br />
Igreja de Santa Cecília<br />
São Paulo, Brasil<br />
Basílica de Santo Antônio do<br />
Embaré - Santos, Brasil<br />
o latim, língua tão nobre que eu não<br />
entendia e ficava acima da intelecção<br />
comum, sendo própria para os doutos,<br />
homens de valor superior –, tudo<br />
isso somado ia me impregnando de<br />
mil impressões afins com a calma que<br />
é um dos aspectos da virtude da temperança.<br />
Aquilo me parecia harmonioso,<br />
sério, coerente, estável, elevado,<br />
com um certo reluzimento sobrenatural<br />
que eu não sabia definir.<br />
Havia muita relação harmônica<br />
também com a música do órgão, com<br />
a atitude dos fiéis enquanto o padre<br />
celebrava. E havia a coerência disso<br />
tudo com a ideia de que o sacerdote<br />
era um ser superior, escolhido dentre<br />
o povo e chamado por Deus para<br />
uma missão de uma intimidade especial<br />
com Ele, fazendo do padre uma<br />
pessoa ungida, separado dos outros<br />
homens, e colocado acima deles para<br />
o bem da humanidade. Uma ponte,<br />
ao pé da letra, entre Deus e os homens.<br />
O sacerdote é o pontífice, palavra<br />
que designa aquele que faz o papel<br />
de ponte. Depois, a ideia de que o<br />
padre não se casa e, portanto, não se<br />
mistura nem sequer com as alegrias<br />
santas do lar, criando em torno dele<br />
um isolamento meio misterioso e sacral<br />
que o reveste de uma respeitabilidade<br />
toda especial.<br />
Aos poucos fui notando como em<br />
todas as igrejas que conhecia, ou<br />
cuja fotografia via ao folhear revistas,<br />
eu tinha a mesma impressão, e<br />
pensava: “Como essas igrejas, tão diferentes<br />
em sua decoração, nas imagens<br />
nelas veneradas, nas pessoas<br />
que as frequentam, entretanto parecem<br />
uma mesma coisa! Seja a Igreja<br />
do Coração de Jesus como a do Imaculado<br />
Coração de Maria, a de Santa<br />
Cecília, em São Paulo, como a de<br />
Embaré, em Santos, em todas elas a<br />
Igreja é sempre a Igreja!”<br />
O que há na Santa Igreja que se<br />
afirma com tanta unidade em circunstâncias<br />
tão diversas?<br />
As cores e as formas que alguém<br />
escolha para exprimir seus sentimentos<br />
variam de pessoa a pessoa. Cada<br />
qual se exprime por uma certa forma,<br />
e comunica uma determinada nota ao<br />
ambiente onde está. O indivíduo tem<br />
certos gestos, atitudes, modos de falar<br />
que exprimem também a mentalidade<br />
dele. Entre todos esses sintomas<br />
de sua mentalidade e a sua própria<br />
mentalidade há coerência.<br />
Convicções, normas, virtudes<br />
Ora, se vou tomar a Liturgia católica,<br />
todos os seus gestos exprimem<br />
uma mesma mentalidade, como se<br />
fosse o gesticular de uma mesma<br />
pessoa. Por detrás desses gestos há<br />
uma mentalidade que vive de algum<br />
modo em todos os padres. É uma<br />
mentalidade que está no padre professor<br />
alemão do Colégio São Luís,<br />
mas também no missionário italiano<br />
J. P. Ramos<br />
Biiib (CC3.0)<br />
Igreja do Sagrado Coração de Jesus - São Paulo, Brasil<br />
Igreja do Imaculado Coração de Maria - São Paulo, Brasil<br />
14
do Coração de Jesus, no missionário<br />
espanhol do Coração de Maria, naquele<br />
outro sacerdote brasileiro nortista,<br />
gaúcho ou paulista. Há dentro<br />
deles a presença de um terceiro que<br />
vale mais do que eles.<br />
Conheço, privadamente, alguns<br />
deles. São respeitáveis, distintos,<br />
apresentáveis, eu os estimo. Mas não<br />
valem o que fazem no altar. Essa tal<br />
pessoa que, por assim dizer, habita<br />
neles vale muito mais do que eles.<br />
E não foi composta por eles; já existia<br />
na Igreja antes deles nascerem<br />
e, quando foram ordenados padres,<br />
eles se inseriram nisso. O que é isso?<br />
Vinha-me ao espírito essa pergunta,<br />
sem perplexidade. Era a indagação<br />
de quem sabia haver resposta e a procurava<br />
com a clareza de quem busca<br />
um tesouro. Não era, portanto, uma<br />
pergunta angustiada, mas sim enlevada,<br />
esperançada e maravilhada.<br />
Eu não possuía os conhecimentos<br />
de Catecismo e de Religião que adquiri<br />
com o curso do tempo. A minha<br />
resposta foi a seguinte: a Igreja<br />
é uma instituição. É algo que existe<br />
desde Jesus Cristo até hoje e que<br />
transmite um conjunto de convicções<br />
– as verdades da Fé –, um conjunto<br />
de normas – as normas da Moral<br />
–, um conjunto de virtudes, porque<br />
a Igreja não é apenas um complexo<br />
de livros, mas é um conjunto<br />
de virtudes efetivamente praticadas,<br />
as quais vêm se transmitindo de<br />
geração em geração e são a efetivação,<br />
na vida humana, daquilo que a<br />
Fé propõe, a Moral indica, e vão assim<br />
modelando os homens em todos<br />
os lugares, em todos os tempos. Daí<br />
o admirável da Igreja.<br />
Oh, que instituição divina!<br />
Essa instituição dominada pela<br />
mesma mentalidade, pelo mesmo<br />
espírito, elaborou tudo isso e o<br />
foi completando e aperfeiçoando ao<br />
longo dos séculos. Mas existe algo<br />
que nasceu dela também: a boa edu-<br />
<strong>Plinio</strong> em Águas da Prata<br />
cação na ordem temporal<br />
e civil.<br />
O cerimonial da sociedade<br />
civil, bem analisado,<br />
é o contrário<br />
da chulice moderna,<br />
do espírito revolucionário.<br />
É o reflexo, nos<br />
hábitos humanos, da<br />
mesma mentalidade<br />
da Igreja.<br />
Oh, que instituição<br />
divina! Há aí qualquer<br />
coisa completamente<br />
superior à crônica<br />
e inevitável estupidez<br />
humana. Se nela<br />
deixassem só homens,<br />
essa instituição<br />
se esfarelava. Há nela<br />
um princípio de unidade,<br />
uma chama sobrenatural<br />
que vale mais<br />
e mantém tudo isso. É<br />
um espírito, uma continuidade,<br />
uma chama<br />
de Deus.<br />
Eu olhava as imagens<br />
de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, longa e<br />
atentamente, e pensava:<br />
“Se tivesse talento,<br />
considerando a Igreja,<br />
talvez eu fosse capaz<br />
de imaginar a fisionomia<br />
do seu Fundador.<br />
Porque a Igreja está presente<br />
no seu Fundador como em sua própria<br />
Causa. Ora, olho a fisionomia de<br />
Nosso Senhor Jesus Cristo e digo: ‘É<br />
o Fundador da Igreja! Ele é a Causa,<br />
a Igreja é a Filha d’Ele!’” Donde uma<br />
longa atenção posta em Nosso Senhor<br />
para adorá-Lo como a Segunda<br />
Pessoa da Santíssima Trindade encarnada,<br />
mas também para fazer a comparação<br />
entre Ele e a Igreja.<br />
Minha conclusão: Como se parecem!<br />
A filha, como se assemelha com<br />
o Pai! Depois, considerar as regras de<br />
educação, dignidade, distinção, em<br />
vigor ainda no Ocidente, e dizer: “Esta<br />
ordem temporal também é filha<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo.” E eu<br />
adorava a Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
refletido também no cerimonial civil.<br />
E exclamava: “Que maravilha! Que<br />
coisa sublime!”<br />
Homem bom é aquele que<br />
abriu sua alma à Igreja<br />
Posteriormente, conhecendo um<br />
pouco mais a Doutrina Católica,<br />
aprendi que a Igreja é o Corpo Místico<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo.<br />
Que Nosso Senhor Jesus Cristo tem<br />
duas naturezas, humana e divina,<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
15
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Samuel M.<br />
Altar com o Santíssimo Sacramento - Igreja<br />
de Santa Cecília, São Paulo, Brasil<br />
cias. Eu examinava qual era o lado<br />
que no interior delas resistia: a Santa<br />
Igreja.<br />
Olhava para dentro de mim e via<br />
nascer a tentação. Não só a tentação<br />
vinda do demônio, mas a procedente<br />
de mim, errado e tendente ao mal,<br />
querendo com ênfase coisas não boas,<br />
e tendo que travar uma batalha<br />
em meu interior para conseguir andar<br />
bem. E me perguntava: “Quantos<br />
são os que, ao meu redor, lutaram<br />
como eu combato? Ora, não sou<br />
nem melhor nem pior do que eles. Se<br />
preciso lutar assim para andar bem,<br />
se eles não combatem não prestam.<br />
Porque se eu não lutasse, não prestaria<br />
também. Logo, <strong>Plinio</strong>, seja desconfiado<br />
e compreenda em que humanidade<br />
você está!”<br />
Conclusão: só é bom quem é verdadeiramente<br />
católico e traz na sua<br />
numa só Pessoa. E enquanto<br />
Homem-Deus<br />
pôde oferecer um sacrifício<br />
que expiasse,<br />
diante do Padre Eterno,<br />
pelos pecados dos<br />
homens, obtendo com<br />
isso o perdão do pecado<br />
original, das outras<br />
faltas pelos Sacramentos,<br />
e a abertura do caminho<br />
rumo ao Céu. E<br />
que daí vem a vida da<br />
graça sobre os homens.<br />
Essa graça é a participação<br />
da própria vida<br />
de Deus em nós.<br />
De onde a existência,<br />
na Igreja, de uma<br />
presença sobrenatural,<br />
que eu julgava entrever<br />
mais ou menos como o<br />
Sol através do vitral. A<br />
comparação é objetável;<br />
toda comparação<br />
tem alguma coisa de<br />
claudicante. Mas o fato<br />
concreto é que a mim<br />
me parecia ver reluzimentos<br />
na Igreja através<br />
dos quais, pela graça de Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo, discernia algo que,<br />
em última análise, remontava a Ele.<br />
Brotava, então, de minha alma o ato<br />
de adoração a Deus, Nosso Senhor.<br />
Em certo momento, comecei a<br />
dar-me conta de como, apesar de<br />
Ele ser infinitamente bom e misericordioso,<br />
o ser humano não é digno<br />
de se aproximar d’Ele. Essa ideia<br />
se cravou muito mais no meu espírito<br />
à medida que fui tomando contato<br />
com a Revolução. Os que não são<br />
péssimos, vejo que não o são porque<br />
abriram algo de sua alma à Igreja.<br />
Querem a definição de homem<br />
bom? É aquele que abriu sua alma à<br />
Igreja. A graça de Deus, penetrando<br />
nele, chamou-o para o bem, ele disse<br />
“sim” e começou a ser bom.<br />
Fui vendo o mal efervescer nas<br />
pessoas, os defeitos, as más tendênalma<br />
e na sua fisionomia<br />
o sinal da luta.<br />
Quem não é assim,<br />
quando tem virtude esta<br />
é frágil; e virtude<br />
frágil não é senão uma<br />
virtude em agonia.<br />
Deus detesta<br />
o pecado<br />
Aquele que não vigia<br />
a si próprio, vivendo<br />
com uma cara despreocupada,<br />
e que recusa<br />
tais pontos da<br />
Doutrina ou da Moral<br />
católica, como vou<br />
acreditar, por exemplo,<br />
na amizade dele<br />
por mim? Não contem<br />
comigo para isso,<br />
porque não é sério.<br />
Posso tomar ares amáveis,<br />
não manifestar a<br />
minha desconfiança.<br />
É uma obrigação velar<br />
a desconfiança, não<br />
se pode viver com a interrogação<br />
pendurada<br />
nos olhos. Deve-se ser amável, gentil.<br />
Mas, no fundo, se eu tenho que<br />
desconfiar de mim, e não valho mais<br />
nem menos do que ninguém, por minha<br />
natureza, então desconfio do<br />
outro que não vive tendo nas mãos<br />
as rédeas de sua alma.<br />
Estou com setenta e cinco anos.<br />
Quanta gente tem passado pelo caminho<br />
de minha vida! Nunca vi um desmentido<br />
a essa regra: não confiar em<br />
quem não for católico apostólico romano,<br />
praticante e militante, sobretudo<br />
dentro de si. Militante com os outros,<br />
ótimo! Mas eu quero saber se<br />
você fica indignado com os seus defeitos,<br />
se os combate; porque meter o<br />
relho nos outros quando necessário é<br />
bom, mas muito menos duro do que<br />
metê-lo nas próprias costas. Formar<br />
a ideia de que os outros não prestam<br />
corresponde à realidade. Contudo,<br />
16
muito mais meritório é compreender<br />
que nós mesmos não prestamos.<br />
Mas, ao mesmo tempo em que eu<br />
vinha notando isso, com a graça de<br />
Nossa Senhora, ia percebendo que<br />
Deus detestava o pecado. Nosso Senhor<br />
Jesus Cristo era profundamente<br />
incompatível com o pecado; e com<br />
o pecado em mim também. E que o<br />
amor que Ele me tem é, debaixo de<br />
um certo ponto de vista, incondicional,<br />
e, de outro ponto de vista, condicional.<br />
Incondicional nesse sentido: Nosso<br />
Senhor me chama junto a Ele<br />
e me ama em todos os dias que me<br />
concede viver. Ainda que tenha a<br />
desgraça culposa de O ofender gravemente,<br />
Ele me chama: “<strong>Plinio</strong>,<br />
vem cá!” Na Igreja de Santa Cecília,<br />
em São Paulo, acima de um altar<br />
com o Santíssimo Sacramento, há<br />
uma frase tirada do Evangelho muito<br />
bonita: Magister adest et vocat te – O<br />
Mestre está aqui e te chama.<br />
Mas Jesus me chama<br />
para que eu me modifique.<br />
Se não me modificar,<br />
vou caminhando não<br />
na graça d’Ele e, em certo<br />
momento, Ele me joga<br />
no Inferno! Nosso Senhor<br />
me dará a graça até o último<br />
instante. Se eu recusar,<br />
terei a rejeição eterna<br />
d’Ele, então carregada de<br />
ódio! Pois bem, vou examinar<br />
esse ódio.<br />
Todo mundo analisa<br />
o amor. É fácil e gaudioso<br />
examinar o amor que<br />
Ele tem para conosco. É<br />
tão gaudioso que aprendemos<br />
depressa. Agora<br />
vamos analisar esse ódio.<br />
Quão pouca gente adora<br />
o ódio d’Ele ao mal!<br />
Quão pouca gente adora<br />
a divina intransigência<br />
com que Ele tem horror<br />
aos nossos pecados, ainda<br />
que pequenos e leves!<br />
Ora, eu adoro essa intransigência<br />
ainda quando O sinto detestando os<br />
meus defeitos. Eu O adoro dizendo:<br />
“Senhor, como sois perfeito a ponto<br />
de detestar em mim isso que é detestável!<br />
Senhor, adoro a vossa justa cólera!<br />
E não compreenderia a vossa<br />
santidade infinita se não tivesse também<br />
o matiz de vossa cólera.”<br />
Mas, como me aproximar? Eu me<br />
enlevei muito, adorei muito, compreendi<br />
como estava próximo; num<br />
segundo lance, comecei a entender<br />
como me encontrava longe. E agora,<br />
como fazer? “Salve Rainha, Mãe<br />
de Misericórdia, vida, doçura e esperança<br />
nossa, salve!”<br />
Ah, agora compreendo! Há Alguém<br />
que é Mãe e Advogada, com<br />
esta missão da parte d’Ele: tocar-me,<br />
comover-me, aproximar-me d’Ele<br />
e conseguir que Ele me perdoe. Alguém<br />
que une a minha imperfeição<br />
irremediável à celeste perfeição<br />
d’Ele! “Salve Rainha, Mãe de misericórdia!”<br />
Se não fosse isso, eu desesperaria.<br />
Mas Ela é a nossa esperança.<br />
Tradicção e modernidade<br />
Eu passava daí para a sociedade,<br />
para o mundo. Por exemplo, as festas<br />
e outras reuniões sociais das quais<br />
participei, num mundo bastante diferente<br />
do de hoje, muito mais protocolar,<br />
mais cerimonioso, mais elevado.<br />
Entrei e percebi imediatamente o<br />
contraste de duas influências.<br />
Uma era a influência das boas maneiras,<br />
da tradição, da distinção, da<br />
elevação, e outra era a influência da<br />
Revolução, na mesma sala, nas mesmas<br />
pessoas, nas mesmas atitudes. Então<br />
eu percebia – e poderia contar cem<br />
pequenos episódios – que tudo quanto<br />
era bom, elevado e cerimonioso provinha<br />
do passado. O que era porcaria<br />
– porque não há outro modo de dizer<br />
– provinha do presente. E<br />
quando era bem ruim mesmo,<br />
prenunciava o futuro.<br />
Inútil dizer que essas<br />
coisas procuravam envolver<br />
cada um que estava<br />
dentro do ambiente, e<br />
que a contradição marcava<br />
de tal maneira o ambiente,<br />
que exigia de cada<br />
pessoa uma certa cota<br />
de tradicionalidade e outra<br />
cota de modernidade.<br />
Dando a cota da modernidade,<br />
se abria a alma<br />
para uma espécie de vento<br />
impetuoso que ia para<br />
a frente. Oferecendo a<br />
cota da tradição, se descerrava<br />
a alma para uma<br />
espécie de calma, de temperança<br />
– parada e já sem<br />
vida – que ia morrendo a<br />
cada dia mais…<br />
Eu me perguntei: donde<br />
vem essa tradição e essa<br />
marcha para a frente?<br />
E a resposta foi rápida.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
17
Eco fidelíssimo da Igreja<br />
Guilherme Gaensly (CC 3.0)<br />
Teatro Municipal de São Paulo no início do século XX<br />
ram na lama embaixo, assim estava a<br />
sociedade civil. A Cristandade, a família<br />
das nações cristãs que a Igreja Católica<br />
modelara, e com isso a polidez,<br />
a distinção, a elegância da sociedade<br />
cristã de outrora, tudo ia desabando.<br />
A vida humana<br />
apresenta graus de<br />
importância desiguais<br />
Mas nesse período ainda se notava<br />
muito a tradição. Lembro-me<br />
das grandes soirées de gala no Teatro<br />
Municipal de São Paulo.<br />
Não sei se os mais jovens alcançam<br />
o significado da palavra “gala”.<br />
O que é um espetáculo, uma cerimônia<br />
de gala?<br />
Por detrás da noção de gala e<br />
de pompa existe o seguinte princípio:<br />
a vida humana apresenta graus<br />
de importância desiguais. E até nisso<br />
o mundo daquele tempo não era<br />
igualitário. Um ato praticado por<br />
uma razão tem um certo significado<br />
e uma certa importância. O mesmo<br />
No tempo em que os homens eram<br />
católicos, nasceram regras de educação<br />
maravilhosas; essa marcha errada,<br />
do desatino e do desvario, não<br />
existia ainda. E os homens iam, cada<br />
dia que passava, inventando novas<br />
fórmulas de polidez, de distinção. A<br />
sociedade toda brilhava em atitudes<br />
em que, cada vez mais, o amor às autoridades<br />
legitimamente constituídas,<br />
o amor ao próximo igual a nós e<br />
o amor ao inferior a nós iam se destilando,<br />
e maneiras requintadas que<br />
aperfeiçoavam o temperamento exprimiam<br />
e formavam a alma.<br />
Houve um certo momento em<br />
que entrou um demônio nisso, e um<br />
rodopio em sentido oposto passou<br />
a se instaurar. A analogia da Liturgia<br />
para a sociedade civil, as regras<br />
da etiqueta do passado, a sociedade<br />
temporal toda marcada pela Igreja,<br />
que estava no alto da montanha, nos<br />
anos 20, tudo isso foi perecendo.<br />
Como um castelo que está ruindo,<br />
cujas pedras vão rolando pela encosta<br />
da montanha, e algumas já afundaato<br />
realizado por outro motivo possui<br />
uma importância menor. Então,<br />
numa família onde há, por exemplo,<br />
uma matriarca, vamos dizer que é<br />
uma senhora que teve quinze filhos,<br />
e cada filho quinze filhos, e ela festeja<br />
– vou imaginar uma hipótese que<br />
muito raramente se verifica, mas pode<br />
acontecer e tem acontecido – cem<br />
anos de idade, o aniversário dela,<br />
se a família possui posses, deve ser<br />
muito festivo. É claro! Porque cem<br />
anos é um aniversário insigne!<br />
E nesse aniversário o que há de insigne<br />
na condição de matriarca brilha<br />
mais. Então, a festa deve ter pompa!<br />
A família põe para a refeição as melhores<br />
toalhas, os melhores serviços<br />
de mesa, os melhores talheres. A casa<br />
está adornada com as mais belas flores.<br />
Servem as comidas, as bebidas, as<br />
melhores que podem apresentar.<br />
Correlatamente, as pessoas se<br />
apresentam com os trajes melhores.<br />
E se tratam nesse dia com uma distinção<br />
e um mútuo respeito maiores<br />
do que nos dias comuns. É um ani-<br />
18
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
versário de gala, comemorado com<br />
uma pompa jubilosa!<br />
Se a família é católica, essa pompa<br />
começa de manhã, na igreja, com<br />
uma Missa solene, à qual todos se<br />
apresentam com trajes de festa, em<br />
que a família toda comunga, e a matriarca<br />
é cercada com provas de respeito<br />
especiais. Para ela se mandou<br />
fazer, nesta ocasião, um vestido excelente.<br />
Será um dos vestidos mais<br />
ricos de sua vida com o qual, provavelmente,<br />
ela será enterrada.<br />
Mas ela se apresenta naquele dia<br />
adornada com todo o esplendor de<br />
sua condição. Todos a tratam com<br />
respeito muito mais marcado. Ela<br />
mostra muito mais a sua grandeza!<br />
É uma coisa bela, a gala! Não é<br />
sem graça como quem festejasse, por<br />
exemplo, o septuagésimo oitavo aniversário.<br />
A vida não precisa ter umas<br />
ocasiões assim?<br />
Bodas de prata ou de ouro de um<br />
casal, vinte e cinco ou cinquenta anos<br />
de casados. Gala, é claro! Nas ordens<br />
religiosas mais simples, como na franciscana,<br />
quando um religioso completava<br />
vinte e cinco anos – ou cinquenta,<br />
não me lembro bem – de profissão,<br />
ao menos na província brasileira<br />
e na alemã, se comemorava. Eu conheci<br />
frades alemães no Brasil que<br />
festejavam isso, ainda quando era um<br />
simples irmão leigo: Missa de gala,<br />
com pompa litúrgica. E se não me engano,<br />
já durante a Missa, ele era cercado<br />
com uma coroa de flores, a qual<br />
ele usava o dia inteiro dentro do convento!<br />
Eu acho uma beleza!<br />
Conheço o caso de uma família<br />
antiga na qual, remexendo velhos<br />
objetos, se encontrou o vestido<br />
de casamento, finíssimo e muito bonito,<br />
da avó já falecida. Ajustava-se<br />
tanto ao corpo da neta a qual estava<br />
noiva que, pondo-o ao sol, arranjando<br />
alguma coisinha, ela se casou com<br />
o vestido da avó. Isso conferiu a toda<br />
a cerimônia nupcial uma pompa especial!<br />
É natural. São coisas bonitas,<br />
razoáveis, verdadeiras.<br />
Espetáculo de gala no<br />
Teatro Municipal<br />
Havia também espetáculo de gala,<br />
quando vinha uma grande companhia<br />
artística representar no Teatro<br />
Municipal. Artistas de fama mundial<br />
vinham à São Paulinho do café, para<br />
se apresentarem. Por exemplo, as melhores<br />
artistas da Opéra de Paris, cuja<br />
língua se compreendia melhor aqui.<br />
Ou então, no campo da música,<br />
pianistas, violinistas, orquestras célebres.<br />
Eram espetáculos de gala. Resultado:<br />
todos os bilhetes de entrada<br />
eram vendidos muito mais caros. E<br />
obrigatório o uso de traje solene. Os<br />
homens com casacas, condecorações.<br />
As senhoras – no início dos anos 20 –<br />
trajando vestidos com cauda, usando<br />
leques, com plumas, joias coruscantes,<br />
etc. E era bonito estar dentro do<br />
saguão, vendo chegar as famílias.<br />
Os automóveis entravam naquelas<br />
arcadas laterais, o chauffeur descia,<br />
abria a porta, tirava o boné, o marido<br />
ia correndo, dava a volta no carro,<br />
ajudava a mulher a descer. Ela o<br />
fazia com ar amável, entrava, encontrava<br />
conhecidos parados ali, todos<br />
vestidos solenemente, que se cumprimentavam.<br />
Muito esplendor. Entrando<br />
na sala, as frisas, os camarotes, todos<br />
dourados, aveludados, iam se enchendo<br />
de pessoas que se sentavam.<br />
A família não cabia inteira numa<br />
frisa, nem ficava bem um rapaz ocupar<br />
uma frisa. Então, os mais novos<br />
sentavam-se na plateia. Mas como<br />
eram parentes dos outros assistentes,<br />
antes de começar o espetáculo se<br />
cumprimentavam à distância. As senhoras<br />
punham binóculos lindos, preciosos,<br />
para reconhecer melhor. Era a<br />
pompa, a gala. Isso acabou completamente.<br />
Mas de tal maneira que estou<br />
contando isso como se fosse uma história<br />
anterior ao dilúvio!<br />
Como tudo mudou, e mudou para<br />
pior! Foi o mundo da Revolução que<br />
entrou. O neopaganismo foi eliminando<br />
completamente os restos de polidez<br />
da Cristandade, os quais eram filhos<br />
da Igreja e da Liturgia. A tradição<br />
foi morrendo e a modernidade foi pisando<br />
em tudo, como se uma horda de<br />
vândalos entrasse por toda parte. Fala-<br />
-se da invasão dos bárbaros que escangalharam<br />
com o Império Romano do<br />
Ocidente. Foi triste. Porém, a entrada<br />
da Revolução escangalhou mais do<br />
que a invasão dos bárbaros. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
7/1/1984)<br />
19
Hagiografia<br />
Perfeito guerreiro<br />
e devoto de<br />
Nossa Senhora<br />
Zairon (CC3.0)<br />
A Igreja, vista na sua totalidade, possui<br />
uma harmonia de aspectos opostos,<br />
mas afins, que mostra toda a sua beleza.<br />
Santo Estêvão foi um exemplo dessa<br />
harmonia: incomparável em toda forma<br />
de misericórdia, mas por isso mesmo<br />
um homem forte, combativo, que lutou<br />
intrepidamente pelo bem.<br />
Estátua<br />
equestre de<br />
Santo Estêvão<br />
Budapeste,<br />
Hungria<br />
As fichas a serem comentadas<br />
hoje versam sobre a vida<br />
de Santo Estêvão, Rei<br />
da Hungria, retiradas do livro Vida<br />
dos Santos, de Rohrbacher 1 .<br />
Particular devoto da<br />
Santíssima Virgem<br />
Santo Estêvão é o grande monarca<br />
a cujo Batismo se deveu a conversão<br />
da nação húngara, até então pagã.<br />
O que Clóvis foi para a França,<br />
ele significou para a Hungria, com<br />
a imensa diferença de que Clóvis<br />
se converteu, mas ficou muito longe<br />
de ser um santo. Enquanto, pelo<br />
contrário, Estêvão foi um verdadeiro<br />
santo. Também os descendentes<br />
imediatos de Clóvis não foram santos,<br />
mas Santo Estêvão teve um filho<br />
canonizado: Santo Américo, sucessor<br />
de seu pai no trono real.<br />
Esta primeira ficha nos traz um<br />
dado especial sobre Santo Estêvão:<br />
sua devoção a Nossa Senhora.<br />
Santo Estêvão sempre manifestou<br />
predileção particular pela Santíssima<br />
Virgem. Por meio de um voto especial,<br />
colocou sua pessoa e seu reino sob a<br />
proteção de Nossa Senhora. Quanto<br />
aos húngaros, ao referirem-se à Mãe<br />
de Deus, não Lhe davam o nome de<br />
Maria, ou qualquer outro; diziam apenas<br />
“A Senhora” ou “Nossa Senhora”.<br />
À simples menção dessas palavras, inclinavam<br />
a cabeça e dobravam o joelho.<br />
20
O santo rei mandou<br />
construir em Alba<br />
Real magnífica<br />
igreja em honra da<br />
Rainha do Céu. Os<br />
muros do coro eram<br />
ornados de esculturas,<br />
o piso de mármore,<br />
possuía várias<br />
mesas de altar de<br />
ouro puro, enriquecidas<br />
de pedrarias, e<br />
um tabernáculo para<br />
a Eucaristia maravilhosamente<br />
trabalhado.<br />
O tesouro<br />
estava repleto de vasos<br />
de ouro e prata,<br />
cristal e de ricos paramentos.<br />
Santo Estêvão sempre desejou, pedindo<br />
mesmo em suas orações, que<br />
sua morte ocorresse no dia 15 de agosto,<br />
Assunção da Santíssima Virgem.<br />
Sua vontade foi satisfeita. Antes de expirar,<br />
erguendo as mãos e os olhos, exclamou:<br />
“Rainha do Céu, Co-Redentora<br />
do mundo, é ao vosso patrocínio<br />
que entrego a Santa Igreja, com os bispos<br />
e o clero, o reino com os grandes<br />
e o povo”; e, tendo recebido a Extrema-Unção<br />
e o Santo Viático, rendeu<br />
a sua alma.<br />
Guerreiro e juiz<br />
A segunda ficha apanha outro aspecto<br />
da personalidade dele: Santo<br />
Estêvão, guerreiro e juiz.<br />
À piedade e ao zelo de um apóstolo,<br />
Santo Estêvão da Hungria juntava<br />
a coragem de um guerreiro e herói.<br />
Nas instruções a seu filho, Santo<br />
Américo, ele próprio observa que passara<br />
quase toda a sua vida na guerra,<br />
repelindo invasões de nações estrangeiras.<br />
Logo que subiu ao trono, ainda<br />
duque – ele foi duque até o momento<br />
de se converter, quando o Papa o elevou<br />
à dignidade de Rei da Hungria –,<br />
procurou manter a paz. Porém, dirigidos<br />
pelos fidalgos, seus súditos, ainda<br />
O Papa São Silvestre coroa Santo Estêvão - Basílica São João de Latrão, Roma, Itália<br />
pagãos, revoltaram-se. Pilhavam cidades<br />
e campos, matavam seus oficiais e<br />
insultavam o próprio Duque.<br />
O Duque Estêvão reuniu suas tropas<br />
e, levando nos seus estandartes a<br />
imagem de São Martinho e São Jorge,<br />
marchou contra os rebeldes que sitiavam<br />
Veszprém. Tendo-os derrotado,<br />
consagrou suas terras a Deus.<br />
Em 1002, tendo seu tio Gyula, Duque<br />
da Transilvânia, atacado a Hungria<br />
por várias vezes, Estêvão marchou<br />
contra ele, fê-lo prisioneiro, assim<br />
como sua família, e juntou seus<br />
Estados à monarquia húngara. Venceu<br />
e matou com as suas próprias<br />
mãos Kean, duque dos búlgaros. Com<br />
o mesmo êxito repeliu os bessos, povo<br />
vizinho da Bulgária. Mas sua justiça<br />
igualava seu valor. Atraídos por<br />
sua fama, sessenta bessos da nobreza<br />
deixaram sua terra, levando com eles<br />
famílias e riquezas, e vieram pedir ao<br />
santo Rei permissão para se estabelecerem<br />
no Reino da Hungria.<br />
Os fâmulos de um comandante de<br />
fronteira, levados pela cobiça dos despojos,<br />
atacaram-nos de improviso matando<br />
alguns, ferindo outros, e arrebatando<br />
os seus bens. Santo Estêvão deu<br />
ordem para que o comandante e suas<br />
tropas se apresentassem na corte.<br />
Ao defrontá-los, recriminou-lhes a desumanidade<br />
e comunicou-lhes que faria<br />
o mesmo com eles. Imediatamente<br />
mandou-os enforcar dois a dois em todas<br />
as avenidas do reino, a fim de que<br />
todos soubessem que a Panônia estava<br />
aberta aos estrangeiros e que nela encontrariam<br />
hospitalidade e proteção.<br />
A Civilização Católica é<br />
a fonte de todo bem e de<br />
toda grandeza temporal<br />
Aqui encontramos essas verdadeiras<br />
maravilhas da Igreja Católica sobre<br />
as quais jamais será suficiente insistir.<br />
Quando nos deparamos com<br />
uma acusação à Igreja, devemos procurar<br />
sua unilateralidade. Porque,<br />
em geral, tratando-se de uma acusação<br />
histórica, entra uma mentira; sendo<br />
uma acusação doutrinária, há uma<br />
unilateralidade. Os adversários da<br />
Igreja não querem tomar em consideração<br />
que ela, vista na sua totalidade,<br />
tem uma harmonia de aspectos opostos,<br />
mas afins, que faz toda a beleza<br />
da Esposa de Cristo. Aliás, também<br />
no universo, os contrários harmônicos<br />
constituem a beleza da ordem<br />
criada por Deus. Não se pode possuir<br />
verdadeiramente o espírito da Igreja<br />
Gabriel K.<br />
21
Hagiografia<br />
Tony Bowden (CC3.0)<br />
se não se têm os olhos voltados<br />
para esta verdade e o espírito<br />
enlevado com ela.<br />
Essas duas fichas nos<br />
dão a fisionomia completa<br />
de Santo Estêvão e, portanto,<br />
da Igreja que o canonizou.<br />
Porque quando a Esposa<br />
de Cristo canoniza alguém,<br />
declara que esse Santo<br />
teve perfeitamente o espírito<br />
dela. De maneira que cada<br />
Santo, a seu modo, é uma<br />
imagem do espírito da Igreja.<br />
Assim, se raciocinarmos com<br />
uma lógica elementar, com<br />
um bom senso primário, encontramos<br />
a plena justificação<br />
de ambos os aspectos na<br />
vida de Santo Estêvão.<br />
Primeiro, o aspecto varonil<br />
e enérgico. Santo Estêvão<br />
está às voltas com inimigos irredutíveis<br />
que o odeiam por<br />
não ser pagão, querem depô-<br />
-lo porque ele deseja trazer a<br />
luz do Evangelho para seu povo,<br />
e por isso se revoltam contra ele,<br />
dentro do reino, ou marcham de fora<br />
para o interior de seus domínios<br />
para exterminá-lo e eliminar a porção<br />
da nação húngara que já aderiu à<br />
verdadeira Fé. Esses homens são esses<br />
invasores, revoltosos, os inimigos<br />
da salvação eterna do povo húngaro.<br />
Ao mesmo tempo, são inimigos da<br />
soberania do povo húngaro, do direito<br />
que tem esse povo de escolher a<br />
verdadeira Fé, de atender ao apelo<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo, dessa<br />
liberdade que o homem tem quando<br />
obedece a Deus.<br />
Portanto, Santo Estêvão via seu povo<br />
atacado nos seus bens espirituais<br />
mais altos, porque a Fé é a fonte de todos<br />
esses bens, e agredido na sua própria<br />
soberania, no que ela tem de mais<br />
importante, porque o distintivo da soberania<br />
de uma nação é a mesma coisa<br />
do que o selo da liberdade de um<br />
homem: consiste em, sem embaraços,<br />
poder obedecer e servir a Deus. Es-<br />
O pequeno Príncipe Américo sendo<br />
instruído pelo Bispo São Gerardo Sagredo<br />
Székesfehérvár (Alba Regia), Hungria<br />
sa é a própria definição de liberdade.<br />
Negar ao povo húngaro essa liberdade<br />
era recusar-lhe a sua soberania no que<br />
ela tem de mais essencial. Significava,<br />
ademais, comprometer o progresso do<br />
povo húngaro, porque a Civilização<br />
Católica, correspondendo inteiramente<br />
aos princípios da ordem natural e<br />
dando ao homem as forças sobrenaturais<br />
para obedecer aos princípios dessa<br />
ordem, é a fonte de todo bem e de<br />
toda grandeza temporal. De maneira<br />
que querer afastar a Fé católica de<br />
um país é desejar mantê-lo num paganismo<br />
abjeto e impedir seu verdadeiro<br />
progresso. Logo, tudo quanto consistia<br />
para a Hungria uma razão de ser<br />
e de viver estava empenhado nessa luta<br />
de Santo Estêvão.<br />
O centro da resistência<br />
de um país era o rei<br />
Naquele tempo a alma e o centro<br />
da resistência do país era o rei.<br />
O modo de desmantelar essa<br />
resistência era matar o monarca.<br />
Se um rei pagão pretendia<br />
eliminar Santo Estevão,<br />
não era belo, simbólico e<br />
nobre que o Rei santo o eliminasse<br />
com sua própria espada<br />
e suas próprias mãos? E<br />
que assim a infâmia cometida<br />
por um sangue régio fosse<br />
reparada pela fidelidade de<br />
outro sangue régio? Isso não<br />
é conveniente e bonito? Santo<br />
Estêvão cumpriu seus deveres<br />
de soberano, defendendo<br />
assim seu povo e a Santa<br />
Igreja Católica.<br />
Por que ele agiu de um<br />
modo tão enérgico com os indivíduos<br />
que mataram e roubaram<br />
essas pessoas que iam<br />
se asilar na Hungria? Elas<br />
pertenciam à própria nação<br />
do rei que ele tinha morto,<br />
ou que ia matar. Eram pessoas<br />
de categoria que, descontentes<br />
com o rei pagão, querendo<br />
se converter, passavam com<br />
seus rebanhos e suas economias para<br />
o território da Hungria. Elas chegam<br />
à fronteira – naturalmente desejavam<br />
se batizar – e pedem: “Nós<br />
queremos ingressar no reino de Estêvão<br />
e no reino de Cristo. Pedimos<br />
licença para entrar impunemente<br />
nós e os nossos.” Consulta-se o Rei,<br />
o qual diz: “Podem entrar, eu dou<br />
garantias para as pessoas e para os<br />
bens.” Abrem a fronteira e elas entram<br />
com toda a confiança, deixando<br />
as armas de lado – naquele tempo<br />
todo homem, sobretudo o chefe de<br />
família, era um guerreiro. Mas aparecem<br />
uns bandidos infames que assaltam,<br />
matam algumas pessoas para<br />
serem donos dos haveres. São assassínios<br />
vulgares, agravados pelo<br />
aspecto da traição. Então, Santo Estêvão,<br />
que punia com pena de morte<br />
um assassinato comum, não haveria<br />
de mandar castigar esses homens?<br />
Alguém dirá: “Mas eles foram mui-<br />
22
tos.” Prova a mais de que se devia<br />
punir com pena de morte. Porque, se<br />
são muitos os criminosos, isso prova<br />
que o povo não está muito distante<br />
da prática desses crimes. E então<br />
é necessário punir para que o crime<br />
não se repita. O fato de serem muitos<br />
é uma prova a mais de que precisava<br />
punir.<br />
Praticou a justiça<br />
e a misericórdia ao<br />
mesmo tempo<br />
Ele cumpriu o dever inerente à<br />
majestade régia. O rei tem os Poderes<br />
Legislativo, Executivo e Judiciário.<br />
É o supremo juiz do país. E os<br />
antigos, aliás muito acertadamente,<br />
consideravam o Poder Judiciário<br />
mais alto do que o Legislativo. Porque<br />
as Leis fundamentais são feitas<br />
por Deus. E o rei é o juiz que julga<br />
de acordo com as Leis fundamentais.<br />
O monarca não possui a plenitude<br />
do Poder Legislativo, enquanto<br />
o Poder Judiciário ele tem no sentido<br />
de que aplica a Lei de Deus. Então,<br />
Santo Estêvão agiu perfeitamente<br />
bem.<br />
Esse homem podia, portanto,<br />
quando rogava para Nossa Senhora,<br />
dirigir-se a Ela com o espírito completamente<br />
tranquilo, com a consciência<br />
inteiramente distendida. E<br />
verdadeiramente chamá-La de Mãe<br />
de Misericórdia, implorar a compaixão<br />
d’Ela porque ele usou de misericórdia.<br />
Ao castigar essa gente, Santo<br />
Estêvão foi misericordioso para<br />
com os que eram ou poderiam vir a<br />
ser vítimas desses homens maus, se<br />
não fossem intimidados; quer dizer,<br />
ele praticou a justiça e a misericórdia<br />
ao mesmo tempo. Então, nós deduzimos<br />
daí que Santo Estêvão agiu<br />
perfeitamente bem.<br />
Temos, então, a imagem do perfeito<br />
guerreiro e devoto de Maria.<br />
Incomparável no perdoar, no estimar,<br />
em toda forma de misericórdia,<br />
mas por isso mesmo homem forte,<br />
valente, que passou o tempo inteiro<br />
na luta.<br />
Fisionomia do combatente<br />
católico por excelência<br />
Lembro-me de que certa vez, conversando<br />
com um senhor de uma lógica<br />
muito estrita, muito clara, com<br />
base em premissas extremamente<br />
pobres e limitadas, abrangendo sempre<br />
uma parte infinitesimal do horizonte,<br />
ele me dizia:<br />
“Eu não gosto do livro Imitação<br />
de Cristo. Li e não compreendo, porque<br />
se eu fosse fazer constantemente<br />
o que está ali – voltar o outro lado<br />
do rosto, não tomar em consideração<br />
o mal que os outros nos fazem,<br />
perdoar sempre, etc. –, eu me deixaria<br />
roubar, saquear! É a conclusão<br />
lógica da Imitação de Cristo.”<br />
Pensei com os meus botões: Para<br />
esse homem não há explicação possível.<br />
Ou lhe faço um simpósio, que de<br />
nenhum modo ele quer ouvir, ou ele<br />
não pode entender isso, porque se<br />
colocou previamente fora das perspectivas<br />
necessárias para essa compreensão.<br />
É preciso exatamente compreender<br />
que a Imitação de Cristo foi escrita<br />
para um ambiente no qual esses<br />
princípios que apresentei eram<br />
claríssimos, e havia até a tendência<br />
a exagerar o lado belicoso. Então,<br />
a Imitação de Cristo constituía uma<br />
nota dentro de um concerto, ou seja,<br />
a insistência em uma das vias que,<br />
conjugada com a outra, dá a perfeição<br />
da Moral Católica.<br />
Sem dúvida, sempre que<br />
possível é preferível<br />
perdoar,<br />
praticar a mansidão<br />
e não a violência. Mas<br />
não sendo possível é preciso<br />
arregaçar as mangas e lutar!<br />
Nisso se vê nossa fidelidade<br />
aos princípios da Igreja Católica,<br />
pelo auxílio e bênção de<br />
Nossa Senhora. Por vezes, as pessoas<br />
não compreendem o desassombro<br />
com que enfrentamos o que imaginam<br />
ser a opinião pública. De outro<br />
lado, não entendem também como<br />
somos corteses, gentis, amáveis e<br />
nunca tomamos a iniciativa do ataque.<br />
Entretanto, quando atacados,<br />
damos uma surra! É a fisionomia do<br />
combatente católico por excelência:<br />
enquanto não me agridem, não agrido.<br />
Porém, ai de quem me agredir,<br />
porque saio “com um quente e dois<br />
fervendo!” 2 É uma pequena aplicação<br />
do que acabamos de ver na vida<br />
de Santo Estêvão.<br />
v<br />
(Extraído de conferência de<br />
10/9/1971)<br />
1) Cf. ROHRBACHER, René François.<br />
Vida dos Santos. São Paulo: Editora<br />
das Américas, 1959. vol.<br />
XV, p. 423, 428-430 e 442.<br />
2) Antiga expressão popular<br />
portuguesa, significando<br />
aqui uma reação imediata e<br />
indignada.<br />
Vicente T.<br />
Santo Estêvão<br />
Budapeste, Hungria<br />
23
C<br />
alendário<br />
1. Santo Afonso Maria de Ligório,<br />
bispo e Doutor da Igreja (†1787).<br />
Beato Pedro Fabro, presbítero<br />
(†1546). Foi o primeiro entre os membros<br />
da Companhia de Jesus a empreender<br />
árduos trabalhos pastorais em<br />
diversas regiões da Europa. Morreu<br />
na cidade de Roma, quando se dirigia<br />
ao Concílio Ecumênico de Trento.<br />
2. São Pedro Julião Eymard, presbítero<br />
e fundador (†1868).<br />
Beata Joana, leiga († s. XII). Mãe<br />
de São Domingos, realizou grandes<br />
obras de misericórdia em favor dos<br />
pobres e necessitados.<br />
3. Beato Agostinho Kazotic, bispo<br />
(†1323). Esteve inicialmente à frente<br />
da Igreja de Zagreb e, mais tarde,<br />
devido à hostilidade do Rei da Dalmácia,<br />
assumiu a sede de Lucera, na<br />
Apúlia, onde desenvolveu uma grande<br />
obra em favor dos pobres.<br />
4. Beato Federico Janssoone, presbítero<br />
(†1916). Pertencia à Ordem<br />
dos Frades Menores, em Montreal,<br />
na província de Quebec, no Canadá.<br />
Promoveu as peregrinações à Terra<br />
Santa para o incremento da Fé.<br />
dos Santos – ––––––<br />
5. Beato Pedro Miguel Noël, presbítero<br />
e mártir (†1794). Durante a<br />
Revolução Francesa, por ser sacerdote,<br />
foi encerrado de modo inumano<br />
em um navio de prisioneiros, onde<br />
acabou sua vida contagiado de peste.<br />
6. Transfiguração do Senhor.<br />
7. Beato Edmundo Bojanowski,<br />
presbítero (†1871). Trabalhou com<br />
afinco na formação dos pobres e analfabetos,<br />
na localidade de Gorka Duchovna,<br />
na Polônia. Fundou a Congregação<br />
das Escravas da Imaculada<br />
Conceição da Mãe de Deus.<br />
8. São Domingos de Gusmão, presbítero<br />
e fundador (†1221).<br />
Santa Maria da Cruz (Maria Elena)<br />
MacKillop, virgem (†1909). Fundou<br />
a Congregação das Irmãs de São<br />
José e do Sagrado Coração, dirigindo-a<br />
em meio a múltiplas fadigas e vexações.<br />
9. Santa Mariana (Bárbara) Cope,<br />
virgem (†1918). Religiosa exemplar e<br />
de um coração extraordinário, dedicou<br />
trinta anos de sua vida ao serviço<br />
dos leprosos de Molokai, entre os<br />
quais faleceu aos 80 anos de idade.<br />
10. São Lourenço, diácono e mártir<br />
(†258).<br />
São Blano, bispo († s. VI). Faleceu<br />
em Dumblane, na Escócia.<br />
11. Beato Maurício Tornay, presbítero<br />
e mártir (†1949). Anunciou com<br />
empenho o Evangelho na China e no<br />
Tibete, e recebeu a morte por mãos<br />
dos inimigos do nome cristão.<br />
12. Santa Joana Francisca Frémiot<br />
de Chantal, religiosa (†1641).<br />
13. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />
São Benildo (Pedro) Romançon, religioso<br />
(†1862). Pertencia ao Instituto<br />
dos Irmãos das Escolas Cristãs e dedicou<br />
sua vida à formação dos jovens.<br />
Beata Gertrudis, virgem (†1297).<br />
Abadessa da Ordem Premostratense.<br />
Quando criança, foi oferecida a Deus<br />
por sua mãe, Santa Isabel, Rainha da<br />
Hungria.<br />
14. São Maximiliano Maria Kolbe,<br />
presbítero e mártir (†1941).<br />
Santos Domingo Ibáñez de Erquicia,<br />
presbítero e Francisco Shoyemon,<br />
noviço, mártires (†1633). Dominicanos<br />
mortos por ódio à Fé, em Nagasaki,<br />
Japão.<br />
15. Beato Cláudio (Ricardo) Granzotto,<br />
religioso (†1947). Uniu o exercício<br />
de sua profissão religiosa à arte de<br />
escultor, alcançando em poucos anos a<br />
perfeição na imitação de Cristo.<br />
Flávio Lourenço<br />
16. Santo Estêvão, Rei da Hungria<br />
(†1038). Ver página 20.<br />
Santa Rosa Fan Hui, virgem e mártir<br />
(†1900). Na perseguição dos boxers,<br />
na China, sofreu inúmeras torturas,<br />
sendo lançada a um rio quando<br />
ainda agonizava.<br />
Martírio de São Lourenço<br />
17. Santa Joana Delanoue, virgem<br />
(†1736). Apoiada totalmente na Divina<br />
Providência, acolheu em sua casa<br />
órfãs, anciãs, mulheres enfermas e<br />
24
––––––––––––––––– * Agosto * ––––<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
de má vida. Posteriormente, estabeleceu,<br />
com suas companheiras, os fundamentos<br />
do Instituto das Irmãs de<br />
Santa Ana da Divina Providência.<br />
18. Beato Alberto Hurtado Cruchaga,<br />
presbítero (†1952). Fundou<br />
uma obra para amparar os pobres que<br />
carecem de moradia, principalmente<br />
crianças.<br />
Beata Maria Beltrame<br />
Quattrocchi<br />
19. São Luís, bispo (†1297). Sobrinho<br />
do Rei São Luís, da França, preferiu<br />
a pobreza evangélica às honras<br />
do mundo. Ainda jovem, foi elevado à<br />
sede de Tolouse.<br />
20. Solenidade da Assunção de<br />
Maria (Transferida do dia 15).<br />
São Bernardo, abade e Doutor da<br />
Igreja (†1153). Ver página 2.<br />
Santa Maria de Matias, virgem<br />
(†1866). Fundou o Instituto das Irmãs<br />
da Adoração do Preciosíssimo Sangue<br />
do Senhor.<br />
21. São Pio X, Papa (†1914).<br />
Beata Vitória Rasoamanarivo, viúva<br />
(†1894). Socorreu com toda solicitude<br />
os cristãos e defendeu a Igreja<br />
diante dos magistrados públicos da<br />
ilha de Madagascar.<br />
22. Nossa Senhora Rainha.<br />
Beato Simão Lukac, bispo e mártir<br />
(†1964). Durante um governo hostil à<br />
Fé, exerceu clandestinamente seu ministério<br />
em favor da grei de católicos<br />
de rito bizantino, sendo por isso assassinado,<br />
na Ucrânia.<br />
23. Santa Rosa de Lima, virgem<br />
(†1617). Desde criança entregou-se à<br />
penitência e à oração. Ardendo em zelo<br />
pela salvação dos pecadores e dos<br />
indígenas, submetia-se de bom grado<br />
a toda sorte de sofrimentos para conquistá-los<br />
para Cristo. Foi proclamada<br />
padroeira da América Latina.<br />
24. São Bartolomeu, Apóstolo († s. I).<br />
Beata Maria da Encarnação (Maria<br />
Vicenta) Rosal, virgem (†1886).<br />
Fundou as Irmãs de Belém, com a finalidade<br />
de reivindicar a dignidade<br />
da mulher e formar as meninas na Fé<br />
cristã.<br />
25. São Gregório, abade (†775). Sendo<br />
ainda adolescente, seguiu fielmente<br />
a São Bonifácio quando este tentava a<br />
conversão de Hesse e Turíngia.<br />
26. Beata Maria Beltrame Quattrocchi,<br />
leiga (†1965). Mãe de família,<br />
que viveu exemplarmente sua vida matrimonial<br />
e demonstrou sua comunhão<br />
de Fé e amor para com o próximo.<br />
27. XXI Domingo do Tempo Comum.<br />
Santa Mônica, viúva (†387).<br />
Beata Maria do Pilar Izquierdo Albero,<br />
virgem (†1945). Muito provada<br />
pela pobreza e por graves enfermidades,<br />
serviu a Deus demonstrando uma<br />
caridade singular para com os pobres,<br />
em favor dos quais fundou a Obra<br />
Missionária de Jesus e Maria.<br />
28. Santo Agostinho, bispo e Doutor<br />
da Igreja (†430).<br />
Martírio de São João Batista<br />
Beato Junípero (Miguel) Serra,<br />
presbítero (†1784). Catequizou as tribos<br />
ainda pagãs da Califórnia e defendeu<br />
com valentia os direitos dos<br />
pobres.<br />
29. Martírio de São João Batista († s. I).<br />
Beato Edmundo Inácio Rice, fundador<br />
(†1844). Entregou-se, com entusiasmo<br />
e perseverança, à formação<br />
de crianças e jovens, fundando para<br />
isso a Congregação dos Irmãos Cristãos<br />
e a dos Irmãos da Apresentação.<br />
30. Beato Alfredo Ildefonso Schuster,<br />
bispo (†1954). Sendo abade de<br />
São Paulo de Roma, foi elevado à sede<br />
episcopal de Milão, onde, com grande<br />
diligência e admirável sabedoria, desempenhou<br />
sua função de pastor.<br />
31. Santo Aidano, bispo e abade<br />
(†651). Varão de suma mansidão, piedade<br />
e reto governo, que estabeleceu<br />
em Northumberland (Inglaterra) sua<br />
sede episcopal e um mosteiro para<br />
dedicar-se com eficácia à evangelização<br />
daquele Reino.<br />
Samuel Holanda<br />
25
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Samuel Holanda<br />
O maior prazer<br />
Vale do Reno,<br />
Alemanha<br />
da vida<br />
A Revolução Industrial vai produzindo o despojamento<br />
gradual de tudo aquilo em que a pessoa pôs o prazer de<br />
sua vida, acarretando uma resignação dentro da qual ela<br />
fica cuidando de levar uma vidinha arranjada. A alegria<br />
desapareceu. A verdadeira e legítima fruição da vida parte do<br />
momento em que o indivíduo aprendeu o deleite da calma.<br />
Qual é a verdadeira calma? A<br />
católica, verdadeiramente.<br />
No que ela consiste?<br />
Há duas calmas distintas para o<br />
homem: a da Terra e a do Céu. Na<br />
Terra, o que se entende habitualmente<br />
por calma?<br />
Calma não é mera distensão<br />
Vou tratar da calma boa para poder<br />
fazer a comparação com a ruim.<br />
Creio que não se pode formular bem<br />
a descrição da calma ruim sem ter<br />
passado pela boa. Há tantas deformações<br />
do sentido da palavra calma,<br />
mesmo quando se quer elogiá-la,<br />
que todo mundo perdeu a noção da<br />
verdadeira calma. Seria preciso uma<br />
verdadeira explicação.<br />
A noção corrente de calma é<br />
que ela se identifica com distensão.<br />
Quando o sujeito se encontra distendido,<br />
está calmo. Esta noção é verdadeira?<br />
Ela traz consigo uma certa<br />
ideia insuficiente, incompleta, porque<br />
mesmo quando o indivíduo se<br />
encontrasse no auge de sua vitalidade,<br />
poderia estar perfeitamente calmo,<br />
e esta é a verdadeira calma.<br />
Imagine que um de nós fosse convidado,<br />
por exemplo, a fazer um passeio<br />
de barco no Reno, subindo o rio<br />
até as suas origens na Suíça adentro,<br />
rumo ao primeiro ponto onde ele<br />
nasce. A pessoa vê aquelas encostas<br />
de montanhas verdejantes, onde estão<br />
plantadas uvas em quantidade,<br />
de vez em quando uma aldeia bonitinha,<br />
um castelinho, às vezes um castelão,<br />
uma cidade, e aquilo vai passando<br />
lentamente.<br />
Durante todo o tempo, a pessoa<br />
observa coisas que podem despertar<br />
nela muitas vitalidades: ficar alegre,<br />
satisfeita, dar risada, tirar uma fotografia,<br />
fazer qualquer coisa. Ela com<br />
o isso perde a calma? Talvez alguns<br />
percam, mas passar por todas essas<br />
impressões legitimamente não implica<br />
em perder a calma.<br />
A calma não é a mera distensão,<br />
o relaxamento. É um estado de alma<br />
pelo qual o temperamento reage de<br />
26
um modo inteiramente proporcionado<br />
àquilo que se tem diante de si.<br />
Esse é o sentido da calma.<br />
Não perder o governo<br />
de si mesmo<br />
A ira, bem como o temor de si, são<br />
sentimentos opostos à calma, porque<br />
é um outro elemento que entra aí. A<br />
calma deve ter por objeto colocar o<br />
homem em presença de coisas que<br />
sejam agradáveis ou, pelo menos,<br />
não desagradáveis, e não introduzam<br />
no homem o temor, porque este,<br />
de si, convida muito facilmente a<br />
perder a calma, é até implicitamente<br />
contrário à calma. Quando o indivíduo<br />
tem um susto, maior ou menor,<br />
devido a algum mal que o ameaça,<br />
próximo ou remoto, provável ou menos<br />
provável, mas de uma coisa que<br />
para ele constitui uma ameaça, aquilo<br />
lhe faz perder a calma.<br />
Portanto, a atitude perfeitamente<br />
proporcionada do homem, diante<br />
de uma grave ameaça, o faz perder a<br />
calma. Mas notem que a linguagem<br />
corrente comporta uma aplicação<br />
contraditória disso que estou dizendo.<br />
Por exemplo, afirmando: “Durante<br />
a maior luta, “X”<br />
não perdeu a calma.”<br />
Então, nesse caso, é<br />
calma ou não?<br />
Tem dois sentidos a<br />
palavra calma. Um é<br />
a calma que não é colocada,<br />
exatamente,<br />
nem diante de objeto<br />
de ira, nem de pavor,<br />
medo, apreensão. Outro<br />
é o modo de ter ira,<br />
apreensão, pelo qual<br />
o indivíduo não perca<br />
em nada o governo de<br />
si. Isto também pode<br />
chamar-se calma, mas<br />
é em um outro sentido<br />
da palavra. Como a<br />
calma é um inteiro governo<br />
de si, o fato de o<br />
indivíduo se encontrar numa situação<br />
que está pondo-o em tensão, se<br />
conserva o governo de si, tem calma.<br />
Esta luta já não é a calma no sentido<br />
pleno da palavra, mas a conservação<br />
da calma dentro da alma. É<br />
até o que a calma tem de mais nobre,<br />
a inteira proporção com a verdade.<br />
Mas já não é propriamente a calma;<br />
é calma por uma acomodação, uma<br />
adequação de linguagem.<br />
Um mártir que<br />
entra na arena<br />
Quer dizer, trata-se da calma de<br />
uma pessoa posta numa situação onde<br />
é quase inevitável que a sensibilidade<br />
efervesça. Mas é uma efervescência<br />
reduzida, pelo império<br />
da vontade, estritamente a seus primeiros<br />
borbulhares. Além disso não<br />
passa. Em outros termos, há alguma<br />
coisa que, conforme a circunstância,<br />
o indivíduo não consegue vencer,<br />
porque não é natural que vença.<br />
Mas, sem embargo, ele conserva<br />
a vitória sobre aquilo em todo o limite<br />
em que é humano mantê-la.<br />
Vou dar um exemplo comum, mas<br />
muito ilustrativo: um mártir que entra<br />
na arena e vê, por exemplo, um<br />
leão ali que vai comê-lo. Salvo uma<br />
ação superior da graça, o instinto de<br />
conservação se apresenta imediatamente<br />
e produz um certo efeito, que<br />
o indivíduo pode nobremente impedir<br />
que tome conta de si, mas um primeiro<br />
trauma de perturbação é inevitável<br />
que ele sinta. O que o indivíduo<br />
pode é manter aquele princípio<br />
de perturbação nos limites necessários,<br />
impossíveis de transpor. Então,<br />
ele tem a calma por excelência que é<br />
esta: até diante do leão está calmo.<br />
No caso do mártir, existe a calma<br />
no esplendor de seu ser, mas não<br />
no seu bem-estar. Essa seria a ideia.<br />
Aqui entra algo que é muito importante:<br />
a calma supõe, portanto, que<br />
o indivíduo tenha a atração ou a repulsa<br />
da coisa exatamente no limite<br />
que a razão indica, e que está na natureza<br />
das coisas. Inclusive que está<br />
na natureza do temperamento dele,<br />
porque certas peculiaridades individuais<br />
se introduzem nisso, legitimamente.<br />
Entra algo de pessoal, não é uma<br />
coisa impessoal. Mas esse elemento<br />
pessoal, no homem normal, é sempre<br />
tal que não impõe que o indiví-<br />
IABI (CC3.0)<br />
27
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
duo saia da normalidade. Esse é o<br />
ponto. É a temperança.<br />
O prazer da castidade<br />
A temperança pode ser, por<br />
exemplo, o seguinte: Você está inteiramente<br />
calmo e pensando numa<br />
coisa que quando a tiver lhe poderá<br />
dar muito prazer. Aquilo não lhe tirou<br />
a inteira serenidade, mas deixará<br />
de ser temperança se você pensar<br />
naquilo mais tempo do que deve.<br />
Porque já entrou alguma coisa ali<br />
que ainda não chega a abalar os nervos,<br />
mas que é uma concupiscência<br />
imoderada. O que se poderia sustentar<br />
é que em todo caso de concupiscência<br />
imoderada, por mais remoto<br />
que seja o objeto, há um pouquinho<br />
de vibração que sai da linha.<br />
A isso seria possível objetar: Então,<br />
nessa perspectiva, calma e temperança<br />
se equivaleriam. A calma seria um<br />
sentir interno da própria temperança.<br />
Uma pessoa poderia cometer um<br />
pecado de modo frio, porém não calmo.<br />
A verdadeira calma é inerente à<br />
virtude, nesse sentido estrito da palavra.<br />
Daí decorre que a verdadeira e legítima<br />
fruição da vida parte do momento<br />
em que o indivíduo aprendeu<br />
o deleite da calma. Quando ele compreende<br />
que a calma é o maior prazer<br />
da vida, ele entendeu o que é a vida.<br />
Se ele não compreendeu que a calma<br />
é o maior deleite da existência, não<br />
compreendeu nada, não sabe viver.<br />
Então, eu imagino, por exemplo,<br />
um Doge de Veneza embarcando no<br />
Bucentauro para as núpcias de Veneza<br />
com o mar. O doge é festejadíssimo,<br />
etc.; se não teve calma em fruir aquilo,<br />
ele de fato não fruiu. Porque veio<br />
acompanhado de uma ansiedade que<br />
é o contrário, traz consigo um elemento<br />
de dor. E onde há um elemento de<br />
dor não é tão perfeita a alegria, como<br />
onde a dor não está presente.<br />
É, por exemplo, um lado por onde<br />
se entende bem no que a castida-<br />
de é, a seu modo, o prazer supremo<br />
da vida. Parece uma tese a mais ousada<br />
possível querer imaginar na castidade<br />
o prazer. Mas é o maior prazer<br />
da vida. O homem casto possui aquela<br />
desnecessidade de outrem para encontrar<br />
o seu próprio equilíbrio. E<br />
tem aquele bastar-se a si próprio, sem<br />
torcidas, sem dependências, sem anseios<br />
nem sonhos, por onde lhe é frequente,<br />
na vida de todos os dias, estar<br />
em horas em que pode isolar-se e<br />
fruir do seu próprio ser, independente<br />
de quem quer que seja.<br />
Um agradável terraço<br />
que dava para o jardim<br />
GCI (CC3.0)<br />
A maior parte das pessoas são educadas<br />
no oposto, mas brutalmente no<br />
oposto. Creio que se eu devesse enumerar<br />
as graças recebidas<br />
outrora, esta<br />
era uma que precisaria<br />
incluir com<br />
especial gratidão.<br />
Desde muito cedo,<br />
tinha verdadeira<br />
delicia em sentir<br />
a independência<br />
da minha virtude,<br />
da minha castidade<br />
e, portanto, quanto<br />
era agradável viver<br />
não precisando de<br />
outrem, tendo em<br />
torno de mim quanto<br />
me bastava e o<br />
deleite equilibrado<br />
de todas as coisas,<br />
suficientemente para<br />
ser verdadeiramente<br />
eu.<br />
Eu não comentava<br />
esse assunto<br />
com ninguém porque<br />
sabia que isso<br />
seria abominado,<br />
mas não evitava<br />
que eu gozasse.<br />
Creio que era uma<br />
graça. Eu fruía isso<br />
intensamente. Lembro-me de<br />
que em nossa casa havia um jardim e<br />
uma área desocupada muito grande<br />
em volta. Era um jardim característico<br />
daquele bairro, bastante bem cuidado,<br />
com muitos tico-ticos e outros<br />
passarinhos. O terraço da casa que<br />
dava para o jardim era agradável.<br />
Cada um tem seu temperamento.<br />
Eu levava alguma boa coisa para<br />
comer no terraço – para mim, comer<br />
sempre fez parte do bem-estar.<br />
E comia ali ao ar livre, sentindo, por<br />
exemplo, a minha pureza e comparando<br />
com a agitação: a Fulana telefonou,<br />
ela vem, vai acontecer algo, ela está<br />
gostando de outrem e não de mim…<br />
Mas que calma, que calma eu tinha!<br />
Não tem nada dessa porcaria. Que<br />
ela goste de quem quiser, eu estou cuidando<br />
de mim, a coisa é outra, não é<br />
28
essa droga. Ou então: Fulano ganhou<br />
um automóvel. Eu vivo bem sem automóvel.<br />
Eu sou eu; vivo de mim. Mas<br />
a fruição que eu tinha aí, e substituía o<br />
automóvel e a Fulana, era calma.<br />
O saltitar dos tico-ticos<br />
O homem precisa também cogitar,<br />
que é uma coisa eminente da alma.<br />
E o jardim era muito propício<br />
não só para cogitar, mas fluir os prazeres<br />
pequenos e inocentes da vida.<br />
Por exemplo, lá havia bastantes tico-ticos.<br />
Eu ouvia falar dos tico-ticos<br />
como passarinhos muito comuns,<br />
que não valem nada, como gato de<br />
goteira. E os tico-ticos chegavam até<br />
o parapeito do terraço, que era largo,<br />
e saltitavam em cima. Vendo-os,<br />
eu de repente tive a minha atenção<br />
muito atraída para a saltitância alegre<br />
deles, os pulinhos que davam. Eu<br />
não gostava de pular, mas o tico-tico<br />
tinha um peso para carregar muito<br />
menor do que o meu.<br />
Depois comecei a prestar atenção<br />
nas penas do tico-tico: achei o jogo<br />
de cores muito bonitinho. Então<br />
passei a notar que os movimentos<br />
dele eram também graciosos, e que o<br />
tico-tico é todo muito proporcionadinho,<br />
uma verdadeira joia.<br />
Vinha-me uma alegria em observar<br />
isso e um comprazimento em<br />
ver naquela natureza, que ainda era<br />
da São Paulinho, o tico-tico saltitando.<br />
Mas, ao mesmo tempo, uma coisa<br />
empanou a minha cogitação: como<br />
eram estúpidos os outros que julgavam<br />
os tico-ticos tão banais. Nunca tinham<br />
tido a independência, nem critério,<br />
para perceber<br />
Retorno do<br />
Bucentauro ao cais<br />
pelo Palácio Ducal<br />
como o tico-tico pode<br />
ser interessante,<br />
bonitinho.<br />
E daí me afluíram<br />
ao espírito todas<br />
as minhas diferenças<br />
em relação<br />
aos colegas, e as lutas<br />
com eles, o que<br />
era penoso e irritante.<br />
Eu pensei: “Não<br />
é a hora de cogitar<br />
nisto. Pensarei<br />
no tico-tico.” Então<br />
mandei embora<br />
aquela reflexão e<br />
continuei a comer e<br />
olhar para o tico-tico.<br />
É a calma.<br />
Aqui se poria,<br />
muito de passagem,<br />
uma questão:<br />
É possível uma reconquista<br />
da calma?<br />
Em geral, a<br />
perda da calma e,<br />
portanto, da temperança,<br />
se deu a<br />
partir da ideia de<br />
que, forçando a<br />
fruição a ir a um paroxismo por meio<br />
do exagero do que ela apresenta, a<br />
pessoa gozaria mais incessantemente.<br />
Esse foi o erro, a mentira de satanás.<br />
Nós tínhamos essa calma e, se<br />
não forçássemos nada, possuiríamos<br />
tudo. Forçando, nos arrebentamos.<br />
Essa calma pode conservar-se diante<br />
de uma coisa sumamente apetecível?<br />
A rigor pode, mas é preciso notar<br />
que as coisas muito apetecíveis levam<br />
o homem a não querer depois as menos<br />
apetecíveis. É necessário, portanto,<br />
ter um certo cuidado. Para isso, eu<br />
também, graças a Nossa Senhora, sentia<br />
muita facilidade, porque havia um<br />
lado no meu temperamento por onde<br />
o sumamente apetecível me cansava<br />
quando durava pouco. E eu tinha vontade<br />
de voltar ao normal.<br />
Sonhando ser ovacionado<br />
no Viaduto do Chá<br />
Por vezes, a criança, antes de se<br />
dar conta do mal da coisa, tem sonhos<br />
de olhos abertos. Lembro-me de sonhar<br />
– é ridículo, mas sonhei com isso!<br />
– como seria se na minha vida obtivesse<br />
uma grande vitória e houvesse<br />
uma multidão me ovacionando.<br />
Para mim o ideal punha-se assim:<br />
Havia um bonito hotel em São<br />
Paulo de onde se divisava o Viaduto<br />
do Chá. Então imaginava o viaduto<br />
cheio de uma multidão e eu, em<br />
uma arcada grande que dava para<br />
um salão interno, aparecendo para<br />
receber a ovação da multidão. Mas<br />
eu comendo uma refeição estupenda<br />
sozinho e sabendo que o pessoal<br />
chegaria para me ovacionar em certo<br />
momento. Via-me, então, saindo<br />
um instante, recebendo aquela ovação<br />
e depois me esquivando para poder<br />
continuar o meu jantar sozinho.<br />
E a parte do jantar depois da aclamação<br />
era mais agradável do que a<br />
ovação ou o prelibar a ovação que<br />
viria. Porque a coisa passou, a ovação<br />
veio, ganhei aquilo, e volto para<br />
a minha calma.<br />
29
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
É preciso dizer que na ovação não<br />
entrava delírio nenhum. Tratava-se<br />
de vê-la como uma constatação de<br />
que eu tinha merecido aquilo por<br />
uma coisa muitíssimo grande que<br />
fizera, e fora reconhecida pelos<br />
outros. Havia aquela permuta<br />
de afeto com um reconhecimento<br />
que me engrandecia<br />
aos olhos de Deus. Entrava<br />
um pouco o amor-próprio<br />
também, mas não era<br />
nenhum delírio. O que estava<br />
presente mais do que tudo<br />
era o prazer gastronômico.<br />
Conto isso para explicar um<br />
pouquinho o que é morar na<br />
calma e como alguém deveria<br />
construir o seu plano de felicidade<br />
terrena.<br />
Evidentemente, esse sonho era<br />
perigoso e eu o abandonei porque<br />
percebi que poderia facilmente degenerar<br />
para outra coisa, que era o<br />
inebriar-me com as multidões; e levaria<br />
à vaidade. Mas Nossa Senhora<br />
me ajudou e não cheguei até lá.<br />
Secundo Pia (CC3.0)<br />
Necessidade do sofrimento<br />
Deve-se dizer o seguinte: esse estado<br />
de alma ligado à inocência não<br />
se mantém sem que em outras circunstâncias<br />
da vida a pessoa sofra, e<br />
sofra muito. Quer dizer, essa calma<br />
não se sustenta se, ao mesmo tempo,<br />
a propósito de outros temas ou<br />
aspectos, a pessoa não sofra. Esse é<br />
um ponto capital.<br />
Se o ser humano não gasta sua vitalidade<br />
no esforço, na luta, no trabalho<br />
e, portanto, em coisas que o<br />
fazem sofrer, ele borbulha demais<br />
e extrapola. É mais ou menos como<br />
uma pessoa que não pode ficar sem<br />
se mover, porque aquela vitalidade<br />
represada produz efeitos danosos no<br />
organismo; assim também não pode<br />
permanecer nesse estado sem passar<br />
por dores enormes, suportando dentro<br />
da calma, num outro sentido da<br />
palavra, isto é, em meio a ameaças<br />
Santo Sudário<br />
ou a dores atuais aguentar deliberadamente,<br />
pondo-se dentro do sofrimento<br />
e cuidando de viver.<br />
Por fim, resta a pergunta: Essa<br />
calma pode ser recuperada? A resposta<br />
é simples: Com a oração sim,<br />
sem a oração não. Porém, ela deve<br />
ser profundamente desejada, considerada<br />
como uma meta da vida espiritual.<br />
Eu não sei a que grandeza<br />
chegaria o gênero humano se tantas<br />
capacidades de tantas pessoas não<br />
se perdessem em torcidas inúteis, e<br />
os recursos pessoais fossem todos<br />
aproveitados dentro dessa calma.<br />
Seria uma coisa fantástica!<br />
Figura comunicativa da calma<br />
por excelência: Nosso Senhor Jesus<br />
Cristo! Aquilo é a calma, em todos<br />
os sentidos e gradações possíveis<br />
da palavra. Ele o tempo inteiro teve<br />
calma, não deixou de sentir calma. E<br />
a figura d’Ele – inclusive o sudário<br />
de Turim – comunica calma.<br />
A calma de Nossa Senhora<br />
Toda solenidade implica em calma.<br />
É, aliás, uma das muitas razões<br />
pelas quais a Revolução Industrial se<br />
revoltou contra as solenidades, as cerimônias,<br />
o trato cerimonioso, respeitoso.<br />
O respeito é, dentro da calma,<br />
a constatação de um valor maior e<br />
dá origem à homenagem.<br />
Para encerrar esta parte em<br />
que tratamos da verdadeira<br />
calma, eu recomendaria que<br />
todos pedissem para si a Nossa<br />
Senhora uma calma como<br />
Ela e Nosso Senhor tiveram.<br />
Ao receber a Anunciação<br />
do Anjo, a Santíssima Virgem<br />
ficou perplexa, deu seu assentimento<br />
e, ato contínuo, concebeu<br />
do Espírito Santo. Se estava próxima<br />
a hora do almoço, Ela se levantou<br />
e principiou a fazer a refeição<br />
com toda a calma. E, ao mesmo<br />
tempo em que, por exemplo, preparava<br />
ovos para São José e para Si mesma,<br />
começava a entrar em uma oração<br />
altíssima com o Verbo de Deus,<br />
presente dentro d’Ela. Essa é a calma!<br />
A alma perturbada é aquela que<br />
perdeu o leme e não sabe para onde<br />
voltar-se, e é sacudida por ventos<br />
desordenados que ela não consegue<br />
dirigir. Nosso Senhor, no Horto das<br />
Oliveiras, não teve perturbação.<br />
A falsa calma<br />
Passemos agora a tratar da falsa<br />
calma para fazer a distinção entre<br />
esta e a verdadeira calma.<br />
Essa calma que estou descrevendo<br />
é cheia de frescor e de mobilidade<br />
para aceitar a variedade, sem ficar<br />
atarraxada numa determinada coisa,<br />
com exclusão de outras. Uma espécie<br />
de flexibilidade de toda a alma, por<br />
onde, diante de tudo o que acontece,<br />
vai aceitando ou recusando e se modelando<br />
na alegria e no bem-estar da<br />
vida. Essa é a calma boa.<br />
A calma ruim tende para qualquer<br />
coisa de melancólico, de amuado, de<br />
fechado e de desconfiado, numa atitude<br />
perante a vida como quem diz:<br />
“Vida, tu és tal que perante ti eu só<br />
30
tenho uma posição, é a da defesa. Fecho<br />
as portas e as janelas, não quero<br />
que tu entres na minha impassibilidade,<br />
porque tudo teu me faz sofrer. E<br />
é só por esta forma que eu consigo viver.<br />
Portanto não sinto nada, não sofro<br />
nada, não me alegro com nada,<br />
para não entrar no teu jogo.”<br />
É uma recusa da vida e, se quiserem,<br />
uma recusa de Deus. Recuso<br />
tudo! Isso é errado.<br />
Alguém me diria: “Não tenho<br />
meios de evitar o excesso dos apegos,<br />
a não ser assim.” E eu responderia:<br />
“Meu filho, então conserve isto que<br />
é menos difícil de combater do que o<br />
excesso dos apegos, mas vamos ir diminuindo<br />
este excesso dos apegos,<br />
até poder desembaraçar-se de dentro<br />
desta cadeia para o fluxo normal da<br />
vida!” A pessoa está num sarcófago.<br />
Não me parece a forma mais fácil<br />
de combater os apegos. É apenas para<br />
subtrair uma má solução, gradualmente,<br />
com sabedoria, para conseguir<br />
uma solução boa. Se for eliminar<br />
de uma vez, pode cair num excesso.<br />
Fazer aos poucos, mas tem que fazer.<br />
Acontece uma coisa boa, aceita-se;<br />
vem algo ruim, fica-se desagradado;<br />
não acontece nada, não se fica amuado,<br />
mas se mantém<br />
flexível a tudo.<br />
É como aquele movimento<br />
do barco<br />
sobre as ondas que<br />
vão de um lado para<br />
outro dentro de um<br />
porto, que em francês<br />
se diz ballottage.<br />
Devemos nos deixar<br />
ballotter pela vida.<br />
Essa posição fria<br />
diante da vida equivale<br />
à ideia gnóstica<br />
de que a Criação<br />
foi um mal. Aliás, os<br />
adeptos dessa teoria<br />
não têm a ideia da<br />
Criação e sim a de<br />
que o homem é uma<br />
partícula que se desprendeu<br />
de uma divindade, mas não<br />
deveria ter-se desprendido. Isso foi<br />
um desastre nesse deus e, uma vez<br />
que eu nasci desse desastre, o que devo<br />
querer agora é manter-me em uma<br />
espécie de nirvana ou de nada, até o<br />
momento feliz em que eu possa me<br />
reincorporar na divindade.<br />
Devemos lutar por uma<br />
outra ordem de coisas<br />
Se considerarmos a alma católica,<br />
enquanto for consoante com a Santa<br />
Igreja, ela nunca será assim. Entretanto<br />
se não for fiel, ela poderá passar<br />
para a posição protestante à maneira<br />
dos britânicos ou dos prussianos, mas<br />
somente como uma manobra para diminuir<br />
em si as dores e não ter que<br />
enfrentá-las. Portanto, uma manobra<br />
parecida com a do budismo, mas sem<br />
a mentalidade dos budistas nem o inteiro<br />
desejo de deixar a vida e de se<br />
reduzir à imobilidade completa. Pelo<br />
contrário, poderá ter o desejo feroz<br />
de ganhar dinheiro e de construir,<br />
por exemplo, o Império Britânico, de<br />
se vestir bem, e manter essa posição<br />
diante de grandes infortúnios: não os<br />
sentir e conservar-se impassível. Lord<br />
Anunciação - Basílica Santa Maria del popolo, Roma, Itália<br />
Nelson, por exemplo, ao falecer, procuraria<br />
morrer assim. Já o Churchill<br />
não. Este era muito mais vivão, inteiramente<br />
diferente. A fleuma britânica<br />
tem muito disso que estamos comentando.<br />
A alma faz uma pequena<br />
operação parecida com a do budismo,<br />
por razões psicológicas análogas,<br />
mas com fundamentos e métodos<br />
doutrinários diferentes.<br />
Na degringolada da Revolução<br />
Industrial que estamos presenciando<br />
em nossos dias, isso vai se tornando<br />
patente. O despojamento gradual<br />
de tudo aquilo em que a pessoa pôs<br />
o prazer de sua vida tem que produzir<br />
necessariamente a impossibilidade<br />
completa de reagir e, consequentemente,<br />
uma resignação dentro da<br />
qual se fica cuidando de levar, tanto<br />
quanto possível, uma vidinha arranjada.<br />
A alegria desapareceu. Isso<br />
produz pessoas que, ao longo do caminhar<br />
da existência, ficam completamente<br />
surradas e perdem a reatividade<br />
diante da vida.<br />
A meu ver, o único jeito de reverter<br />
esse processo seria suscitar o maior<br />
número possível de almas inocentes<br />
que não vão dentro dessa onda. Contudo,<br />
eu me pergunto: Se houvesse<br />
uma pequena cidade<br />
na qual todos fossem<br />
inocentes e levassem,<br />
na calma, uma<br />
vida orgânica, haveria<br />
turismo para ver<br />
aquilo? Creio que<br />
não, porque as pessoas<br />
preferem a situação<br />
atual. Não obstante,<br />
devemos lutar<br />
até o fim por uma<br />
outra ordem de coisas,<br />
pela certeza de<br />
que Nossa Senhora<br />
premiará essa luta<br />
com uma interferência<br />
angélica. v<br />
(Extraído de<br />
conferência de<br />
25/9/1986)<br />
Gabriel K.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
GuidoR (CC 3.0)<br />
Um hino a<br />
Nossa Senhora<br />
Gabriel K.<br />
A Catedral de Notre-Dame é tão bela que<br />
se pode olhá-la indefinidamente, cheio de<br />
enlevo, de veneração e de ternura. Quem a<br />
aprecia muito passa a amar a ordem sublime<br />
das coisas, que conduz ao amor de Deus.
Dietmar Rabich (CC 3.0)<br />
N<br />
otre-Dame de Paris. Eis a catedral de uma beleza<br />
perfeita, alegria da Terra inteira!<br />
Para sentir o equilíbrio da fachada, notemos<br />
que há três partes distintas. Uma vai dos portais de<br />
entrada e termina com a galeria enorme de estátuas, as<br />
quais dão as costas para um terraço que vou analisar daqui<br />
a pouco.<br />
Um resplendor em torno da<br />
Santíssima Virgem<br />
Percebe-se ali o corrimão do terraço e se vê, logo<br />
atrás, uma imagem de Nossa Senhora sustentando nos<br />
braços o Menino Jesus. É a segunda parte do edifício,<br />
que vai do terraço até uma série de colunas que separa<br />
o terraço da torre. Há uma grande rosácea central, toda<br />
feita de vitrais. Nela nota-se uma parte mais central, delimitada<br />
por um trabalho de pedra. Dentro há um círculo<br />
menor ainda, onde está a cabeça de Nossa Senhora. A<br />
ideia que fica insinuada é a seguinte: toda essa rosácea é<br />
o resplendor da cabeça de Maria Santíssima. E sendo a<br />
rosácea o centro da catedral, a ideia que fica meio confusa,<br />
mas realmente verdadeira, é que a catedral é um hino<br />
a Nossa Senhora.<br />
Contrastes harmônicos na relação entre<br />
os diversos elementos da fachada<br />
Ela tem nos braços o Menino Jesus e, com o mais inefável<br />
sorriso de Rainha e de Mãe, olha para seu Divino<br />
Filho. A alma fica assim transportada de entusiasmo<br />
e com vontade de subir. O que ela encontra em cima?<br />
Uma série de colunas, mas que dão para o vazio!<br />
Essas colunas têm uma função que parece um disparate:<br />
sendo tão frágeis, elegantes e harmoniosas, parecendo<br />
irmãs que se tocam pelas mãos, elas sustentam o peso<br />
de duas torres. Porém, ninguém tem a impressão de<br />
que as torres vão esmagar a colunata. Parece tão natural,<br />
com um contraste tão agradável, que se uma pessoa mais<br />
atenta não nos mostrasse, talvez nem notaríamos.<br />
Por detrás, vemos a flecha que se ergue, bem no meio<br />
das duas torres. O resto é o céu...<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
É certo que não foi terminada a construção das torres,<br />
as quais teriam uma parte mais alta. Ninguém pode<br />
imaginar como seria, nem ousa completar uma coisa que,<br />
quando se olha, tem-se a impressão de não pedir complemento.<br />
Onde está o talento para completar uma obra<br />
admirável como essa? Não foram encontradas as plantas<br />
que os arquitetos deviam seguir, ninguém ousou mexer<br />
nisso.<br />
Considerem como a relação desses vários elementos<br />
dá uma impressão de harmonia. Qual? Embaixo, três<br />
portais; o do centro é um pouco maior do que os outros<br />
dois. Mas não se percebe bem, pois é discretíssima a diferença.<br />
Contudo, se os portais fossem da mesma altura,<br />
seriam sem graça.<br />
A ogiva é a nota do andar térreo. O andar de cima começa<br />
com a galeria de estátuas e acaba com a colunata.<br />
No meio há uma rosácea e duas ogivas, uma de cada lado.<br />
Cada ogiva é dividida em duas. E, no ponto em que<br />
as duas se encontram, há outra rosácea.<br />
Assim, o redondo é a nota mais saliente nesse andar,<br />
contrastando com o pontiagudo de tantas outras partes.<br />
Mas observem a harmonia, o bom senso e o equilíbrio de<br />
coisas tão diversas e tão bem reunidas. Notem como fica<br />
leve, quase como um brinquedinho, a estátua colossal de<br />
Nossa Senhora ladeada por duas figuras de Anjos.<br />
Por cima, vê-se a massa enorme das torres, cada uma<br />
com duas notáveis ogivas, onde os sinos tocam gravemente<br />
nas grandes horas do ano litúrgico e, às vezes, nas<br />
grandes horas da História da França, que são as grandes<br />
horas da História do mundo.<br />
A galeria dos reis<br />
DXR (CC 3.0)<br />
Essa galeria com estátuas de reis tem sua história. A<br />
Revolução Francesa, sempre ela mesma, decapitou todas<br />
essas esculturas porque, como os bandidos tinham guilhotinado<br />
o rei e a rainha, quiseram “guilhotinar” também<br />
todos esses reis do Antigo Testamento.<br />
Recentemente, nos alicerces de um banco próximo a<br />
Notre-Dame, quiseram fazer construções e encontraram<br />
essas cabeças, que a Revolução Francesa tinha arrancado,<br />
enterradas no subsolo do banco. Fizeram-se estudos<br />
e verificou-se que foi um homem piedoso, residente nas<br />
cercanias, que enterrou essas cabeças ali, porque ele não<br />
se conformava com essa decapitação.<br />
Dietmar Rabich (CC 3.0)<br />
34
Dietmar Rabich (CC 3.0)<br />
Mark Bonica (CC 3.0)<br />
Veio o dia em que mãos justiceiras tiraram do subsolo<br />
todas essas cabeças e tentaram colocar nos troncos dos<br />
reis. Mas, infelizmente, as autoridades decretaram que<br />
não ficavam bem, não havia meio de prendê-las. Entretanto,<br />
eram belas obras de escultura e foram levadas para<br />
o Museu de Cluny, que é o museu de coisas da Idade<br />
Média.<br />
Miguel Hermoso Cuesta (CC 3.0)<br />
Contemplação que conduz ao amor de Deus<br />
Todas essas coisas tão diversas se unem de um modo<br />
tão tranquilo, mas tão interessante, que se fica olhando<br />
indefinidamente, cheio de enlevo, de veneração e de ternura.<br />
Porém, se colocarmos diante desse monumento um<br />
frenético, um indivíduo que baila essas danças modernas,<br />
nasce uma batalha, porque ou ele, à força de gostar do<br />
monumento, perde o frenesi, ou recusa a santa influência<br />
do monumento e o abandona. Entretanto, para almas<br />
predispostas a aceitar essa tranquilidade, essa estabilidade,<br />
a catedral quer dizer enormemente! Quem começa<br />
a gostar daquilo, por novato que seja, passa a amar a ordem<br />
sublime das coisas que conduz ao amor de Deus. v<br />
(Extraído de conferência de 28/6/1986)<br />
BrokenSphere (CC 3.0)<br />
35
Rainha da<br />
Gabriel K.<br />
Contra-Revolução<br />
Nossa Senhora enquanto Rainha<br />
dos Anjos é a Rainha da Contra-Revolução.<br />
Ela dirige a<br />
Contra-Revolução dos Anjos que atuam<br />
sobre nós e os acontecimentos da<br />
Terra, de maneira a se passar tudo como<br />
Ela quiser.<br />
Maria Santíssima tem todos os matizes,<br />
todas as glórias, todas as cores,<br />
todas as belezas da Contra-Revolução.<br />
É a Imaculada Conceição esmagando<br />
a cabeça da serpente, a Rainha<br />
dos Anjos que comanda o exército angélico,<br />
como o exército dos Santos – Regina<br />
Sanctorum Omnium, Rainha de todos<br />
os Santos. É a Rainha dos contrarrevolucionários,<br />
nossa Mãe, que nos<br />
guia e nos ama especialmente por esta<br />
razão. E Nossa Senhora é o arquétipo<br />
da virtude dos anjos que, tendo<br />
decaído, terminaram por ser lançados<br />
no Inferno, e que devemos substituir<br />
no Céu. Assim, há um nexo<br />
especial entre nós e Ela.<br />
(Extraído de conferência de<br />
28/5/1988)<br />
A Imaculada Conceição - Igreja<br />
São Francisco dos Penitentes,<br />
Rio de Janeiro, Brasil