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Pág. 10 | DISTRIBUIÇÃO GRATUITA! Jornal Comunitário de Maringá | Ano 01 | Edição <strong>004</strong> | Maringá, abril de <strong>2018</strong><br />
A ONÇA NÃO É O MAIOR PROBLEMA<br />
Professor de História percorre 10.600km sobre uma moto em um ano para dar aulas<br />
às crianças que vivem na floresta e as margens dos rios amazônicos.<br />
Sou Antonio Luiz do Nascimento Júnior, mineiro de nascença, mas<br />
paraense de adoção. Atualmente vivo na cidade de Altamira, sou Historiador e Professor de História do Ensino Médio e<br />
Atuo em uma modalidade de ensino chamado Sistema Modular de Ensino (SOME), onde cobrimos anualmente<br />
04 localidades, ficando cerca de 50 dias em cada uma delas completando assim os 200 dias letivos.<br />
Antonio Luiz do Nascimento Júnior Historiador<br />
ALTAMIRA DO PARÁ • Em meu<br />
trabalho geralmente fico de segunda a<br />
sexta feira na localidade, deixo em casa<br />
minha esposa e minha filha e parto para<br />
a “Casa dos Professores”. Estas casas<br />
na grande maioria das vezes, são<br />
alugadas pelas prefeituras locais. São<br />
casas em áreas isoladas, em péssimas<br />
condições de habitação e comumente<br />
“visitadas” por animais peçonhentos.<br />
Meu traslado é custeado por mim<br />
mesmo. Quando vou para localidades<br />
ribeirinhas (povos das águas), geralmente<br />
vou de barco ou “catraias” (pequenas<br />
embarcações com um motor<br />
rabeta), voadeira, ou barco motor.<br />
As travessias do Rio Amazonas em<br />
catraias eram realmente muito perigosas,<br />
uma vez que não era raro ser surpreendido<br />
por temporais no meio da<br />
travessia. Quando vou para “povos do<br />
campo”, (agricultores) ou “povos da<br />
floresta” (povos indígenas e quilombolas),<br />
a viagem é feita de caminhão, ônibus<br />
e na maioria das vezes, de moto.<br />
De igual modo, as viagens são<br />
custeadas por nós os professores. Sob<br />
as mais distintas circunstâncias, poeira,<br />
lama, atoleiros e outras dificuldades.<br />
Sempre se diz: “estou saindo, mas<br />
não sei que hora chegarei”.<br />
Quanto ao transporte dos alunos,<br />
geralmente é feito por pessoas contratadas<br />
pelas prefeituras que alugam<br />
seus veículos para tal serviço. Os alunos<br />
dos povos do campo e povos da<br />
floresta, geralmente vão para a escola<br />
de ônibus, de vãs, na carroceria de<br />
caminhões (conhecidos como Pau de<br />
Arara ou Pombal). Em condições de<br />
desconforto e perigo,<br />
Quando o veículo atola, todos tem<br />
que descer e empurrar até que o veículo<br />
seja desatolado. Não é raro ocorrer<br />
atrasos do início da aula, devido problemas<br />
ocorridos no percurso onde o<br />
professor tem que ficar esperando o<br />
“carro dos alunos” chegar, bem como,<br />
ter que antecipar o final da aula para<br />
que os alunos não cheguem demasiadamente<br />
tarde em casa.<br />
As condições das escolas fazem<br />
das pessoas envolvidas nessa modalidade<br />
de ensino verdadeiros heróis.<br />
Existem escolas com alguma estrutura,<br />
é bem verdade. Mas escolas assim são<br />
exceções pois, a maioria das escolas<br />
ficam muito aquém do básico exigido.<br />
Há localidades que não tem sala<br />
de aula dedicadas aos alunos do “modular”,<br />
onde temos que lecionar em<br />
palhoças, ou debaixo de mangueiras<br />
(árvore da manga), e quando é época<br />
da frutos maduros, caem em nossas<br />
cabeças. Salas de aulas sem paredes,<br />
sem ventiladores, sem energia elétrica,<br />
sem merenda, sem água e pasmem<br />
até sem quadros eu já encontrei nesses<br />
meus 10 anos de professor do SOME.<br />
Outras vezes as salas são superlotadas<br />
com mais de 40 alunos por sala,<br />
o que contribui para a evasão dos alunos,<br />
devido o desconforto, o calor e o<br />
barulho dentro da sala de aula. Mas<br />
somos teimosos apesar do descaso do<br />
governo do estado e de algumas prefeituras<br />
que não assinam o convênio, o<br />
SOME sobrevive e todos os anos alunos<br />
estão formando e estão ingressando<br />
nas universidades mediante essa<br />
modalidade de ensino.<br />
Em uma dessas ocasiões eu estava<br />
lecionando em uma localidade chamada<br />
Alto Brasil, localizada no município<br />
de Senador José Porfírio. Era época do<br />
Inverno Amazônico, chovia bastante, o<br />
que tornava as estradas muito lisas<br />
lamacentas, eu estava em uma moto de<br />
100 cilindradas e com os pneus bastante<br />
usados, a moto dançava para um lado<br />
e para o outro.<br />
Era dia de prova, eu tinha que ir<br />
para a localidade, os alunos vieram de<br />
longe na carroceria de caminhão para<br />
assistir a aula e fazer a prova. A chuva<br />
deu uma trégua e o sol estava brilhando.<br />
Tranquilizei-me porque chegaria<br />
sem sobressaltos à escola.<br />
À minha frente tinha uma curva<br />
aberta de alta velocidade, mas a areia<br />
molhada pesada e escorregadia, não<br />
me permitia correr. Quando terminei<br />
de fazer a curva e cheguei a uma reta,<br />
então avistei ali na frente uma linda e<br />
assustadora onça pintada deitada no<br />
meio da estrada. Acho que ela estava<br />
“tomando sol”. Então pensei: - Valha -<br />
me Deus! E agora? Moto não tem<br />
macha ré, parei, matutei e tomei uma<br />
decisão. Vou buzinar. Buzinei, buzinei<br />
e passado uns instantes que para mim<br />
pareceram uma eternidade a onça se<br />
levantou, olhos para mim, deu uma<br />
rosnada de desagrado, saiu trotando<br />
por uns trinta metros estrada afora e<br />
entrou no mato.<br />
Por um momento me esqueci da<br />
estrada escorregadia, da areia encharcada<br />
e de outras limitações, acelerei o<br />
quanto pude para saí dali. Quando<br />
cheguei à escola contei a história para<br />
os alunos, rimos muito juntos da situação,<br />
apliquei a prova para eles cumprindo<br />
assim minha missão de professor<br />
na Selva Amazônica.<br />
Já encontrei muitos animais selvagens<br />
nas estradas por onde passei,<br />
mas encarar a temida onça pintada foi<br />
a única e espero ser a última vez.<br />
Enquanto isso, vamos enfrentando<br />
uma “fera” de cada vez, não feras pintadas,<br />
mas feras reais, falta de transporte<br />
adequado, falta de salas de aula<br />
adequadas, carência de materiais didáticos,<br />
falta de professores para todas<br />
as disciplinas, convivência com pessoas<br />
diferentes, perigos na estrada, no<br />
rio, e outas dificuldades.<br />
Mas apesar de tudo isso, prosseguimos<br />
manifestando contra, nos<br />
organizando e defendendo a bandeira<br />
de que os povos tradicionais e imigrantes<br />
do interior da Amazônia tem o<br />
direito de ser assistido por um professor<br />
em sala de aula.<br />
Pessoalmente não me vejo sendo<br />
outra coisa, a não ser professor de<br />
História do Ensino Modular, sou exaluno<br />
desse sistema e quero que<br />
outros tantos sigam esse caminho, ou<br />
caminho que desejarem seguir. Porque<br />
para nós encarar uma Onça na<br />
estrada é um dos menores problemas!■