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Revista do Historiador - APH 193

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EDIÇÃO <strong>193</strong><br />

REVISTA DO NOVEMBRO E DEZEMBRO DE 2017<br />

HISTORIADOR<br />

O PRIMEIRO LENTE DA FACULDADE<br />

DE DIREITO DE SÃO PAULO<br />

PADRE<br />

MANUEL<br />

DA NÓBREGA<br />

ABÍLIO E<br />

MANUEL<br />

DE BARROS<br />

OS HERÓIS<br />

DA PÁTRIA<br />

SEÇÃO ESPECIAL


Membros Titulares<br />

Diretoria de 2015 a 2017<br />

ACADEMIA PAULISTA DE HISTÓRIA<br />

Presidente:<br />

Luiz Gonzaga Bertelli - Cadeira 21<br />

Patrono: Rafael Maria Galante<br />

Antecessor: Pe. Hélio Abranches Viotti<br />

Vice-Presidente:<br />

Ruy Martins Altenfelder Silva -<br />

Cadeira 1<br />

Patrono: Francisco A<strong>do</strong>lfo de<br />

Varnhagen<br />

Antecessor: José da Veiga Oliveira<br />

Secretária-Geral:<br />

Yvonne Capuano - Cadeira 23<br />

Patrono: Júlio de Mesquita Filho<br />

Antecessor: Helio<strong>do</strong>ro Tenório da Rocha<br />

Marques<br />

Adilson Cezar - Cadeira 33<br />

Patrono: Afonso Antônio de Freitas<br />

1 ª Secretária:<br />

Ana Maria de Almeida Camargo -<br />

Cadeira 24<br />

Patrono: Simão de Vasconcelos<br />

Antecessor: Álvaro <strong>do</strong> Amaral<br />

Acadêmicos<br />

Agostinho Toffoli Tavolaro -<br />

Cadeira 38<br />

Patrono: Francisco José de Oliveira Viana<br />

Tesoureiro:<br />

Ney Pra<strong>do</strong> - Cadeira 20<br />

Patrono: José Feliciano Fernandes<br />

Pinheiro<br />

Antecessor: Israel Dias Novaes<br />

Alzira Lobo de Arruda Campos -<br />

Cadeira 39<br />

Patrono: Alexandre de Melo Morais<br />

Antecessor: José Augusto Vaz Valente<br />

Antecessor: Odilon Nogueira de Mattos<br />

Antecessor: Ernâni da Silva Bruno<br />

Ana Luiza Martins - Cadeira 12<br />

Patrono: Manuel Eufrásio de Azeve<strong>do</strong><br />

Marques<br />

Antecessor: Hernâni Donato<br />

Antonio Fernan<strong>do</strong> Costella -<br />

Cadeira 14<br />

Patrono: João Pandiá Calógeras<br />

Antecessor: Celso Maria de Mello Pupo<br />

Antonio Pentea<strong>do</strong> Men<strong>do</strong>nça -<br />

Cadeira 11<br />

Patrono: Frei Gaspar da Madre de Deus<br />

Antecessor: Duílio Crispim Farina<br />

Célio Salomão Debes - Cadeira 4<br />

Patrono: João Capistrano de Abreu<br />

Antecessor: (funda<strong>do</strong>r)<br />

Douglas Michalany (Pres. Emérito) -<br />

Cadeira 13<br />

Patrono: José Francisco da Rocha Pombo<br />

Antecessor: Pedro Ferraz <strong>do</strong> Amaral<br />

Duilio Battistoni Filho - Cadeira 3<br />

Patrono: Washington Luís Pereira<br />

de Sousa<br />

Antecessor: Antônio Barreto <strong>do</strong> Amaral<br />

Ebe Reale - Cadeira 40<br />

Gaudêncio Torquato - Cadeira 7<br />

Geral<strong>do</strong> Nunes - Cadeira 26<br />

Patrono: Antônio de Tole<strong>do</strong> Piza<br />

Patrono: Alexandre de Gusmão<br />

Patrono: Diogo de Vasconcelos<br />

Antecessor: José Gonçalves Salva<strong>do</strong>r<br />

Gui<strong>do</strong> Arturo Palomba - Cadeira 9<br />

Patrono: Frei Vicente <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r<br />

Antecessor: Samuel Pfromm Netto<br />

Heloisa Maria Silveira Barbuy -<br />

Cadeira 17<br />

Patrono: Tobias Monteiro<br />

Antecessor: José Affonso de Moraes<br />

Passos<br />

Heró<strong>do</strong>to de Souza Barbeiro -<br />

Cadeira 19<br />

Patrono: Fernão Cardim<br />

Antecessor: Raul de Andrada e Silva<br />

Antecessor: Emmanuel Soares da<br />

Veiga Garcia<br />

Antecessor: Délio Freire <strong>do</strong>s Santos


Ives Gandra da Silva Martins -<br />

Cadeira 16<br />

Patrono: Afonso d’Escragnolle Taunay<br />

Jacques Marcovitch - Cadeira 32<br />

Patrono: Euclides da Cunha<br />

João Monteiro de Barros Filho -<br />

Cadeira 22<br />

Patrono: Barão <strong>do</strong> Rio Branco<br />

Antecessor: Eduar<strong>do</strong> d’Oliveira França<br />

Antecessor: Mauro Chaves<br />

Antecessor: Hélio Damante<br />

João Natale Netto - Cadeira 18<br />

Jorge Alves de Lima - Cadeira 31<br />

José Maria <strong>do</strong>s Santos - Cadeira 27<br />

Patrono: Américo Brasiliense Antunes<br />

de Moura<br />

Antecessor: Al<strong>do</strong> Janotti<br />

Patrono: Gabriel Soares de Sousa<br />

Antecessor: Jesus Macha<strong>do</strong> Tambellini<br />

Patrono: Aurélio Porto<br />

Antecessor: Erwin Theo<strong>do</strong>r Rosenthal<br />

José Nêumanne Pinto - Cadeira 2<br />

José Renato Nalini - Cadeira 37<br />

Marcos Pra<strong>do</strong> Troyjo - Cadeira 35<br />

Patrono: Júlio Meilli<br />

Patrono: Alexandre Rodrigues Ferreira<br />

Patrono: José de Alcântara Macha<strong>do</strong><br />

Antecessor: José Sebastião Witter<br />

Antecessor: José Geral<strong>do</strong> Evangelista<br />

Antecessor: Miguel Reale<br />

Maria Beatriz Nizza da Silva -<br />

Cadeira 25<br />

Patrono: João Ribeiro<br />

Antecessor: Jorge Bertolaso Stella<br />

Maria Cecília Naclério Homem -<br />

Cadeira 5<br />

Patrono: Pedro Taques de Almeida<br />

Pais Leme<br />

Antecessor: Manoel Rodrigues Ferreira<br />

Maria Lúcia Perrone de Faro Passos -<br />

Cadeira 10<br />

Patrono: Manuel de Oliveira Lima<br />

Antecessor: Maria Lúcia de Souza<br />

Rangel Ricci<br />

Nelly Martins Ferreira Candeias -<br />

Cadeira 30<br />

Patrono: Brasílio Macha<strong>do</strong><br />

Paulo Bomfim - Cadeira 29<br />

Patrono: Pedro de Magalhães Gandavo<br />

Paulo Nathanael Pereira de Souza -<br />

Cadeira 8<br />

Patrono: João Antônio Andreoni<br />

Antecessor: Isaac Grinberg<br />

Antecessor: José de Melo Pimenta<br />

Antecessor: Alice Piffer Canabrava<br />

Roberto Macha<strong>do</strong> Carvalho -<br />

Cadeira 6<br />

Patrono: João Francisco Lisboa<br />

Shozo Motoyama - Cadeira 15<br />

Patrono: Serafim Leite<br />

Wálter Fanganiello Maierovitch -<br />

Cadeira 28<br />

Patrono: Teo<strong>do</strong>ro Fernandes Sampaio<br />

Antecessor: Pedro Brasil Bandecchi<br />

Antecessor: Dival<strong>do</strong> Gaspar de Freitas<br />

Antecessor: Emeric Lévay<br />

Vago - Cadeira 34<br />

Vago - Cadeira 36<br />

Patrono: Jaime Cortesão<br />

Patrono: Basílio de Magalhães<br />

Antecessor: Manuel Nunes Dias<br />

Antecessor: Myriam Ellis


SUMÁRIO<br />

EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 05<br />

ABÍLIO E MANUEL DE BARROS . . . . . . . . . . . . . . . . . 06<br />

MEDITAÇÃO PARA SÃO PAULO . . . . . . . . . . . . . . . . . 09<br />

PADRE MANUEL DA NÓBREGA . . . . . . . . . . . . . . . . . 12<br />

JOSÉ MARIA DE AVELAR BROTERO. . . . . . . . . . . . . 16<br />

LINHA TELEGRÁFICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20<br />

DICAS DE LEITURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21<br />

OS HERÓIS DA NOSSA PÁTRIA (FINAL). . . . . . . . . 22<br />

O MAGNÍFICO RAPAZOLA! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26<br />

REGISTRO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30<br />

CARTAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31<br />

Editor Responsável<br />

Luiz Gonzaga Bertelli<br />

MTb: 10.170<br />

Conselho Editorial<br />

Ana Maria de Almeida Camargo<br />

Gaudêncio Torquato<br />

Luiz Gonzaga Bertelli<br />

Ruy Martins Altenfelder Silva<br />

Apoio<br />

Fabiana Rosa<br />

Produção Editorial e Gráfica<br />

Py Brasil Comunicação<br />

Fotos: Py Brasil; FD; divulgação e<br />

reprodução.<br />

Uma publicação editada pela<br />

Academia Paulista de História,<br />

fundada em 18 de dezembro de 1972.<br />

As matérias assinadas não são<br />

de responsabilidade da Academia.<br />

Academia Paulista de História<br />

Rua Caçapava, 49 - conj. 76<br />

São Paulo/SP - CEP: 01408-010<br />

Tel.: (11) 3085-9014<br />

E-mail: lgbertelli@uol.com.br<br />

4<br />

novembro / dezembro de 2017


Editorial<br />

DÉCADAS DE UMA<br />

HISTÓRIA QUE<br />

NÃO TERÁ FIM!<br />

Chegamos à edição <strong>193</strong> da <strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r! E pensar que começamos com um simples<br />

Boletim, de poucas páginas, poucas cores, mas sempre com o objetivo de levar a história ao seu público de<br />

uma forma completa, rica em histórias. Histórias compartilhadas por seus acadêmicos, por admira<strong>do</strong>res<br />

da Academia Paulista de História, admira<strong>do</strong>res da história de São Paulo, da história <strong>do</strong> nosso país.<br />

Ao longo dessas <strong>193</strong> edições, nova forma, novas cores, novos layouts foram estuda<strong>do</strong>s, e hoje<br />

temos uma <strong>Revista</strong> que é motivo de orgulho. Os leitores aguardam pelas edições bimestrais,<br />

eles opinam, sugerem e agradecem, e isso nos enche de orgulho.<br />

Quantas personalidades, homenagens, registros, mensagens, concursos, cursos, imagens pudemos<br />

divulgar, compartilhar em nossa <strong>Revista</strong>. E assim queremos permanecer, levar aos nossos<br />

leitores, acadêmicos, historia<strong>do</strong>res, estudantes... o melhor da história de São Paulo.<br />

Por isso, desejo um ano de 2018 repleto de boas histórias e muita felicidade! E que essa edição<br />

<strong>193</strong> da <strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r permita mergulhar nos diversos artigos interessantes e prazerosos<br />

que trouxemos para você.<br />

Aproveite mais essa edição, que foi elaborada com to<strong>do</strong> o carinho de sempre.<br />

Ótima leitura!<br />

Foto: Jeff Dias<br />

LUIZ GONZAGA BERTELLI<br />

Presidente e titular da cadeira<br />

n o 21 da Academia Paulista<br />

de História – <strong>APH</strong>.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 5


Trajetória<br />

Raquel Naveira,<br />

acadêmica da Academia Cristã de Letras – ACL.<br />

DOIS IRMÃOS:<br />

ABÍLIO E MANUEL<br />

Abro o pequeno livro Poesia de Abílio de<br />

Barros como se fosse um presente envolto<br />

em laços delica<strong>do</strong>s. Na capa, um desenho de<br />

traços rápi<strong>do</strong>s, perfil de Abílio feito pelo artista<br />

plástico Jorapimo, durante uma viagem<br />

de ambos a Corumbá, que o assinou e lhe<br />

entregou com a seguinte dedicatória: “Para<br />

o irmão <strong>do</strong> ‘cabeludinho’”, no caso, Manuel<br />

de Barros. Sim, Abílio de Barros, o pecuarista<br />

e produtor rural; advoga<strong>do</strong>; escritor, <strong>do</strong>no<br />

de uma prosa clássica, vigorosa e discursiva;<br />

o “Guardião <strong>do</strong> Pantanal” é irmão <strong>do</strong> poeta<br />

Manuel de Barros. Da mesma estirpe cuiabana,<br />

da mesma seiva, <strong>do</strong> mesmo lugar onde<br />

os rios são “cobras de água andan<strong>do</strong> por<br />

dentro <strong>do</strong>s olhos”.<br />

6<br />

novembro / dezembro de 2017


as imagens mais conhecidas da<br />

atualidade e valem milhões de<br />

dólares. Theo permaneceu fiel<br />

até o fim no seu amor fraternal.<br />

Abílio Leite de Barros e Manuel de Barros<br />

ABílio, iRmão caÇula, lembrou-me<br />

de repente a história de Th e o, negociante<br />

de arte, irmão mais novo de Vincent Van<br />

Gogh, que deu a ele to<strong>do</strong> suporte e apoio<br />

financeiro para que se dedicasse exclusivamente<br />

à pintura: tintas, telas, viagens, mesada,<br />

estúdio. Os irmãos durante anos,<br />

trocaram cartas comoventes, em que Theo<br />

procurava encorajar o irmão depressivo e<br />

Vincent revelava seus pensamentos, sua<br />

alma torturada de artista. Certa vez, escreveu<br />

a Theo manifestan<strong>do</strong> o desejo de pintar<br />

retratos que tivessem vitalidade: “associan<strong>do</strong><br />

duas cores complementares, sua mescla e<br />

sua oposição, têm-se as misteriosas vibrações<br />

de tons análogos”. Como sofreu Theo<br />

ven<strong>do</strong> aquele intelecto superior balança<strong>do</strong><br />

por emoções perturbadas; o temperamento<br />

explosivo e confuso; os ataques de nervos; a<br />

ansiedade em alto grau; as alucinações; as<br />

hemorragias; o suicídio com arma de fogo!<br />

Tu<strong>do</strong> ficou para sempre impresso no autoretrato<br />

de Van Gogh: a barba ruiva e áspera, a<br />

boca infeliz, as pálpebras caídas e, ao fun<strong>do</strong>,<br />

um caos azul e cinza de redemoinho turbulento.<br />

Que contraste entre o sucesso póstumo<br />

e o fracasso e a rejeição que o artista<br />

experimentou em vida! Curta vida. Longa<br />

arte. Os quadros de Van Gogh estão entre<br />

Um pouco assim foi Abílio para<br />

Manuel: o irmão sempre presente,<br />

lúci<strong>do</strong> na condução das finanças,<br />

consultor e amigo <strong>do</strong>s sobri-<br />

nhos, porto seguro em meio a tempestades<br />

familiares e políticas. Manuel vivia para a poesia,<br />

dizia que “estudara Direito por linhas tas”, que Deus ajeitara nele um <strong>do</strong>m: “pertencer<br />

torpara<br />

uma árvore, escutar o perfume <strong>do</strong>s rios”.<br />

Era alguém que não desejava “cair em sensatez”<br />

e que só almejava o “fetiço das palavras”.<br />

De iRmão PaRa iRmão: C o m o Th e o ,<br />

marchand, que amava a pintura e apresentou<br />

Vincent a artistas como Degas, Pissarro e<br />

Lautrec, que lhe ensinaram as técnicas impressionistas,<br />

descobrimos, súbito, que Abílio<br />

amava a poesia e desejou um dia, em sua<br />

juventude, ser poeta. Descobrimos que Abílio<br />

renunciou à poesia; afinal, a mãe reconhecera<br />

em Manuel o poeta e vaticinara: “Meu filho,<br />

você vai ser poeta! Você vai carregar água na<br />

peneira a vida toda.” Manuel, poeta e eterno<br />

menino. Abílio, homem sobre o cavalo, as rédeas<br />

<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is destinos nas mãos.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 7


Trajetória<br />

Theo e Vincent Van Gogh<br />

Na apresentação, Abílio confessa com simplicidade:<br />

“Estes poemas foram escritos pelo<br />

a<strong>do</strong>lescente que fui. Nunca os mostrei. Agora,<br />

len<strong>do</strong>-os de novo, mais de 60 anos passa<strong>do</strong>s,<br />

senti-me emociona<strong>do</strong> e esqueci os senões”. E,<br />

com coragem, trouxe a lume esses versos de<br />

um poeta ce<strong>do</strong> reprimi<strong>do</strong>, mas jamais esqueci<strong>do</strong>.<br />

Em “Cantos de Espera”, poemas data<strong>do</strong>s<br />

de 1948, mostra-nos sua musa: Tereza. Tereza...<br />

que nome forte, ibérico, medievo, de santa<br />

e rainha, de mulher <strong>do</strong> povo: “A esperada<br />

Tereza/ de ausências nutrida/chegou/ Núbil,<br />

triste, pura, / abúlica e minha, / Como eu<br />

quis”. Tereza quase menina, vestida de silêncio,<br />

peito esfrega<strong>do</strong> de flores, reconhece nele o<br />

poeta: “e poeta que tu és, / dá-me um pouco de<br />

teus sonhos/ para arremate <strong>do</strong>s meus”. Tereza,<br />

“finada mas não defunta”, vê um dia o poeta<br />

dizer adeus: “Inclina-te sobre o meu cais, /acena<br />

teu lenço/ Tereza, / eu vou partir. ”<br />

A segunda parte intitula-se “O Náfego descobre<br />

o Mar”. Estranha palavra: “náfego”.<br />

Parece alteração de “náufrago”. Diz-se <strong>do</strong><br />

animal aleija<strong>do</strong> que coxeia. O poeta é náfego,<br />

centauro manco acostuma<strong>do</strong> ao mato,<br />

que, de repente, dá com o mar: “minha rua<br />

acaba no mar, / e o mar nos limita.” Esse poeta<br />

que “veio de longe... <strong>do</strong> mar amar”, indaga<br />

em vão às ondas e o mar não responde.<br />

Em “Esse Triste”, as palavras “triste” e “tristeza”<br />

se repetem: “Tristeza quase saudade/<br />

daquele que eu seria/ se triste hoje não<br />

fosse/ esse triste que sou.” Triste, amargo,<br />

melancólico, com desejo de morrer ven<strong>do</strong> a<br />

“chuva triste e sem senti<strong>do</strong>” cain<strong>do</strong> lá fora.<br />

Triste e belo. Em “O Experiente”, o a<strong>do</strong>lescente,<br />

o moço Abílio já se sente “experiente”:<br />

“Esperanças? Já esperei. / Hoje sou Experiente,<br />

/ trago comigo a marca/ de uma<br />

idade que não tive, em “O Mágico”, o poeta<br />

se esconde sob capas, disfarces, brinca com<br />

palavras, utiliza-as num passe de mágica, ultrapassa<br />

o simbólico: “É preciso amigo, dionisíaco,<br />

/ incendiar as palavras, / segredar<br />

em palavras, / afogar toda procura.”<br />

O livreto finaliza com um ensaio intitula<strong>do</strong><br />

“Reflexões sobre a poesia <strong>do</strong> ponto de vista da<br />

razão” e para a razão “a poesia é um distúrbio<br />

de caráter lírico-afetivo, vizinho da loucura”.<br />

A percepção estética ou poética é uma emoção<br />

e não busca da razão. Só os loucos ouvem<br />

estrelas como Olavo Bilac; conversam com o<br />

mar salga<strong>do</strong> pelas lágrimas de Portugal como<br />

Fernan<strong>do</strong> Pessoa; dizem que a voz das águas<br />

tem sotaque azul como Manuel de Barros.<br />

Só os loucos se comunicam com o inanima<strong>do</strong>,<br />

inventam, fantasiam, voam fora da lógica,<br />

criam metáforas, dão mais importância<br />

ao sonho que à realidade. A poesia é <strong>do</strong>ença<br />

da alma, sublimação, catarse. Abílio recorre à<br />

psicanálise de Freud para falar <strong>do</strong> inconsciente<br />

infantil e de sua influência, das emoções<br />

traumáticas, <strong>do</strong>s conflitos não resolvi<strong>do</strong>s, das<br />

angústias. Poesia só Freud explica - ou não.<br />

Poesia é a orelha decepada de Van Gogh.<br />

A história <strong>do</strong>s irmãos Abílio e Manuel<br />

tem carga dramática para se tornar filme,<br />

penso, enquanto fecho as abas de papel<br />

cartona<strong>do</strong> <strong>do</strong> pequeno livro.<br />

8<br />

novembro / dezembro de 2017


Meditação para São Paulo<br />

Pa u l oB o m fi m ,<br />

príncipe <strong>do</strong>s poetas e titular da cadeira nº 29<br />

da Academia Paulista de História – <strong>APH</strong>.<br />

POR UMA<br />

SÃO PAULO<br />

MAIS HUMANA<br />

A terra paulista, chão de Ramalho e Tibiriçá,<br />

nunca deixou de ser humana, porque é fecunda<br />

de reminiscências e repleta das raízes de<br />

nossa história.<br />

Sobre este solo cresce a cidade ciclópica que se<br />

projeta na direção <strong>do</strong>s céus, com a mesma força<br />

com que seus filhos se projetavam outrora<br />

na conquista de meridianos e cordilheiras.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 9


Meditação para São Paulo<br />

Do alto de suas torres de cimento, o paulista<br />

perscruta horizontes e indaga de nuvens cinzentas,<br />

as glórias de seu porvir. Não é São<br />

Paulo que se desumaniza, pois não pode haver<br />

desumanização na glória!<br />

O que existe neste chão sagra<strong>do</strong> de Piratininga<br />

é a culpa <strong>do</strong>s homens que vão perden<strong>do</strong> sua<br />

humanidade, seu senti<strong>do</strong> de fraternidade cristã,<br />

seu amor à terra sob a qual repousam seus<br />

antepassa<strong>do</strong>s, cobertos de lenda e de sertão.<br />

São Paulo não se desumaniza porque São<br />

Paulo é a cidade mais humana <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.<br />

É o mar onde vêm renascer seus irmãos de<br />

outros Esta<strong>do</strong>s e de outros países... Mar que<br />

recebe to<strong>do</strong>s os rios de braços abertos... Cidade<br />

que dá oportunidade a to<strong>do</strong>s os peregrinos,<br />

venham eles <strong>do</strong>nde vierem.<br />

HÁ QuatRocentos e sessenta e<br />

QuatRo anos o primeiro emigrante galgava<br />

o mistério da Serra <strong>do</strong> Mar, e já era recebi<strong>do</strong><br />

com a amizade de Tibiriçá e com o amor<br />

de Bartira, a primeira mãe paulista. A partir<br />

daí São Paulo nunca mais parou de crescer e de<br />

acolher seus irmãos nasci<strong>do</strong>s em outras terras.<br />

Em to<strong>do</strong>s os lugares <strong>do</strong> Brasil fala-se de tradição.<br />

O nordeste ainda tem viva a guerra holandesa<br />

e os feitos heroicos de sua gente... no<br />

sul há um verdadeiro culto ao seu passa<strong>do</strong> de<br />

revoluções nativistas, no extremo norte ainda<br />

permanecem intatas as glórias de um Brasil-<br />

-colônia e de um primeiro Império; Minas<br />

reza constantemente em suas igrejas coloniais<br />

povoadas pelo gênio <strong>do</strong> Aleijadinho...<br />

Só nós procuramos esquecer nosso passa<strong>do</strong>,<br />

só nós somos critica<strong>do</strong>s se lembrarmos dele, só<br />

nós procuramos nos desumanizar...<br />

Assistimos, melancolicamente, à transformação<br />

de nossas glórias em motivos de demagogia...<br />

To<strong>do</strong> um passa<strong>do</strong> de heroísmo e de<br />

liberdade é transforma<strong>do</strong> em oratória balofa<br />

de praça pública. Os mitos que deveriam ser<br />

sagra<strong>do</strong>s vão se tornan<strong>do</strong> lugares comuns...<br />

E to<strong>do</strong>s se esquecem que, debaixo <strong>do</strong> chão<br />

coberto de asfalto, <strong>do</strong>rmem seu sono secular<br />

nossos antepassa<strong>do</strong>s! To<strong>do</strong>s cultuam o ontem<br />

heroico... menos nós.<br />

Nós que modestamente dilatamos os horizontes<br />

geográficos de nossa terra com a bota de<br />

sete léguas <strong>do</strong> bandeirismo, nós que lutamos<br />

no Rio contra os franceses, no nordeste contra<br />

os holandeses, que combatemos a fúria <strong>do</strong>s índios<br />

no Amazonas e no Pará, que descobrimos<br />

as Minas Gerais, que protegemos com nossas<br />

espadas e com nossos arcos o litoral brasileiro<br />

contra os flibusteiros, que conquistamos para<br />

nossa pátria to<strong>do</strong> o sul brasileiro, que mandamos<br />

nossa mocidade morrer nos campos<br />

<strong>do</strong> Paraguai, que servimos de berço da Independência,<br />

que pregamos o abolicionismo que<br />

arruinaria nossas fazendas; nós, paulistas, que<br />

demos nosso corpo e nossa alma em holocausto<br />

da liberdade na grande cruzada iniciada em<br />

23 de maio de <strong>193</strong>2, não temos o direito de relembrar<br />

as glórias de nossa terra porque somos<br />

tacha<strong>do</strong>s de bairristas, de quatrocentistas.<br />

Qual... não é São Paulo que está se tornan<strong>do</strong><br />

desumano... é a árvore que está se<br />

esquecen<strong>do</strong> de suas raízes.<br />

10<br />

novembro / dezembro de 2017


“Eu te amo, São Paulo”<br />

Eu te amo, São Paulo, em teu mistério<br />

de chão antigo, em teu delírio de cidades novas;<br />

E porque teus cafezais correm por meu sangue<br />

e tuas indústrias aquecem o ritmo de meus músculos;<br />

Pela saga de meus mortos que vêm voltan<strong>do</strong> lá <strong>do</strong> sertão,<br />

pela presença <strong>do</strong>s que partiram, pela esperança<br />

<strong>do</strong>s que vêm vin<strong>do</strong> – eu te amo, São Paulo!<br />

Em teu passa<strong>do</strong> em mim presente, em teus heróis sangran<strong>do</strong> rumos,<br />

em teus mártires santifica<strong>do</strong>s pela liberdade, em teus poetas e em teu<br />

povo de tantas raças, tão brasileiro e universal – eu te amo, São Paulo!<br />

Pela rosa <strong>do</strong>s ventos <strong>do</strong> sertão, pelas fazendas avoengas, pelas<br />

cidades ancestrais, pelas ruas da infância, pelos caminhos <strong>do</strong> amor<br />

– eu te amo, São Paulo!<br />

Na hora das traições, quan<strong>do</strong> tantos se erguem contra ti, no instante<br />

das emboscadas, quan<strong>do</strong> novos punhais se voltam contra teu destino<br />

– eu te amo, São Paulo!<br />

Pelo crime de seres bom, pelo peca<strong>do</strong> de tua grandeza, pela loucura de<br />

teu progresso, pela chama de tua História – eu te amo, São Paulo!<br />

Desfazen<strong>do</strong>-me em terra roxa, transforman<strong>do</strong>-me em terra rubra,<br />

despencan<strong>do</strong> nas corredeiras <strong>do</strong> meu Tietê, rolan<strong>do</strong> manso nas<br />

águas santas <strong>do</strong> Paraíba, viven<strong>do</strong> em pedra o meu destino nos contrafortes<br />

da Mantiqueira, salgan<strong>do</strong> pranto, <strong>do</strong>r e alegria na areia<br />

branca de nossas praias, na marcha firme <strong>do</strong>s cafezais, nas lanças<br />

verdes <strong>do</strong> canavial, no tom neblina deste algodão, na prece de nossos<br />

templos, no calor da mocidade, na voz de nossas indústrias, na paz<br />

<strong>do</strong>s que a<strong>do</strong>rmeceram – eu te amo, São Paulo!<br />

Por isso, enquanto viver, por onde andar, levarei teu nome pulsan<strong>do</strong><br />

forte no coração, e quan<strong>do</strong> esse coração parar bruscamente de bater,<br />

que eu retorne à terra que me formou, à terra onde meus mortos me<br />

esperam há séculos;<br />

Por epitáfio, escreverão apenas, sobre meu silêncio, minha primeira<br />

e eterna confi ssão:<br />

EU TE AMO, SÃO PAULO!<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 11


Pioneiro<br />

José Verdasca,<br />

historia<strong>do</strong>r e membro da Academia Cristã de Letras – ACL.<br />

PADRE MANUEL<br />

DA NÓBREGA<br />

EDUCADOR, EVANGELIZADOR E HUMANISTA<br />

Pioneiro na Catequização, instrução, educação no Brasil (n. Entre Douro e Minho a 18/out/1517 e f. R.J. a 18/out/1570)<br />

Nasci<strong>do</strong> em Entre Douro e Minho, de família ilustre<br />

e ilustrada – seu pai Baltazar da Nóbrega era desembarga<strong>do</strong>r,<br />

e seu tio chanceler <strong>do</strong> reino – Manuel recebeu<br />

requintada educação e primorosa instrução; estu<strong>do</strong>u<br />

no Porto, 4 anos na Universidade de Salamanca<br />

(cânones e filosofia, de 1536 a 1540), completan<strong>do</strong> os<br />

estu<strong>do</strong>s com o quinto ano na Universidade de Coimbra;<br />

bacharel em cânones por Salamanca, obteve o<br />

mesmo grau em filosofia por Coimbra, em 1541.<br />

Aluno brilhante, fez provas para lente de Coimbra<br />

(professor universitário), não sen<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> devi<strong>do</strong> a<br />

sua gaguez. Repetiu as provas uma segunda vez, com<br />

o mesmo resulta<strong>do</strong>, pelo que em 1544 ingressou na<br />

recém fundada Companhia de Jesus, como “solda<strong>do</strong><br />

de Cristo”, especializan<strong>do</strong>-se como prega<strong>do</strong>r; nessa<br />

qualidade percorreu quase toda a Península Ibérica,<br />

até que o rei d. João III - em 1549 - o convi<strong>do</strong>u para<br />

embarcar como chefe da missão jesuítica, que seguiu<br />

na armada de Tomé de Sousa, primeiro governa<strong>do</strong>r<br />

geral <strong>do</strong> Brasil.<br />

Padre Manuel da Nóbrega, escultura em<br />

madeira por Nunes de Vilhena<br />

A ComPanhia de Jesus (os padres eram<br />

considera<strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s de Jesus”) fora fundada em<br />

1540 por Inácio de Loyola, depois que o capitão<br />

<strong>do</strong> exército espanhol foi gravemente feri<strong>do</strong> em<br />

12<br />

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combate, e seguiu<br />

para Paris, onde se<br />

bacharelou no Colégio<br />

(universidade) de<br />

Santa Bárbara, que<br />

tinha como principal<br />

(reitor) Diogo de<br />

Gouveia, parente da<br />

Inácio de Loyola mãe de Pedro Álvares<br />

Cabral. Nesse<br />

colégio, o rei de Portugal mantinha em permanência,<br />

duzentas vagas para estudantes<br />

portugueses, o que explica, em parte, que na<br />

época fossem portugueses o principal (reitor)<br />

<strong>do</strong> Colégio (universidade) de Bordéus, o principal<br />

da Universidade de Paris, o patriarca de<br />

Alexandria, o médico-cirurgião <strong>do</strong>s exércitos<br />

da Rússia, o boticário <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r da<br />

China, o sábio médico e boticário das Índias<br />

Garcia da Horta e o grande São Francisco<br />

Xavier, além de muitos outros expoentes<br />

das ciências, espalha<strong>do</strong>s um pouco por to<strong>do</strong><br />

o mun<strong>do</strong>. E foi com gente desse calibre que<br />

Inácio de Loyola fun<strong>do</strong>u, implantou e dirigiu<br />

a Companhia de Jesus, cujos padres eram os<br />

mais eruditos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da época.<br />

Nóbrega embarcou para o Brasil no início<br />

de 1549, aportan<strong>do</strong> à Vila Velha da Baía em<br />

29 de março, chefian<strong>do</strong> os padres Leonar<strong>do</strong><br />

Nunes, João de Aspicuelta Navarro e Antônio<br />

Pires, e os irmãos jesuítas Vicente Rodrigues<br />

e Diogo Jácome. A Província Jesuítica da<br />

América <strong>do</strong> Sul foi criada em 1552, altura<br />

em que Manuel foi nomea<strong>do</strong> seu chefe provincial;<br />

na Baía, auxiliou o governa<strong>do</strong>r na<br />

fundação e implantação da capital, e presidiu<br />

à construção da igreja e <strong>do</strong> colégio, após<br />

o que, em visita de inspeção, se deslocou às<br />

capitanias de Porto Seguro e Ilhéus, “onde os<br />

colonos não se entendiam, e to<strong>do</strong>s andavam<br />

em peca<strong>do</strong>”. Com autoridade, determinação e<br />

competência, conseguiu impor a disciplina em<br />

ambas, estabeleceu casas e aldeias de meninos<br />

de Jesus, colocou a escola e colégio em ordem,<br />

realizou casamentos e conversões, após o que<br />

regressou à Baía, onde transformou a escola<br />

criada em Vila Velha no colégio de São Salva<strong>do</strong>r,<br />

que viria, mais tarde, a dar o nome à<br />

nova capital <strong>do</strong> Brasil.<br />

Em 1552/53, o jesuíta acompanhou o governa<strong>do</strong>r<br />

geral na sua visita às capitanias <strong>do</strong> Sul,<br />

e depois de passar por Porto Seguro e Ilhéus,<br />

deteve-se no Rio de Janeiro, chegan<strong>do</strong> a São<br />

Vicente no final de janeiro; dali logo escreveu<br />

uma carta – 2 de fevereiro de 1553 – ao<br />

provincial da Companhia em Portugal e seu<br />

superior, na qual dizia: “Achei grande casa e<br />

muito boa igreja, ao menos em Portugal não<br />

a temos tão boa”. A vila sede da capitania de<br />

São Vicente, tinha si<strong>do</strong> fundada em 1532 por<br />

Martim Afonso de Sousa, capitão da primeira<br />

armada coloniza<strong>do</strong>ra nomea<strong>do</strong> governa<strong>do</strong>r;<br />

na armada de três naus, duas caravelas<br />

e um bergantim (pequeno navio a remos,<br />

qual galé), chegaram cerca de 400 homens<br />

solteiros, entre eles 27 cavaleiros fidalgos que<br />

aqui se notabilizaram, como Brás Cubas, que<br />

fun<strong>do</strong>u o hospital e Misericórdia de To<strong>do</strong>s os<br />

Santos, em frente a São Vicente (1553), ao<br />

qual se deve o nome da cidade, logo engrandecida<br />

com a transferência das instituições e<br />

parte da população daquela vila.<br />

De São Vicente - em julho/<br />

agosto de 1553 – Nóbrega dirigiu-se<br />

ao Planalto de Piratininga, subin<strong>do</strong> a encosta<br />

pela sinuosa e íngreme trilha da Serra <strong>do</strong><br />

Mar (cerca de mil metros de altitude), seguin<strong>do</strong><br />

até a vila de Santo André da Borda<br />

<strong>do</strong> Campo (como São Vicente, fundada por<br />

Martim Afonso em 1532), situada a cerca de<br />

50 km de São Vicente, nas margens <strong>do</strong> rio<br />

Piratininga, e distante duas léguas <strong>do</strong> local<br />

depois escolhi<strong>do</strong> por Nóbrega para erguer<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 13


Pioneiro<br />

uma casa de 12 por 16 passos, que servisse<br />

de escola e residência para os religiosos.<br />

Acompanha<strong>do</strong> pelo padre Manuel de Paiva<br />

e pelo irmão jesuíta Antônio Rodrigues, e<br />

guia<strong>do</strong>s pelo mameluco André, filho mais<br />

velho de João Ramalho (genro <strong>do</strong> cacique<br />

Tibiriçá), deslocaram-se a Maniçoba (Itu),<br />

distante cerca de 100 km da vila; a povoação<br />

albergava a maior concentração de indígenas<br />

da região. Planaltina, atravessada pelo rio<br />

Tietê, que tinha como afluentes os rios Piratininga<br />

e Anhangabaú, onde se situavam<br />

as tribos <strong>do</strong>s caciques Tibiriçá, Piquerobi e<br />

Caiubi, amigos de João Ramalho,<br />

Regressan<strong>do</strong> a Piratininga, Nóbrega escolheu<br />

um lugar alto, de fácil defesa e livre das inundações<br />

<strong>do</strong>s rios (Pátio <strong>do</strong> Colégio), situa<strong>do</strong><br />

entre o Piratininga e o Anhangabaú; ali rezou<br />

missa (29/8/1553) e man<strong>do</strong>u erguer uma<br />

casa de 12 passos de frente por 16 passos de<br />

fun<strong>do</strong>, para servir de residência aos religiosos,<br />

e de escola de ler e escrever e catequese, para<br />

os meninos índios, para os mamelucos (filhos<br />

de portugueses e índias), e para os filhos <strong>do</strong>s<br />

poucos portugueses, que a partir de 1536<br />

vieram com suas esposas, após a implantação<br />

de São Vicente. Com a difícil subida da serra<br />

e penetração no sertão, Nóbrega deu um<br />

belo exemplo aos futuros bandeirantes, que<br />

mais tarde, de São Paulo, partiram com suas<br />

bandeiras (equivalentes a uma companhia<br />

<strong>do</strong> exército), para reconhecer e desbravar o<br />

sertão; a estes heróis, capitães das bandeiras,<br />

ficou o Brasil deven<strong>do</strong> o alargamento <strong>do</strong> seu<br />

território inicial, delimita<strong>do</strong> pelo meridiano<br />

<strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> de Tordesilhas, que aumentou a<br />

superfície de cerca de 3.000.000 km2, para<br />

os 8.500.000 km2 atuais.<br />

Escolhi<strong>do</strong> o local onde seria implanta<strong>do</strong><br />

o colégio e a sede da Companhia de Jesus,<br />

onde oficiou a primeira missa no planalto,<br />

Nóbrega seguiu para São<br />

Vicente, passan<strong>do</strong> por<br />

Santo André da Borda <strong>do</strong><br />

Campo (ou seja, já perto<br />

da descida da serra). Na<br />

sede da capitania, o jesuíta<br />

continuou o seu trabalho<br />

de fiscalização <strong>do</strong> colégio<br />

ali existente, cujos corpos<br />

<strong>do</strong>cente e discente<br />

man<strong>do</strong>u transferir para<br />

o planalto, onde os meninos<br />

indígenas residiam<br />

a maior parte <strong>do</strong> ano,<br />

pois apenas no inverno as<br />

tribos desciam para São<br />

Cacique Tibiriçá<br />

Vicente, regressan<strong>do</strong> na<br />

primavera ao planalto de Piratininga. Em<br />

tu<strong>do</strong> auxilia<strong>do</strong> pelo já i<strong>do</strong>so João Ramalho,<br />

e sempre guia<strong>do</strong> e assisti<strong>do</strong> pelo mameluco<br />

André, seu filho e neto <strong>do</strong> cacique Tibiriçá,<br />

Nóbrega tinha se reconcilia<strong>do</strong> com Ramalho,<br />

após as críticas que lhe fizera, em virtude<br />

de ter muitas mulheres, entre índias<br />

e mamelucas. Mas tal viver fazia parte da<br />

cultura indígena, na qual ele estava inseri<strong>do</strong>,<br />

desde que há mais de quatro décadas tinha<br />

aporta<strong>do</strong> a São Vicente, e si<strong>do</strong> aceite pelas<br />

tribos <strong>do</strong> planalto, onde o cacique lhe deu a<br />

mão da própria filha.<br />

Quan<strong>do</strong>, no início de 1554, a casa<br />

<strong>do</strong> Pátio <strong>do</strong> Colégio já estava pronta, um<br />

grupo de 13 religiosos subiu a encosta da<br />

Serra <strong>do</strong> Mar, passou por Santo André da<br />

Borda <strong>do</strong> Campo, de onde, agora acresci<strong>do</strong><br />

por João Ramalho e outros mora<strong>do</strong>res da<br />

vila, seguiu para a nova sede da Companhia<br />

de Jesus, onde – a 25 de janeiro desse ano –<br />

foi oficiada nova missa, não mais em campo<br />

aberto, mas dentro da “igreja” e casa <strong>do</strong>s jesuítas.<br />

Dela participou o jovem noviço (seminarista)<br />

José de Anchieta, depois padre<br />

14<br />

novembro / dezembro de 2017


e “solda<strong>do</strong> de Jesus”, mas também grande<br />

evangeliza<strong>do</strong>r, escritor, poeta, dramaturgo<br />

e apazigua<strong>do</strong>r de índios, que inestimáveis<br />

serviços prestou à gente desta terra, como<br />

colabora<strong>do</strong>r e sucessor de Nóbrega. Fundan<strong>do</strong><br />

um simples colégio para os curumins<br />

(meninos indígenas) no sertão e Planalto de<br />

Piratininga, e no lugar hoje conheci<strong>do</strong> como<br />

Pátio <strong>do</strong> Colégio, Nóbrega jamais teria<br />

imagina<strong>do</strong> estar também fundan<strong>do</strong> a maior<br />

cidade da América <strong>do</strong> Sul, depois capital da<br />

Capitania de São Paulo, novo nome da antiga<br />

Capitania de São Vicente.<br />

Primeiro e corajoso defensor <strong>do</strong>s índios<br />

contra a escravidão, enquanto combatia os<br />

seus hábitos “pecaminosos”, como o canibalismo<br />

e a vida desregrada, Nóbrega foi<br />

também o primeiro educa<strong>do</strong>r a implantar<br />

escolas e casas para meninos indígenas, para<br />

o ensino das primeiras letras, da catequese,<br />

da cultura <strong>do</strong> bem, de artes e profissões, da<br />

moral e <strong>do</strong>s bons costumes. Segun<strong>do</strong> o<br />

livro (Manuel da Nóbrega, Hansen, Min.<br />

Educação e Fundação J. Nabuco): “Nóbrega,<br />

Padre Manuel da Nóbrega abençoan<strong>do</strong> (pintura de<br />

Benedito Calixto)<br />

imediatamente após chegar, estabeleceu em<br />

Vila Velha (Baía) uma escola de ler e escrever,<br />

que transferiu para Salva<strong>do</strong>r quan<strong>do</strong><br />

esta foi fundada. Nomeou o irmão Vicente<br />

Rodrigues como seu diretor”. Por aqui podemos<br />

avaliar como o jesuíta encarava os<br />

seus deveres e a sua missão no Brasil. Mas,<br />

por tanto esforço dispendi<strong>do</strong> no cumprimento<br />

dá sua missão, Nóbrega esgotou suas<br />

forças fragilizan<strong>do</strong> a saúde, a<strong>do</strong>ecen<strong>do</strong>, pelo<br />

que se tornou necessária a sua substituição<br />

pelo padre Luís da Grã, fican<strong>do</strong> Nóbrega<br />

como superior <strong>do</strong> Sul <strong>do</strong> Brasil, ten<strong>do</strong> fixan<strong>do</strong><br />

residência no Colégio de São Sebastião<br />

<strong>do</strong> Rio de Janeiro, como seu diretor, e onde<br />

veio a falecer no dia e mês de seu aniversário,<br />

quan<strong>do</strong> completava 53 anos de idade.<br />

O grande homem e superior jesuíta, foi<br />

o primeiro chefe da Companhia de Jesus<br />

nas terras de Santa Cruz recém descobertas,<br />

e aqui pioneiro como educa<strong>do</strong>r/catequiza<strong>do</strong>r<br />

e mestre, funda<strong>do</strong>r de povoações,<br />

vilas, escolas, colégios e “faculdades” – Colégio<br />

de Olinda, Pernambuco; Colégio <strong>do</strong><br />

Salva<strong>do</strong>r, Baía; Colégio de Santiago, Vila<br />

Velha, ES; Colégio de São Sebastião, RJ;<br />

Colégio de São Paulo, Piratininga; os <strong>do</strong>is<br />

primeiros colégios eram de nível superior,<br />

sen<strong>do</strong> que o Colégio <strong>do</strong> Salva<strong>do</strong>r (que depois<br />

deu nome à cidade) conferiu diplomas<br />

de bacharel já na segunda metade <strong>do</strong> século<br />

XVI. Foi ainda ali que o jesuíta - Gigante<br />

da Oratória Sacra padre Antônio Vieira,<br />

chega<strong>do</strong> ao Brasil em 1608, aos seis anos<br />

de idade - recebeu toda a sua instrução e<br />

formação, desde o curso primário ao superior,<br />

e foi professor. Mais tarde, a partir de<br />

1541, já na Europa, deslumbrou as cortes<br />

europeias e o próprio Vaticano com a sua<br />

erudição e com a sua obra – principalmente<br />

seus sermões – que o tornaram o maior<br />

ora<strong>do</strong>r e escritor sacro de seu século.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 15


Capa<br />

Foto: Jeff Dias<br />

Luiz Gonzaga Bertelli<br />

presidente e titular da cadeira n o 21 da Academia Paulista de<br />

História – <strong>APH</strong>, vice-presidente da Academia Paulista de Educação<br />

– APE e membro das Academias Cristã de Letras – ACL e Paulista de<br />

Letras Jurídicas – APLJ.<br />

Foto: Faculdade de Direito de São Paulo<br />

O PRIMEIRO LENTE DA FACULDADE<br />

DE DIREITO DE SÃO PAULO:<br />

JOSÉ MARIA DE<br />

AVELAR BROTERO<br />

16<br />

novembro / dezembro de 2017<br />

José Maria de Avelar Brotero


José Maria de Avelar Brotero era aguarda<strong>do</strong> com ansiedade pelos estudantes matricula<strong>do</strong>s na<br />

primeira turma <strong>do</strong>s cursos jurídicos cria<strong>do</strong>s em São Paulo em 1827. Chegou à cidade no dia 13<br />

de fevereiro de 1828, e O Farol Paulistano <strong>do</strong> dia 16 assim registrava o faustoso acontecimento:<br />

Está próxima a abrir-se esta com razão tão suspirada escola,<br />

complemento da nossa Independência de Portugal, aonde até<br />

agora éramos obriga<strong>do</strong>s a ir beber os primeiros e por ventura<br />

já cediços elementos da ciência social. Nada podemos dizer<br />

acerca <strong>do</strong>s conhecimentos <strong>do</strong> Sr. Brotero, mas temos que serão<br />

sufi cientes para o desempenho <strong>do</strong>s seus difíceis deveres; e que o<br />

tempo, o estu<strong>do</strong> e a prática de ensinar o tornarão habilíssimo,<br />

pois nos consta que tem não vulgar talento, e assim ouvimos<br />

afi rmar na Universidade de Coimbra.<br />

Turma da Faculdade de Direito de São Paulo, mea<strong>do</strong>s de 1880<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 17


Capa<br />

De família de intelectuais e militares, José<br />

Maria de Avelar Brotero nasceu em Lisboa,<br />

em 1798, e formou-se bacharel em direito<br />

pela Universidade de Coimbra, em 1819.<br />

Chegou a exercer o cargo de juiz na Beira<br />

Alta, mas por se ter envolvi<strong>do</strong> na conspiração<br />

contra o regime de d. Miguel, como<br />

outros liberais portugueses de sua geração,<br />

foi obriga<strong>do</strong> a refugiar-se na ilha <strong>do</strong> Faial.<br />

Temen<strong>do</strong> novas perseguições, veio para o<br />

Brasil em 1825 com a esposa.<br />

Por decreto de outubro de 1827, d. Pedro I<br />

o nomeou primeiro lente da Faculdade de<br />

Direito de São Paulo, encarrega<strong>do</strong> de várias<br />

disciplinas: direito natural, direito público,<br />

análise da Constituição <strong>do</strong> Império, direito<br />

das gentes, diplomacia e direito eclesiástico.<br />

Termina<strong>do</strong> o primeiro ano letivo, o Impera<strong>do</strong>r<br />

ordenou que enviasse para o Rio de<br />

Janeiro, a fim de ser impresso, um compêndio<br />

das aulas ministradas. Feito às pressas,<br />

o Compêndio de Direito<br />

Natural (1829)<br />

sofreria acirradas<br />

críticas por defender<br />

princípios avança<strong>do</strong>s<br />

para a época: o direito<br />

ao divórcio, a condenação<br />

<strong>do</strong> celibato<br />

clerical, a apologia da<br />

liberdade de convicção<br />

religiosa e a defesa<br />

<strong>do</strong> fim da escravidão.<br />

Jornais paulistanos da<br />

década de 1830<br />

DiFeRencial:<br />

As aulas ministradas por Avelar Brotero,<br />

no entanto, caíram no agra<strong>do</strong> <strong>do</strong>s estudantes.<br />

Para entretê-los, o professor lançava<br />

mão de dramatizações e de disputas<br />

de opiniões contraditórias, e tais inovações<br />

não passaram desapercebidas <strong>do</strong> jornal O<br />

Farol Paulistano, que em 15 de outubro de<br />

1828 registrava:<br />

O Sr. Brotero tem acha<strong>do</strong> um excelente meio de<br />

exercitar os seus discípulos, e iniciá-los na aplicação<br />

<strong>do</strong>s princípios de Direito das Gentes; e tem ao<br />

mesmo tempo a fortuna de ter uma boa porção de<br />

discípulos, que no 2o ano de sua carreira científica<br />

se apresentam como veteranos nela. Dada uma<br />

questão entre nações, nomeia diplomatas, que em<br />

nome de cada governo interessa<strong>do</strong> nela justifi que o<br />

seu procedimento, ou pretensões.<br />

18<br />

novembro / dezembro de 2017


Cinco anos depois de sua chegada ao Brasil,<br />

Avelar Brotero adquiria a nacionalidade brasileira,<br />

ao mesmo tempo em que era agracia<strong>do</strong><br />

com o título de conselheiro <strong>do</strong> Império.<br />

Em 1836 publicou, em São Paulo, Questões<br />

sobre presas marítimas, considerada a primeira<br />

monografia sobre direito das gentes feita<br />

no Brasil. Alguns anos depois foram edita<strong>do</strong>s<br />

os livros Filosofia <strong>do</strong> Direito Constitucional<br />

(1842) e Tumulto <strong>do</strong> povo em Évora (1845).<br />

EXeRceu a <strong>do</strong>cÊncia PoR 43 anos,<br />

alternan<strong>do</strong>-a com as funções de secretário da<br />

Faculdade e, por vezes, as de diretor. Foi numa<br />

dessas ocasiões que permitiu, à revelia da autoridade<br />

diocesana, o sepultamento de Júlio<br />

Frank - professor alemão que não era católico<br />

e que havia funda<strong>do</strong> uma sociedade secreta (a<br />

Faculdade de Direito<br />

de São Paulo já no<br />

século XXI<br />

Tela busto José Maria Avellar<br />

Brotero<br />

Foto: Faculdade de Direito de São Paulo.<br />

Bucha) quan<strong>do</strong> lecionava<br />

no curso anexo -<br />

em pleno pátio interno<br />

da Faculdade.<br />

Quan<strong>do</strong> Avelar<br />

Brotero morreu, em<br />

março de 1873, fizeram-lhe<br />

a vontade de<br />

não realizar pompas<br />

fúnebres. Seu corpo<br />

foi leva<strong>do</strong> ao cemitério da Consolação às 23 horas,<br />

à luz de archotes, acompanha<strong>do</strong> de pessoas<br />

pobres. Sua memória de homem vibrante e culto,<br />

no entanto, permaneceu junto a diferentes<br />

gerações de estudantes.<br />

As mudanças instituídas pela República levaram<br />

a Faculdade de Direito a retirar de<br />

suas dependências o retrato de d. Pedro II.<br />

Em seu lugar foi coloca<strong>do</strong> o quadro a óleo<br />

com a figura <strong>do</strong> conselheiro Brotero, manda<strong>do</strong><br />

pintar em Paris, em 1865, por iniciativa<br />

de seus alunos. Ao discursar para os bacharelan<strong>do</strong>s<br />

de 1894, disse João Monteiro:<br />

No passa<strong>do</strong> o que fomos? Olhai para estas<br />

paredes. Ali no fun<strong>do</strong>, bem no centro,<br />

um <strong>do</strong>s maiores talentos <strong>do</strong>s que fulguraram<br />

nesta casa — BROT ERO, assombro<br />

de eloquência e erudição.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

MONTEIRO, João. Discursos. São Paulo,1897.<br />

NOGUEIRA, Almeida. Tradições e reminiscências. São Paulo, 1907.<br />

REALE, Miguel. Horizontes <strong>do</strong> direito e da história. São Paulo: Saraiva, 1956.<br />

VAMPRÉ, Spencer. Memórias para a histó ria da Academia de São Paulo. São Paulo: Livraria Acadêmica,<br />

1924. 2 v.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 19


Opinião<br />

Gilberto Natalini,<br />

verea<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> de São Paulo.<br />

LINHA<br />

TELEGRÁFICA:<br />

OS ÚLTIMOS SOBREVIVEM EM SÃO PAULO.<br />

Exemplar <strong>do</strong><br />

posteamento da<br />

linha mais antiga<br />

de telégrafos <strong>do</strong><br />

país<br />

Quan<strong>do</strong> da Guerra <strong>do</strong><br />

Paraguai, o impera<strong>do</strong>r<br />

d. Pedro II determinou<br />

a construção, em 1867,<br />

da 1ª linha telegráfica<br />

de grande extensão<br />

da América Latina,<br />

interligan<strong>do</strong> a antiga<br />

Corte, Rio de Janeiro,<br />

ao quartel-general no<br />

teatro de operações.<br />

Graças ao isolamento<br />

e escasso povoamento<br />

na última grande mancha<br />

de mata atlântica,<br />

virtualmente intocada<br />

na Jureia-Itatins, sobreviveram<br />

na chamada<br />

“Trilha <strong>do</strong> Telégrafo”<br />

menos de 30 <strong>do</strong>s postes<br />

em ferro fundi<strong>do</strong>, monta<strong>do</strong>s em seções<br />

aparafusadas, para permitir o transporte<br />

nas difíceis condições da época.<br />

Uns raríssimos ainda estão em esta<strong>do</strong> razoável<br />

de conservação e menos ainda com<br />

as travessas e isolantes elétricos originas.<br />

Infelizmente, a grande maioria, mesmo<br />

nesta região preservada, foi destruída<br />

por antiga obra de estrada e para servir<br />

de suporte em construções caiçaras ou<br />

se perdeu pela incessante ação da umidade<br />

da mata e maresia.<br />

Acredito que não haveria dificuldade<br />

técnica, nem custo eleva<strong>do</strong>, em se remover<br />

através de embarcações e depois por<br />

terra, alguns <strong>do</strong>s em melhores condições,<br />

com apoio da SMA/Fundação Florestal.<br />

Minha proposta é no senti<strong>do</strong> de transferi-<br />

-los para condições abrigadas nos seguintes<br />

museus: <strong>do</strong> Correio e Telégrafos, em<br />

Brasília; de Ciências Catavento, em São<br />

Paulo; coleção histórica <strong>do</strong> Centro Cultural<br />

<strong>do</strong>s Correios, no Rio de Janeiro; e Museu<br />

Municipal de Iguape, para ser também<br />

acessível para a população da região.<br />

20<br />

novembro / dezembro de 2017


Dicas de leitura<br />

EQuiPamentos VillaRes: MaRco de eXcelÊncia na<br />

industRialiZaÇão BRasileiRa. AutoR: DÉcio Fischetti.<br />

EditoRa: BiZZ EditoRial, 2017, 141 PÁginas.<br />

Este livro conta a história de uma empresa, uma grande empresa que em<br />

2019 completará 90 anos. Trata-se de um livro de histórias verdadeiras,<br />

com narrativas de personagens que viveram uma vida dura, porém sempre<br />

seguin<strong>do</strong> o que hoje mais se parece com utopias, mas que persistiram no<br />

sonho e construíram uma empresa da qual muito se orgulham, a empresa<br />

Equipamentos Villares.<br />

A CaPital da VeRtigem - Uma HistÓRia de São Paulo<br />

de 1900 A 1954. AutoR: RoBeRto PomPeu de Tole<strong>do</strong>.<br />

EditoRa: OBjetiVa, 2015, 584 PÁginas.<br />

O autor exibe uma cidade que deixa a condição de vila e se torna a maior<br />

metrópole <strong>do</strong> país. A obra retrata a cidade que completa quatrocentos<br />

anos. É possível apreciar as histórias <strong>do</strong>s personagens como Oswald e Mário<br />

de Andrade, Monteiro Lobato, Washington Luís, Prestes Maia e Francisco<br />

Matarazzo, e, ainda, episódios que vão da Semana de Arte Moderna de<br />

1922 à epidemia de gripe espanhola, da Revolução de 1924 à chegada <strong>do</strong><br />

futebol ao país.<br />

São Paulo - HistÓRia, MemÓRia e ConstRuÇão. AutoR:<br />

Solange MouRa Lima de ARagão. EditoRa: Paco<br />

EditoRial, 2015, 244 PÁginas.<br />

As páginas desta obra proporcionam ao leitor uma cidade de São Paulo<br />

vista sob diferentes ângulos, ao longo de toda sua história. Elabora<strong>do</strong><br />

por historia<strong>do</strong>res que propõem interpretações e o uso de novas tecnologias<br />

no trabalho com acervos e fontes <strong>do</strong>cumentais, a obra, sem dúvida,<br />

enaltece essa grande metrópole paulistana.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 21


Especial<br />

OS HERÓIS DA<br />

NOSSA PÁTRIA<br />

(FINAL)<br />

Chega ao fim a nossa edição especial sobre<br />

esses heróis que tanto representaram<br />

ao nosso país. É sabi<strong>do</strong> que há muitos nomes<br />

importantes da nossa história brasileira<br />

e muitos deles já foram homenagea<strong>do</strong>s<br />

e lembra<strong>do</strong>s em muitas outras edições da<br />

<strong>Revista</strong>.<br />

Agora é o momento de enaltecer alguns <strong>do</strong>s<br />

bravos nordestinos, que nasceram ou viveram<br />

momentos significativos no nordeste <strong>do</strong><br />

Brasil, da proclamação da República até a<br />

luta contra a escravidão.<br />

Manuel Deo<strong>do</strong>Ro da Fonseca –<br />

MaRechal Deo<strong>do</strong>Ro (1827 – 1892)<br />

O proclama<strong>do</strong>r da República pertenceu a<br />

uma família essencialmente militar.<br />

Benedito Calixto - Marechal Deo<strong>do</strong>ro da<br />

Fonseca, 1920<br />

22<br />

novembro / dezembro de 2017


Nasci<strong>do</strong> em 5 de agosto de 1827, na vila de<br />

Alagoas da Lagoa <strong>do</strong> Sul, na antiga província<br />

homônima, hoje cidade que leva o nome<br />

de Marechal Deo<strong>do</strong>ro. Manuel Deo<strong>do</strong>ro<br />

da Fonseca foi um militar, político e primeiro<br />

presidente <strong>do</strong> Brasil.<br />

Na sua terra natal, Alagoas, na casa onde<br />

nasceu, existe o Museu Marechal Deo<strong>do</strong>ro<br />

da Fonseca.<br />

ZumBi <strong>do</strong>s PalmaRes - (1655 – 1695)<br />

O governo de Deo<strong>do</strong>ro foi marca<strong>do</strong> pelo esforço<br />

de implantação de um regime político<br />

republicano. Entretanto, foi caracteriza<strong>do</strong><br />

por grande instabilidade política e econômica,<br />

devi<strong>do</strong> às tentativas de centralização<br />

<strong>do</strong> poder, à movimentação de opositores<br />

monarquistas ao recém-instaura<strong>do</strong> regime<br />

republicano, e à oposição de setores das Forças<br />

Armadas <strong>do</strong> Brasil, descontentes com a<br />

situação política republicana. A crise teve<br />

seu ápice no fechamento <strong>do</strong> Congresso Nacional<br />

<strong>do</strong> Brasil, o que, mais tarde, acabou<br />

levan<strong>do</strong> à renúncia de Deo<strong>do</strong>ro da Fonseca.<br />

O marechal Deo<strong>do</strong>ro da Fonseca faleceu no<br />

Rio de Janeiro, em agosto de 1892. Pediu para<br />

ser enterra<strong>do</strong> em trajes civis, no que não foi<br />

atendi<strong>do</strong>. Seu enterro teve toda a pompa e honras<br />

militares. Foi enterra<strong>do</strong> num jazigo familiar<br />

no Cemitério <strong>do</strong> Caju, mas teve seus restos exuma<strong>do</strong>s<br />

e transferi<strong>do</strong>s para um monumento na<br />

Praça Paris, no Rio de Janeiro, em <strong>193</strong>7.<br />

Deo<strong>do</strong>ro já foi retrata<strong>do</strong> como personagem<br />

no cinema e na televisão. Também teve seu<br />

rosto impresso nas notas de 20 cruzeiros,<br />

de 1950, nas de 50 cruzeiros, de 1970, nas<br />

de 500 cruzeiros, de 1981, e no verso das<br />

moedas de 25 centavos em circulação atualmente<br />

no Brasil.<br />

Na Praça da República, no Rio de Janeiro<br />

há o memorial denomina<strong>do</strong> Casa Histórica<br />

de Deo<strong>do</strong>ro, um sobra<strong>do</strong> onde o marechal<br />

morou. A instituição é aberta ao público<br />

com uma exposição permanente sobre<br />

Deo<strong>do</strong>ro da Fonseca.<br />

Zumbi <strong>do</strong>s Palmares por Antônio Parreiras<br />

Zumbi <strong>do</strong>s Palmares foi o último <strong>do</strong>s líderes<br />

<strong>do</strong> Quilombo <strong>do</strong>s Palmares, o maior <strong>do</strong>s<br />

quilombos <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial.<br />

Nasci<strong>do</strong> em 1655 na então Capitania de<br />

Pernambuco, na Serra da Barriga, região<br />

hoje pertencente ao município de União <strong>do</strong>s<br />

Palmares, no Esta<strong>do</strong> de Alagoas, ganhou<br />

respeito e admiração de seus compatriotas<br />

quilombolas devi<strong>do</strong> a suas habilidades como<br />

guerreiro, que lhe conferiam coragem, liderança<br />

e conhecimentos de estratégia militar.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 23


Especial<br />

Lutou pela liberdade de culto e religião, bem<br />

como pelo fim da escravidão colonial no<br />

Brasil. Apesar disso, Zumbi também ficou<br />

conheci<strong>do</strong> pela severidade com que conduzia<br />

Palmares, onde, inclusive, havia um tipo<br />

mais bran<strong>do</strong> de escravidão.<br />

De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, não admitia a <strong>do</strong>minação <strong>do</strong>s<br />

brancos sobre os negros e, portanto, tornou-<br />

-se o maior símbolo pela liberdade <strong>do</strong>s negros<br />

da história brasileira. A palavra “Zumbi” ou<br />

“Zambi”, nome a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo herói, é de origem<br />

'quimbunda', e faz alusão a seres espirituais,<br />

como fantasmas, espectros e duendes.<br />

Em 1695, no dia 20 de novembro, Zumbi<br />

foi delata<strong>do</strong> por um de seus capitães, Antônio<br />

Soares, e morto pelo capitão Furta<strong>do</strong> de<br />

Men<strong>do</strong>nça. Tinha 40 anos de idade.<br />

Sua cabeça foi cortada, salgada e levada,<br />

com o pênis dentro da boca, ao governa<strong>do</strong>r<br />

Melo e Castro. Foi exposta em praça pública<br />

de mo<strong>do</strong> a acabar com o mito da imortalidade<br />

de Zumbi <strong>do</strong>s Palmares.<br />

A data de sua morte, 20 de novembro,<br />

foi a<strong>do</strong>tada como o “Dia da Consciência<br />

Negra”.<br />

A importância de Zumbi <strong>do</strong>s Palmares é tão<br />

grande para o movimento negro que hoje seu<br />

nome batiza uma Faculdade e o Aeroporto<br />

Internacional de Maceió/AL.<br />

Em 1988, a escola de samba carioca Vila Isabel<br />

- homenageou Zumbi <strong>do</strong>s Palmares com<br />

o enre<strong>do</strong> "Kizomba, festa da raça". A escola<br />

conquistou o seu primeiro título com o tema.<br />

Na Serra da Barriga, em Pernambuco, há o<br />

Parque Memorial Quilombo <strong>do</strong>s Palmares,<br />

que recria o cenário <strong>do</strong> maior e mais dura<strong>do</strong>uro<br />

acampamento das Américas. Os visitantes<br />

são guia<strong>do</strong>s por áudio, com música e<br />

narrativas sobre o cotidiano <strong>do</strong> quilombo.<br />

Ana Justina FeRReiRa NeRY –<br />

Ana NeRY (1814 – 1880)<br />

Ana Nery foi uma enfermeira brasileira,<br />

pioneira da enfermagem no Brasil.<br />

Nasceu em 13 de dezembro de 1814 em Cachoeira,<br />

na Bahia.<br />

Casou-se com o capitão-de-fragata Isi<strong>do</strong>ro<br />

Antônio Nery em 1837, quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>tou<br />

o sobrenome <strong>do</strong> mari<strong>do</strong>. Teve três filhos,<br />

<strong>do</strong>is <strong>do</strong>s quais eram oficiais <strong>do</strong> Exército.<br />

Ao irromper a Guerra <strong>do</strong> Paraguai<br />

em dezembro de 1864, seguiram ambos<br />

para o campo de luta, acompanha<strong>do</strong>s <strong>do</strong><br />

tio, o major Maurício Ferreira, irmão de<br />

Ana. Ana requereu, então, ao presidente<br />

da Província da Bahia, o conselheiro Manuel<br />

Pinho de Sousa Dantas, que lhe fosse<br />

permiti<strong>do</strong> acompanhar os filhos e o irmão<br />

Ana Nery<br />

24<br />

novembro / dezembro de 2017


durante os combates e assim pudesse prestar<br />

serviços nos hospitais <strong>do</strong> Rio Grande<br />

<strong>do</strong> Sul. Deferi<strong>do</strong> o pedi<strong>do</strong>, Ana partiu de<br />

Salva<strong>do</strong>r, incorporada ao décimo batalhão<br />

de voluntários em agosto de 1865, na qualidade<br />

de enfermeira.<br />

Durante toda a campanha, prestou serviços<br />

ininterruptos nos hospitais militares, bem<br />

como nos hospitais da frente de operações.<br />

Viu morrer na luta um de seus filhos.<br />

Terminada a guerra, regressou a sua cidade<br />

natal, onde lhe foram prestadas<br />

grandes homenagens. O governo imperial<br />

concedeu-lhe a Medalha Geral de Campanha<br />

e a Medalha Humanitária de primeira<br />

classe.<br />

Ana morreu na cidade <strong>do</strong> Rio de Janeiro aos<br />

65 anos, em 20 de maio de 1880.<br />

A casa onde nasceu, em Cachoeira<br />

(BA), é a sede da Fundação Hansen<br />

Bahia, museu dedica<strong>do</strong> a xilogravuras.<br />

Além disso, esse sobra<strong>do</strong> já hospe<strong>do</strong>u<br />

d. Pedro II em 1858 e, mais tarde, a<br />

princesa Isabel e o conde d’Eu. Em<br />

<strong>193</strong>8, Getúlio Vargas instituiu o "Dia<br />

<strong>do</strong> Enfermeiro", a ser celebra<strong>do</strong> a 12 de<br />

maio, deven<strong>do</strong> nesta data ser prestadas<br />

homenagens especiais à memória<br />

de Ana Nery.<br />

Em 1967 a Empresa Brasileira de<br />

Correios e Telégrafos lançou um selo<br />

comemorativo com o busto da enfermeira<br />

numa série de personalidades<br />

femininas com relevo histórico.<br />

Lucas Dantas, Manuel Faustino, Luís Gonzaga e<br />

João de Deus<br />

Lucas Dantas, Manuel Faustino,<br />

Luís GonZaga e João de Deus<br />

– InconFidÊncia Baiana (1798)<br />

A Conjuração Baiana de 1798, movimento<br />

também chamada de “Revolta <strong>do</strong>s Alfaiates”<br />

ou Revolta de Búzios, foi um movimento<br />

emancipacionista popular, ocorri<strong>do</strong> na capital<br />

baiana e classifica<strong>do</strong> pelos historia<strong>do</strong>res<br />

como um importante manifesto anticolonial,<br />

lidera<strong>do</strong> por africanos, negros livres,<br />

forros e libertos que tinham como bandeira<br />

central, além da independência <strong>do</strong> Brasil, o<br />

fim da escravidão.<br />

Porém quatro líderes deste movimento foram<br />

enforca<strong>do</strong>s em 8 de novembro de 1799 – Lucas<br />

Dantas (solda<strong>do</strong>), Manuel Faustino (aprendiz<br />

de alfaiate), Luís Gonzaga das Virgens (solda<strong>do</strong>)<br />

e João de Deus (mestre alfaiate) – foram<br />

esquarteja<strong>do</strong>s, suas cabeças expostas ao público<br />

e as três gerações de familiares seguintes com a<br />

memória amaldiçoada publicamente. Antes da<br />

execução, os quatro jovens recusaram a extrema-unção<br />

<strong>do</strong> sacer<strong>do</strong>te católico, por considerarem<br />

que a igreja não estava <strong>do</strong> la<strong>do</strong> deles.<br />

Além de estarem no livro Heróis da Pátria,<br />

no Panteão, em Brasília/DF, os quatro<br />

ganharam bustos de bronze na Praça<br />

de Piedade, no centro de Salva<strong>do</strong>r.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 25


Personalidade<br />

José Maria <strong>do</strong>s Santos<br />

jornalista, historia<strong>do</strong>r e titular da cadeira nº 27<br />

da Academia Paulista de História – <strong>APH</strong>.<br />

O MAGNÍFICO<br />

RAPAZOLA!<br />

O BRASIL VIU UM GÊNIO SURGIR NO<br />

RIO DE JANEIRO AOS 19 ANOS<br />

As pessoas que jamais ficaram realmente de<br />

queixo caí<strong>do</strong> poderão passar pela experiência,<br />

após a leitura deste texto. Simultaneamente,<br />

irão conhecer a primeira grande e decisiva<br />

aventura de Arturo Toscanini sua vida, que,<br />

por acaso, aconteceu entre nós.<br />

Não estranhem a familiaridade <strong>do</strong> nome.<br />

Trata-se <strong>do</strong> célebre maestro e violoncelista<br />

parmesão, que, por ocasião <strong>do</strong>s fatos a serem<br />

relata<strong>do</strong>s aqui, não era famoso, tampouco requisita<strong>do</strong>.<br />

Ao contrário. Tinha 19 anos, estava<br />

tentan<strong>do</strong> ganhar alguns troca<strong>do</strong>s dedilhan<strong>do</strong><br />

seu instrumento e, a julgar pelos seus antecedentes,<br />

devia estar tiran<strong>do</strong> o sono <strong>do</strong> pai. Fora<br />

reprova<strong>do</strong> numa tentativa de fazer parte da<br />

orquestra <strong>do</strong> Scala de Milão e contraíra algu-<br />

26<br />

novembro / dezembro de 2017


mas dívidas. Por isso, para se safar, juntou-se a<br />

uma companhia de ópera improvisada que veio<br />

realizar uma turnê caça-níqueis pela América<br />

<strong>do</strong> Sul. Há situações piores. Na sua divertida<br />

autobiografia (A Lua é um balão, Ed. Nova<br />

Época), o ator David Niven (1910-1983) escreve<br />

que, ao dar os primeiros passos como “extra”<br />

no cinema, dividia com colegas um trago<br />

<strong>do</strong> uísque intitula<strong>do</strong> “Neblina da Charneca”<br />

para ganhar mais desenvoltura em cena. Pelo<br />

nome, não devia ser um néctar.<br />

ReBelião na Plateia - Estamos na<br />

noite de 30 de junho de 1886, quarta-feira, com<br />

a lua nova no céu carioca. Das nove altas janelas<br />

na fachada <strong>do</strong> Theatro Dom Pedro II (*), no<br />

centro histórico <strong>do</strong> Rio, jorrava profusamente<br />

a iluminação a gás. A casa era imponente,<br />

a melhor da cidade, com 2.500 lugares, cuja<br />

guarda das cadeiras de jacarandá com assento<br />

de palhinha denotava o luxo: três recortes no<br />

encosto, <strong>do</strong>s quais, o <strong>do</strong> centro, esmalta<strong>do</strong> em<br />

preto e branco, anunciava a letra e o número.<br />

No piso superior, sobre a porta principal de<br />

quatro bandeiras, se localizava a tribuna imperial,<br />

onde a família real se comprazia com os<br />

espetáculos ou espiava os súditos assestan<strong>do</strong><br />

na plateia os minúsculos binóculos próprios<br />

de acompanhar óperas.<br />

No entanto, por trás <strong>do</strong> habitual frufru mundano<br />

dessas ocasiões, as coisas não corriam<br />

bem nos basti<strong>do</strong>res. Isto se devia ao amor próprio<br />

feri<strong>do</strong> <strong>do</strong> maestro Leopol<strong>do</strong> Miguez, que<br />

havia si<strong>do</strong> contrata<strong>do</strong> pelos empresários da<br />

companhia para conduzir as apresentações na<br />

etapa brasileira. Até então, a excursão, iniciada<br />

em Buenos Aires, transcorria sem sobressaltos.<br />

Mas na capital paulista começaram os<br />

problemas. A atuação <strong>do</strong> maestro não foi convenientemente<br />

apreciada, tanto por parte <strong>do</strong><br />

público como da imprensa. Produziu repercussões<br />

desagradáveis que chegaram ao Rio de<br />

Janeiro. O maestro, desgostoso, renunciou ao<br />

Arturo Toscanini<br />

trabalho, provocan<strong>do</strong> uma agressiva reação de<br />

apoio da população carioca. Isto deve ser credita<strong>do</strong><br />

ao respeito de que o maestro Miguez<br />

desfrutava na cidade e, talvez, à clássica rivalidade<br />

entre Rio e São Paulo que, em princípio,<br />

já estava instalada. (Aliás, o episódio está muito<br />

bem recorda<strong>do</strong> no blog “Ópera Sempre”, de<br />

Henrique Marques Porto). Para piorar a situação,<br />

um <strong>do</strong>s responsáveis pelo espetáculo, que<br />

está cita<strong>do</strong> apenas como Superti no noticiário<br />

a respeito, decidiu chutar o pau da barraca,<br />

como se diz hoje em dia. Anunciou, acirran<strong>do</strong><br />

os ânimos, que, ele próprio, sen<strong>do</strong> também regente,<br />

substituiria o brasileiro.<br />

Naquela noite, em que seria apresentada a<br />

ópera “Aída”, de Giuseppe Verdi (1831-1901),<br />

a abertura das cortinas foi saudada com uma<br />

vaia ensurdece<strong>do</strong>ra, que teria dura<strong>do</strong> cerca de<br />

30 minutos. Para nos apropriarmos de uma<br />

frase adequada, repetida à exaustão por Nelson<br />

Rodrigues, conforme fazia com todas as<br />

metáforas geniais que criava, a plateia urrava.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 27


Personalidade<br />

O heRÓi ultRaja<strong>do</strong> – No entanto, a<br />

intensidade da reação <strong>do</strong>s cariocas deve levar<br />

em conta o contexto da época. Simultaneamente<br />

aos brios ofendi<strong>do</strong>s, o império ainda<br />

era uma nação que ensaiava os primeiros balbucios.<br />

É de supor que necessitasse de glórias<br />

artísticas para afirmar sua nacionalidade no<br />

senti<strong>do</strong> de equiparar-se ao mun<strong>do</strong>, leia-se Europa.<br />

Tais anseios tinham maior apelo na capital<br />

federal pela própria condição de principal<br />

cidade <strong>do</strong> país; provavelmente Leopol<strong>do</strong> Miguez<br />

os personificasse. Embora tenha morri<strong>do</strong><br />

ce<strong>do</strong>, aos 52 anos, já podia exibir uma obra que<br />

envaidecia nossos ascendentes: poemas sinfônicos;<br />

peças de câmara; a ópera Os Saldunes...<br />

Talvez não estivesse no patamar <strong>do</strong>s grandes<br />

mestres europeus, mas ninguém lhe tira o mérito<br />

de haver si<strong>do</strong> um excelente professor de<br />

música e inova<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ensino musical em nosso<br />

país. Entrou para nossa história por haver<br />

composto o Hino da República em 1890. “Seja<br />

um pálio de luz des<strong>do</strong>bra<strong>do</strong>/sobre a larga amplidão<br />

desse céu...” A rigor, com essa composição,<br />

havia venci<strong>do</strong> o concurso para a escolha <strong>do</strong><br />

Hino Nacional Brasileiro, promovi<strong>do</strong> pelo marechal<br />

Deo<strong>do</strong>ro da Fonseca, então primeiro, e<br />

provisório, presidente da República. A vitória<br />

não foi efetivada oficialmente. Deo<strong>do</strong>ro mu<strong>do</strong>u<br />

de ideia e tornou-a o Hino da República,<br />

movi<strong>do</strong> aparentemente pelo calor da ocasião. A<br />

fresca república nascera no ano anterior, era o<br />

entusiasmo <strong>do</strong> momento que reclamava atenções<br />

e, principalmente, fora proclamada por<br />

ele. Segun<strong>do</strong> consta, levantara a<strong>do</strong>enta<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

Theatro Dom Pedro II RJ, Theatro Lyrico<br />

Arturo Toscanini em uma apresentação em Vienna<br />

Philharmonic <strong>193</strong>6<br />

leito, vencen<strong>do</strong> <strong>do</strong>res e desconfortos para subir<br />

no cavalo a fim de levantar sua espada para o<br />

céu no Campo de Santana.<br />

FoRa! BRaVo! - Um segun<strong>do</strong> dirigente da<br />

companhia, signor Rossi, tentou, mas não conseguiu<br />

pacificar o público. Naquela altura, com<br />

certeza somente <strong>do</strong>m Pedro II seria bem sucedi<strong>do</strong>,<br />

mas, infelizmente, no momento, devia estar<br />

ressonan<strong>do</strong> no paço imperial de São Cristóvão.<br />

O relato daquela noite sugere um levante popular<br />

prestes a explodir. Naquela atmosfera<br />

das barricadas de Paris que saltavam das páginas<br />

de “Os Miseráveis”, os músicos se reuniram<br />

e, criativamente, resolveram o impasse em<br />

alguns minutos. Determinaram que o fedelho<br />

de 19 anos seria o regente. A escolha não foi<br />

aleatória. Na convivência diária, haviam nota-<br />

28<br />

novembro / dezembro de 2017


<strong>do</strong> a centelha <strong>do</strong> gênio e sabiam que o rapaz<br />

conhecia profundamente a partitura de Aída,<br />

critério essencial para um maestro trabalhar.<br />

Por outro la<strong>do</strong>, a juventude de Toscanini iria<br />

enternecer a plateia furiosa. Toscanini fez<br />

mais: ao considerar que o excesso de luz no<br />

palco dificultava a leitura da partitura, porque<br />

o primeiro <strong>do</strong>s quatro atos se passa no Saara<br />

à luz forte <strong>do</strong> dia, simplesmente a fechou e regeu<br />

de cabeça. Coisa de virtuoses. Não é pouca<br />

coisa, se ainda for leva<strong>do</strong> em conta que a partitura<br />

original de Verdi exige um batalhão de<br />

executantes: 1 corne inglês, 1 clarinete baixo,<br />

2 clarinetes, 2 fagotes, 2 harpas, 2 trompetes,<br />

2 oboés, 3 flautas, 3 flautins, 3 trombones, 4<br />

trompas; o numeroso grupo de cordas composto<br />

por violinos, violas, violoncelos e contrabaixos.<br />

Por fim, a percussão: gongo, pratos,<br />

tambor, timbalos e triângulo. De início, Toscanini<br />

não aceitou a tarefa. Mas consta que,<br />

alerta<strong>do</strong> sobre a dissolução da companhia em<br />

decorrência <strong>do</strong> escândalo que interromperia<br />

sua fonte de renda, ele capitulou.<br />

Os rugi<strong>do</strong>s viraram aplausos que, ao final, se<br />

prolongaram por quinze minutos, segun<strong>do</strong><br />

registrou Oscar Guanabarino, respeita<strong>do</strong> crítico<br />

musical <strong>do</strong> jornal “O Paiz” (1834-<strong>193</strong>0),<br />

cujo redator-chefe era Quintino Bocaiúva.<br />

Guanabarino escreveu: “Deu ele (Toscanini)<br />

sobejas provas de habilitações, sempre frio – entusiasmo<br />

e vigor”. Veio a consagração. Toscanini<br />

permaneceu mais <strong>do</strong>is meses no Brasil<br />

fazen<strong>do</strong> e acontecen<strong>do</strong>.<br />

Naquela noite, a orquestra perdeu um violoncelista,<br />

mas a música assistiu à estreia daquele que<br />

viria a ser talvez o maior regente que já existiu.<br />

No se sa PRecisamente... – Esses<br />

acontecimentos, segun<strong>do</strong> mostra o transcorrer<br />

<strong>do</strong> tempo, somente chegaram à Itália<br />

no mês de outubro de 1886, quan<strong>do</strong> a publicação<br />

“La Riscossa”, de Parma, estampou<br />

artigo a respeito na seção Variazone Artística,<br />

cujo trecho segue abaixo:<br />

A Rio agisce uma compagnia di canto italiano,<br />

della quale fa parte la celebre Nadina Bulicioff,<br />

Il tenore Figner, il basso Roveri, eccetera. Si<br />

era dato il Faust, con splendi<strong>do</strong> successo. Tutti<br />

i giornali portavano al siete cielli gli artisti, ma<br />

si mostravano poco soddisfatti del diretore de<br />

l’orchestra, certo Leopolo Miguez, brasiliano,<br />

il quale a quanto pare, mostro di non avere<br />

né pratica, né capacitá por dirigere na magnifica<br />

orchestra che gli era stata affidata. Come<br />

si passarono le cose, no se sa precisamente:<br />

Il fato é que Il signor Miguez, punto nel suo<br />

amor próprio, mentre stava per andare em scena<br />

l’Aída, scrisse uma bela lettera de conge<strong>do</strong><br />

al impresari; uno del quali Il signor Superti (...)<br />

ebbe la infelice Idea di sotituire Il diretor dimissionario.<br />

Non l’averse mai fatto.<br />

(*) – Após a proclamação da República a casa<br />

passou a se chamar Theatro Lyrico. Foi demoli<strong>do</strong><br />

em <strong>193</strong>4.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 29


Registros<br />

CELEBRAÇÃO NATALINA<br />

CAPELA DE<br />

SÃO CAETANO<br />

Aconteceu, no último dia 10 de dezembro de 2017, ze <strong>do</strong> sino coloca<strong>do</strong> na torre da Capela em 1772,<br />

na abadia <strong>do</strong> mosteiro de São Bento da cidade de juntamente com outro, que se encontra atualmente<br />

no Museu Histórico Municipal.<br />

São Paulo, a missa <strong>do</strong> 3º centenário <strong>do</strong> início da<br />

construção da primeira Capela de São Caetano.<br />

Celebrada em canto gregoriano pelos monges de<br />

São Bento, contou com a presença <strong>do</strong> bispo diocesano<br />

<strong>do</strong>m Pedro Carlos Cipolini.<br />

Da Capela subsistem alicerces e contrapiso, expostos<br />

na vitrina externa à igreja atual, descobertos<br />

por uma equipe de arqueólogos da Universidade<br />

de São Paulo, em 1991. Sob o piso da igreja atual,<br />

que recobriu o piso da Capela, existem os túmulos<br />

construí<strong>do</strong>s em 1772.<br />

Ao final da missa, to<strong>do</strong>s os presentes puderam<br />

apreciar o som <strong>do</strong> sino da igreja durante cinco minutos.<br />

Esse sino foi fundi<strong>do</strong> em 1883, com o bron- Capela São Caetano - 300 anos<br />

NOVOS MEMBROS DA APP<br />

30<br />

novembro / dezembro de 2017<br />

Em outubro de 2017, novos membros passaram<br />

a fazer parte da Academia Paulista de<br />

Psicologia – APP.<br />

Os novos mestres que integram o seleto quadro<br />

de acadêmicos são, Ana Cristina Limongi<br />

França, Elizeu Coutinho de Mace<strong>do</strong>, Gilberto<br />

Safra, Liliana Antônio <strong>do</strong>s Santos e Marilene<br />

Proença Rebello de Souza.<br />

Fundada em 31 de dezembro de 1979, ano em<br />

que se comemorava o centenário da Psicologia<br />

como Ciência, a APP promove e estimula o estu<strong>do</strong><br />

e o progresso da Psicologia.


Cartas<br />

Entre as cartas recebidas, destacamos:<br />

Recebi o artigo "Brasil decifra-<br />

-me ou te devoro", no qual você<br />

revela mais uma vez seus<br />

<strong>do</strong>tes de conhecimentos gerais.<br />

Torna-se, assim, um <strong>do</strong>s mais<br />

notórios articulistas de nossa<br />

terra, firman<strong>do</strong>-se definitivamente<br />

nessa área.<br />

DOUGLAS MICHALANY,<br />

presidente emérito e titular da<br />

cadeira nº 13 da Academia<br />

Paulista de História - <strong>APH</strong><br />

Recebi e li seu pronunciamento<br />

relativo ao 14º Curso de História.<br />

Apreciei muito. E, como sempre,<br />

o senhor repete a generosidade<br />

de me agradar.<br />

Um grande abraço.<br />

JOSÉ MARIA,<br />

jornalista e titular da cadeira<br />

nº 27 da Academia Paulista<br />

de História - <strong>APH</strong><br />

Encaminhe comentários e sugestões para:<br />

ACADEMIA PAULISTA DE HISTÓRIA - <strong>APH</strong><br />

Rua Caçapava, 49 - conj. 76 - São Paulo/SP - CEP: 01408-010<br />

Tel.: (11) 3085-9014 - E-mail: lgbertelli@uol.com.br<br />

Solicita-se a gentil inclusão de nome completo, endereço, telefone e e-mail<br />

para eventual contato. Por questão de espaço, as cartas poderão ser resumidas<br />

ou publicadas parcialmente, a critério da redação.<br />

<strong>Revista</strong> <strong>do</strong> Historia<strong>do</strong>r 31

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