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Revista Curinga Edição 03

Revista Laboratorial do Curso de Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Ouro Preto.

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Eu, elas e toda a história<br />

por Izabella Magalhães<br />

Acordei com aquela vontade de sábado de sol ainda morno pelo frescor matinal.<br />

Clima armado para vagar em estradas retas, cruzar paisagens e desejos, viajar. E<br />

então eu fui ‘pras’ bandas de lá, fui viajar, pra ver o sol morrendo no mar. Play.<br />

Cheguei na Atlântica deserta do Rio de Janeiro. Na altura de Ipanema, a Helô<br />

se bronzeava, sorriu pra mim e fumamos um cigarro juntas, mirando o mar gelado,<br />

compartilhando a nossa origem, a dela mundialmente ofertada, a minha, ainda<br />

caipira da Ipanema do interior de Minas, quase norte. Falávamos banalidades<br />

tropicais quando a Kátia chegou. Kátia Flávia, também loiraça belzebu. Estacionou<br />

seu cavalo branco, pediu um trago e tentou explicar como era bom sentir o<br />

pelo do equino na pele nua, toda nua. Rimos por horas, bebemos muito. Eu, elas<br />

e a turma que chegou no Fusca vermelho. Tereza e Bárbara passaram no bar da<br />

sinuca lá no morro, e trouxeram Dona Zica, que tinha terminado o rango mais<br />

cedo, regou as rosas e veio. Foi uma manhã elaborada diretamente pelos deuses.<br />

Trocamos impressões sobre as mudanças na Baía de Guanabara, e sobre a camisa<br />

verde e amarela que vestiram no Cristo, coisas atravessadas. Me despedi, precisava<br />

abastecer o tanque, e se demorasse muito pegaria um trânsito infernal.<br />

Estava a 180 por hora, no retrovisor agora só as curvas e a imagem delas,<br />

todas elas, até as que ainda não viraram palavra cantada. A namorada<br />

de um amigo meu pedia carona na BR. Parei. Mas nosso lance foi bem rápido,<br />

ela só teve tempo de contar daqueles loucos hormônios que viviam nos<br />

corpos maravilhosos da década de 60. Desceu na altura de Maresias. Báái!!<br />

Foi de repente, encostei para um drink. Era um café velho, com cara de bar da esquina.<br />

Sentei afastada, atenta àquele cenário de angústias. Beatriz nem disse palavra<br />

ao sentar em frente a mim. Só falou minutos depois. Estava triste por perder aquele<br />

papel importante na próxima peça da praça Roosevelt, “foi por um triz”, ela soltou.<br />

Maquiagem borrada de choro antigo, e todo o mal estar dessas almas que não andam<br />

com pés no chão, mas ela era blasé, fingia com beleza. Foi a minha vez de não dizer<br />

nada. Dei um beijo longo naqueles cabelos enrolados e segui. Eu precisava seguir.<br />

Pousei na Bahia abençoada como quem pousa na vida pela primeira vez, tudo mais<br />

bonito, só curiosidade. Lembrei do endereço de Marina e corri. Estava acontecendo<br />

uma pequena festa para minha alegria e deleite. Marina tinha parado de se pintar,<br />

‘tava linda como sempre, embora tivesse perdido um pouco da morenice. A Irene estava<br />

lá com aquele sorriso solto, contando os causos da última festa da Purificação<br />

em Santo Amaro. “A Bahia toda estremece a cada fevereiro, saravá!” Eu toda ouvidos,<br />

só matutava. Vera gatona servia mais cerveja a todas. “Flora, tu quer? Drão, tem aí?<br />

Doralice nega, pegue mais!” E eu junto. A campainha tocou. “Devem ser elas!”, disse<br />

Vera. Chegaram as viajantes: aquela morena tropicana, ex-namorada do Alceu (que<br />

infinitude de mulher!), e junto dela Risoflora (levava uma flor na mão e dizia ter<br />

largado de vez a maloca). Um pouco atrás, entrou cheia de sacolas de pano a rainha<br />

Maria da Graça Gal, a mais fina e gostosa raiz de toda a Bahia. Foi só então<br />

que eu entendi a troco de quê minhas queridas estavam reunidas. Era a festa da<br />

origem, era um brinde à Mousikê, a “arte das musas”. Elas encenariam o nascimento<br />

da música através das nove filhas de Mnemosina e Zeus. Cada uma representando<br />

o nascimento da canção, a vida e a memória eternizadas em nota e movimento.<br />

Foi lindo, divino-maravilhoso. Elas dançaram e o sol se pôs, vi pelo vidro<br />

da janela o exato momento em que o mar o engoliu. E eu? Eu passaria toda a<br />

existência na presença daquelas alegrias. Seria capaz de não voltar<br />

mais, a partir dali tudo estaria adiado, até o tempo. Foi o que fiz dentro de<br />

mim. Um pacto silencioso entre nós. Eu e elas, elas e todo o som da história.

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