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Revista Curinga Edição 03

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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<strong>Revista</strong> Laboratório | Comunicação Social - Jornalismo | UFOP | Ano 1 | Outubro de 2012<br />

nº <strong>03</strong><br />

Brasil, qual é o seu negócio?<br />

Pág. 18<br />

Novos Campos do Jornalismo Esportivo pág. 06 / O Debate Além do Uso pág. 10 / A Estética da<br />

Gambiarra pág. 14 / Invisíveis para Quem? pág. 24 / Certas Canções pág. 28 / Artes Marginais pág. 31<br />

outubro 2012<br />

1


2 outubro 2012


E<br />

Em 22 de abril de 1500, desem-<br />

no Brasil treze caravelas<br />

D I T O R I ALbarcavam portuguesas lideradas pelo Senhor<br />

Pedro Álvares Cabral. Por aqui, havia<br />

uma grande população de nativos,<br />

motivo pelo qual muitos historiadores consideram incorreto o termo descobrimento após essa<br />

data. Os primeiros contatos entre conquistadores e nativos foram de estranheza e de aparente<br />

amizade. Depois desse momento, a vida dos “brasileiros” nunca mais foi a mesma.<br />

As transformações que aconteceram no Brasil após 1500 não se limitam à definição do território<br />

e o crescimento econômico e populacional do continente sul-americano. A economia brasileira<br />

vive hoje o Sonho do Eldorado do século 21, no ano em que a presidenta Dilma Rousseff reforça<br />

investimentos externos e os empresários brasileiros se destacam no competitivo mercado econômico<br />

mundial, tema central desta edição da <strong>Curinga</strong>. Estaria o Brasil mergulhado em uma onda de<br />

otimismo passageira? As fotos de capa e contracapa desta edição mostram exatamente essa aparente<br />

realidade de inversão entre o novo e o velho mundo. O brasileiro vive totalmente imerso no<br />

capitalismo, a corrupção come solta, as políticas de investimento em educação não funcionam, as<br />

classes emergentes sobem o alfabeto e a qualidade de vida da população parece não ter alterado<br />

de anos pra cá. O país do futuro se prepara para decolar, como afirmou a recente capa da revista<br />

britânica The Economist. Apertem os cintos, ou optem por ir a cavalo mesmo. De repente, nem é<br />

preciso ir tão longe para encontrar a riqueza novamente.<br />

“Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente”.<br />

Leandro Sena<br />

<strong>Curinga</strong> é uma publicação da disciplina Laboratório Impresso II - <strong>Revista</strong> produzida pelos alunos do<br />

curso de Jornalismo da UFOP - Universidade Federal de Ouro Preto.<br />

Professor e Jornalista Responsável<br />

Projeto Gráfico:<br />

Fabrício Marques - o4663/MG<br />

Allãn Passos<br />

Professora de Planejamento Visual<br />

Lucas Lameira<br />

Priscila Borges<br />

Luiza Lourenço<br />

Coordenação de Pautas<br />

Simião Castro<br />

Prof. Ruleandson do Carmo<br />

Professor de Fotografia<br />

Anderson Medeiros<br />

Capa, Sumário e Expediente - <strong>Edição</strong>/Arte: Eduardo Almeida, Leandro Sena, Lincon Zarbietti, Marcelo Sena. Fotografia: Lincon<br />

Zarbietti. Modelos: Sarah Gonzaléz, Iago Rezende. Trocando cartas com - Texto: Allan Almeida, Alyson Soares, Érica Pimenta,<br />

Josie Oliveira. <strong>Edição</strong>/Arte: Eloiza Leal, Eugene Francklin, Maria Aparecida Pinto. Transborda - Texto: Elisabeth Camilo, Eloiza Leal,<br />

Eugene Francklin, Maria Aparecida Pinto. <strong>Edição</strong>/Arte: Ana Carolina Meirelles, Camila Dias, Natália Goulart. Outros Campus - Texto:<br />

André Mapa, Lucas Aellos, Marcelo Sena, Tábata Romero. <strong>Edição</strong>/Arte: Alyson Soares, Bárbara Andrade, Gracy Laport. Materia de<br />

Capa - Texto: Beatriz de Melo, Bárbara Andrade, Gracy Laport, Lucas Lima, Suellen amorim. <strong>Edição</strong>/Arte: Allan Almeida, André Mapa,<br />

Erica Pimenta. Retina - Texto e Foto: Camila Dias, Natália Goulart. <strong>Edição</strong>/Arte: Deiva Beatriz, Izabella Magalhães, Suellen Amorim.<br />

Mochilão: Texto: Ana Carolina Meirelles, Deiva Beatriz, Izabella Magalhães. <strong>Edição</strong>/Arte: Beatriz de Mello, Lucas Aellos. Refrão,<br />

Poltrona, Prólogo, Caracteres - Texto: Eduardo Guimarães, Leandro Sena, Lincon Zarbietti. <strong>Edição</strong>/Arte: Elisabeth Camilo, Lucas<br />

Lima, Tábata Romero.<br />

Endereço<br />

Rua do Catete 166, Centro,<br />

CEP 35420-000, Mariana - MG<br />

Tiragem: 1.500 exemplares<br />

Outubro 2012<br />

Impressão: MJR Editora Gráfica<br />

X E I N E<br />

E P D E T


Transborda<br />

página 10<br />

Retina<br />

página 24<br />

Curtas<br />

página 31<br />

4 outubro 2012


Mochilão<br />

página 28<br />

página 14<br />

Outro Campus<br />

Trocando Cartas Com<br />

página 6<br />

outubro 2012<br />

5


Novos campos do<br />

Jornalismo Esportivo<br />

Texto Allan Almeida, Alyson Soares e<br />

Érica Pimenta<br />

<strong>Edição</strong> Gráfica Eugene Francklin<br />

O Brasil está prestes a receber dois eventos de grande repercussão<br />

internacional: a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Investimentos em<br />

infraestrutura e em formação de atletas têm sido feitos pelo governo e<br />

entidades ligadas ao esporte, porém outro ponto passa despercebido em meio<br />

ao destaque dado aos eventos em si: a preparação da imprensa brasileira.<br />

O Esporte é uma das editorias que mais despertam o interesse de alunos dos<br />

cursos de jornalismo atualmente no Brasil. Muitos desses futuros jornalistas<br />

esportivos buscam esse caminho aliados à paixão por determinada equipe<br />

ou esporte, adquirida ainda na infância. Mas o que espera nossos jovens<br />

profissionais nessa preparação para dois eventos tão badalados?<br />

Os desafios a serem enfrentados pelos novos profissionais é retratado neste<br />

bate papo super descontraído com o jornalista e comentarista do SporTV e da<br />

Rádio CBN de São Paulo, Mário Marra. Paulista, mas com coração mineiro, Marra<br />

se descreve em seu blog como leitor, consumidor, ouvinte, telespectador,<br />

apaixonado, curioso, crítico e refém do futebol, além de torcedor de todas as<br />

seleções e times que mostrem algo além de “jogar bola”.<br />

6 outubro 2012


FOTO: LINCON ZARBIETTI<br />

<strong>Curinga</strong>: Por que o Jornalismo esportivo<br />

ainda é tão querido e visado pelo público<br />

universitário e/ou recém-formado?<br />

Mário Marra: Porque ele exerce o fascínio.<br />

Muitas vezes o aluno tem um time de coração<br />

ou o envolvimento com algum esporte e surge<br />

a oportunidade de trabalhar perto do time de<br />

coração, perto do esporte que gosta. E às vezes<br />

(a editoria) não exige uma especialização mais<br />

profunda, embora eu discorde um pouco, mas<br />

não exige. São poucos os cursos de pós-graduação<br />

em jornalismo esportivo. Mas esse não é o<br />

principal fator, o principal fator é que o esporte<br />

trabalha muito próximo do ideal da criança e do<br />

adolescente que têm o time de coração e que têm<br />

o esporte como algo diferente, daí faz jornalismo<br />

e logo pensa em juntar a paixão com o trabalho.<br />

C: Seguindo por essa linha, você acredita<br />

que a pessoa, ao entrar nessa área apenas<br />

pela paixão por determinado time ou esporte,<br />

poderá ter comprometida sua imparcialidade<br />

ou análise em alguma cobertura?<br />

M: Pode atrapalhar e eu acho que atrapalha<br />

sim. Mas também não podemos criar um bicho de<br />

sete cabeças. Porque tem paixão também nos veterinários,<br />

nos médicos, no advogado, no professor,<br />

sem dramas. Eu acho que pode comprometer<br />

a paixão sobre um determinado time de futebol<br />

assim como a paixão sobre um determinado partido<br />

político. Mas falar que isso é problema, não<br />

chega a tanto. Antes da paixão existe a ética e<br />

tem muita gente que prefere não passar pelo crivo<br />

da ética, não usá-la. Eu acho possível você ser de<br />

um partido e não concordar com suas decisões,<br />

assim como é possível você ser atleticano e cruzeirense<br />

e ter uma postura crítica sobre seu time.<br />

C: Existem ainda profissionais que escondem<br />

sua paixão por determinado clube por<br />

medo de passarem pelo olhar de desconfiança,<br />

principalmente pelos torcedores rivais?<br />

M: Claro que existe. Eu compreendo isso, porque<br />

hoje em dia a gente vive em meio à violência.<br />

Márrio Marra<br />

na Semana de<br />

Comunicação<br />

Ufop 2010<br />

outubro 2012<br />

7


A gente sai do estádio às vezes uma da manhã,<br />

com rótulo de que você é atleticano, corintiano<br />

ou flamenguista e dá de cara com a torcida<br />

do Vasco, do Palmeiras ou do Cruzeiro. Você precisa<br />

pensar nisso também, que do outro lado você<br />

não poderá encontrar bom senso. Você tem que<br />

esperar o que há de pior e infelizmente é o que<br />

acontece, não estou falando nenhuma novidade.<br />

Isso é uma opinião pessoal, eu prefiro acreditar<br />

na minha opinião embasada na análise sobre os<br />

fatos do que na embasada pela paixão. Eu prefiro<br />

acreditar mais na minha opinião e não no mito de<br />

eu não posso falar que sou “o tal” para não ficar<br />

com uma indisposição com a torcida adversária.<br />

C: Quais os preconceitos que ainda existem<br />

no jornalismo esportivo com relação ao trabalho<br />

do profissional?<br />

M: Algumas editorias acham que o jornalista<br />

esportivo não sabe escrever, que ele só está ali<br />

por paixão, que não é uma coisa séria e é mais<br />

entretenimento. Vou ser sincero, tem muita gente<br />

que não sabe escrever mesmo, fez faculdade, mas<br />

não sabe muitas coisas da língua portuguesa. Mas<br />

isso não é um “privilégio” do jornalista esportivo.<br />

Acontece também em outras áreas. Isso existe<br />

mesmo no jornalismo, devido principalmente à<br />

falta de preparo de muitos colegas.<br />

C: Ainda é forte o mito no Brasil de que<br />

Jornalismo esportivo (principalmente em<br />

TV aberta) se resume em futebol? Como os<br />

outros esportes têm sido trabalhados nas<br />

coberturas esportiva?<br />

M: O grosso do jornalismo esportivo no Brasil<br />

é em cima do futebol, não tem como falar que<br />

não é verdade. Os outros esportes entram em<br />

segundo caderno ou nos espaços que sobram (nos<br />

veículos), muito disso em função do que gera<br />

mais dinheiro. A publicidade é maior nas transmissões<br />

de futebol, nas páginas que dão maior<br />

destaque no futebol. Cabe a nós pensarmos algo<br />

diferente daqui até as Olimpíadas de 2016. Tem<br />

muita gente na faculdade atualmente que não<br />

entende uma luta Greco-Romana e precisa se preparar.<br />

Quem está se formando agora tem quatro<br />

anos para pegar alguma coisa sobre esses esportes<br />

(esportes olímpicos) e se inserir nas coberturas.<br />

C: Até pouco tempo não víamos tanto destaque<br />

ao MMA nas coberturas brasileiras, mas<br />

atualmente todas as emissoras de TV aberta<br />

falam algo a respeito do esporte, fruto de<br />

resultados positivos de lutadores brasileiros<br />

na competição. Você acha que alguns esportes<br />

ganham destaque nos cadernos esportivos<br />

por estarem em evidência no momento?<br />

M: Por tendência, sim, e aí o futebol supera<br />

isso, ele é atemporal. Todo ano você vai vê-lo ali.<br />

É uma moda que chegou em 1894 e pegou corpo<br />

nas coberturas brasileiras em 1910 com a Fanfulla.<br />

Em 1908 já tínhamos times em Minas, o<br />

Atlético e o Vila Nova, criavam-se times por todo<br />

o Brasil e isso foi se espalhando como uma praga.<br />

Futebol não é modismo e, sim, algo consolidado,<br />

mas as outras transmissões esportivas, até por<br />

não serem consolidadas, elas vão muito aonde parece<br />

ter fumaça. O MMA, por exemplo, parece ter<br />

fumaça, então vamos lá cobrir. O vôlei passou por<br />

seu grande momento, embora eu ache que ele já<br />

esteja consolidado. Ele pode estar mal no modismo,<br />

mas parece dar uma subida novamente.<br />

C: E essa história de que o jornalista constrói<br />

e destrói carreiras, equipes etc. Como é<br />

tratada essa questão de “jornalismo esportivo<br />

e a construção de heróis e vilões”?<br />

M:Infelizmente isso<br />

é verdade. Há uma<br />

falta de respeito e<br />

de resposabilidade<br />

de muitos de nós.<br />

Às vezes é mais<br />

fácil reproduzir do<br />

que investigar. Eu<br />

até brinco que seria<br />

melhor se nós contratássemos<br />

um papagaio<br />

do que um jornalista. Se for<br />

pra reproduzir o que os outros falam,<br />

basta um papagaio. É muito mais fácil<br />

transformar algum mito em verdade do<br />

que você pesquisar.<br />

C: Atualmente está se tornando mais forte<br />

a mistura de Jornalismo e entretenimento<br />

nos programas esportivos. Exemplos são<br />

o Globo Esporte com Thiago Leifert e o Band<br />

Esporte Clube. Esses exemplos têm sido copiados,<br />

chegando a se tornar “padrões”. Até<br />

que ponto isso é viável?<br />

M: Não dá para negar que é entretenimento.<br />

O que não deveria ser é somente isso. Eu prefiro<br />

acreditar que o entretenimento faz parte de uma<br />

estratégia de mercado e que o jornalismo esportivo<br />

prevalece. Mas como infelizmente muitos de<br />

8<br />

outubro 2012


nós estamos viciados com tudo isso, com preguiça<br />

de pensarmos algo diferente e com conteúdo, pegamos<br />

o caminho mais fácil que é o caminho do<br />

entretenimento. Eu acho bom em alguns momentos,<br />

acho engraçado, mas também acho desnecessário<br />

em outros, como naquela brincadeira que<br />

fizeram com o Barcos do Palmeiras, comparando<br />

ele com o Zé Ramalho. Ah, por favor, vamos falar<br />

de coisas mais sérias que acrescentem.<br />

C: Até que ponto o entretenimento é aceito<br />

na cobertura jornalística?<br />

M: É aceito como alguma coisa que vem de<br />

cima, como estratégia de mercado para levantar<br />

a audiência do programa. A rádio em que eu trabalho,<br />

por exemplo, não adota essa postura. Tem<br />

um programa, o “Quatro em Campo” que adota<br />

uma linguagem mais leve, mas não chega a ser<br />

entretenimento. Muitos programas de entretenimento<br />

são aceitos, mas existem jornalistas que<br />

não gostam, assim como eu. Aceito, vejo, mas na<br />

verdade tolero.<br />

C: Na última Copa vimos a adoção das redes<br />

sociais na cobertura. Como essas novas<br />

mídias irão se inserir no evento de 2014 e<br />

também nas Olimpíadas de 2016?<br />

M: Isso é um caminho sem volta. Hoje todos<br />

temos a oportunidade de pegar a informação com<br />

o jornalista de referência em tempo real, ele pode<br />

receber uma informação exclusiva numa postagem<br />

no Twitter, ao mesmo tempo em que lê<br />

um blog sobre outro assunto. O mundo está<br />

menor, está mais curto. Eu acho que nas Olimpíadas<br />

nos vamos viver isso de uma forma mais<br />

intensa. As redes sociais vão estar cada vez mais<br />

fortes nas Olimpíadas. Eu só espero que o pessoal<br />

tenha mais maturidade nas postagens e também<br />

nos comentários feitos.<br />

C: Como o jornalista multimídia deve se preparar<br />

para essas novas tendências na cobertura<br />

esportiva?<br />

M: O jovem jornalista precisa estar antenado,<br />

entendendo tudo o que está acontecendo, sem esquecer<br />

o bom senso e a ética. Ele tem que buscar<br />

as novidades porque essas coisas acontecem e elas<br />

estreitam caminhos. Hoje você consegue conversar<br />

com o jogador no seu twitter pessoal e obter as<br />

informações de que precisa. Se o jornalista novato<br />

conseguir montar uma boa rede de contatos, ele<br />

sai à frente de muitos, porque ele apresenta fácil<br />

adaptação.<br />

C: E os cursos de jornalismo, como se adéquam<br />

a essas novas mídias?<br />

M: Eu acho que muitas dessas novas tecnologias<br />

as faculdades não sabem explicar muito do<br />

que os alunos já sabem de casa. Eles já praticam<br />

muitas dessas coisas enquanto as faculdades<br />

ainda estão lá quadradonas (sic). As faculdades<br />

estão tentando acompanhar essas novidades,<br />

apesar de essas coisas serem muito pessoais. Tem<br />

gente que vai aprender muito fora da faculdade,<br />

enquanto tem gente que vai usar apenas o que<br />

aprendeu lá.


Drogas: o debate vai<br />

além do uso...<br />

A flexibilização da política global sobre a cannabis é defendida por<br />

diversas esferas da sociedade. Nos últimos anos, somente no Brasil a marcha<br />

da maconha deslocou centenas de pessoas para protestarem a favor de sua<br />

legalização. Apesar desse dado, a regularização ainda é vista como um tabu. A<br />

classificação da substância como ilícita reduz significativamente qualquer tipo<br />

de discussão relacionada ao uso da droga. Nesse contexto, é questionado se o<br />

Estado tem o direito de intervir, outorgando o que deve ser lícito ou temos o<br />

direito de definir qual droga utilizamos em nosso corpo.<br />

De acordo com o 2º Levantamento Nacional de<br />

Álcool e Drogas (Lenad), 1,5 milhão de pessoas<br />

consome maconha diariamente no Brasil. Ainda<br />

assim, a descriminalização da droga no país é vista<br />

com desconfiança pela sociedade. A estudante<br />

de arquitetura Marina (nome fictício), 25 anos,<br />

deu sua primeira tragada aos 16 anos. “Costumo<br />

usar maconha nos finais de semana e não<br />

me considero uma viciada por isso. Desenvolvo<br />

minhas atividades como qualquer outro cidadão,<br />

trabalho, estudo, pago minhas contas e cumpro<br />

os meus deveres”, afirma. Apesar disso, revela<br />

sofrer bastante preconceito.<br />

Uma grande parcela da população considera<br />

o consumo como um ato ilícito e pratica discriminação<br />

contra esse grupo. A Lei nº 11343, no<br />

entanto, não criminaliza o individuo por usar<br />

drogas. Segundo a advogada Kênia Mendes, no<br />

artigo 28 o tipo penal é definido pelos verbos<br />

“adquirir”, “guardar”, “trazer consigo”, “ter em<br />

depósito” e “transportar”; não existe nenhuma<br />

referência ao termo “usar” e “consumir”. Desse<br />

modo, parte da doutrina favorável à descriminalização<br />

da maconha defende a tese de que qualquer<br />

conduta relacionada ao consumo não deve ser<br />

punida.<br />

A falta de precisão sobre a quantidade de<br />

substância que o indivíduo pode portar para ser<br />

tratado como usuário é um aspecto que, segundo<br />

Kênia, está associado à deficiência do artigo que<br />

caracteriza o usuário. Constata-se, dessa forma,<br />

que não há uma discrição na lei, ou seja, uma<br />

classificação detalhada que especifique de forma<br />

objetiva a relação entre porte de drogas, uso e<br />

tráfico.<br />

Embora o documento não apresente o texto<br />

com clareza, a advogada observa que o bom senso<br />

deve imperar sempre. “A descriminalização da<br />

maconha no Brasil não deve se embasar no princípio<br />

da alteridade, no qual ninguém pode ser punido<br />

por fazer mal a si mesmo. Os malefícios das<br />

10 outubro 2012


TEXTO Elizabeth Camilo, Eloiza Leal, Eugene Francklin,<br />

Maria Aparecida Pinto<br />

EDIÇÃO GRÁFICA Ana Carolina Meirelles, Camila Dias,<br />

Natália Goulart<br />

drogas também se estendem à família do usuário<br />

e à sociedade como um todo”, afirma.<br />

Um livro retratando as experiências de uso de<br />

drogas foi a forma como o funcionário público<br />

Wagner de Souza Tito, 44 anos, encontrou para<br />

registrar como a sua condição de usuário interferia<br />

em sua vida familiar e no espaço de trabalho,<br />

por exemplo. Na obra, há o relato de quem<br />

iniciou o consumo aos 18 anos e utilizou todos<br />

os tipos de drogas, exceto as injetáveis. Depois de<br />

sofrer internações diversas e de ser diagnosticado<br />

um risco de morte, ele parou de utilizar as substâncias<br />

ilícitas.<br />

Fora a legislação, existem impasses éticos que<br />

inibem o consumo da cannabis. Somente no Estado<br />

de São Paulo, 3.700 adolescentes são internados<br />

na Fundação Casa em razão do tráfico. Os<br />

dados se tornam ainda mais assustadores quando<br />

verificamos que o Brasil possui 125.744 presos<br />

por tráfico de entorpecentes, segundo a pesquisa<br />

realizada pelo Instituto Avante Brasil. Diante dessa<br />

realidade, Marina optou pelo cultivo da planta<br />

em sua residência.<br />

Nos últimos anos, ativistas de vários países<br />

invadiram os principais pontos das cidades para<br />

protestarem a favor da liberação da maconha e<br />

informar a população sobre os seus benefícios.<br />

Em maio de 2012, a Comissão de Juristas de Brasília<br />

propôs um projeto ao Congresso com o objetivo<br />

de descriminalizar as drogas para o uso pessoal.<br />

A aprovação dessa proposta, vista pela ótica<br />

filosófica dos que defendem a descriminalização<br />

das drogas, representaria, sem dúvida, um aprofundamento<br />

das questões democráticas. Nesse<br />

sentido, Kênia Mendes faz uma comparação com<br />

as conquistas obtidas nesse campo e os direitos<br />

adquiridos pelo movimento contra a homofobia.<br />

“Razões semelhantes de origem religiosa e culturais<br />

impediam a existência de homossexuais, por<br />

exemplo, que continuam sendo criminalizados<br />

em muitos lugares do mundo”, explica.<br />

A advogada ainda ressalta que é majestoso o<br />

discurso de que todos são iguais e passíveis de direitos,<br />

sobretudo, a autodeterminação, porém não<br />

se pode afirmar com absoluta convicção que a<br />

descriminalização das drogas, incluindo a cannabis,<br />

seria uma ação positiva. O Brasil se encontra<br />

distante dos níveis de segurança e educacionais<br />

de países que mantêm uma legislação flexível ao<br />

consumo da maconha, como é o caso da Holanda<br />

e Bélgica. Assim, não podemos concluir que<br />

a liberação das drogas reduziria o tráfico ou se<br />

tornaria um problema de saúde pública.<br />

outubro 2012<br />

11


...e a realidade também<br />

Esse é o remédio<br />

Perda de memória, tontura,<br />

formigamento em alguns<br />

membros, aliados a sensações<br />

de choques elétricos pelo corpo,<br />

indicaram os sintomas de esclerose<br />

múltipla para o publicitário<br />

Gilberto (nome fictício).<br />

A doença de origem crônica é<br />

autoimune e por motivos genéticos<br />

ou ambientais o sistema<br />

imunológico agride o sistema<br />

nervoso.<br />

Para amenizar as dores existentes<br />

no surto da doença, Gilberto<br />

utiliza o imunossupressor<br />

Copaxone. Em sua bula consta<br />

a seguinte informação: “Este<br />

medicamento é indicado para<br />

reduzir a frequência de recidivas<br />

(surtos) nos pacientes com<br />

esclerose múltipla”, ou seja, não<br />

há tratamento eficaz para essa<br />

enfermidade. Devido à persistência<br />

dos sintomas e a ineficácia<br />

da medicação, o publicitário<br />

procurou ajuda médica para indicação<br />

de alguma medida que<br />

reduzisse a intensidade desses<br />

efeitos. Em uma conversa informal,<br />

o neurologista apontou<br />

como uma possível opção o uso<br />

da cannabis. Assim, desde 1998<br />

é usuário de maconha para fins<br />

medicinais. Ele revela que, nos<br />

momentos dos surtos, costuma<br />

dar duas tragadas no “baseado”<br />

e as sensações diminuem consideravelmente.<br />

Renato Filev, biomédico e<br />

doutorando em Neurociências<br />

pela Universidade Federal de<br />

São Paulo (Unifesp) diz que “a<br />

maconha apresenta um grande<br />

potencial medicinal para uma<br />

série de doenças. Sobretudo<br />

na diminuição de espasmos e<br />

dores causadas pela esclerose<br />

múltipla, no alívio de dores com<br />

Foto: Ana Carolina Meirelles<br />

Acima, o café, uma das drogas lícitas; abaixo, a capital da<br />

Holanda, Amsterdã, uma das cidades onde a maconha é<br />

legalizada<br />

Fotos: Eugene Francklin<br />

origem no tecido neural, diminuindo<br />

a náusea e os vômitos<br />

provocados pelas quimioterapias<br />

em decorrência de câncer e<br />

Aids.” Além disso, ressalta que<br />

a cannabis pode ser utilizada em<br />

transtornos psiquiátricos como<br />

depressão e no tratamento das<br />

síndromes Parkinson, Alzheimer<br />

e Huntington.<br />

A recomendação médica<br />

da cannabis não é realizada em<br />

conformidade com os procedimentos<br />

da Agência Nacional de<br />

Vigilância Sanitária (Anvisa): o<br />

órgão possibilita a importação<br />

de fármacos à base de canabinoides<br />

quando há a solicitação<br />

da substância para o tratamento<br />

de certas doenças. O<br />

biomédico, no entanto, afirma<br />

que não existe nenhum registro<br />

dessa espécie na instituição,<br />

isso por que os profissionais da<br />

saúde temem sofrer algum tipo<br />

de represália da comunidade<br />

médica e do Conselho Federal<br />

de Medicina.<br />

“Você só bebeu ou<br />

usou alguma droga?”<br />

Essa pergunta, que parece<br />

ter saído de uma conversa<br />

despojada entre amigos comentando<br />

a festa do último fim de<br />

semana, converge em questões<br />

que não estão explícitas apenas<br />

no ato da fala. Ela mostra que<br />

estamos acostumados com as<br />

drogas lícitas e não as julgamos<br />

drogas, ignorando até seus riscos,<br />

e, muitas vezes, atribuímos<br />

suas conseqüências a outros<br />

fatores.<br />

A partir dessa premissa,<br />

vamos falar sobre essas drogas,<br />

até porque, certamente você,<br />

caro leitor, já usou alguma hoje.<br />

Não? E o seu cafezinho logo de<br />

12 outubro 2012


A (re)apropriação do termo “droga”<br />

A Organização Mundial da Saúde (OMS)<br />

define droga como “qualquer substância não produzida<br />

pelo organismo que tem a propriedade de<br />

atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo<br />

alterações em seu funcionamento”. Entretanto,<br />

o termo “droga” é rico em polissemias e<br />

significações que variam no decorrer da história.<br />

Na Grécia Antiga, usava-se o termo “phármakon”,<br />

que possuía ambiguidade, uma vez que<br />

remetia tanto ao remédio quanto ao veneno. A<br />

etimologia do termo droga que prevalece é a de<br />

origem latina. Drogadicção é o termo que origina<br />

a palavra e pode ser definido como adicção às<br />

drogas. O substantivo adicção relaciona-se ao verbo<br />

designar e pode referir-se ao apego de alguém<br />

por algo.<br />

Já no holandês antigo, “droog” quer dizer seco<br />

ou folha seca. Isso porque, antigamente, os medicamentos<br />

eram manipulados à base de plantas.<br />

Os chás de folhas desidratadas que nunca saem<br />

de moda aproximam essa relação. A vertente<br />

céltica apresentava os termos droug e droch, que<br />

se referiam à má qualidade de algo.<br />

A expressão “droga”, como é reconhecida<br />

hoje, começou a ser usada na Idade Média. Os<br />

franceses foram os primeiros a utilizar a construção<br />

do termo. A palavra drogue referia-se a ingredientes,<br />

remédios ou tinturas, mas ganhou novo<br />

significado no século XX tornando-se sinônimo<br />

de tóxico.<br />

manhã? O café que nos acompanha<br />

todos os dias também é<br />

uma droga, já que, para estimular<br />

o cérebro, a bebida utiliza<br />

os mesmos mecanismos da<br />

cocaína e da heroína.<br />

Porém, o estimulante diário<br />

é uma droga lícita, considerado<br />

como item essencial nas cestas<br />

básicas. O que difere as drogas<br />

lícitas das ilícitas são as leis e<br />

a aceitação da sociedade. Até o<br />

século XIX, o ópio, substância<br />

anestésica muito utilizada na<br />

medicina, tinha sua venda livre<br />

e era considerado moeda de troca<br />

entre impérios. Atualmente,<br />

o narcótico figura na lista das<br />

drogas proibidas por lei.<br />

O consumo de álcool e de<br />

cigarros nos parece natural.<br />

Os meios culturais trabalharam<br />

para criar uma relação de<br />

intimidade entre nós e essas<br />

substâncias. Abrimos uma<br />

revista, ligamos a TV, escutamos<br />

música e mensagens de ode às<br />

bebidas e ao cigarro são vendidas<br />

através do entretenimento<br />

que dita o que é moda.<br />

Culturalmente, a sociedade<br />

foi adaptada a conviver com as<br />

drogas lícitas. As leis as regulamentam,<br />

transformando-as em<br />

grandes mercadorias, vendidas<br />

por meio de cantores, belas mulheres<br />

e gente feliz, enriquecendo<br />

o Estado e grupos privados<br />

donos de grandes marcas. E o<br />

Estado, ao fechar seus olhos<br />

para a facilitação do acesso da<br />

população a esses produtos,<br />

contribui para a consolidação<br />

do espaço que essas substâncias<br />

adquirem nas nossas vidas.<br />

Em maio deste<br />

ano, as ruas de<br />

Brasília foram<br />

ocupadas por<br />

manifestantes<br />

que defendem<br />

a descriminalização<br />

da<br />

maconha<br />

Foto: Ana Malaco<br />

outubro 2012<br />

13


A estética da<br />

gambiarra<br />

texto andré luis mapa, lucas aellos,<br />

marcelo sena e tábata romero<br />

edição gráfica bárbara andrade<br />

Enquanto a economia se firma na lógica de<br />

substituir o guarda-roupa quebrado ou aquela peça<br />

de roupa démodé por uma da nova estação, a<br />

vida universitária - regida quase sempre pela falta<br />

de dinheiro - instiga os estudantes a utilizar a<br />

criatividade em uma prática sustentável e barata:<br />

adaptar objetos velhos, quebrados ou em desuso<br />

para novas funções.<br />

O cachorro comeu um tênis? O outro pé agora<br />

cultiva sementes de mostarda. Aquele tanquinho<br />

velho, se pintado, vira uma caixa térmica. Caixote<br />

de madeira vira estante, depósito de papéis ou até<br />

banquinho. Entre a necessidade e a inspiração, os<br />

estudantes mostram como é possível reaproveitar<br />

aquilo que ia pro lixo e transformar em algo prático<br />

e o eficiente.<br />

Vaso sanitário:<br />

depois de<br />

“inutilizado”,<br />

é aproveitado<br />

como vaso de<br />

plantas<br />

14 outubro 2012


foto: gracy laport<br />

E se ajeita porque não tem dinheiro<br />

As histórias sobre improvisos nas repúblicas estudantis de<br />

Ouro Preto e Mariana existem aos montes, mas quase todas têm<br />

a mesma razão de existir: o dinheiro escasso. Os moradores usam<br />

prateleiras gradeadas para armazenar alimentos e caixas d’água de<br />

1.000 litros com gelo para manter a temperatura das bebidas em<br />

suas festas, os “rocks”, por exemplo.<br />

Uma lixa, parafusos, pregos pequenos, quatro rodinhas compradas<br />

no armarinho e o ingrediente principal: três caixotes de madeira.<br />

Isso tudo, combinado a um pouco de criatividade e força de<br />

vontade torna-se um eficiente criado-mudo, com divisões e repartição<br />

exclusiva para notebook. Esse foi o trabalho realizado pelos<br />

estudantes Murilo Amati e Gabriela Ribeiro da Costa.<br />

Se o lance é economizar, vale gastar pouco e montar seu próprio<br />

suporte para o computador. Foi o que fez o estudante de história<br />

Lucas Rocha, Evo Morales, com alguns pedaços de canos e joelhos<br />

de PVC. “É muito simples. Vi um modelo na internet e resolvi fazer<br />

o meu. Comprei alguns pedaços de cano e seis joelhos. Com menos<br />

de dez reais, eu tenho meu suporte pro Macbook”.<br />

Evo também falou de outros improvisos em sua república: “Aqui<br />

na Orfanato a gente aproveita tudo. Nossos baldes são galões de<br />

água vencidos. Também aproveitei uns pés soltos de tênis e plantei<br />

sementes de mostarda e manjericão. Nós fizemos ainda uma ducha<br />

a partir de um cone e uma garrafa pet. Nossos varais são cabos de<br />

rede de internet”.<br />

Na república feminina Rosa Xiclete, os varais de roupa são feitos<br />

com fios de barbantes enrolados e há um quadro de recados confeccionado<br />

com isopor e encapado com uma grande cartolina rosa com<br />

dezenas de fotos. As moradoras são unânimes sobre o motivo dos<br />

improvisos: “As coisas ficam mais baratas. Essa é uma alternativa<br />

para reduzir nossos custos”, afirma a estudante de Ciência e Tecnologia<br />

de Alimentos Danielle Lima, de 21 anos.<br />

Mariana Cavazza, de 21 anos, colega de quarto de Danielle e estudante<br />

de Educação Física na Universidade Federal de Ouro Preto<br />

(Ufop), é bem humorada ao falar dos arranjos feitos na república<br />

em que vivem nove garotas. “Não sei como esse quadro (mural de<br />

recados de isopor) ainda está vivo! Fizemos ele na primeira casa em<br />

que moramos, quando criamos a república”, lembra.<br />

Já na república masculina Saidera, um sofá é sustentado por<br />

três estacas de madeira pregadas ao fundo. Para o estudante de<br />

Engenharia Geológica Marcus Vinícius Silva, de 24 anos, quando<br />

alguma coisa estraga, é uma oportunidade para que os “bixos” –<br />

como são conhecidos os calouros da Ufop – aprendam a realizar<br />

pequenas tarefas domésticas. “O motivo principal (de improvisar)<br />

é financeiro. Mas é bom pra ensinar os bixos a trabalhar. Ao invés<br />

de chamar um pedreiro, a gente chama os bixos pra aprender um<br />

pouco!”, conta rindo.<br />

Para os moradores da república Barraca Armada, quando o<br />

espaço para realizar festas ficou curto por causa da presença de um<br />

reservatório de água que ficava na parte de trás da casa, a solução<br />

foi simples. “Retiramos a caixa d’água e construímos um palco no<br />

lugar. O reservatório atrapalhava muito e o palco destaca mais a<br />

outubro 2012<br />

15


foto: marcelo sena<br />

banda que estiver tocando”,<br />

conta o estudante de Engenharia<br />

Mecânica Paolo Alves.<br />

Improvisa e faz arte!<br />

E o palco é parte da identidade<br />

artística da república<br />

Barraca Armada, que tem boa<br />

parte das paredes pintadas com<br />

temas com os quais os moradores<br />

se identificam, como o<br />

cantor Bob Marley. Na república,<br />

a arte chegou até ao banheiro.<br />

Quando realizavam festas,<br />

havia filas nos banheiros, o que<br />

criava uma situação desagradável<br />

para os convidados.<br />

Por isso, os moradores criaram<br />

uma instalação sanitária<br />

externa para os homens, fazendo<br />

com que os dois banheiros<br />

internos da casa fossem utilizados<br />

apenas por mulheres. Ok, a<br />

ideia é inteligente, mas... e onde<br />

entra a arte? A arte entra, como<br />

no restante da casa, em pinturas nas paredes do<br />

banheiro. “Um dos caras da república projetou o<br />

desenho com o Datashow e a galera toda se juntou<br />

pra pintar”, afirma o estudante de Engenharia<br />

Geológica Magno Freire, de 20 anos.<br />

Já na república masculina 171, também em<br />

Ouro Preto, a arte surgiu da necessidade de manter<br />

os dois enormes cães da raça Pitbull afastados<br />

das lixeiras que ficavam na cozinha externa da<br />

casa. Os moradores colheram bambus às margens<br />

de uma rodovia, compraram alguns metros de<br />

corda e construíram uma charmosa mureta artesanal<br />

de estacas trançadas pelas cordas. “Criamos<br />

isso porque os cachorros entravam na cozinha<br />

e mexiam no lixo, faziam a maior bagunça”,<br />

comenta o estudante de Engenharia Geológica<br />

Felipe Tomassini, também conhecido como “Boomerang”.<br />

“Foi ótimo porque acabamos ganhando um<br />

espaço mais reservado para quando fazemos<br />

festas. No 12 (Doze de Outubro, tradicional festa<br />

entre repúblicas da cidade), a cozinha vira camarote!”,<br />

completa o também morador da república<br />

171 e estudante de Engenharia Civil, Alexandre<br />

Vilela, de 21 anos.<br />

O par de tênis<br />

velhos é hoje<br />

reaproveitado<br />

para plantar<br />

16 outubro 2012


O caixote de<br />

feira virou uma<br />

mesa<br />

Na república Rosa Xiclete, também rola improviso<br />

nas festas. “Às vezes, forramos as paredes<br />

com jornal para não sujar e dá até um efeito legal<br />

com a luz negra”, conta a estudante Danielle<br />

Lima.<br />

O Engenheiro das adaptações<br />

Um futuro Engenheiro de Controle e Automação<br />

e morador da república Saidera é um caso à<br />

parte quando o assunto é usar a criatividade para<br />

reutilizar materiais desgastados e transformálos<br />

em novas peças. Donério Taison, de 22 anos,<br />

também conhecido como “Kodak”, construiu<br />

uma pequena mesa para apoiar seu notebook<br />

com peças de madeira de um velho armário. “Eu<br />

precisava de uma mesa para assistir filmes e fiz a<br />

minha”, argumenta com simplicidade.<br />

Kodak diz que a ideia surgiu também pela<br />

falta de dinheiro para adquirir uma mesa nova.<br />

“Uma mesa como essa no mercado é cara e dura<br />

muito pouco. Essa aqui, custou apenas o valor<br />

dos parafusos”.<br />

O estudante adaptou ainda um armário, uma<br />

sapateira e criou um curioso porta-chaves na<br />

barra de metal que perpassa a parede lateral de<br />

seu quarto. “Isso é muito simples. Retirei o imã<br />

de um HD de computador e o coloquei atrás da<br />

barra de metal. Daí, é só encostar a chave que ela<br />

gruda”, aponta.<br />

Na república em que Kodak mora, os moradores<br />

optam por reaproveitar, ou pelo menos não<br />

descartar incorretamente, alguns materiais como<br />

o óleo, que entregam em um<br />

posto de coleta de um supermercado,<br />

e as garrafas pet, que<br />

são reutilizadas nos “rocks”<br />

ao serem utilizadas para servir<br />

batidas e bebidas doces, o que<br />

também é feito na república<br />

feminina Rosa Xiclete.<br />

Unidos nos móveis<br />

novos e nas<br />

gambiarras<br />

“Quando precisamos fazer<br />

adaptações, a gente chama a<br />

galera de outras repúblicas pra<br />

ajudar. Se precisamos arrumar<br />

um banheiro, os meninos vêm e<br />

ajudam. Pra dividir um quarto,<br />

a gente compra a madeira e os<br />

meninos vêm e a colocam. Aqui,<br />

a gente tem essa cultura de um<br />

ajudar o outro”. As palavras de<br />

uma estudante revelam como<br />

funciona a rotina de adaptações<br />

nas repúblicas de Ouro Preto.<br />

De acordo com a estudante<br />

de Ciência e Tecnologia de<br />

Alimentos Danielle Lima, é<br />

comum a realização de pequenos<br />

mutirões para reformar e<br />

adaptar objetos nas repúblicas<br />

estudantis.<br />

Além da parceria na hora<br />

de colocar a mão na massa, os<br />

estudantes compartilham boas<br />

práticas. “As ideias para algumas<br />

gambiarras nós trouxemos<br />

de outras repúblicas. Estamos<br />

de mudança e quando estivermos<br />

na casa nova, iremos criar<br />

uma horta em algumas garrafas<br />

pet, para economizar nos<br />

alimentos e não desperdiçar as<br />

garrafas”, afirma Danielle.<br />

outubro 2012<br />

foto: gracy laport<br />

17


18 outubro 2012


Fotos: allan almeida<br />

Apesar da constatação de um aumento quase imperceptível no Produto<br />

Interno Bruto do Brasil no segundo trimestre – apenas 0,4% em relação ao<br />

primeiro trimestre – a presidenta Dilma Rousseff acredita que o país se prepara<br />

para “uma política policíclica de investimento”, se referindo aos investimentos<br />

que virão de outros países. A presidenta acredita que o Brasil está melhor<br />

preparado do que a maioria das outras nações para o período de recessão<br />

mundial que se aproxima.<br />

Um dos acordos financeiros do país, este ano, foi firmado no dia 4 de junho<br />

com o Rei da Espanha, Juan Carlos I. Brasil e Espanha pretendem unir esforços<br />

de investimento em regiões como a Ásia e o Oriente Médio. Deverão ser<br />

explorados o setor têxtil e de energia, com expectativa de resultados a médio<br />

prazo – leia-se: de um a cinco anos. O presidente do banco Santander, Emílio<br />

Botín, compareceu junto à comitiva do Rei espanhol. Ele afirmou que “quem<br />

não está no Brasil não está na América Latina”, e se disse encantado com o<br />

poder inovador dos empresários brasileiros.<br />

outubro 2012<br />

19


Fotos: lucas lima<br />

O outro lado da moeda brilha tanto<br />

assim?<br />

O Brasil aproveita a forte onda de otimismo<br />

que a realização da Copa de 2014 traz e embarca<br />

numa espécie de Sonho do Eldorado do século<br />

21. Com promessas da presidenta de que dias<br />

melhores virão – apesar de desmentida pelo já<br />

citado tímido aumento do PIB -, o brasileiro passa<br />

a crer que a vida só melhora, já que agora somos<br />

quase todos “classe média”. Mas uma pesquisa<br />

da Fundação Getúlio Vargas (FGV) alerta para a<br />

escolha, pelo Governo Federal, de novos critérios<br />

um tanto discutíveis para definir as classes econômicas<br />

brasileiras.<br />

É fácil ser otimista quando o governo exige<br />

um mínimo de renda per capita de R$291, para<br />

retirar qualquer cidadão da linha da pobreza. A<br />

classe média brasileira é oficialmente constituída<br />

por famílias que recebem desde esse mínimo<br />

acima citado até R$ 1.019, “por cabeça”, para<br />

a sua sobrevivência. Isso corresponde a 54% da<br />

população nacional. Mas, para a FGV, o ideal seria<br />

enquadrar como classe média apenas a fatia da<br />

população que recebe entre R$ 434, e R$ 1.869,<br />

por pessoa.<br />

O Departamento Intersindical de Estatística e<br />

Estudos Socioeconômicos (Dieese) salienta que o<br />

cálculo que estabelece o valor ideal para um salário<br />

mínimo que atenda as necessidades básicas de<br />

uma família, segundo a Constituição, aponta para<br />

um valor atual de R$ 2.329, bem abaixo do valor<br />

real (módicos R$ 622,). O cálculo classifica como<br />

prioridades familiares: alimentação, moradia,<br />

saúde, educação, vestuário, higiene, transporte,<br />

lazer e previdência, porém ainda classifica como<br />

“supérfluos” gastos com planos de saúde, cursos<br />

superiores e telefonia fixa.<br />

Também devemos pensar que, em um país<br />

com extensão continental como o Brasil, é difícil<br />

a tarefa de estabelecer parâmetros de qualidade<br />

de vida, altamente flutuantes de região a região.<br />

Vive-se melhor com menos no interior do Ceará<br />

do que na capital paulista, por exemplo. Essa<br />

realidade se deve ao fato do custo da qualidade<br />

de vida ser flutuante, e geralmente ser menor em<br />

cidades menores.<br />

O imaginário social também reflete uma classe<br />

média que está em constante ascensão na sociedade,<br />

o que não é verdade. Nota-se uma melhora<br />

de vida na última década, mas que já se estabiliza<br />

nos últimos anos.<br />

Outra pesquisa aponta um aparente equívoco<br />

quanto à situação financeira do brasileiro ter<br />

sido vista como “tranquila” nos últimos tempos.<br />

O (temido) Serviço de Proteção ao Crédito (SPC)<br />

divulgou no dia 26 de setembro que mais de 40%<br />

da população do Brasil está ou já esteve com o<br />

“nome sujo”, isto é, impossibilitado de fazer novas<br />

compras a prazo, devido às dívidas antigas.<br />

O SPC também alerta para o uso indiscriminado<br />

de cartões, que oferecem cada vez mais<br />

limite de crédito, inclusive para as classes C e D.<br />

Os cartões têm 28% dos clientes inadimplentes,<br />

quando falamos da dívida superior a 90 dias. Ainda<br />

segundo a pesquisa, não há a preocupação, por<br />

grande parte da população, em conhecer as taxas<br />

a que está submetida, como os juros de crédito,<br />

em média 9% ao mês e os de cheque especial, em<br />

média 6% ao mês.<br />

O que diz quem entende?<br />

O doutor em Economia pela UFMG, Leonardo<br />

de Deus, confirma esta visão, alertando que<br />

não é o momento de incentivar a classe média ao<br />

consumo, mas sim levar o país a investimentos<br />

externos: “Embora seja importante incentivar o<br />

consumo, com efeitos na produção e nas expectativas<br />

de empresários, esse procedimento tem fôlego<br />

curto, já mostrado no recente caso da venda de<br />

automóveis. As pessoas não irão querer comprar<br />

carros, TV’s e iPhones sempre. Além disso, têm de<br />

ter condições de pagar suas casas, e os juros continuam<br />

altos para financiamento de imóveis. O<br />

kit classe média custa muito caro, não mencionei<br />

aqui saúde, educação, gasolina etc. O estímulo<br />

correto é aos investimentos produtivos, à indústria.<br />

Hoje, o Brasil investe muito abaixo – 17,4%<br />

no segundo trimestre de 2012, porcentagem do<br />

PIB - do necessário em sua capacidade produtiva<br />

o indicado seria 25% do PIB.”<br />

Esse panorama nos leva, mais uma vez, a refletir<br />

sobre a divisão desigual da riqueza brasileira.<br />

Apesar dos investimentos internacionais constantes,<br />

a população não vê a cor desse dinheiro e<br />

continua, como sempre, se endividando.


Economia Solidária como alternativa<br />

Dentro da sociedade de consumo atual, pautada<br />

no capitalismo, qual a viabilidade de um<br />

sistema onde fosse possível trocar a sua força de<br />

trabalho por outros serviços, ou pela força de trabalho<br />

de outras pessoas? A economia solidária é<br />

consolidada nesse contexto, onde o ser humano é<br />

mais valorizado do que o capital. Baseada no cooperativismo,<br />

contrapõe preceitos capitalistas. Segundo<br />

Leonardo de Deus, professor de Economia<br />

da Universidade Federal de Ouro Preto, “Trata-se<br />

de buscar meios de ativar essa força, muitas vezes<br />

latente ou mesmo em estado inercial.”. Ele afirma<br />

ainda que a ideia é bastante antiga, de tirar<br />

do Estado o controle sobre as trocas entre produtores<br />

através da moeda que emite.<br />

Esse sistema é utilizado dentro do Circuito<br />

Fora do Eixo, que é uma rede colaborativa e<br />

descentralizada, formada pelos coletivos culturais<br />

espalhados pelo Brasil. Hoje, existem coletivos<br />

culturais em 25 das 27 unidades federativas do<br />

país. Esses coletivos são agrupamentos de pessoas<br />

que produzem cultura, ou serviços ligados a ela<br />

e realizam trocas culturais, visando a promoção<br />

e divulgação do trabalho dos “associados”, assim<br />

como a criação de oportunidades de vender a<br />

força de trabalho em questão, a cultura. Surgiram<br />

como alternativa de divulgação e promoção da<br />

produção cultural autoral. Leonardo afirma que<br />

a ideia é justamente dinamizar as “trocas” desse<br />

trabalho feito em cooperação. Em Ouro Preto e<br />

Mariana, o Coletivo Muzinga, criado por produtores<br />

musicais, músicos e jornalistas da região,<br />

atua como promotor de festivais e ações culturais<br />

nas duas cidades, além de incentivar a integração<br />

com coletivos de outros lugares do país.<br />

Segundo o site do Fora do Eixo, a criação de<br />

uma moeda aconteceu devido à necessidade de<br />

resolver dificuldades financeiras da manutenção<br />

do Coletivo Cubo, de Cuiabá, Mato Grosso. A utilização<br />

do próprio trabalho – no caso, a produção<br />

cultural – como moeda de troca foi a forma que<br />

o Coletivo encontrou para promover, divulgar e<br />

vender o que produziam. Assim surgiu a Cubo<br />

Card, primeira moeda alternativa do Circuito<br />

Fora do Eixo, baseada no conceito de Economia<br />

Solidária. Os associados ganham a moeda trabalhando<br />

para o Coletivo, que promove seminários<br />

para discussão de vários temas relacionados ao<br />

assunto, como cultura digital livre, funcionamento<br />

dos coletivos e a própria economia solidária e<br />

seus impactos na sociedade.<br />

O Coletivo Goma, de Uberlândia, Minas Gerais,<br />

criou a sua moeda Goma Card (Gc$), baseada<br />

no bem sucedido modelo Cubo Card. Segundo<br />

o site do próprio coletivo, a moeda incentiva as<br />

trocas entre segmentos do Coletivo Goma e outros<br />

coletivos. O preço em Goma Card é um pouco<br />

mais baixo do que seria em reais, para facilitar<br />

o acesso aos produtos e serviços que a aceitam<br />

como pagamento. As trocas se baseiam em uma<br />

tabela, em que estão listados todos os produtos<br />

e serviços oferecidos, com o preço em real e em<br />

goma card.<br />

Não apenas os coletivos utilizam uma moeda<br />

alternativa para facilitar as relações comerciais. A<br />

Cidade de Deus, favela na zona Oeste do Rio de<br />

Janeiro, por exemplo, tem a sua própria moeda, o<br />

CDD, desde setembro de 2011. A moeda foi implementada<br />

pelo Banco Comunitário da Cidade de<br />

Deus, com o intuito de incentivar o crescimento<br />

do comércio local. Além disso, moradores obtêm<br />

descontos utilizando a CDD. O Governo Federal<br />

considera a possibilidade de criação de moedas<br />

alternativas em mais três favelas do Rio.<br />

Dentro da atual sociedade de consumo, seria<br />

uma possibilidade de “desalienar” a relação que<br />

se criou com o dinheiro. Mas qual seria a abrangência<br />

disso? E quais consequências poderia trazer<br />

para a economia do país, caso a adesão fosse<br />

maior? Leonardo de Deus afirma que o alcance da<br />

proposta ainda não foi determinado. A Economia<br />

Solidária é uma alternativa, mas não pode ser<br />

apontada como solução.<br />

outubro 2012<br />

21


Consumo, logo existo<br />

Aos impropérios da razão álgebra e da economia moderna, em<br />

que por vezes se é posto o consumo ora como regulador de uma<br />

racionalidade econômica e social, ora como dominador atroz da<br />

vontade humana, talvez pudessem se portar em defesa de ambos<br />

os diagnósticos os conformados personagens de Admirável Mundo<br />

Novo. Na sociedade utópica de Aldous Huxley, vive-se sob a<br />

tirania da eficiência e da estabilidade, o que é salvaguardado pelo<br />

condicionamento humano em uma cadeia de hierarquia, produção<br />

e consumo. O indivíduo anula-se e torna-se peça de uma lógica<br />

produtiva que busca preservar a integridade social. Suas ações são<br />

previstas e vigiadas.<br />

Talvez não fuja à razão utilizar a literatura para se pensar a<br />

ordem econômica. A organização da sociedade é feita a partir do<br />

modo de produção adotado pelo homem. O ser humano organiza-se<br />

pelo trabalho. Eis o que conecta instinto e consciência. No processo<br />

de domínio e modificação da natureza, são criados instrumentos<br />

e modos de organização, configurando a vida em sociedade. Essa<br />

interdependência humana reflete necessidades, valores e ideias. É<br />

possível simplificar tal pensamento se nos lembrarmos que para<br />

cada campo de trabalho há ferramentas e instrumentos que lhe são<br />

próprios, o que, em verdade, não significa a ausência de interpolações,<br />

seja no meio dos produtos através dos quais se é realizado<br />

um trabalho, seja no que cabe ao conceito de sua realização e de<br />

sua projeção. Seria possível pensar a individualidade das relações<br />

sociais sem considerar que elas partem de respostas diante de estruturas<br />

de sobrevivência e convivência?<br />

De acordo com Cláudio Eduardo Félix, “a base econômica articula<br />

as formas políticas, jurídicas e o conjunto das ideias majoritárias<br />

e dominantes que existem em cada sociedade”. Basta voltar<br />

brevemente os olhos para a História para percebermos que a huma-<br />

Cildo meirelles / projeto coca-cola<br />

22 outubro 2012


nidade caminhou, até dos dias atuais, de maneira<br />

a garantir o poderio econômico, sem o qual não<br />

seria possível dominar outras instâncias sociais.<br />

O professor da Universidade do Estado da Bahia<br />

(UNEB) acrescenta ainda que, “nas relações<br />

sociais, as possibilidades de mudanças coletivas<br />

tendem a se realizar no momento em que o grau<br />

de desenvolvimento das forças produtivas gera<br />

condições objetivas e subjetivas para a transformação<br />

de uma determinada forma de produzir a<br />

existência”.<br />

A segurança econômica na qual se apoia o<br />

país, por estatística ou erro, é sentida, especialmente,<br />

na esfera do consumo. A “euforia monetária”<br />

deu potencialidades ao ego do brasileiro.<br />

É possível apropriar-se e ser dono de uma ordem<br />

crescente de bens. Da economia moderna, surge<br />

o mito do consumo, visto como mera anulação da<br />

individualidade e da razão. No entanto, nossas<br />

relações são mediadas pela compra e venda não<br />

somente de mercadorias, mas de consciências.<br />

Nelson García Canclini propõe que haja “uma<br />

compreensão do consumo e da cidadania de<br />

forma conjunta e inseparável, tomadas como<br />

processos culturais, encarando-os como práticas<br />

sociais que dão sentido de pertencimento”. Ao<br />

passo que não se pode atribuir à ordem econômica<br />

as catastróficas e alienantes consequências<br />

da obra literária de Huxley, trazendo-as para a<br />

realidade, é possível, em contrapartida, adequar o<br />

sentido da obra às organizações sociais existentes,<br />

em que o ser humano organiza-se em grupos de<br />

afinidades e capacidades.<br />

Em um mundo que se liquefaz em anúncios<br />

do eu e da posse, talvez possa parecer piedoso demais<br />

considerar que o consumo e a economia vão<br />

além das superficialidades daquilo que se vê. Mas<br />

o que se deve questionar não é o consumo em<br />

si, mas o que entendemos e julgamos por valor.<br />

Injúria ou ironia?<br />

Fotos: lucas Lima<br />

outubro 2012<br />

23


24 outubro 2012


TEXTO E FOTOS Camila Dias E Natália Goulart<br />

EDIÇÃO GRÁFICA Deiva Beatriz Miguel<br />

outubro 2012<br />

25


26 outubro 2012


outubro 2012<br />

27


Certas canções<br />

texto Ana Carolina Meirelles<br />

<strong>Edição</strong> Gráfica beatriz de melo e lucas aellos<br />

Te levam daqui. Te mandam pra lá. A <strong>Curinga</strong> convida você a uma viagem<br />

sinestésica. Os sons que viram imagens. Musas que seduzem em paisagens.<br />

Músicas que invadem. Letras eternizadas nos passaportes e na memória.<br />

Barcelona és poderosa<br />

Memórias Lusitanas, Junho<br />

de 2011<br />

Márcio Paixão, estudante de<br />

antropologia na Universidade<br />

Federal Fluminense, decidiu<br />

ir à Espanha. As passagens da<br />

companhia irlandesa low coast<br />

Ryanair de OPorto com destino<br />

a Madrid estavam imperdíveis.<br />

Por 12 euros ele comprou um<br />

sonho antigo. Seria sua primeira<br />

vez no Museu Reina Sofia<br />

e também o primeiro tête-à-tête<br />

com Guernica, o mítico painel<br />

de Pablo Picasso. Foi rápido o<br />

tempo em Madrileñas. Da estácion<br />

Arrocha pegou o autobus<br />

com destino a Barcelona. Na<br />

viagem, a presença sinestésica<br />

de uma música que o levava<br />

de leve e ansiosamente para a<br />

capital catalã, cenário de Vick<br />

Cristina Barcelona, filme de Woody<br />

Allen. A canção que guiou<br />

o estudante fluminense pelo<br />

Parque Guell, Barceloneta e<br />

Ramblas é a suave Barcelona, de<br />

Giulia y Los Tellarini. A vocalista<br />

Giulia é italiana e conquistou<br />

os ouvidos de Allen quando<br />

conseguiu que o álbum Eusébio<br />

chegasse às mãos do diretor.<br />

Naquela calidez mediterrânea,<br />

Márcio Paixão misturou<br />

um espanhol-catalão–português,<br />

aproveitou cada palavra<br />

da letra de Barcelona e subiu<br />

até o topo do parque Guell:<br />

“Barcelona já me admirava,<br />

porque eu estava de braços<br />

mais abertos do que o Cristo<br />

redentor” No retorno ao Porto,<br />

colocou os fones de ouvido e<br />

selecionou outra pasta: agora<br />

é Couer de Pirate e o ensaio de<br />

uma nova chegada, desta vez<br />

em Paris.<br />

Santorini Blues<br />

Ilha de Santa Irini, junho de<br />

2010<br />

Marcelo Costa escreve bobagens<br />

sobre viagens, romances<br />

e cultura pop. Ele é editor<br />

do Scream & Yell, um dos sites<br />

de música e cultura pop mais<br />

bacanas e respeitados do Brasil.<br />

E que bom! Marcelo escreveu<br />

uma bobagem sem tamanho<br />

para a <strong>Curinga</strong>:<br />

“Em junho de 2010 estive<br />

na Ilha de Santa Irini, popularmente<br />

conhecida como<br />

Santorini, ilha grega que a<br />

história conta ser a Atlântida<br />

citada por Platão. A ilha sumiu<br />

após uma grande erupção 3650<br />

anos atrás. O povo que vivia<br />

em Atlântida foi dizimado com<br />

a erupção e o topo do vulcão<br />

afundou com boa parte da ilha.<br />

Séculos depois, o que sobrou (a<br />

caldeira e o anel) foi habitado<br />

novamente e ganhou o nome<br />

de Thira, ou Santorini. Naquela<br />

paisagem especial, num dos<br />

dias, após caminhar muito por<br />

ruelas e becos, ver casinhas de<br />

tetos brancos pra todos os lados<br />

e fazer uma refeição em frente<br />

a um mar todo azul, lembrei de<br />

uma canção de Herbert Vianna;<br />

uma música menor, mas que já<br />

tinha me conquistado quando<br />

eu tinha ouvido o disco na época,<br />

bem mais de 10 anos antes,<br />

e que deixou aquelas imagens<br />

gravadas na minha mente: “Os<br />

barcos são a alegria deste lugar<br />

/ Toda tarde tem festa / Quando<br />

chegam do mar // Os velhos<br />

numa mesa / São como uma<br />

visão / Bebendo a tarde inteira /<br />

Cantando uma canção // Quem<br />

não tem amor no mundo / Não<br />

vem neste lugar / Quem não vê<br />

azul profundo<br />

Não tem mais pra onde<br />

olhar //”. A música surgiu do<br />

nada na minha memória e<br />

trouxe com ela um punhado de<br />

28 outubro 2012


lágrimas. Eu estava naquele momento numa das<br />

cidades mais lindas do mundo, uma cidade que<br />

eu já havia visitado ouvindo uma canção anos e<br />

anos atrás.”<br />

Beirut<br />

Triste luz da manhã, Berlim 2011<br />

Para ouvir sem piscar, a orquestra cigana de<br />

Zach Condon transportou a estudante de mobilidade<br />

acadêmica de Arquitetura da Universidade<br />

do Porto, Ana Luiza Secco Peres, para as<br />

luzes foscas de Berlim. Por cuidado do acaso, a<br />

música In the Mausoleum, da banda norte-americana<br />

Beirut, sussurrava frases soltas, de tons<br />

cinzas pelas manhãs nos ouvidos da Ana Luiza,<br />

que ficava imaginando como se sentiria dali<br />

a poucos dias na capital alemã.“ In Berlim is<br />

só ugly in the morning light// But with them/<br />

I could never feel só right//”. Era dezembro,<br />

inverno chuvoso e a cidade com cinquenta tons<br />

de cinza. Ana Luiza diz que realmente acreditou<br />

que ela e Beirut compartilhavam da mesma<br />

sensação visual: feia luz da manhã. E acrescenta:<br />

“apesar disso, não me sentia tão bem como a<br />

letra da canção, acho que o Brasil, o calor e o<br />

sol me chamavam. Eu só poderia me<br />

sentir tão bem naquela manhã se<br />

uma brisa muito quente passasse<br />

por mim ou se o sol ardesse na minha pele e nos<br />

meus olhos, uma saudade do que eu realmente<br />

sou: tropical”.<br />

foto: Ana Carolina Meirelles<br />

Caxambu<br />

Depois de cinco dias pendurado no vapor,<br />

julho de 2012<br />

Marcelo Modesto, 22 anos, quase jornalista<br />

graduado pela Universidade de São Paulo (USP),<br />

titubeia entre o Indie Pop e a panfletagem na<br />

campanha do Haddad. Ele acha que precisa<br />

acabar com o Serra, porque senão ele volta com<br />

força. Fala alguns palavrões e a gente retoma a<br />

entrevista:<br />

- Marcelo, tem alguma música que foi capaz<br />

de transformar a maneira de sentir, ver e vivenciar<br />

lugares por onde você passou? Ou até te<br />

lembra lugares onde nunca esteve?<br />

- Sá, Rodrix e Guarabyra. Pendurado no Vapor. \<br />

Caminho de Campanha a Caxambu.<br />

- Poderia me falar mais sobre isso?<br />

- Porque me lembra Minas, uai.<br />

Desse jeito. Então eu disse que iria colocar na<br />

<strong>Revista</strong> assim.<br />

Pausa longa. Então, Modesto, que a essa altura<br />

já havia trocado sua imagem<br />

de perfil do facebook por<br />

um H vermelho, completa: “é<br />

música pra se escutar voltando<br />

pra casa”.<br />

Lembrei das curvas de Itamonte,<br />

do verde e da Serra da<br />

Mantiqueira. Pausa nova.<br />

Orange Sky<br />

Devaneios sofistas, Ouro<br />

Preto 2012<br />

Abrem–se as portas da percepção.<br />

Ana Sophia Figueiredo<br />

navega em seu barco laranja<br />

pelas águas da lagoa de Furnas.<br />

A viagem começa quando, ao<br />

sair da acupuntura, ali do lado<br />

da Igreja do Rosário, ela se lembra<br />

da música Orange Sky, do<br />

outubro 2012<br />

escocês Alexi Murdoch. Então<br />

Sophia viaja: “essa música tem<br />

uma batida leve, nostálgica,<br />

fala da família, do caminho<br />

percorrido, da saudade e do céu<br />

laranja. Quando fica dessa cor<br />

chegou a hora perfeita para se<br />

andar de barco. Mas a minha<br />

vontade não é de nadar, é de<br />

flutuar mesmo. E a igreja do<br />

Rosário parece um navio.”<br />

29


Eu, elas e toda a história<br />

por Izabella Magalhães<br />

Acordei com aquela vontade de sábado de sol ainda morno pelo frescor matinal.<br />

Clima armado para vagar em estradas retas, cruzar paisagens e desejos, viajar. E<br />

então eu fui ‘pras’ bandas de lá, fui viajar, pra ver o sol morrendo no mar. Play.<br />

Cheguei na Atlântica deserta do Rio de Janeiro. Na altura de Ipanema, a Helô<br />

se bronzeava, sorriu pra mim e fumamos um cigarro juntas, mirando o mar gelado,<br />

compartilhando a nossa origem, a dela mundialmente ofertada, a minha, ainda<br />

caipira da Ipanema do interior de Minas, quase norte. Falávamos banalidades<br />

tropicais quando a Kátia chegou. Kátia Flávia, também loiraça belzebu. Estacionou<br />

seu cavalo branco, pediu um trago e tentou explicar como era bom sentir o<br />

pelo do equino na pele nua, toda nua. Rimos por horas, bebemos muito. Eu, elas<br />

e a turma que chegou no Fusca vermelho. Tereza e Bárbara passaram no bar da<br />

sinuca lá no morro, e trouxeram Dona Zica, que tinha terminado o rango mais<br />

cedo, regou as rosas e veio. Foi uma manhã elaborada diretamente pelos deuses.<br />

Trocamos impressões sobre as mudanças na Baía de Guanabara, e sobre a camisa<br />

verde e amarela que vestiram no Cristo, coisas atravessadas. Me despedi, precisava<br />

abastecer o tanque, e se demorasse muito pegaria um trânsito infernal.<br />

Estava a 180 por hora, no retrovisor agora só as curvas e a imagem delas,<br />

todas elas, até as que ainda não viraram palavra cantada. A namorada<br />

de um amigo meu pedia carona na BR. Parei. Mas nosso lance foi bem rápido,<br />

ela só teve tempo de contar daqueles loucos hormônios que viviam nos<br />

corpos maravilhosos da década de 60. Desceu na altura de Maresias. Báái!!<br />

Foi de repente, encostei para um drink. Era um café velho, com cara de bar da esquina.<br />

Sentei afastada, atenta àquele cenário de angústias. Beatriz nem disse palavra<br />

ao sentar em frente a mim. Só falou minutos depois. Estava triste por perder aquele<br />

papel importante na próxima peça da praça Roosevelt, “foi por um triz”, ela soltou.<br />

Maquiagem borrada de choro antigo, e todo o mal estar dessas almas que não andam<br />

com pés no chão, mas ela era blasé, fingia com beleza. Foi a minha vez de não dizer<br />

nada. Dei um beijo longo naqueles cabelos enrolados e segui. Eu precisava seguir.<br />

Pousei na Bahia abençoada como quem pousa na vida pela primeira vez, tudo mais<br />

bonito, só curiosidade. Lembrei do endereço de Marina e corri. Estava acontecendo<br />

uma pequena festa para minha alegria e deleite. Marina tinha parado de se pintar,<br />

‘tava linda como sempre, embora tivesse perdido um pouco da morenice. A Irene estava<br />

lá com aquele sorriso solto, contando os causos da última festa da Purificação<br />

em Santo Amaro. “A Bahia toda estremece a cada fevereiro, saravá!” Eu toda ouvidos,<br />

só matutava. Vera gatona servia mais cerveja a todas. “Flora, tu quer? Drão, tem aí?<br />

Doralice nega, pegue mais!” E eu junto. A campainha tocou. “Devem ser elas!”, disse<br />

Vera. Chegaram as viajantes: aquela morena tropicana, ex-namorada do Alceu (que<br />

infinitude de mulher!), e junto dela Risoflora (levava uma flor na mão e dizia ter<br />

largado de vez a maloca). Um pouco atrás, entrou cheia de sacolas de pano a rainha<br />

Maria da Graça Gal, a mais fina e gostosa raiz de toda a Bahia. Foi só então<br />

que eu entendi a troco de quê minhas queridas estavam reunidas. Era a festa da<br />

origem, era um brinde à Mousikê, a “arte das musas”. Elas encenariam o nascimento<br />

da música através das nove filhas de Mnemosina e Zeus. Cada uma representando<br />

o nascimento da canção, a vida e a memória eternizadas em nota e movimento.<br />

Foi lindo, divino-maravilhoso. Elas dançaram e o sol se pôs, vi pelo vidro<br />

da janela o exato momento em que o mar o engoliu. E eu? Eu passaria toda a<br />

existência na presença daquelas alegrias. Seria capaz de não voltar<br />

mais, a partir dali tudo estaria adiado, até o tempo. Foi o que fiz dentro de<br />

mim. Um pacto silencioso entre nós. Eu e elas, elas e todo o som da história.


TecnoBrega & Chique<br />

TEXTO Leandro Sena<br />

EDIÇÃO GRÁFICA Elisabeth Maria de Souza Camilo<br />

FOTO: Lucas Lima<br />

COLABORAÇÃO: Suellen Amorim e karen amorim<br />

Para você, o que é brega? É o antiquado, o over,<br />

o ultrapassado, o careta? Em 1978, o cantor Fernando<br />

Mendes gravou a música “Você não me ensinou<br />

a te esquecer”, um grande sucesso da época. Anos<br />

depois, o que era sucesso se converteu em um<br />

clássico, escondido entre as prateleiras das lojas de<br />

vinis que, naquele momento, consideravam a letra,<br />

o ritmo e a voz um tanto quanto à margem do que<br />

era ouvido nas rádios. Vinte e cinco anos depois de<br />

sua composição, Caetano Veloso regravou a mesma<br />

canção para a trilha sonora do filme “Lisbela<br />

e o Prisioneiro”, tornando-se um dos maiores<br />

sucessos de sua carreira, que o consagrou<br />

no Grammy Latino na categoria “Melhor<br />

canção brasileira”. Já<br />

a dupla Claudinho<br />

e Buchecha<br />

cantou<br />

“Sou eu<br />

assim sem você”, mas foi na voz da cantora Adriana<br />

Calcanhoto que hoje ela é um clássico cult. Se<br />

Madonna faz caras e bocas sensuais e abre as penas<br />

no palco, vira referência no mundo todo. Mas se a<br />

brasileira Kelly Key realiza o mesmo feito em uma<br />

boate carioca, é vaiada, tachada como “brega”<br />

e recordista de comentários maldosos no site<br />

Youtube. “Você é doida demais”, de Lindomar<br />

Castilho, só caiu mesmo na boca do povo<br />

anos depois, graças ao seriado “Os Normais”,<br />

de 2001. Agora diga, onde está a lógica do<br />

que você considera brega? O tecnobrega,<br />

gênero musical popular surgido no norte<br />

do Brasil, ganhou os olhos da grande mídia<br />

nacional este ano, e configura-se como<br />

a fusão da tradicional - e indefinível,<br />

portanto - música brega com uma batida<br />

eletrônica, junto a uma temática tecnológica<br />

como pano de fundo. A novela<br />

“Cheias de Charme” levou à televisão<br />

esse ritmo, do mesmo modo como “Rainha<br />

da Sucata” disseminou a lambada no<br />

Brasil do recém-eleito Fernando Collor<br />

de Melo. Bondade ou não, a mídia brasileira<br />

ajuda a dissipar fenômenos locais, emergentes,<br />

incorporando novos ingredientes ao<br />

seu principal produto de exportação midiática:<br />

a telenovela. Gaby Amarantos, cantora<br />

paraense e intérprete da música “Ex My Love”,<br />

foi eleita pela revista Época como uma das<br />

100 personalidades mais influentes e, no último<br />

mês, a artista do ano por uma premiação da<br />

MTV Brasil. Para o editor de cultura do portal R7<br />

e colunista da Record News, Miguel Arcanjo Prado,<br />

a divulgação de novos ritmos ou “febres” musicais<br />

nas novelas reflete o olhar atento ao mercado que<br />

os executivos de TV possuem. “A direção das emissoras<br />

tem acesso a pesquisas que dizem o que o<br />

telespectador está ouvindo. O que rege a trilha de<br />

uma novela são as regras capitalistas de mercado e<br />

lucro”, avalia. De fato, estilos musicais à margem do<br />

disputado mercado fonográfico precisam de grandes<br />

nomes e grandes momentos para acontecerem.<br />

Gaby é a exceção nesse caso, pois aparentemente<br />

entendeu rápido o jogo da indústria cultural.<br />

outubro 2012<br />

31


99 não é 100<br />

TEXTO Lincon Zarbietti<br />

EDIÇÃO GRÁFICA Tábata Romero<br />

Em tempos de Nina e Carminha,<br />

de avenidas turbulentas e de<br />

um despejo de lixo televisivo tão<br />

asqueroso quanto os segredos<br />

que ali se escondem, outro lixão<br />

disputa espaço na linha temporal.<br />

Um lixão real, com histórias de<br />

vida reais. Um lixão que, apesar<br />

do amontoado de sujeira,<br />

entulho e detritos, revela-se um<br />

lugar de pessoas claras, límpidas<br />

e brilhantes.<br />

Esse é o lixão de Jardim<br />

Gramacho, o maior da América<br />

Latina, que apresenta aos<br />

espectadores do documentário<br />

“Lixo Extraordinário”, dirigido por<br />

João Jardim, Karen Harley e Lucy<br />

Walker, as histórias de vida de alguns<br />

catadores que ali trabalham.<br />

Histórias radicalmente mudadas<br />

pelas ideias do artista plástico<br />

brasileiro Vik Muniz, que trazem<br />

uma maior qualidade de trabalho<br />

para a Associação dos Catadores<br />

do Aterro Metropolitano do<br />

Jardim Gramacho e dignificam os<br />

personagens. Estes, por sua vez,<br />

desenvolvem uma trama forte e<br />

sólida durante todo o documen-<br />

tário, fazendo o espectador sentir<br />

nojo, revolta (com o mundo e<br />

consigo mesmo), felicidade, entre<br />

outros sentimentos que, no fim,<br />

se confundem com lágrimas de<br />

emoção que marcam o rosto.<br />

O lixão de Jardim Gramacho<br />

recebia, até o início de 2012, 70%<br />

dos resíduos de toda a capital do<br />

Rio de Janeiro e das cidades da<br />

região metropolitana. Vik, com<br />

sua arte contemporânea, teve<br />

como objetivo criar obras que<br />

se utilizam não só dos materiais<br />

retirados do lixão, como também<br />

(e principalmente) tenham<br />

o foco central nas pessoas que<br />

lá trabalham. E é assim que ele<br />

tira da margem tudo aquilo que a<br />

sociedade caracteriza como lixo,<br />

sejam os produtos que ela consome,<br />

sejam as pessoas que em<br />

Gramacho trabalham, consumidas<br />

e degradadas pelo sistema. O<br />

artista plástico dá vida ao clichê<br />

“do lixo ao luxo”, quando faz do<br />

lixo e das pessoas julgadas como<br />

tal um objeto de arte, exposto<br />

em galerias, leiloado na Europa, e<br />

tendo o segundo maior número<br />

de visitações a uma exposição<br />

no país (perdendo apenas para<br />

Picasso).<br />

Mas o que chama mais atenção<br />

no documentário não são<br />

as obras, mas sim seus autorespersonagens.<br />

Muniz não imaginava<br />

o quão envolvido com a<br />

comunidade do local se sentiria.<br />

Esse envolvimento é capaz de<br />

mostrar a visão do mundo dos<br />

catadores de Gramacho. É capaz<br />

de mostrar quão letrados podem<br />

ser, tecendo filosofias de Nietzsche<br />

ou ensinamentos de “A Arte<br />

da Guerra”, de Sun Tzu.<br />

À medida que os catadores<br />

passam a fazer parte do processo<br />

de criação de Muniz, fica evidente<br />

que não há como sair inalterado<br />

do encontro com outros<br />

modos de vida e com a arte. É o<br />

choque pós-moderno do estrato<br />

marginalizado com o artista. É a<br />

real exemplificação do “mito da<br />

caverna” contemporâneo.<br />

“Lixo Extraordinário” honra<br />

seu nome e seus personagens.<br />

Honra uma arte comprada por<br />

um preço alto, mas sem que<br />

sapatos Louboutin ou ternos Armani<br />

passem perto de Gramacho.<br />

Enquadra os artistas-personagens<br />

de forma a mostrar quão belo<br />

pode se tornar um ambiente tão<br />

degradado. Ele é a soma de várias<br />

histórias que, juntas, totalizam<br />

um incrível e belo universo de<br />

criação e emoção. É a glamourização<br />

do lixo. O embelezamento<br />

da margem, do marginalizado.<br />

É uma soma que não se desfaz.<br />

Uma soma que é completa, cem<br />

por cento, não noventa e nove.<br />

32 outubro 2012


O Banksy nosso de cada dia<br />

TEXTO Lincon Zarbietti<br />

EDIÇÃO GRÁFICA Elisabeth maria de souza camilo<br />

Ouvidos? Muito mais que isso! Hoje, as paredes,<br />

muros e até mesmo os postes têm boca, linguagem<br />

própria. Era tudo o que a semiótica moderna queria:<br />

se expressar sem usar palavras. Mas espera aí, quando<br />

morávamos nas cavernas já nos expressávamos<br />

sem palavras. Porém, a necessidade de difundir uma<br />

língua, universalizar o conhecimento (ou os dogmas)<br />

e autoafirmar tal invenção tornaram obscuro, e muitas<br />

vezes proibido, o universo da crítica imagética,<br />

da mensagem sem dizeres, da figura que possui voz.<br />

Experimentamos, hoje, uma volta ao passado,<br />

que mais indica um avanço intelectual do que<br />

um retrocesso. Não é mais necessário utilizar-se<br />

das palavras ou de uma língua para se expressar,<br />

sobretudo para criticar. A única condição é utilizar o<br />

cérebro para transmitir a mensagem de uma forma<br />

mais criativa, mais interessante ou mais bonita,<br />

plasticamente falando.<br />

Isso é “arte urbana”, uma ação que engloba<br />

processos criativos como a pichação, o grafite, os<br />

estêncils, os cartazes lambe-lambe, as intervenções<br />

e etc, e que funciona como um marketing de guerrilha<br />

público, defendendo um ponto de vista, uma<br />

camada social, um sentimento ou apenas expressan-<br />

do uma forma de ver o mundo.<br />

Tudo isso compõe as ações da<br />

arte urbana, idealizada pelo inglês<br />

John Ruskin, um dos mestres do<br />

movimento pós-urbanista, por<br />

meados do século XVIII. Léo<br />

Tolstói, famoso escritor russo,<br />

descreveu Ruskin como um “um<br />

desses homens raros que pensam<br />

com seu coração”. Sem saber,<br />

Tolstói descrevia a arte urbana.<br />

Frente à dificuldade de se<br />

enquadrarem tais ações, muitas<br />

feitas à revelia das autoridades<br />

e dos proprietários, no que se<br />

refere aos conceitos de arte<br />

pública, assiste-se, hoje, a um ressurgimento<br />

da designação de arte<br />

urbana, que passou a incluir todo<br />

o tipo de expressões criativas no<br />

espaço coletivo. É a arte que se<br />

faz no contexto urbano, aquele à<br />

margem das instituições públicas<br />

e de suas convenções.<br />

foto: Lucas Lima<br />

Grafite: meleca<br />

outubro 2012<br />

33


TEXTO Eduardo Almeida<br />

EDIÇÃO GRÁFICA Tábata Romero<br />

Volta pro Orkut<br />

46.302 curtiram · 7.183 falando sobre isso<br />

Quantas vezes você já se flagrou pensando sobre a<br />

ação de pessoas que talvez nem tenham ideia do que estejam<br />

fazendo na internet, postando e comentando o que não<br />

se deve? Esta situação causa um mal estar online ou uma<br />

marginalização dos usuários.<br />

Em outubro, o Facebook anunciou a marca de 1 bilhão de<br />

usuários ativos, e o Brasil está entre os cinco países com<br />

mais usuários, junto a Estados Unidos, Indonésia, México<br />

e Índia. Alguns números mostram a grande explosão<br />

das redes sociais: 1,13 trilhão de curtidas, 140 bilhões de<br />

conexões entre contatos e 219 bilhões de fotos publicadas,<br />

dentro das quais a do seu tio bêbado beijando o cachorro de<br />

estimação na boca.<br />

Uma coisa é certa, o sentimento de vergonha alheia<br />

permeia todas as atividades na rede. Quando se fala em<br />

uma possível Orkutização do Facebook, você julga valores<br />

tanto do iniciante na rede quanto dos veteranos nela e que<br />

se acham no direito de estipular regras para o bom comportamento<br />

online, uma guerra que pode explodir a qualquer<br />

clique.<br />

Tem gente que já excluiu a própria mãe no Facebook.<br />

Foi o caso de André Nascimento, 32, que se irritou com os<br />

comentários dela no perfil dele.<br />

Volta pro Orkut<br />

Há 8 horas via web<br />

Publicar<br />

Essa marginalização não é exclusiva de sua família,<br />

todos passam por isso, até quem cria conteúdo para a internet.<br />

Denise Dambros (@Deeercy) é integrante da trupe do<br />

Casseta e Planeta, responsável pela produção de conteúdo<br />

na Fan Page e no Blog do Casseta. Ela explica que, para<br />

eles, a internet é vista com outros olhos, já que a principal<br />

produção é na TV, onde possuem 30 milhões de expectadores,<br />

de advogados a analfabetos. “Quando eu crio alguma<br />

postagem, eu levo em consideração o público do programa.<br />

Se pararmos pra pensar, uma porcentagem muito pequena<br />

de pessoas sabe o que é “meme”, ou conhece o “internetês”.<br />

Curtir . Comentar . Compartilhar<br />

Volta pro Orkut<br />

Há 12 horas via web<br />

Avatar de Denise Dambros nas redes sociais.<br />

Curtir . Comentar . Compartilhar . Marcar amigo<br />

Volta pro Orkut<br />

Há 15 horas via web<br />

Outra pessoa que sempre produz conteúdo é Leandro<br />

Santos, ou para alguns, @MussumAlive. Dono de um perfil na<br />

internet com mais de 110 mil seguidores, é responsável pelo<br />

blog Bebida Liberada, que já foi alvo de críticas negativas de<br />

pessoas que talvez nem conhecessem bem o projeto. “No<br />

começo houve más interpretações, principalmente por acharem<br />

que eu estimulava o consumo irresponsável de bebida<br />

alcoólica, imagem essa que já consegui desfazer depois de<br />

muito trabalho”.<br />

Quando o assunto é a criação de um Manual Para Novos<br />

Usuários, uma divisão se faz entre Dercy e Mussum. Leandro<br />

e Denise têm opiniões diferentes. Ela aposta em um código<br />

de ética para a internet, e ele defende que um Manual deixaria<br />

a internet engessada. O blogueiro afirma ainda que, por<br />

diversas vezes, são essas falhas que deixam a internet mais<br />

legal. Bom senso e desodorante não fazem mal a ninguém!<br />

Avatar de @MussumAlive nas redes sociais.<br />

Curtir . Comentar . Compartilhar . Marcar amigo<br />

34 outubro 2012


emana de<br />

omunição<br />

A Narrativa e<br />

Construção do Herói<br />

Março/2013<br />

O Centro Acadêmico do curso de Jornalismo<br />

traz até você a IV Semana de Comunicação da<br />

UFOP. Com o tema “Narrativa e Construção do<br />

Herói”. Os estudantes terão a oportunidade<br />

de participar de palestras, minicursos e<br />

oficinas em todas as áreas da Comunicação.<br />

Realização:<br />

Apoio:


www.revistacuringa.ufop.br<br />

36 outubro 2012

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