Revista Dr Plinio 246
Setembro de 2018
Setembro de 2018
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Publicação Mensal Vol. XXI - Nº <strong>246</strong> Setembro de 2018<br />
Cavalaria Angélica
Flávio Lourenço<br />
São Gabriel Arcanjo - Museu Nacional de Arte da Catalunha, Barcelona, Espanha<br />
Luta espiritual cheia de amor,<br />
amor cheio de doçura<br />
OArcanjo São Gabriel é aquele que mais conhece a Deus e comunica melhor este conhecimento.<br />
Daí o papel dele na Encarnação. Seu conhecimento não é meramente abstrativo,<br />
teórico, doutrinário, mas é evidentemente todo amoroso, com um amor que se manifesta<br />
na luta entendida assim: Luta espiritual cheia de amor, amor cheio de doçura. Há, portanto, uma<br />
espécie de prœlio no qual está, como ponto de origem e ponto terminal, o amor.<br />
(Extraído de conferências de 5 e 12/12/1976)
Sumário<br />
Publicação Mensal Vol. XXI - Nº <strong>246</strong> Setembro de 2018<br />
Vol. XXI - Nº <strong>246</strong> Setembro de 2018<br />
Cavalaria Angélica<br />
Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na<br />
década de 1990.<br />
Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />
As matérias extraídas<br />
de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
— designadas por “conferências” —<br />
são adaptadas para a linguagem<br />
escrita, sem revisão do autor<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />
propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />
ISSN - 2595-1599<br />
CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />
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Serviço de Atendimento<br />
ao Assinante<br />
editora_retornarei@yahoo.com.br<br />
Editorial<br />
4 Vínculo entre Anjos e homens “angelizados”<br />
Piedade pliniana<br />
5 Prece a São Miguel Arcanjo<br />
Dona Lucilia<br />
6 Autêntica lutadora<br />
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
8 Fatores naturais e preternaturais na<br />
divergência entre convicções e vivências - II<br />
Reflexões teológicas<br />
11 O reflexo de Deus na<br />
sociedade temporal - I<br />
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
16 Hífen entre doçura e combatividade<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
22 Balduíno IV, o protótipo do católico - II<br />
Calendário dos Santos<br />
26 Santos de Setembro<br />
Hagiografia<br />
28 A severidade de São Corbiniano<br />
Luzes da Civilização Cristã<br />
32 Lugar onde a Providência quis<br />
reunir suas maravilhas - I<br />
Última página<br />
36 Guerreiros implacáveis contra o<br />
demônio e seus sequazes<br />
3
Editorial<br />
Vínculo entre Anjos e<br />
homens “angelizados”<br />
Quando os medievais se referiam aos Anjos, falavam muitas vezes da Cavalaria Angélica. Diziam<br />
que os espíritos celestes foram os primeiros cavaleiros porque lutaram contra os primeiros<br />
maus: os anjos revoltosos.<br />
Não nos é fácil compreender como foi o prœlium magnum, esse grande combate travado no Céu<br />
entre os Anjos e os demônios. Como um puro espírito luta contra outro? Quais são os recursos de<br />
um espírito para vencer o outro, a ponto de precipitá-lo no Inferno? Como se dá a expulsão de um<br />
espírito por outro, de um determinado lugar?<br />
Por certo, esta guerra deu-se de um modo intrinsecamente muito mais nobre do que as Cruzadas.<br />
Aqueles espíritos angélicos, no momento em que se punham em luta contra os demônios, eram confirmados<br />
em graça e conquistavam para todo o sempre a coroa eterna.<br />
O chefe dessa Cavalaria Celeste é o Arcanjo São Miguel que, constituído o patrono dos cavaleiros,<br />
resume em si todo o espírito das Cruzadas, da Cavalaria e, consequentemente, todo o espírito da<br />
Idade Média.<br />
Nós achamos tão nobre alguém derramar seu sangue por uma grande causa. Mas a nobreza de um<br />
espírito como São Miguel, desdobrando toda a sua força contra o demônio, é inimaginável!<br />
É tal a beleza do Príncipe da Milícia Celeste que o intelecto humano não é capaz de captar, mas de<br />
algum modo pode suspeitar, entrever, conjecturar, à maneira de um degrau para imaginarmos a infinita<br />
perfeição de Deus.<br />
Sem dúvida, também nessa guerra incruenta em que estamos engajados – guerra psicológica, de<br />
graças e carismas contra as tentações e insídias diabólicas; de um espírito de inocência contra o de<br />
cumplicidade e toda espécie de indecência, de crime e de fraude da Revolução – há muito maior nobreza<br />
do que na própria Cavalaria terrena.<br />
Contudo, não poderemos contrarrestar a ofensiva revolucionária se não formos tais que os Anjos<br />
se reconheçam afins conosco e nossos naturais aliados; sem que estabeleçamos com a Cavalaria Angélica<br />
essa consonância por onde os celestiais guerreiros venham lutar conosco e dentro de nós com<br />
uma naturalidade como se o abismo que nos separa deles não existisse.<br />
Este vínculo entre Anjos e homens, e de homens por assim dizer “angelizados” entre si, agindo sobre<br />
a opinião pública no sentido contrarrevolucionário, em continuidade com a Cavalaria Celeste, é<br />
isto que deve nos caracterizar*.<br />
* Cf. conferências de 16/10/1970, 12/2/1978 e 6/10/1981.<br />
Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />
de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />
na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />
outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />
4
Piedade pliniana<br />
Samuel Holanda<br />
São Miguel vence satanás - Santuário do Monte Saint-Michel, França<br />
Prece a São Miguel Arcanjo<br />
São Miguel Arcanjo, vede o quanto há, em nossos dias, uma presença preternatural especialíssima.<br />
Quebrai o poder e a eficácia dessa presença pela ação de vossa força.<br />
Vós, que arrastastes na luta contra os espíritos revolucionários as coortes vencedoras<br />
dos Anjos contrarrevolucionários, aumentai em nós a Fé, a retidão da inteligência, a firmeza<br />
de princípios e a combatividade heroica, de maneira a discernirmos cada ardil do demônio,<br />
formando em nossa alma uma execração perfeita que esmague, inutilize e expulse os<br />
dragões infernais. Amém<br />
(Composta em 2/12/1973)<br />
5
Dona Lucilia<br />
Autêntica lutadora<br />
Dona Lucilia possuía convicções firmes, e o que ela considerava<br />
como verdadeiro decorria de uma reflexão calma, detida, depois<br />
de ter visto, no exame das coisas da vida, até que ponto aquilo<br />
correspondia a grandes horizontes e era oposto ao mal.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Se a minha formação como lutador,<br />
como tudo quanto possa<br />
haver em mim de bom se<br />
deve a alguma coisa em que a ação<br />
tão profundamente católica de minha<br />
mãe esteve presente, eu devo<br />
começar a narrar um pouquinho como<br />
era ela como lutadora.<br />
Distância calma,<br />
fria e cortês com<br />
relação aos maus...<br />
A ideia que habitualmente se tem<br />
do lutador é de um indivíduo espumante.<br />
Ele vê algo com que não<br />
concorda, então espuma de raiva. E<br />
quando está bem espumante de raiva,<br />
acha-se no auge de sua condição de<br />
lutador. Então ele se joga na luta por<br />
impulso, por atração, e encontra a delícia<br />
de ser lutador no fato de dar vazão<br />
à raiva de que está possuído.<br />
Tudo isto era o contrário do modo<br />
de Dona Lucilia ser lutadora.<br />
Ela era uma pessoa de convicções<br />
firmes. Quer dizer, o que mamãe tinha<br />
como verdadeiro era fruto de<br />
uma reflexão calma, detida, depois de<br />
ter visto, no exame das coisas da vida,<br />
até que ponto aquilo correspondia a<br />
grandes horizontes e era o oposto ao<br />
mal. Assim como ela amava o bem e<br />
queria que todo o mundo o praticasse,<br />
ela detestava o mal e desejava que<br />
todo o mundo evitasse o mal.<br />
Quando uma pessoa era adepta<br />
ou sequaz do mal, ela não espumava<br />
de raiva contra ela, mas considerava<br />
o mal que havia naquela pessoa com<br />
toda a lógica:<br />
“Tal pessoa fez isto ou pensa daquela<br />
maneira. O que ela fez, ou pensa,<br />
ou disse é mau por essas, aquelas e<br />
aquelas outras razões, tiradas da Doutrina<br />
Católica, da experiência da vida,<br />
etc. Se isto é assim, eu tenho uma posição<br />
oposta a essa pessoa, e absolutamente<br />
não estabelecerei relações próximas<br />
com ela, não farei dela minha<br />
amiga, mas viverei a uma distância calma,<br />
fria e cortês dessa pessoa.<br />
“Evitarei brigas e discussões, a não<br />
ser quando minha obrigação for de lutar<br />
contra e dizer que está errado. Aí<br />
eu falarei e estabelecerei a discussão.<br />
Do contrário, manter-me-ei numa calma<br />
perfeita, mas em torno de mim tudo<br />
que eu possa fazer para que aquela<br />
ideia não seja aceita, aquele exemplo<br />
não seja aprovado, aquele modo<br />
de agir não se repita, eu farei, falando<br />
com calma a respeito daquela pessoa:<br />
‘Fulano tem tais qualidades, mas,<br />
coitado, ele possui tal defeito. E tal defeito<br />
tem tais e tais consequências, de<br />
6<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> discursando,<br />
em Outubro de 1970
onde acontece que ele está exposto,<br />
de um momento para outro, a fazer<br />
tal ou tal ação ilícita.’<br />
“Como não se pode fazer ação<br />
ilícita nem querer o mal, tenho<br />
que manter-me afastada dessa<br />
pessoa. Eu a cumprimentarei<br />
amavelmente, cortesmente,<br />
não farei nenhuma brutalidade,<br />
mas estabelecerei uma distância<br />
fria. Uma distância, se quiserem,<br />
à la luz neon que ilumina,<br />
porém não aquece. E entre essa<br />
pessoa e eu fica um espaço, mas<br />
um espaço frio que mostra distância<br />
e no qual se lê de todos os lados a<br />
palavra não, não, não e não.”<br />
Esse era o sistema que ela aplicava<br />
e eu me habituei desde logo a ver<br />
esse sistema.<br />
...que se vingavam dela<br />
com o isolamento<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
Ela me chamava atenção a respeito<br />
daquele, daquele outro para ir<br />
me formando, a fim de eu compreender<br />
como são as coisas. No modo<br />
de ela falar eu compreendia a calma<br />
que deveria ter diante do mal, mas a<br />
irredutível frieza e hostilidade diante<br />
daquele que não se converte, que<br />
não muda a sua conduta. E por causa<br />
disso também uma distância, que<br />
colocava entre aquela pessoa e eu<br />
um vazio. Esse vazio fazia com que o<br />
outro ficasse meu inimigo.<br />
Dona Lucilia, sendo uma senhora<br />
– a vida de uma senhora naquele<br />
tempo era muito mais cerimoniosa<br />
e mais reverente –, não era objeto<br />
de polêmicas e vivia na tranquilidade<br />
da vida de família, mas a vingança<br />
dos maus contra ela era o isolamento.<br />
Então, quando ela tomava uma atitude<br />
sistemática contra um defeito, as<br />
pessoas que tinham aquele defeito se<br />
isolavam dela; retribuíam do mesmo<br />
modo a atitude que ela tomava.<br />
Isto mamãe via perfeitamente, mas<br />
queria e achava que era normal. Se ela<br />
estava de um lado, o outro se pôs do lado<br />
oposto; não tinha o direito de se pôr,<br />
mas o fez. Fique lá que eu permaneço<br />
aqui, e eu servirei a Deus do lado de cá<br />
e você servirá ao demônio do lado de lá.<br />
Observem sua fotografia tirada em<br />
Paris, na qual ela, ainda relativamente<br />
moça, está sentada num banco e pousando<br />
o rosto levemente sobre a mão.<br />
Dona Lucilia está pensativa, formando<br />
um juízo a respeito de alguém ou<br />
de alguma coisa. Ela está entre um sim<br />
e um não, uma rejeição e uma aceitação.<br />
Vai concluir alguma coisa e traçar<br />
uma norma para a vida dela.<br />
Vejam a serenidade com que ela<br />
está ali, a tranquilidade, a dignidade.<br />
Mas, de outro lado, a irredutibilidade:<br />
ela não muda, a convicção tomada<br />
por uma razão qualquer ela conserva<br />
durante a vida inteira.<br />
Assim eu a conheci até ao fim dos<br />
seus queridos e saudosos noventa e<br />
dois anos.<br />
Colocar os adversários no<br />
chão, de modo amável<br />
Por temperamento não sou uma<br />
pessoa violenta; sou muito tranquilo<br />
e até afetivo. Mas tive que aprender<br />
com ela que, embora sendo afetivo,<br />
é preciso ser irredutível. E eduquei<br />
meu temperamento calmo na<br />
batalha de quem se dedicou a um<br />
ideal, que vive para ele, luta contra<br />
quem é contra esse ideal e<br />
faz tudo a favor de quem é a<br />
favor dele; o mundo se divide<br />
entre bons e maus, certos<br />
e errados, católicos e não católicos,<br />
é preciso tomar a posição<br />
e depois enfrentar.<br />
Enfrentar com amabilidade<br />
sempre que haja o caso; se<br />
não puder enfrentar com amabilidade,<br />
enfrenta apertando…<br />
O que naturalmente, no meu<br />
tempo de menino, depois de estudante<br />
e posteriormente de homem<br />
maduro, se fazia com muito mais vigor<br />
do que entre senhoras.<br />
E por meio do quê? Aprendendo<br />
bem a ser lógico, a raciocinar, de<br />
maneira que, posto um raciocínio, o<br />
adversário não saiba como sair-se de<br />
dentro dele.<br />
Tenho escrito inúmeras coisas em<br />
minha vida e, com certa frequência, as<br />
pessoas com quem entro em desacordo<br />
me respondem; mas muitas vezes<br />
nem entram na discussão, porque percebem<br />
logo que vão ser derrotados.<br />
E se entram na discussão, eu com<br />
calma, de um modo sempre amável,<br />
ponho o bom senso.<br />
Eu soube recentemente que uma alta<br />
personalidade do mundo católico daqui<br />
do Brasil, querendo dizer que eu lhe<br />
passava rasteira, afirmou: “É, o <strong>Plinio</strong> é<br />
assim. Ele escreve um artigo contra uma<br />
pessoa, a qual começa a lê-lo. É um artigo<br />
tão amável que ela se sente até agradada.<br />
Mas, quando chega no fim do artigo,<br />
a pessoa está sentada no chão, porque<br />
não tem argumento; ele cortou a erva<br />
por debaixo dos nossos pés. E não temos<br />
outra coisa senão ficar quietos porque<br />
não há o que dizer.”<br />
Eu acho que é o modelo perfeito<br />
da cortesia e da combatividade. Pôr no<br />
chão de um modo amável, acabou. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
26/2/1994)<br />
7
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Fatores naturais e<br />
preternaturais na divergência<br />
entre convicções e vivências - II<br />
O fenômeno de subversão psíquica na humanidade é tão singular,<br />
simultâneo e universal que não poderia ser produzido, ao mesmo<br />
tempo e em circunstâncias tão diversas, sem um fator ou um complexo<br />
de fatores, idêntico a si próprio, por toda parte. É sumamente provável<br />
que ele seja causado principalmente por um fator preternatural.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na década de 1970<br />
Certezas que a boa ordem<br />
interior apresenta<br />
No exemplo da febre que dei anteriormente<br />
1 me exprimi, antes de tudo,<br />
com muito cuidado num pormenor:<br />
não disse que posso ter a certeza de<br />
que estou com febre ou não. Eu posso<br />
ter a certeza de que não estou com 42<br />
graus de febre, o que é uma coisa muito<br />
diferente. Porque qualquer um de nós<br />
pode se enganar. Põe o termômetro, de<br />
repente está com 37, 5, digamos. É uma<br />
coisa possível. Até mais. Mas 42 é muito<br />
puxado, é o auge da febre.<br />
A origem dessa certeza de não estar<br />
no extremo da enfermidade vem<br />
de uma tal ou qual limpidez do testemunho<br />
interno, que possui toda a segurança<br />
de uma evidência indiscutivelmente<br />
autêntica. É como quando<br />
alguém enche os pulmões com ar. A<br />
pessoa tem certeza de que está respirando<br />
e enchendo seus pulmões.<br />
Não tem conversa, é aquilo.<br />
A pessoa pode não estar segura de<br />
sua perfeita sanidade, mas quando se<br />
refere ao extremo da doença, tenho<br />
um testemunho interno que me diz que<br />
não estou nesse extremo. São essas cer-<br />
8
tezas que a boa ordem interior apresenta,<br />
e que são as primeiras evidências,<br />
anteriores a qualquer raciocínio.<br />
Nas novas gerações – não digo<br />
sempre, mas em alguns casos – essa<br />
certeza não é tão grande, mas é uma<br />
certeza vacilante que, diante de uma<br />
afirmação muito categórica em sentido<br />
contrário, pode parecer dúvida.<br />
Ora, um corpo grande de evidências<br />
primeiras é elementar para a boa<br />
marcha do espírito.<br />
O raciocínio deve<br />
fazer o controle das<br />
evidências primeiras<br />
Pergunta-se como esse corpo de<br />
evidências chegou a tornar-se débil.<br />
Pretendo tratar disso agora.<br />
Nós devemos fazer uma distinção<br />
entre a certeza básica saudável, objetiva,<br />
que nos dá a percepção clara,<br />
indiscutível da realidade imediata, e<br />
que é prévia ao próprio raciocínio,<br />
de acordo com a Filosofia de São<br />
Tomás. E depois a certeza racional<br />
que é filha dessas certezas iniciais.<br />
Porque o raciocínio não é o primeiro<br />
passo da elaboração mental. O raciocínio<br />
é uma conclusão tirada de<br />
duas premissas. Logo no início do<br />
processo mental estão premissas, e<br />
depois delas saem as conclusões.<br />
Quando as premissas são muito<br />
saudáveis e bem apanhadas, o raciocínio<br />
só se volta sobre as premissas<br />
para controlá-las por uma conveniência<br />
metodológica, mas não há uma<br />
verdadeira inquietação. Porque a<br />
pessoa tem aquela certeza e não concebe<br />
a menor dúvida a respeito desta.<br />
E isto porque as certezas, as evidências<br />
primeiras são superiores à razão.<br />
É próprio à razão conjugar as certezas<br />
e controlar o mecanismo das evidências<br />
primeiras. Porque, como há a<br />
possibilidade de uma ilusão por onde<br />
algumas certezas primeiras não se diferenciam<br />
tão claramente do irreal como<br />
outras, o raciocínio deve fazer o<br />
controle. No texto lido, o autor censura<br />
precisamente o fato de não ser feito<br />
este controle, de maneira que algumas<br />
certezas evidentes, mas falsas, não se<br />
distinguem das verdadeiras.<br />
No fundo do processo de insegurança<br />
da “geração nova” dá-se um<br />
fenômeno simultâneo, por onde há<br />
uma espécie de debilitação desse<br />
corpo inicial de certezas e a possibilidade<br />
de aceitar como válidas certezas<br />
inteiramente arbitrárias, por causa<br />
de um arrombamento do raciocínio.<br />
Assim, apaga-se a distinção sensível<br />
entre o verdadeiramente evidente<br />
e o que não o é; a razão, que<br />
poderia controlar esta obnubilação e<br />
restabelecer a ordem, também se paralisa<br />
e se suspende. O resultado é<br />
que entram afirmações gratuitas no<br />
espírito humano.<br />
A meu ver, trata-se de um fenômeno<br />
universal que se apresenta<br />
com uma aparência, pelo menos, de<br />
irreversibilidade, porque por mais<br />
que se utilizem meios para convencer<br />
uma pessoa, não se consegue eliminar<br />
a impressão errada.<br />
Circunstâncias da<br />
vida moderna<br />
Ademais, não é apenas uma anomalia<br />
acidental e pequena, mas sim<br />
profunda. É uma inversão profunda<br />
da ordem das coisas num campo capital,<br />
porque esse é um dos campos capitais<br />
da estrutura mental do homem.<br />
Então, trata-se de um fenômeno que,<br />
na ordem psicológica, é tão anormal<br />
quanto seria, por exemplo, na ordem<br />
física, todos os homens nascerem caolhos.<br />
Seria uma irregularidade gravíssima<br />
em matéria visual.<br />
Essa irregularidade gravíssima e<br />
universal pode ter várias causas ou<br />
uma só causa. Mas esse complexo de<br />
causas, em razão da anomalia do fenômeno,<br />
é um só para o mundo inteiro,<br />
porque um fenômeno tão singular,<br />
simultâneo, universal não poderia<br />
ser causado ao mesmo tempo<br />
nas circunstâncias mais diversas,<br />
a não ser por um fator ou um complexo<br />
de fatores idêntico a si próprio<br />
por toda parte. Esta é a primeira<br />
conclusão que se deve tirar.<br />
Existe a eventualidade do fator<br />
preternatural. Entretanto, há uma<br />
regra de bom senso segundo a qual<br />
nós só devemos apelar para uma explicação<br />
preternatural ou sobrenatural<br />
quando a natural parece impossível.<br />
Então, aparece a hipótese de se<br />
apelar para outro fator que não seja<br />
de ordem natural.<br />
Nós poderíamos perguntar se não<br />
são as circunstâncias da vida moderna<br />
que preparam essa gravíssima subversão<br />
psíquica na humanidade. Portanto,<br />
se métodos psicológicos, de ordem<br />
natural, não poderiam explicar isso.<br />
A ser isso verdade, deveríamos<br />
chegar à conclusão de que, provavelmente,<br />
quanto mais um determinado<br />
ambiente fosse carregado de influências<br />
modernas, tanto mais esse<br />
fato se notaria; e quanto mais tênues<br />
fossem essas influências, tanto menos<br />
ele seria notado.<br />
Ora, não há nenhuma certeza de<br />
que isso seja assim. Há um fato parecido<br />
com esse, mas isso propriamente<br />
não é assim. Quer dizer, aonde chegou<br />
a influência da Revolução, nós<br />
notamos que esse fato se dá em profundidade.<br />
Aonde tal influência não<br />
chegou, verificamos que esse fato se<br />
dá em profundidade muito menor.<br />
Influência da Revolução<br />
Explico-me. Em cidades muito<br />
pequenas, onde a influência da Revolução,<br />
muito distante, não penetrou,<br />
é de se admitir que esse fato seja<br />
menos profundo. Onde a influência<br />
da Revolução penetrou, esse fato<br />
se apresenta com toda a intensidade,<br />
embora as condições de vida dessa<br />
cidade pequena não tragam consigo<br />
essa consequência.<br />
Tomem uma cidade qualquer de<br />
fim de linha, de fim de estrada. Se ali<br />
chegou o espírito da Revolução, em-<br />
9
O pensamento filosófico de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
bora a vida material dessa cidade seja<br />
pacata, não haja excesso de trânsito,<br />
nem trepidação econômica, incerteza<br />
de condições de vida, nem a angústia<br />
contemporânea, mesmo ali esse<br />
fato se pronuncia; ao menos tanto<br />
quanto eu pude verificar. Acontece<br />
que, em geral, a Revolução não chega<br />
muito a fundo em lugares assim. Mas<br />
quando ela chega a fundo, esse fato<br />
se dá tanto quanto nos grandes centros.<br />
O que leva a julgar que a coisa<br />
é mais filha de uma influência da Revolução<br />
do que das condições de vida<br />
contemporânea.<br />
Esse é, naturalmente, um exame<br />
sumário, não inteiramente taxativo,<br />
decisivo. Esse exame sumário a mim<br />
me leva a achar que muito provavelmente<br />
as coisas são assim.<br />
O que tem a Revolução, considerada<br />
enquanto desligada das condições<br />
de vida que ela mesma criou,<br />
para que ela produza esses efeitos?<br />
Os fatos naturais não<br />
explicam tudo<br />
doras dessa mentalidade têm uma capacidade<br />
de difusão prodigiosa, e isso<br />
também não é verdade. Não há nenhuma<br />
razão para achar que isso seja<br />
especialmente assim.<br />
Fazendo um exame que, por algum<br />
lado, é muito atento, e por outro<br />
não cerca todas as possibilidades<br />
menores, mais rebuscadas – abrange<br />
apenas a linha geral –, se diria que<br />
não é fácil encontrar uma causa natural<br />
que, só ela, produza tudo isso.<br />
Que haja fatos naturais que concorram<br />
para produzir isso, eu concordo.<br />
Mas que somente eles causem isto<br />
eu acho muito discutível.<br />
Então, somos levados a nos perguntar<br />
se um fator preternatural poderia<br />
produzir isto. E para nosso<br />
exame ser completo, já que levantamos<br />
uma hipótese para além da natureza,<br />
deveríamos nos perguntar<br />
também se o fator sobrenatural poderia<br />
ser responsável por isso. Ora,<br />
quando falamos em fator sobrenatural<br />
responsável por isso, nós recusamos<br />
a ideia com horror. Porque<br />
compreendemos que isto é uma desordem,<br />
não pode ser produzido pelo<br />
fator sobrenatural autêntico, o<br />
qual, por sua natureza, é ordenador.<br />
Ação preternatural<br />
Então, só pode ser o preternatural,<br />
pois este produz desordem. Acontece<br />
que o homem, diante de impressões<br />
nele causadas ou acentuadas por<br />
efeito preternatural, tem um comportamento<br />
muito parecido com esse.<br />
Quer dizer, quando o homem é tentado<br />
por uma forma de tentação, como<br />
soem ser todas as tentações – ou quase<br />
todas –, que acentua muito nele<br />
uma impressão, dão-se nele todos esses<br />
fatos. De um lado a sugestão faz-<br />
-lhe parecer como evidente algo que<br />
não o é; de outro lado o raciocínio se<br />
suspende e ele fica incapaz de crítica,<br />
e precisa ter uma ascese firmíssima<br />
para escapar a essa ação. Ascese tão<br />
firme que, segundo os autores espiri-<br />
Poderíamos fazer a seguinte objeção:<br />
Os comunistas têm uma dosagem<br />
de espírito revolucionário muito<br />
mais intenso do que os burgueses.<br />
Logo, os filhos, os netos de comunistas<br />
– em linhagens comunistas<br />
de pai para filho e para neto – deveriam<br />
ter essa deformação psíquica<br />
muito mais do que os filhos e netos<br />
dos burgueses.<br />
Ora, essa tese absolutamente não<br />
parece que seja verdadeira. Haveria,<br />
pelo menos, interrogações muito<br />
fortes a fazer, em admitir que é pura<br />
e simplesmente a ideologia revolucionária,<br />
ou um ambiente apenas revolucionário.<br />
Seríamos levados a admitir<br />
a presença de uma outra causa.<br />
Uma pequena cidade penetrada<br />
pelo espírito da Revolução toma contato<br />
com gente que já tem essa mentalidade.<br />
E essa mentalidade, então,<br />
intoxica a pequena cidade. Nós deveríamos<br />
achar que as pessoas portatuais,<br />
para um homem muito tentado<br />
consiste em não pensar no assunto,<br />
até que passe a tentação. Porque<br />
se ele pensar no assunto, vai se deixar<br />
dominar por esta impressão, de<br />
tal maneira o mecanismo intelectivo<br />
está apertado, contrariado, coarctado<br />
na sua eficácia normal, pela tentação.<br />
Um exemplo. Uma pessoa desconfiada<br />
está caminhando, ouve alguém<br />
dizer alguma coisa, e desconfia<br />
que aquilo é com ela. Dá mais<br />
uns passos e o demônio, porque<br />
quer levá-la ao homicídio, sussurra:<br />
“Aquilo é com você.” Imediatamente,<br />
entrando o demônio, uma porção<br />
de impressões que a pessoa teve<br />
com aquilo se perturbam, se complicam<br />
e ela já não é mais capaz de<br />
dizer com clareza o que ouviu e não<br />
ouviu. Mas fica com a falsa evidência<br />
de que ela ouviu uma coisa que,<br />
bem analisada – e entra aí uma análise<br />
errada –, vai levá-la à conclusão<br />
de que aquele indivíduo disse aquilo;<br />
e conclui que é preciso matá-lo.<br />
A pessoa vai e mata. Na origem do<br />
crime de homicídio houve um fenômeno<br />
dessa natureza.<br />
Então, fica a pergunta se não haverá<br />
uma ação preternatural, uma<br />
vez que uma causa meramente natural<br />
é muito improvável, e a ação dos<br />
espíritos malignos costuma ser assim.<br />
Ora, isso faz muito o jogo do demônio<br />
e da Revolução. Resultado:<br />
não terá o demônio feito isso?<br />
Se houver um processo psicológico<br />
– e aqui entra a certeza –, o demônio<br />
está a cavalo nesse processo. Porque<br />
sempre que entra uma tentação natural,<br />
a sugestão demoníaca se conjuga a<br />
ela, e o fator preternatural se introduz.<br />
Logo, pode-se afirmar a existência de<br />
uma importante dose de preternatural<br />
no fenômeno acima descrito. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
6/4/1973)<br />
1) Cf. <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 245, p. 26.<br />
10
Reflexões teológicas<br />
O reflexo de Deus na<br />
J.P. Braido<br />
sociedade temporal - I<br />
Há espíritos curtos e outros de grandes horizontes. Uns<br />
se interessam somente pelo que lhes toca de perto, outros<br />
por cogitações muito acima deles. Salvo vocações muito<br />
especiais, a perfeição está em saber contemplar tanto o<br />
grande quanto o pequeno, pois as perfeições de Deus se<br />
espelham em todas as criaturas. Também as obras saídas do<br />
talento humano refletem as perfeições divinas, pois quando<br />
a pessoa está muito penetrada pela graça, espraia-se em<br />
torno dela uma ação de presença às vezes indefinível.<br />
H<br />
á indivíduos com uma<br />
mentalidade tal que, naturalmente<br />
falando, têm<br />
a impressão de que as coisas são como<br />
se eles fossem o centro do universo.<br />
O centro de todas as suas<br />
atenções, preocupações, apetências,<br />
de tudo quanto entendem, é aqui-<br />
lo que eles são, têm que fazer e o<br />
que lhes convém. O que for de uma<br />
esfera maior do que isto, para eles<br />
passa a ser desinteressante, na medida<br />
em que está longe deles. De<br />
maneira tal que um fato acontecido<br />
a uma grande distância deles não<br />
lhes interessa.<br />
Um aspecto da alma<br />
humana finamente descrito<br />
por Eça de Queiroz<br />
É conhecido o caso de Eça de Queiroz<br />
contando a história de um almoço<br />
em Portugal, em que ele fala do “pé da<br />
11
Reflexões teológicas<br />
BNP (CC3.0)<br />
Luíza Carneiro”. Em duas palavras, diz<br />
ele que numa casa de certa distinção do<br />
interior de Portugal – aquele interior<br />
tão tranquilo, tão largo, tão farto, tão<br />
repousando sobre si próprio – termina<br />
um almoço de domingo. A refeição esteve<br />
esplêndida, compareceram vários<br />
convidados da família, e passaram todos<br />
para uma sala ao lado a fim de conversar.<br />
Mas o peso do almoço opulento<br />
da comida portuguesa, que é muitas vezes<br />
difícil de digerir – há um restaurante<br />
em Lisboa que se chama “Ao Farta<br />
Brutos”, onde eu teria comido se soubesse<br />
de sua existência quando estive lá<br />
–, provoca sono; à medida que o sono<br />
sobe, a conversa vai se amortecendo.<br />
Por educação, cada pessoa joga de cá e<br />
de lá uma palavra, a coisa se arrasta...<br />
Chega o carteiro que entrega os<br />
jornais, e uma pessoa lê a notícia de<br />
um desastre medonho na China. Um<br />
rio transbordou e, digamos, cem aldeias<br />
ficaram submersas ceifando<br />
não sei quantas vidas, destruindo casas,<br />
lavouras, culturas, obras de arte,<br />
pagodes. Foi uma catástrofe, mas<br />
houve desinteresse geral na sala.<br />
José Maria de Eça de Queiroz<br />
E o Eça então descreve, com aquela<br />
capacidade de reconstituir a realidade<br />
que ele tinha, todo mundo ouvindo<br />
aquilo com uma pena platônica<br />
dos chineses, porque a China está<br />
longe de Portugal, é quase um outro<br />
mundo. Ainda mais naquele tempo<br />
de um telégrafo escasso, em que<br />
as comunicações eram feitas por navio;<br />
não havia ainda avião.<br />
De repente entra alguém e traz<br />
um aviso: A senhora, Da. Luíza Carneiro,<br />
que estava sendo esperada<br />
para o almoço e não apareceu, nem<br />
deu satisfação – não havia telefone<br />
–, mandava um recado pedindo desculpa.<br />
Ela tivera uma queda na rua<br />
e machucara o pé. Como Da. Luíza<br />
Carneiro era amiga de todo mundo<br />
que estava ali, foi um alvoroço:<br />
– Mas Da. Luíza Carneiro machucou<br />
o pé? O que terá sido?<br />
Mandam imediatamente bilhetes,<br />
recados para Da. Luíza Carneiro. E<br />
o sono, que a catástrofe dos chineses<br />
não tinha sacudido, o simples pé da<br />
Luíza Carneiro sacudiu!<br />
Eça, muito finamente, põe o ponto<br />
final e não comenta o fato.<br />
Mas fica entendido o inconveniente<br />
da alma humana, que<br />
ele queria apontar aí: uma catástrofe,<br />
absolutamente falando,<br />
grande, ocorrida na China,<br />
para o homem comum é como<br />
se não fosse nada.<br />
Por quê? Porque não diz respeito<br />
ao círculo no qual se move,<br />
pois acha que o centro de tudo<br />
é ele. Pelo contrário, o pé da<br />
Luíza Carneiro é uma coisa insignificante;<br />
uma senhora que,<br />
nas ruas tranquilas de uma aldeiazinha<br />
de Portugal, caiu,<br />
machucou o pé, está com a perna<br />
estendida, passando sonolentamente<br />
o domingo em casa.<br />
É uma bagatela, mas julgam<br />
ser muito importante porque<br />
se trata de uma pessoa da roda<br />
deles. E como isso toca a eles,<br />
o pé da Dona Luíza Carneiro<br />
fica valendo muito mais do que todo<br />
o desastre acontecido na China, que<br />
é distante.<br />
Os homens de espírito curto<br />
e os de grandes horizontes<br />
Aqui um vezo do espírito humano<br />
fica indicado. E esse vezo é: algo<br />
importa ao homem na medida e no<br />
sentido em que diga respeito a ele.<br />
O que não lhe diz a respeito não importa<br />
em nenhum sentido e nenhuma<br />
medida.<br />
Esses são os espíritos curtos, mais<br />
ou menos como homens afetados de<br />
uma forte miopia, e que não veem a<br />
não ser o espaço necessário para se<br />
moverem. Quer dizer, os horizontes<br />
maiores eles não conseguem perceber,<br />
porque não lhes é necessário, não sentem<br />
falta. Andam à vontade. Se para<br />
pegar os objetos, ler algo, se movimentar,<br />
eles veem o necessário, pouco lhes<br />
importa saber como são as estrelas, os<br />
horizontes, como é o mar.<br />
Há um outro tipo de homens que<br />
é o contrário. Só se interessam pelos<br />
grandes horizontes, pelas grandes<br />
coisas, por aquilo em que eles não estão<br />
no centro. Têm um gosto enorme<br />
disso, a ponto de relaxar, às vezes, sobre<br />
aquilo que lhes é imediato. Então,<br />
se veem com frequência artistas,<br />
poetas, grandes generais, diplomatas,<br />
etc., que deixam a família na miséria,<br />
que não cuidam de seus próprios interesses<br />
pessoais, e vivem com a cabeça<br />
posta em coisas que estão muito<br />
acima das cogitações imediatas deles.<br />
Isso é um defeito ou uma qualidade?<br />
À primeira vista, é um defeito,<br />
porque o homem deveria ver longe<br />
e perto. A vista boa, proporcional, vê<br />
as estrelas tanto quanto é normal e lê<br />
a letra pequena do jornal, sem auxílio<br />
de lentes. Sabe observar uma formiga<br />
e ver uma montanha, ao longe,<br />
bem como o que na montanha se passa,<br />
sem necessidade de lentes. Essa é<br />
a visão perfeita; observa tudo quanto<br />
interessa muito à vista humana.<br />
12
Gabriel K.<br />
São Tomás de Aquino à mesa com o Rei São Luís IX - Convento de São Domingos, Lima, Peru<br />
São Tomás de Aquino,<br />
chamado a se preocupar<br />
exclusivamente com<br />
as coisas do Céu<br />
Na realidade, alguns homens têm<br />
uma vocação especial. Nossa Senhora<br />
os chama para verem de longe e não<br />
se ocuparem com o que está perto. Na<br />
vocação especial isto é uma qualidade,<br />
porque significa uma tal absorção<br />
no que está mais alto e mais longe, que<br />
eles como que voam e são mais Anjos<br />
do que homens. Existem Santos assim.<br />
É muito conhecido o episódio em<br />
que São Luís, Rei da França, convida<br />
São Tomás de Aquino para um almoço.<br />
É uma honra ser convidado para a<br />
mesa do Rei. O Superior dos dominicanos<br />
vai com São Tomás de Aquino<br />
e começa a conversa, São Luís presidindo.<br />
Todo mundo tem por obrigação<br />
estar atento ao que diz o Rei, pois<br />
é ele quem faz a conversa. Aliás, São<br />
Luís tinha muito boa prosa, era muito<br />
bom interlocutor, mas São Tomás<br />
reimerge nas suas preocupações e se<br />
esquece de que está na mesa do Rei.<br />
E ele, que era corpulento, de repente<br />
dá um soco na mesa e diz:<br />
– Ergo, conclusum est contra manichæos!<br />
“Portanto, está concluído contra<br />
os maniqueus”, que eram hereges<br />
mais ou menos gnósticos do tempo<br />
dele. O Superior o chama:<br />
– Frei Tomás, Frei Tomás!<br />
São Luís:<br />
– Frei Tomás chegou a alguma<br />
grande conclusão. Tragam logo material<br />
para escrever a fim de tomar<br />
nota do pensamento dele!<br />
Rapidamente, vieram pessoas que<br />
anotaram as palavras de Frei Tomás.<br />
Depois ele normal e mansamente entrou<br />
na conversa. Uma luz nova tinha<br />
nascido na Igreja: novos argumentos<br />
contra os maniqueus. Frade<br />
chamado ao abandono das coisas da<br />
Terra, a preocupar-se exclusivamente<br />
com as do Céu, São Tomás de Aquino<br />
evidentemente fez bem de, na própria<br />
mesa do Rei, nem olhar para o<br />
monarca. Mais terrível ainda: na mesa<br />
do Santo, não olhar para o Santo!<br />
Esqueceu de tudo, querendo pegar os<br />
maniqueus e provar seus erros.<br />
Santos atentos aos<br />
acontecimentos deste mundo,<br />
mas absortos em Deus<br />
Mas houve Santos a quem Deus<br />
chamou para uma outra forma de<br />
perfeição. É muito conhecido este<br />
fato: Santa Teresa de Jesus estava<br />
preparando um almoço para as freiras<br />
e teve um êxtase em que foi raptada<br />
aos Céus em espírito e recebeu<br />
uma visão altíssima – era uma grande<br />
mística, com visões absolutamente<br />
transcendentais –, na qual contemplou<br />
a Deus, enquanto ela fazia<br />
uma panqueca. De repente, a auxiliar<br />
da cozinheira entrou, viu-a no<br />
êxtase, na glória de Deus, e batendo<br />
direito a panqueca para as freiras.<br />
A ação dela – não absolutamente,<br />
mas neste ponto – era mais alta do<br />
que a de São Tomás, porque este estava<br />
pensando nos maniqueus, e ela, vendo<br />
Deus face a face. O Criador falava a ela<br />
naquele momento e a ajudava a bater<br />
13
Reflexões teológicas<br />
a panqueca. E ela, por espírito<br />
de disciplina e pelo senso das<br />
coisas como são, tinha o êxtase<br />
místico e, ao mesmo tempo, estava<br />
fazendo a panqueca.<br />
Talvez mais característico<br />
ainda, seja um dito de Santo<br />
Inácio de Loyola, a respeito<br />
do seguinte: ele media tão bem<br />
o pró e o contra de tudo quanto<br />
fazia e, portanto, qual a razão<br />
última da convicção formada<br />
ou da deliberação tomada, que<br />
no simples ato de passar por um<br />
noviço da Companhia de Jesus<br />
– portanto, o que a Companhia<br />
tem de mais modesto – e tirar<br />
seu barrete para ele, Santo Inácio<br />
poderia encher uma folha<br />
de papel com, digamos, quinze<br />
motivos prós e dezoito contra,<br />
explicando porque cumprimentou<br />
ou respondeu ao cumprimento,<br />
com esse ou aquele<br />
matiz. Quer dizer, era uma visão<br />
agudíssima do que lhe era<br />
imediato, mas sem ter perdido<br />
a noção, em nenhum momento,<br />
daquilo que é o verdadeiro<br />
centro de todas as coisas: Deus<br />
Nosso Senhor.<br />
Esta exposição mostra várias famílias<br />
de almas. Santo Inácio, agindo<br />
com a finura de um político, de um<br />
ultrapolítico – estou certo de que um<br />
Talleyrand ou um Metternich não saberiam<br />
calcular tão bem um cumprimento<br />
como ele –, estava por inteiro<br />
posto nos acontecimentos deste mundo.<br />
No extremo oposto, podemos imaginar<br />
São Tomás de Aquino pensando,<br />
não na panqueca, nem no Rei da<br />
França, o Santo que tinha diante dele,<br />
mas exclusivamente nos maniqueus.<br />
As perfeições divinas<br />
espelhadas no<br />
talento humano<br />
Santa Teresa de Jesus - Mosteiro de<br />
Santa Teresa, Ávila, Espanha<br />
É uma gama enorme de variedades<br />
onde se espelham as perfeições<br />
infinitas de Deus. Então se compreende<br />
bem que deve haver gente que<br />
preste atenção em tudo, neste sentido<br />
da palavra: tudo aquilo que Deus<br />
criou, é conforme a Ele, foi feito para<br />
ser visto pelo gênero humano. Esse<br />
é o princípio geral.<br />
E precisa haver homens com o<br />
feitio de espírito para ver cada coisa.<br />
Uns veem mais uma, outros veem<br />
mais outra, mas tudo é objeto para<br />
ser contemplado muito atentamente<br />
por um certo tipo de homem.<br />
Dou um exemplo modesto. No<br />
uso doméstico, não há nada de mais<br />
comum do que uma colherzinha de<br />
mexer café. A diversidade de formas,<br />
de estilos de colherzinha de café que<br />
se tem fabricado no mundo, desde<br />
que há café, é tão grande que se poderia<br />
fazer um museu enorme com<br />
essas variedades. E o homem fez<br />
mil obras de arte e mil horrores<br />
com colherezinhas de café.<br />
Quer dizer, a colherzinha<br />
de mexer café é uma criatura<br />
indireta de Deus, porque<br />
ela foi modelada por aqueles<br />
que foram criados por Deus.<br />
Só em torno desse objeto o<br />
talento humano quantas modalidades<br />
inventa! Quanto o<br />
homem pensou a respeito de<br />
colherzinha de mexer café!<br />
É um certo tipo de homem.<br />
Deus quer que alguns tenham<br />
espírito feito para isso.<br />
Em alguns lugares da Europa<br />
se fizeram colherezinhas<br />
de mexer café tão magníficas,<br />
que na Áustria chegou a haver<br />
isto: no fim de certas recepções,<br />
às vezes com mais de um<br />
milhar de convidados, o Imperador<br />
da Áustria mandava<br />
oferecer café pelos lacaios, e a<br />
colherzinha era de ouro. Tão<br />
bonita era essa colherinha que<br />
já se sabia, por tradição, que o<br />
convidado tinha o direito de<br />
levá-la para casa. Era um presente<br />
do Imperador.<br />
Tenho certeza de que, vendo<br />
essas colherezinhas de café as quais<br />
se encontram frequentemente em<br />
qualquer lugar, nunca lhes passou pela<br />
cabeça que pudesse haver isso.<br />
Considerem outra coisa: o saleiro, o<br />
objeto mais rotineiro que pode haver<br />
no mundo. Pois bem, o que existe de<br />
variedade de saleiros é simplesmente<br />
inimaginável; poder-se-ia fazer um<br />
museu de saleiros.<br />
Figuremos uma sala de jantar dos<br />
antigos tempos. Cada comensal poderia<br />
aproximar uma colherzinha e<br />
pôr na sua própria comida o sal que<br />
quisesse. Na mesa, candelabros, lustres<br />
com velas no alto do teto, na indecisão<br />
da luz que vai e vem, o saleiro<br />
brilha como uma montanha de cristal<br />
no meio da mesa, ao reflexo do ouro.<br />
É um objeto tão pequeno, tão modesto.<br />
Entretanto, tudo quanto é para<br />
Samuel Holanda<br />
14
o uso do homem foi feito para ser pensado<br />
e elaborado de um modo magnífico<br />
em alguns espécimes, bom em outros,<br />
decente em outros, e de um modo<br />
indecente pela Revolução. Quer dizer,<br />
há toda uma gradação. E mesmo<br />
o indecente que a Revolução faz serve<br />
ao homem, porque é útil para comparar<br />
e detestar. De maneira que até isso<br />
serve aos justos.<br />
Um passeio de Nossa<br />
Senhora pela Terra Santa<br />
Daí tira-se a conclusão seguinte:<br />
Deus fez na Terra os homens e, abaixo<br />
deles, o reino animal, o vegetal e<br />
o mineral. Além disso, Ele criou uma<br />
forma de vida que vale mais do que o<br />
homem: a vida sobrenatural da graça.<br />
Quando a pessoa está muito penetrada<br />
pela ação da graça – daqui<br />
a pouco lembrarei o que é a graça –,<br />
espraia-se em torno dela uma como<br />
que luz, às vezes visível, às vezes invisível;<br />
uma como que ação de presença,<br />
às vezes definível e às vezes indefinível,<br />
em razão da qual a pessoa parece<br />
dar a conhecer algo em si, que é<br />
superior à própria natureza humana.<br />
E isto nota-se muito bem quando<br />
se imagina Nossa Senhora andando,<br />
por exemplo, por um vale<br />
florido com os famosos lírios<br />
do campo; é quase impossível<br />
não presumir que, na medida<br />
em que Ela ia passando,<br />
pela ação de sua presença as<br />
flores se abriam mais, ficavam<br />
mais brancas, voltavam-<br />
-se discretamente para Ela e<br />
deitavam um perfume mais<br />
intenso. Porque havia na<br />
Santíssima Virgem, em grau<br />
proporcionado à dignidade<br />
incomparável d’Ela, algo de<br />
sobre-humano, quer dizer,<br />
superior a todas as naturezas,<br />
mas atraindo tudo quanto<br />
era inferior.<br />
Pode-se imaginar que<br />
também as outras flores se<br />
voltavam para Nossa Senhora quando<br />
Ela passava; os recém-nascidos<br />
paravam de chorar e começavam a<br />
abanar as mãos em direção a Ela; os<br />
cordeiros, símbolos do Cordeiro de<br />
Deus, se achegavam diante d’Ela e<br />
iam se tornando mais alvos na medida<br />
em que Ela ia se aproximando; os<br />
leões olhavam-Na e ficavam, de repente,<br />
dulcificados e mansos como<br />
se fossem pássaros, mas depois rugindo<br />
ao longe para defendê-La contra<br />
o adversário imaginário, e com<br />
uma força também duplicada. Assim<br />
seria um passeio de Nossa Senhora<br />
pela Terra Santa.<br />
A mais alta qualidade<br />
que uma pessoa pode<br />
possuir na Terra<br />
Isso se deu também com incontáveis<br />
outros Santos, em grau infinitesimalmente<br />
menor, porque em relação<br />
a Nossa Senhora as coisas mais<br />
belas, maiores, que se podem imaginar<br />
são infinitesimais.<br />
O famoso caso do lobo de Gúbio<br />
com São Francisco de Assis. Era<br />
um lobo terrível e que incutia medo<br />
a todo mundo, comia, devorava,<br />
etc. Então, pediram a São Francisco<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1979<br />
uma providência contra o lobo. Ele o<br />
chamou, e o lobo veio todo docinho.<br />
São Francisco deu uma bênção e o<br />
lobo ficou suave, e nunca mais atacou<br />
ninguém.<br />
Também São Francisco Solano,<br />
um jesuíta, apóstolo do Paraguai.<br />
Quando os índios ficavam muito bravios,<br />
ele tocava violino e os amansava.<br />
Era como a bênção de São Francisco<br />
de Assis.<br />
A vida sobrenatural da graça vale<br />
mais do que a vida humana, porque<br />
é uma participação do homem<br />
na vida divina. Deus cria a graça, a<br />
qual confere uma participação na vida<br />
d’Ele; e Deus como que a enxerta<br />
no homem. E se o homem corresponde<br />
à graça, esta é, ao pé da letra,<br />
como um enxerto. Põe-se o enxerto<br />
numa árvore frutífera e toda a produção<br />
muda; também tudo quanto o<br />
homem faz como que se diviniza sob<br />
a ação da graça. E a mais alta qualidade<br />
que pode haver na Terra é estar<br />
imbuído da graça, correspondendo a<br />
ela com toda a intensidade. Nada se<br />
compara à ação da graça. v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de<br />
9/6/1979)<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
15
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Samuel Holanda<br />
Hífen entre<br />
doçura e<br />
combatividade<br />
Na sociedade orgânica medieval existia muita bondade e<br />
combatividade. Não se podia mexer nos princípios, pois nesse caso<br />
o Cordeiro de Deus se transformava em Leão de Judá. Ela primava<br />
também pela lealdade, que é o hífen entre a doçura e a combatividade.<br />
Quando a Idade Média terminou e iniciou a Renascença, a lealdade<br />
foi deixando de ser estimada, começou uma insensibilidade para<br />
com a traição e as alianças passaram a valer cada vez menos.<br />
Uma pessoa que, sendo objeto<br />
de toda a doçura, de<br />
toda a suavidade do Sagrado<br />
Coração de Jesus, se deixa enternecer<br />
e suavizar tem condições para<br />
que todas as suas qualidades pessoais<br />
se expandam largamente, sem constituir<br />
fator de agressão nem de briga<br />
dentro da sociedade orgânica.<br />
Reciprocidade enternecida<br />
Tomem uma pessoa que leia as revelações<br />
de Nosso Senhor a Santa Marga-<br />
rida Maria sobre o Sagrado Coração de<br />
Jesus, e tem alma para se deixar tocar<br />
por isso. Enquanto é assim – pode deixar<br />
de ser –, ela tem gratidão que, afinal<br />
de contas, é essa reciprocidade no bem.<br />
Alguém nos faz bem, nós lhe damos essa<br />
reciprocidade; isso é gratidão.<br />
A alma é muito instável nessa reciprocidade.<br />
E enquanto está tocada<br />
por essa reciprocidade, essa pessoa<br />
pode desenvolver todas as suas qualidades<br />
o mais que queira e tornar-se<br />
um colosso; ela é um fator de bem-<br />
-estar, de ordem, de bom funcionamento<br />
de todas as coisas dentro da<br />
sociedade orgânica.<br />
Se, pelo contrário, ela tem um tipo<br />
de alma que, sendo objeto de uma<br />
bondade tal do Sagrado Coração de<br />
Jesus ou do Imaculado Coração de<br />
Maria, não se deixa tocar, quanto mais<br />
ela se expande, mais tira o terreno dos<br />
outros, e mais torna a sua própria expansão<br />
daninha e insuportável.<br />
Numa sociedade em que essa reciprocidade<br />
enternecida é o comum do<br />
trato de uns homens com os outros, o<br />
papel da autoridade fica muito peque-<br />
16
no, porque o caos, as desordens são<br />
muito raros. A autoridade não tem senão<br />
uma função repressiva limitada.<br />
Haverá sempre necessidade dela, mas<br />
é limitada. Possui uma função diretiva<br />
muito grande – inspiradora e diretiva<br />
– que consiste, sobretudo, em estimular<br />
essas disposições de alma.<br />
Todos podem expandir-se inteiramente,<br />
sem que ninguém entre no terreno<br />
do outro. Daí se torna possível a<br />
sociedade orgânica, que se define assim:<br />
é a sociedade na qual todas as expansões<br />
não ocupam espaço vital a terceiros,<br />
e são benfazejas umas às outras.<br />
Uma floresta de pesadelo<br />
Nós deveríamos imaginar uma<br />
floresta de pesadelo, onde as árvores<br />
só pudessem crescer de maneira<br />
tal que umas batessem com os ramos<br />
das outras. Um tal crescimento seria,<br />
de um lado, a lei da vida; de outro<br />
lado, a lei do caos. Seria preciso<br />
repressão contínua nessa floresta de<br />
pesadelo.<br />
E quando as árvores estão nutridas<br />
por um princípio vital, pelo qual elas<br />
se expandem sem se tocarem, sem invadirem<br />
reciprocamente o espaço vital,<br />
temos a floresta que se pode desenvolver<br />
livremente.<br />
Qual é a condição que faz com<br />
que os homens não batam com as<br />
qualidades uns nos outros? É exatamente<br />
essa enternecibilidade diante<br />
da bondade muito grande, paciente,<br />
que espera, que perdoa; aí nasce<br />
a sociedade orgânica. Mas o famoso<br />
problema da sociedade orgânica realmente<br />
não é possível a não ser in<br />
caritate Christi 1 , exatamente por isso.<br />
Os setenta sábios no<br />
Farol de Alexandria<br />
Lembro-me dos setenta sábios no<br />
Farol de Alexandria. Para mim é das<br />
coisas mais belas que há: setenta sábios<br />
num farol estudando juntos os<br />
documentos sagrados, a interpretação,<br />
etc. Eu acho uma coisa maravilhosa.<br />
Como poesia, é de uma beleza única.<br />
Se a pessoa tem a alma assim enternecível<br />
pela bondade autêntica<br />
que se lhe faça – não é, portanto, por<br />
qualquer agradinho vão –, quando<br />
vê um outro, que é um par dela, fazer<br />
uma coisa boa, ela fica contente,<br />
agradecida, porque a alma enternecida<br />
não tem rivalidade, nem vontade<br />
de esmagar ou de superar quem<br />
quer que seja. Ela quer que todas as<br />
formas de bem se expandam. E não<br />
quer ocupar nessa floresta senão o<br />
lugar onde naturalmente ela está.<br />
Então, vendo outros que brilham<br />
mais, etc., ela se rejubila, até dá graças<br />
a Deus, toma isso como uma bondade<br />
de Nossa Senhora. Por quê?<br />
Porque um estado de espírito traz outro.<br />
Toda forma de bem a toca.<br />
Por exemplo, num seminário onde<br />
os seminaristas são<br />
assim. Um seminarista<br />
vê um outro que o sobrepuja<br />
em virtude e<br />
fica contente: “Olhe,<br />
que bonito fez o clérigo<br />
Tal!”. Por quê? Porque<br />
toda forma de bem<br />
o enternece, ele fica<br />
grato.<br />
É a aplicação num<br />
outro campo, quer dizer,<br />
nas relações horizontais,<br />
daquilo que<br />
acabo de dizer nas relações<br />
verticais, entre<br />
o Sagrado Coração de<br />
Jesus e nós. É uma variante.<br />
Aseitas<br />
Daí decorre também<br />
uma outra coisa: uma<br />
espécie de abundância<br />
de bem-estar interior,<br />
por onde a pessoa<br />
fica com o sistema nervoso,<br />
o temperamento,<br />
muito mais aberto, mais<br />
afável, mais flexível, recebe bem qualquer<br />
coisa. É à maneira do Cordeiro<br />
de Deus, desde que não mexam nos<br />
princípios. Este é o ponto que não<br />
pode ser tocado, pois do contrário o<br />
Cordeiro vira o Leão de Judá.<br />
A sociedade orgânica vem do fato<br />
de que todo mundo expande suas qualidades,<br />
as quais se entrerrelacionam<br />
espontaneamente; movidas pelo bom<br />
impulso que elas têm, formam harmonias<br />
novas, como nunca ninguém pensou.<br />
É a aseitas 2 da sociedade orgânica.<br />
Falei há pouco da organicidade que<br />
vem de que isto procede do fundo de<br />
todos. Agora trato da aseitas. Isso tem<br />
uma originalidade que nunca ninguém<br />
pensou, porque dá origem a combinações<br />
sempre novas, inesperadas e, por<br />
causa disso, encantadoras.<br />
Cada pessoa tem uma unicidade inconfundível.<br />
Nas relações de cada um<br />
Revelação do Sagrado Coração de Jesus<br />
a Santa Margarida Maria Alacoque - Igreja<br />
de São Patrício, Nova Orleans, EUA<br />
Francisco Barros<br />
17
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Divulgação (CC3.0)<br />
com um outro nascem sempre, neste<br />
clima de organicidade, surpresas que<br />
ninguém pode prever. É propriamente<br />
a doçura de Cristo no Reino de Cristo.<br />
Então surge o reino da suavidade,<br />
o reino de doçura, o reino da bondade.<br />
A verdadeira sociedade<br />
orgânica não existiu<br />
antes de Cristo<br />
É uma coisa que um pagão não<br />
pode imaginar. Por causa disso, a<br />
verdadeira sociedade orgânica não<br />
houve antes de vir Nosso Senhor.<br />
Porque sem Ele não se concebe.<br />
E esta unicidade não se poderia<br />
realizar antes da vinda de Jesus, por<br />
efeito do pecado original. Como se<br />
poderia pensar numa realização inteiramente<br />
na ordem da Metafísica,<br />
e levando-a até suas últimas consequências,<br />
por uma humanidade parada<br />
pelo pecado original?<br />
Compreende-se assim o que vem<br />
a ser a revelação do Sagrado Coração<br />
de Jesus a Santa Margarida Maria<br />
e o convite para aquela devoção,<br />
retamente entendida. Daria o que<br />
nós acabamos de dizer.<br />
Então, uma das coisas mais antipáticas<br />
do Ancien Régime é uma espécie<br />
de ressentimento contínuo de uns com<br />
os outros. Isso não existia na Idade<br />
Média, o clima era outro. E da simples<br />
generalização dessa devoção, se o rei<br />
tivesse dado apoio, teria nascido uma<br />
coisa que nós não sabemos como é.<br />
Todas as elucubrações sobre Idade<br />
Média e a inocência do homem<br />
medieval não têm sentido se não tomarmos<br />
isso em consideração.<br />
A pessoa assim não pode ser, habitualmente,<br />
muito apressada, posta<br />
no ritmo norte-americano do metrô,<br />
do elevado, do avião, etc. Eu<br />
procuro muito, dentro do corre-corre<br />
a que sou obrigado, não ter pressa<br />
interior. E acho que estou dirigindo<br />
minhas palavras contra o teor de<br />
vida mecanizado e moderno. A um<br />
homem que diz as coisas saltando de<br />
um lado para outro torna impossível<br />
ter esse estado de espírito.<br />
O corre-corre, o<br />
apego e o pânico<br />
Portanto, tudo quanto a Revolução<br />
colocou para acelerar demais o<br />
ritmo das relações humanas, eu considero<br />
de algum modo perturbador<br />
deste estado de espírito do qual estou<br />
falando. É necessário uma certa serenidade<br />
por onde as reciprocidades se<br />
sentem e têm tempo de recuar.<br />
Gravura representando o Farol de Alexandria<br />
Na ponta de cada linha de obrigações<br />
do homem moderno está alguma<br />
agilidade inexorável, à maneira de um<br />
funcionário atrás de um guichê de um<br />
banco, dizendo: “Faça isso assim, porque<br />
do contrário serás prejudicado!”<br />
No fundo de todo esse corre-corre<br />
existe uma promessa de suborno e<br />
uma ameaça. Quer dizer, um apego e<br />
um pânico. Ora, apego e pânico saem<br />
desse ritmo e não são compatíveis com<br />
a sociedade orgânica, a qual comporta<br />
um certo vagar, uma certa tolerância.<br />
Em vista do que acabei de falar –<br />
desta virtude da gratidão, da reciprocidade,<br />
etc. –, se compreende a quase impossibilidade<br />
de se levar uma vida verdadeiramente<br />
católica – salvo melhor<br />
juízo da Igreja algum dia; aí me curvo,<br />
mas do contrário não – nesse corre-corre<br />
dentro do qual sou obrigado a viver.<br />
Alguém dirá: “Mas o senhor vive<br />
ou não vive direito assim?” Eu espero<br />
que viva, mas não se pode exigir<br />
isso de cada um.<br />
Não pode haver sociedade<br />
orgânica sem reflexão<br />
Há também uma outra coisa desse<br />
estado de alma de que falei no começo<br />
da reunião, que é muito ligada<br />
com essa história da pressa. Todos<br />
conhecem, mas a questão é fazer<br />
o relacionamento debaixo desse ângulo.<br />
É o seguinte:<br />
Quem tem esse estado de alma é<br />
reflexivo, reflete com facilidade e<br />
gosta de refletir. Será mais inteligente<br />
ou menos, pouco importa; ele reflete.<br />
Porque tem os interstícios, os intervalos,<br />
e uma necessidade de alma, por<br />
efeito de suas próprias reciprocidades,<br />
de pesar e ponderar o que se passou<br />
para, organicamente, se ajustar<br />
em vista do que aconteceu e fazer reflexões.<br />
E são reflexões sem pedantismo,<br />
mas que nascem do fundo da alma<br />
dele – tal coisa, tal outra, depois é<br />
de tal jeito –, que dão a vida refletida.<br />
Um sabor que a sociedade orgânica<br />
precisa ter é sentir-se em todos os seus<br />
18
membros que eles refletem.<br />
Sem isso não há sociedade<br />
orgânica, como, por exemplo,<br />
não pode existir um<br />
avião sem asas e sem motor.<br />
Digamos que uma pessoa<br />
acaba de fazer um negócio,<br />
no qual teve uma situação<br />
aflitiva de que um<br />
amigo a salvou, numa atitude<br />
elegante, desprendida.<br />
Ela, então, gosta de refletir,<br />
de recordar a cena, o<br />
amigo falando, de ponderar<br />
o que este sacrificou, a<br />
vantagem que ela mesma<br />
auferiu, e tem vontade de<br />
encontrar o amigo para lhe<br />
agradecer.<br />
Não é necessário que<br />
seja sempre um agradecimento<br />
em expressos termos.<br />
Pode ser um agradecimento<br />
implícito que, às<br />
vezes, se exprime num modo<br />
de dizer “bom-dia”. Há<br />
mil modos de agradecer,<br />
mas ela gosta de agradecer.<br />
E isto sem uma reflexão não toma<br />
seu valor inteiro.<br />
Conhecer a mim mesmo e<br />
a caridade que os outros<br />
têm para comigo<br />
Então, esses problemas que se<br />
apresentam: “A sociedade orgânica<br />
deve ter uma economia de tal tipo<br />
ou de tal outro?” Eu começo por<br />
dizer para o sujeito que formula tal<br />
pergunta: “Faça primeiro os homens<br />
com a alma própria à sociedade orgânica,<br />
que a economia qualquer um<br />
a efetua, vai de si. Não venha com<br />
regras, mas procure criar homens<br />
que, pela sua natural expansão, sejam<br />
como as árvores da floresta que<br />
se desenvolvem.”<br />
Daí vem a sabedoria popular, a filosofia<br />
popular que é o comum do<br />
pensamento do povo, etc., mas que<br />
dão a sociedade orgânica.<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1983<br />
Eu volto a dizer: a reflexão assim<br />
pede negócios e um âmbito de contato<br />
pessoal que não sejam com muita<br />
gente, nem muito complicados,<br />
entremeados, mas que tenham uma<br />
certa simplicidade para poderem ser<br />
aprofundados.<br />
Essa posição de alma suporia uma<br />
outra coisa, que é a seguinte: Um conhecimento<br />
muito equilibrado de si<br />
próprio, do que, segundo a justiça,<br />
me é devido, e depois qual a caridade<br />
que me fazem. Porque não é possível<br />
ter reciprocidade com os outros<br />
sem entender isso.<br />
Alegria ao ver uma<br />
pessoa superior a nós<br />
E esse simples enunciado põe o<br />
homem contemporâneo delirando,<br />
porque está tão apodrecido pela Revolução,<br />
que fica incapaz de refletir<br />
razoavelmente sobre o que ele é.<br />
Ele é tão igualitário que,<br />
se for um homem de um<br />
pouco mais de valor, pensa<br />
para si o suprassumo e dá<br />
num orgulhoso; ou, se for<br />
um medíocre, quer reduzir<br />
tudo ao nível dele. Em ambos<br />
os casos, qualquer desigualdade<br />
o deixa louco.<br />
Não é o modo pelo qual<br />
uma alma ordenada, da<br />
qual falei, considera isso:<br />
“Fulano tem tal coisa que<br />
eu não tenho? Fico contente!<br />
Então vamos homenageá-lo,<br />
felicitá-lo por<br />
causa disso, o que lhe dará<br />
alegria!”<br />
Isto era, propriamente,<br />
o antigo ambiente de<br />
família. Quando aparecia<br />
um na família que se destacava<br />
muito, às vezes de<br />
um ramo bastante secundário,<br />
era uma alegria geral.<br />
Mas por quê? Porque a<br />
família, que era uma espécie<br />
de princípio vital, tinha<br />
manifestado sua fecundidade, florescendo<br />
naquele de modo especial.<br />
Era uma razão de alegria para todos,<br />
e não de pega-pega: “Aquele vai ficar<br />
mais importante que eu, não é possível...”<br />
Não existia isso.<br />
Naquele tempo as moças cantavam,<br />
tocavam piano, etc. Se aparecia<br />
uma mocinha que está sendo apresentada<br />
à sociedade e cantava magnificamente,<br />
eclipsava todas as outras,<br />
estas ficavam alegres: “Já viu Fulana<br />
como está cantando bem? Convide-a<br />
para sua casa!” É o natural.<br />
Mas sem esse sentimento, a pessoa<br />
não é capaz de saber aquilo a que tem<br />
direito e o que se lhe deve. Resultado:<br />
ela não é capaz de valorizar o que<br />
lhe é dado. É uma ponderação de que<br />
a pessoa se torna incapaz. Falta-lhe o<br />
senso da medida cômoda e tranquila<br />
para todas as coisas, que sem essa<br />
avaliação não é possível. Na sociedade<br />
orgânica existe isso.<br />
Arquivo <strong>Revista</strong><br />
19
A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />
Flávio Lourenço<br />
Então, por exemplo: “Está aqui<br />
nos visitando Fulana, que é muito<br />
importante por causa de tal coisa.<br />
Vamos lhe oferecer um chá melhor!”<br />
É uma alegria que todos têm.<br />
Alegria de dar, sem interesse.<br />
Com o fim da Idade<br />
Média, a lealdade deixou<br />
de ser apreciada<br />
E há uma virtude que é o ponto<br />
de transição de tudo quanto eu acabo<br />
de dizer e as virtudes combativas.<br />
Refiro-me a uma virtude cujo nome<br />
está ultraconspurcado pela banalidade,<br />
mas é lindo. Chama se lealdade.<br />
Porque esse teor de coisas só pode se<br />
manter com quem é autêntico; com<br />
quem não é autêntico é imantenível.<br />
Esse estado de espírito de que falei<br />
é pronto ao perdão. Mas uma das<br />
coisas que ele mais dificilmente perdoa<br />
é a falta de lealdade. Considerem<br />
dois amigos. Um pode perdoar<br />
ao outro qualquer coisa, por exemplo,<br />
um desaforo muito grande; porém<br />
perdoar uma deslealdade é mais<br />
difícil. Viciou a base.<br />
De onde acontece que na falta de<br />
lealdade, não digo que seja inexplicável<br />
o delito, mas é preciso dar provas<br />
de si exuberantes para provar o<br />
arrependimento. Ou há uma expiação<br />
que é garantia de autenticidade<br />
a vida inteira, ou aquilo não se mantém.<br />
Ao desleal que peça perdão pode-se<br />
dizer: “Eu perdoo e vou rezar<br />
por você.” É muito mais difícil afirmar:<br />
“Eu perdoo, vamos conviver.”<br />
E a lealdade está a meio caminho<br />
entre toda essa doçura à qual me referi<br />
e a combatividade. É o hífen que<br />
se põe numa ordem muito razoável.<br />
Não tem nada de sensacional. E a lealdade<br />
já é a passagem para a combatividade,<br />
para uma outra ordem.<br />
E notem o seguinte: quando a<br />
Idade Média cessa e inicia a Renascença,<br />
começa uma insensibilidade<br />
para a traição. O traidor da Renascença<br />
é muito mais frequente. Mesmo<br />
as alianças passaram a valer cada<br />
vez menos. Mas por quê? Porque a<br />
lealdade passou a valer cada vez menos<br />
e ser desleal não ficava mal.<br />
Então, com o fim da Idade Média,<br />
a lealdade deixa de se prezar. Quando<br />
esse apreço pela lealdade cessa, pode<br />
ter a forma de afetividade que quiser.<br />
Para um homem íntegro, essa afetividade<br />
significa pouco e é tratada como<br />
pouco. Não tem por onde escapar.<br />
Bondade de Nosso<br />
Senhor Jesus Cristo<br />
Para se compreender e amar todas<br />
essas verdades, há um pressuposto<br />
que eu considero uma graça especial.<br />
Especial para nós porque vivemos<br />
neste século, etc., mas é uma graça<br />
frequente, corrente, comum na Cristandade:<br />
ter uma certa noção, comunicada<br />
pela graça, de como isso realmente<br />
foi com Nosso Senhor, e como<br />
o equilíbrio de tudo isso existia n’Ele.<br />
Por exemplo, a bondade de Nosso<br />
Senhor é, ao mesmo tempo, por assim<br />
dizer, infatigável, insuperável; mas, de<br />
outro lado, procede de uma Pessoa de<br />
uma majestade indizível, fazendo que<br />
essa graça venha especialmente preciosa<br />
porque se percebe que ela desce<br />
infinitamente do alto. E, vinda de<br />
tão alto, ela preenche com tanta condescendência<br />
um espaço que percorre<br />
a distância infinita Criador-criatura,<br />
mais a distância insondável homem<br />
em estado de graça-pecador.<br />
E quando a pessoa recebe essa<br />
bondade fica enternecida, em boa<br />
parte pela noção de quantas distâncias<br />
comparáveis a anos-luz essa bondade<br />
caminhou para chegar até ela.<br />
De maneira que pela alma sensível,<br />
no bom sentido da palavra, ela<br />
é acolhida com muita gratidão. Mas<br />
uma gratidão profundamente respeitosa<br />
e desejosa, desde logo, no primeiro<br />
lance, de que não se diminua<br />
em nada a majestade que assim desceu<br />
até ela. A pessoa seria capaz de<br />
desembainhar não sei que espadas<br />
para manter esta majestade, porque,<br />
para ela, o reconhecimento da majestade<br />
e do infatigável, por assim dizer,<br />
da bondade, fazem um só.<br />
Então, a seriedade, a transcendência,<br />
a perfeição de Nosso Senhor, en-<br />
20
quanto Segunda Pessoa da Santíssima<br />
Trindade, enquanto Homem-Deus – a<br />
palavra transcendência se aplica aí numa<br />
situação mais analógica –, essa superioridade<br />
assim percebida enquanto<br />
vem a nós transbordante de bondade,<br />
mas fazendo sentir a sua superioridade,<br />
é o que de nenhum modo nas falsificações<br />
das imagens de Jesus estão.<br />
Sua seriedade e majestade<br />
Essa bondade é profundamente<br />
séria. Quer dizer, ela nos oferece<br />
aquilo a que não teríamos direito,<br />
mas ao mesmo tempo pede de nós, fitando-nos<br />
com força, que nos modifiquemos<br />
e tenhamos bem em linha de<br />
conta o que está nos sendo dado. Ou<br />
seja, não é uma bondade cínica. Ela<br />
quer ser devidamente avaliada.<br />
É uma bondade disposta a perdoar<br />
muitas vezes. Mas cada vez que há<br />
um pecado, ela reconstitui a situação<br />
dramática anterior, agravada pela<br />
nova. E ela exige, de quem recebe<br />
a bondade, um preito de contrição<br />
ainda maior.<br />
Quer dizer, há ao lado disso uma<br />
seriedade, um tomar-se a sério! E,<br />
no fundo, está dito o seguinte: “Meu<br />
filho, Eu te perdoo inúmeras vezes.<br />
Um dia você cai na minha justiça; há<br />
um certo limite, e ai de quem transpõe<br />
esse limite!” Embora não afirmado,<br />
isto está presente.<br />
A majestade de Nosso Senhor é<br />
tal que nem sei o que dizer. Naquelas<br />
perguntas feitas por Ele aos fariseus<br />
há, ao mesmo tempo, uma simplicidade<br />
e uma invectiva onde está<br />
presente um equilíbrio que só o Divino<br />
teve, dentro do qual a própria<br />
bondade deve ser vista. Ela não pode<br />
ser considerada como uma virtude<br />
avulsa. É isto que dá a ela o sabor. v<br />
(Extraído de conferência de<br />
17/2/1984)<br />
Gabriel K.<br />
1) Do latim: no amor de Cristo.<br />
2) Cf. <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 140, p. 16-21 e<br />
n. 141, p. 20-25.<br />
Sagrado Coração de Jesus<br />
República Dominicana<br />
21
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
Angelo L.<br />
Balduíno IV,<br />
o protótipo do católico - II<br />
Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentar Saladino,<br />
que se retirou. Talvez essa vitória tenha sido, sob<br />
algum aspecto, mais bonita do que a alcançada<br />
pelo rei leproso quando rezou com o rosto na areia.<br />
Nesta ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto;<br />
naquela, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que<br />
o famoso guerreiro maometano fugisse. É a glória de<br />
um homem na Terra, à espera da glória no Céu.<br />
Sainte-Chapelle,<br />
Paris, França<br />
Imaginemo-nos na situação dos<br />
soldados de Balduíno IV que<br />
combateram na batalha de<br />
Montgisard 1 , revestidos de armamentos,<br />
marchando ou cavalgando às ordens<br />
desse rei, e pensando o seguinte:<br />
Epopeia comparável aos<br />
episódios sacratíssimos<br />
da vida de São Luís<br />
“Do outro lado está o Sultão Saladino,<br />
muito famoso, riquíssimo, cer-<br />
cado de todo o fausto do Oriente –<br />
o nome dele retumbava por todas<br />
aquelas zonas como o de um grande<br />
guerreiro –, um homem válido, sadio.<br />
Nós não somos senão trezentos, e o<br />
nosso rei o que é? Um miserável leproso,<br />
um pobre superdoente, desfeito<br />
em chagas e purulências. E a Providência<br />
nos chamou para combater,<br />
sob as ordens de um desprezível leproso,<br />
todo o exército de Saladino!”<br />
Não é verdade que poderia dar insegurança<br />
monumental? O que de-<br />
veria ter sido esse Balduíno para, sozinho,<br />
dar segurança aos trezentos<br />
homens! Que canal, que veículo do<br />
Espírito Santo! Mais bonito ainda do<br />
que pensar em trezentos guerreiros<br />
é cogitar em trezentos soldados pernibambos...<br />
E o rei, leproso, que se<br />
prostra no chão e pede a Nosso Senhor,<br />
por meio de Nossa Senhora,<br />
força para os seus pernibambos. Ali,<br />
de fato, nada é forte a não ser a alma<br />
dele; mas esta o era por inteiro!<br />
Mais sublime não pode ser.<br />
22
Eu pergunto: na história das monarquias<br />
católicas, há um episódio<br />
mais bonito do que esse? Não há.<br />
Nem os episódios sacratíssimos da<br />
vida de São Luís excedem a esse em<br />
beleza. Igualam sim, mas não excedem.<br />
É uma verdadeira maravilha!<br />
Eis a epopeia que a História da<br />
Idade Média, vista assim, nos apresenta.<br />
Continua o autor 2 .<br />
No ano seguinte, Balduíno edificou<br />
no Gué de Jacob a fortaleza destinada<br />
a defender a Galileia dos ataques<br />
de Damasco.<br />
Gué é um vale por onde Jacó teria<br />
passado. Como é bonita a figura desse<br />
rei que vai se desagregando, mas<br />
constrói fortalezas. Ele, ao contrário<br />
de uma fortaleza que se edifica, é um<br />
esboroamento vivo, a cada instante.<br />
Mas ele ainda constrói fortaleza para<br />
lutar no futuro.<br />
Guilherme de Tiro pretende que isso<br />
tenha sido feito pelas permanentes<br />
solicitações de Odon de Saint-Amand,<br />
Grão Mestre do Templo. Em todo caso,<br />
qualquer que tenha sido o inspirador<br />
da ideia, não há dúvida quanto à<br />
importância estratégica da fortaleza<br />
que Balduíno mandou construir.<br />
Um senhor feudal revoltase<br />
contra Balduíno IV<br />
Em 1179, Saladino invadiu a Galileia.<br />
Balduíno foi a seu encontro, tentando<br />
surpreendê-lo, como tinha feito<br />
em Montgisard. Mas, como os muçulmanos<br />
não se deixaram surpreender,<br />
o jovem rei foi cercado. Muitos foram<br />
mortos e presos nesse dia.<br />
Pouco tempo depois, Saladino tomou<br />
o Gué de Jacó e mandou executar<br />
todos os cavaleiros do Templo que<br />
a defendiam.<br />
Sybilla, irmã do rei, acabava de se<br />
casar – contrariamente aos interesses<br />
do Estado – com Guy de Lusignan,<br />
homem de beleza discutível, sem fortuna<br />
e sem talento. Balduíno, pressionado<br />
pelos seus, minado pela doença,<br />
havia consentido nessa união e doado<br />
a Lusignan os condados de Jafa e Ascalon.<br />
Tão logo se manifestou a insignificância<br />
do marido de Sybilla, atiçaram-se<br />
as esperanças dos senhores<br />
feudais. Contava-se que o irmão de<br />
Lusignan, comentando o casamento,<br />
disse: “Se Guy for rei, eu deveria ser<br />
deus.”<br />
Nessa mesma ocasião, Isabel de Jerusalém<br />
desposava Humphrey de Toron,<br />
filho indigno de seu pai, o extinto<br />
Condestável de Jerusalém, morto em<br />
defesa do rei. O estado de Balduíno IV<br />
piorava dia a dia. Foi uma provação<br />
para sua mãe, que não tinha boa fama,<br />
e para a roda de seus cortesãos,<br />
ambiciosos e amorais, ver a aproximação<br />
de Balduíno com Raimundo de<br />
Trípoli, único homem capaz de aconselhá-lo<br />
devidamente.<br />
Nesse momento reapareceu, libertado<br />
dos cárceres muçulmanos, o antigo<br />
Príncipe de Antioquia, Renaud<br />
de Châtillon. Este logo começou suas<br />
aventuras, assaltando uma importante<br />
caravana de peregrinos com destino<br />
a Meca.<br />
Tal ato rompia a trégua assinada<br />
por Balduíno IV e Saladino, ofendia<br />
as convicções religiosas dos muçulmanos,<br />
a cujos olhos o atentado afigurava-se<br />
monstruoso. Intimado pelo rei a<br />
devolver os prisioneiros e o produto da<br />
pilhagem, ele recusou-se com arrogância,<br />
tornando assim evidente a incapacidade<br />
do doente de se fazer obedecer.<br />
Portanto, esse senhor feudal revoltou-se<br />
contra o rei. Balduíno deu-lhe<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Batalha do Krak de Moab<br />
23
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />
ordem de restituir o que tinha<br />
tirado aos muçulmanos, e ele<br />
não quis. O estado de doença<br />
de Balduíno não lhe permitia,<br />
naquele momento, manter a<br />
autoridade necessária.<br />
Dirigia-se às batalhas,<br />
carregado em liteira<br />
Divulgação (CC3.0)<br />
Em agosto, o infatigável<br />
maometano Saladino tentou<br />
tomar Beirute por uma ação<br />
combinada por terra e mar.<br />
Uma vez mais, Balduíno afastou<br />
o perigo.<br />
Então, caminhando para a morte,<br />
ele combateu e venceu.<br />
Impediu Saladino de se apoderar<br />
de Alepo e conduziu uma expedição<br />
até os subúrbios de Damasco.<br />
Que era a capital de Saladino.<br />
Assim, por toda parte, graças à sua<br />
energia sobre-humana, e ainda que<br />
daí em diante ele se fizesse carregar<br />
em liteira para as batalhas, o heroico<br />
leproso levava vantagem sobre o genial<br />
muçulmano.<br />
Considerem um rei que não pode<br />
mais cavalgar e é levado em liteira<br />
para as batalhas, mas que vai animando<br />
os seus. Vejam, mais uma<br />
vez, a força de alma que renasce, enquanto<br />
o corpo cada vez decai mais.<br />
Ele começava, entretanto, a perder<br />
a vista, a não poder mais se servir de<br />
seus membros. Os que lhe eram mais<br />
chegados o pressionavam a abandonar<br />
seus afazeres do reinado, e ao<br />
mesmo tempo passar parte de suas<br />
responsabilidades a Guy de Lusignan.<br />
Pode-se bem imaginar o drama interior<br />
desse rei, com apenas 22 anos,<br />
corroído por úlceras, semiparalisado<br />
e quase cego, cercado pelas sombras<br />
da desconfiança e dos maus pressentimentos,<br />
atormentado ante as insinuações<br />
e sugestões pérfidas dos seus, de<br />
um lado, e a alta ideia que fazia de sua<br />
missão de rei, de outro lado. Se a lepra<br />
o enfraquecia e ele não podia ter esperanças<br />
de se curar, sempre, entretanto,<br />
Coroação de Balduíno V<br />
encontrava novas forças e resistia da<br />
melhor forma às ciladas da camarilha.<br />
É o período de ascensão máxima<br />
dele: cada vez mais cercado, ele vai<br />
resistindo à camarilha, crescendo em<br />
energia.<br />
Pedido de socorro<br />
ao Ocidente<br />
Como a doença entrava numa fase<br />
evolutiva, ele devia lutar contra ela e,<br />
sobretudo, contra a tentação de abandonar<br />
tudo para morrer em paz.<br />
Foi num desses períodos que ele<br />
consentiu, se bem que a contragosto,<br />
a investir Guy de Lusignan na regência<br />
do reino.<br />
No primeiro encontro com Saladino,<br />
Lusignan deixou o exército franco ser<br />
massacrado. Recusou com altivez prestar<br />
contas a Balduíno, que o destituiu de seu<br />
cargo. E para evitar que, pela complacência<br />
de Sybilla, Lusignan se tornasse<br />
Rei de Jerusalém após sua morte, ele designou<br />
seu sucessor: o pequeno Balduíno<br />
V, filho de Guilherme Longue Épée.<br />
Ele ainda teve, portanto, um gesto<br />
de suprema coragem e energia: vendo<br />
que o cunhado não prestava mesmo,<br />
destituiu-o da sucessão do reino.<br />
Como a situação da Terra Santa estivesse<br />
desesperadora, Balduíno mandou<br />
uma embaixada ao Ocidente,<br />
composta pelo Patriarca de Jerusalém,<br />
pelo Mestre dos Hospitalários e pelo<br />
Mestre dos Templários, o velho<br />
Arnaud de Torrage.<br />
Era um pedido de socorro<br />
ao Ocidente, para ver se mandavam<br />
gente limpa e boa para<br />
salvar a cidade de Jerusalém.<br />
Agonizante, Balduíno<br />
enfrenta Saladino<br />
e o derrota<br />
Renaud de Châtillon, que<br />
indiretamente tinha ajudado o<br />
rei a se desembaraçar de Lusignan,<br />
julgou-se autorizado a<br />
retomar suas pilhagens, mas<br />
agora então na mais alta escala.<br />
Armou uma frota, que foi transportada<br />
ao Mar Vermelho em dorso de camelo.<br />
Essa frota, devastando portos,<br />
interceptando comboios, ameaçou por<br />
algum tempo o caminho para Meca.<br />
Saladino, excitado até o cúmulo do<br />
furor, destruiu os navios de Renaud e depois<br />
sitiou-o em sua própria fortaleza, o<br />
Krak de Moab. Balduíno IV apareceu,<br />
agonizando em sua liteira, para lhe fazer<br />
frente. Saladino então retirou-se.<br />
O Mar Vermelho era cheio de sultanatos<br />
e de pequenos Estados riquíssimos.<br />
Renaud de Châtillon fez<br />
transportar os seus navios, a dorso<br />
de camelo, pelo istmo de Suez – o canal<br />
naturalmente não existia, só foi<br />
aberto no século XIX –, entrou no<br />
Mar Vermelho e começou a saquear.<br />
Saladino ficou indignado. Balduíno,<br />
agonizante, foi de liteira enfrentá-lo.<br />
Saladino se retirou. Talvez tenha sido<br />
uma vitória, sob algum aspecto,<br />
mais bonita do que aquela quando<br />
ele rezou com o rosto no chão. Na<br />
primeira vitória, ele comoveu o Céu,<br />
inclinando-se no deserto; na segunda,<br />
impôs respeito ao Inferno, fazendo<br />
com que Saladino se retirasse. É<br />
a glória de um homem na Terra, à espera<br />
da glória no Céu.<br />
O último ato de Balduíno IV foi o de<br />
reunir em São João d’Acre o Parlamento<br />
de seus barões. Guy de Lusignan, incapaz<br />
e rebelde, foi então oficialmente<br />
24
afastado do trono. E a regência foi confiada<br />
a Raimundo de Trípoli.<br />
O que era de justiça e sabedoria,<br />
porque ele designou um menino para<br />
ser seu sucessor, e tinha o direito<br />
de nomear o regente. Balduíno chamou<br />
então seu conselheiro fiel e designou-o<br />
como regente. Vê-se o golpe<br />
pelo qual ele não nomeou Guilherme,<br />
o Longa Espada, para rei,<br />
mas sim o menino. Assim, Balduíno<br />
pôde chamar seu conselheiro fiel e<br />
passar-lhe o bastão de mando, antes<br />
de morrer.<br />
Mais tarde, a 16 de março de 1185,<br />
o mártir rendeu sua alma a Deus, em<br />
presença de seus vassalos, dignatários<br />
e bons companheiros de guerra. Até os<br />
infiéis lhe tributaram homenagens.<br />
Pedir a esse herói que<br />
nos obtenha a força<br />
de alma indomável<br />
Entretanto, os católicos o esqueceram...<br />
Em 1972, ele é lembrado<br />
num auditório cheio de pessoas de<br />
um continente naquele tempo habitado<br />
pelos guaranis, araucanos, tupis,<br />
etc. Aqui está um eco da glória<br />
de Balduíno IV, Rei de Jerusalém.<br />
Esse é um fulgor da Idade Média.<br />
Não sei o que aconteceu, mas<br />
uma figura assim não foi dada mais<br />
à Cristandade. Esse exemplo impressionante<br />
do rei leproso e herói, diante<br />
de cujas feridas recuam, cheios de<br />
reverência, os filhos das trevas, não<br />
nos foi dado depois.<br />
Alguém poderá objetar: “<strong>Dr</strong>.<br />
<strong>Plinio</strong>, o seu entusiasmo por Balduíno<br />
IV é como se ele tivesse sido<br />
santo. Mas o senhor não pode ter os<br />
olhos fechados para o fato de que<br />
esse homem teve fraquezas na vida,<br />
como o senhor mesmo observou<br />
nessa narração histórica. Como o senhor<br />
pode ter tanto entusiasmo por<br />
esse personagem?”<br />
A vida tem me mostrado poder<br />
haver pessoas com algumas qualidades,<br />
mas que, sob o peso de pro-<br />
vações muito grandes, embora com<br />
culpa, apresentam deflexões, mas a<br />
graça depois perdoa, reanima e leva<br />
de novo a altos cumes.<br />
Essa foi a história, chagada e dolorosa,<br />
de Balduíno IV. Ele teve desfalecimentos,<br />
é verdade. Não como<br />
Nosso Senhor caiu debaixo da Cruz<br />
– perfeito, impecável, divino –, mas<br />
como um homem que teve fraquezas,<br />
e recebeu graças para não tê-las.<br />
Essas fraquezas devem ser julgadas<br />
com severidade. Mas os atos maravilhosos<br />
de sua vida também precisam<br />
ser, por isso mesmo, julgados com a<br />
mesma justiça. E esses impõem admiração,<br />
como as fraquezas exigem a<br />
severidade. Sobretudo, para que esse<br />
homem tivesse realizado o último<br />
lance de afugentar e impor respeito<br />
a Saladino naquelas condições, era<br />
preciso que a sua alma estivesse em<br />
muito belo estado.<br />
Ele foi ocasião, como uma relíquia<br />
viva, para um dos mais bonitos<br />
episódios da História das Cruzadas.<br />
Como não admitir que a alma<br />
desse homem, num grau mais alto<br />
ou menos, esteja na presença de<br />
Deus? Nós não podemos canonizar<br />
ninguém, pois este é um privilégio<br />
Ruínas do Krak de Moab<br />
único e exclusivo da hierarquia católica,<br />
mais especialmente do Papa.<br />
Porém, podemos pedir privadamente<br />
a esse herói que nos conquiste essa<br />
força de alma indomável. Que ele<br />
nos faça compreender algo desse espírito<br />
medieval, do qual ele era dotado<br />
em tão alto grau, e que é a luz<br />
que nos deve animar no caminho ao<br />
Reino de Maria.<br />
Aqui está a grande recordação<br />
purulenta, fétida, chagada e maravilhosa<br />
de Balduíno IV. Mais do que<br />
isso, de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
no alto da Cruz, pensando em nós,<br />
em nossa meditação, abençoando-<br />
-nos e nos perdoando por todos os<br />
defeitos que haja em nossas almas.<br />
Nós nos compadecemos de Balduíno<br />
e, sobretudo, d’Ele. Que ambos<br />
tenham piedade de nós! v<br />
(Continua no próximo número)<br />
(Extraído de conferência de<br />
21/10/1972)<br />
1) Cf. <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, n. 245, p. 18.<br />
2) Cf. BORDONOVE, Georges. Les<br />
Templiers. Paris: Librairie Athème<br />
Fayard, 1977, p. 111-115.<br />
Bernard Gagnon (CC3.0)<br />
25
Gabriel K.<br />
C<br />
alendário<br />
1. Beata Juliana de Collalto, abadessa<br />
(†1262). De família nobre, vestiu<br />
o hábito beneditino aos 12 anos.<br />
Fundou o Mosteiro de São Brás, em<br />
Veneza, onde foi abadessa.<br />
2. XXII Domingo do Tempo Comum.<br />
3. São Gregório Magno, Papa e<br />
Doutor da Igreja (†604). Resolveu<br />
problemas temporais e espirituais,<br />
ajudando aos necessitados, fomentando<br />
a vida monástica, propagando<br />
e reafirmando a Fé; escreveu muitas<br />
obras sobre temas morais e pastorais.<br />
4. São Bonifácio I, Papa (†422).<br />
Trabalhou para solucionar muitas<br />
controvérsias sobre a disciplina eclesiástica.<br />
5. São Pedro Nguyen Van Tu, mártir<br />
(†1838). Sacerdote dominicano<br />
dos Santos – ––––––<br />
que continuou exercendo seu ministério<br />
clandestinamente durante a perseguição<br />
no Vietnã.<br />
6. Santo Eleutério, abade (†séc.<br />
VI). Sua simplicidade e compunção<br />
de espírito encantou o Papa São Gregório<br />
Magno. Foi abade no mosteiro<br />
de São Marcos, em Spoleto, Itália.<br />
7. Beato João Batista Mazzucconi,<br />
presbítero e mártir (†1855). Religioso<br />
do Instituto de Milão para<br />
Missões Estrangeiras, depois de dois<br />
anos evangelizando, já enfermo, foi<br />
decapitado em Papua-Nova Guiné,<br />
na Oceania.<br />
8. Natividade de Nossa Senhora.<br />
São Corbiniano, bispo (†730). Ver<br />
página 28.<br />
9. XXIII Domingo do Tempo Comum.<br />
10. São Teodardo, bispo e mártir<br />
(†c. 670). Mestre de São Lamberto,<br />
foi assassinado nos arredores de<br />
Speyer (Alemanha), quando, sendo<br />
Bispo de Tongeren (Bélgica), ia visitar<br />
o Rei Childerico.<br />
11. São Paciente de Lyon, bispo<br />
(†c. 480). Distribuiu gratuitamente<br />
trigo às cidades situadas junto ao Ródano<br />
e ao Saône para socorrer à<br />
população oprimida pela fome.<br />
Empenhou-se na conversão<br />
dos hereges e na assistência<br />
aos necessitados.<br />
12. Santíssimo Nome de<br />
Maria.<br />
Beato Tomás Zumárraga, presbítero<br />
(†1622). Foi encarcerado por<br />
ódio à Fé e lançado ao fogo em Omura<br />
(Japão), junto com o franciscano<br />
Apolinário Franco e mais quatro<br />
companheiros.<br />
13. São João Crisóstomo, bispo e<br />
Doutor da Igreja (†407). Ordenado<br />
Santo Alberto<br />
sacerdote na Antioquia, foi chamado<br />
“Crisóstomo” por sua eloquência.<br />
Nomeado Bispo e Patriarca de Constantinopla,<br />
esforçou-se para moralizar<br />
o clero. Foi desterrado por denunciar<br />
abusos de autoridades civis.<br />
14. Exaltação da Santa Cruz.<br />
Santo Alberto, bispo (†1214). Patriarca<br />
de Jerusalém. Deu uma regra<br />
aos eremitas do Monte Carmelo e,<br />
enquanto celebrava a festa da Santa<br />
Cruz, foi assassinado por um homem<br />
cuja má conduta havia censurado.<br />
15. Nossa Senhora das Dores.<br />
16. XXIV Domingo do Tempo Comum.<br />
São Cornélio, Papa (†253), e São<br />
Cipriano, bispo (†258), mártires.<br />
17. São Roberto Belarmino, bispo<br />
e Doutor da Igreja (†1621).<br />
São Francisco Maria de Camporosso,<br />
religioso (†1866). Irmão capu-<br />
Flávio Lourenço<br />
26 São João Crisóstomo
––––––––––––––– * Setembro * ––––<br />
chinho, ofereceu sua vida pela salvação<br />
dos doentes da epidemia que dilacerava<br />
Gênova, Itália.<br />
18. Beatos Davi Okelo e Gildo<br />
Irwa, catequistas e mártires (†1918).<br />
Foram martirizados ainda bem jovens<br />
numa aldeia ao norte de Uganda por<br />
terem-se dedicado espontaneamente<br />
a anunciar o Evangelho a seu povo.<br />
19. São Januário, bispo e mártir<br />
(†séc. IV).<br />
São Mariano, eremita (†séc. VI).<br />
De ilustre família de Bourges, França,<br />
abandonou o mundo para tornar-<br />
-se eremita em Berry. Alimentava-se<br />
apenas de maçãs agrestes e mel.<br />
20. Santo André Kim Taegon,<br />
Paulo Chong Hasang<br />
e companheiros, mártires<br />
(†1839-1867).<br />
Beato Francisco de Posadas,<br />
presbítero (†1713).<br />
Religioso dominicano, pregou<br />
durante 40 anos na Andaluzia<br />
(Espanha), especialmente<br />
em Córdoba, sua<br />
cidade natal.<br />
21. São Mateus, Apóstolo<br />
e Evangelista (†s. I).<br />
Santa Maura, virgem<br />
(†c. 850). Nobre francesa,<br />
que com suas orações e<br />
exemplo, alcançou a conversão<br />
de seu pai.<br />
22. Beato José Marchandon,<br />
presbítero e mártir<br />
(†1794). Pároco de Marsac,<br />
França, preso durante<br />
a Revolução Francesa numa<br />
embarcação em Rochefort,<br />
onde adoeceu e morreu<br />
de fome.<br />
24. São Pacífico de São Severino,<br />
presbítero (†1721).<br />
25. São Cléofas (†séc. I). Um dos<br />
dois discípulos que Nosso Senhor encontrou<br />
na estrada para Emaús e que<br />
O reconheceu ao partir o pão.<br />
26. Santos Cosme e Damião, mártires<br />
(†c. séc. III).<br />
Beato Gaspar Stanggassinger,<br />
presbítero (†1899). Sacerdote redentorista,<br />
dedicado à educação dos jovens.<br />
Faleceu aos 28 anos, em Gars,<br />
Alemanha.<br />
27. São Vicente de Paulo, presbítero<br />
(†1660). Viveu em Paris a serviço<br />
dos pobres. Fundou a Congregação<br />
da Missão para formar o clero e ajudar<br />
os necessitados. Junto com Santa<br />
Luísa de Marillac, fundou também a<br />
Congregação das Filhas da Caridade.<br />
28. São Venceslau, mártir (†929-935).<br />
São Lourenço Ruiz e companheiros,<br />
mártires (†1633-1637).<br />
29. São Miguel, São Gabriel e São<br />
Rafael Arcanjos. Ver página 2.<br />
São Renato Goupil, mártir<br />
(†1642). Médico nas missões jesuítas<br />
no Canadá. Preso e morto pelos iroqueses<br />
por haver feito o sinal da cruz<br />
na fronte de algumas crianças, em Ossernenon.<br />
30. XXVI Domingo do Tempo Comum.<br />
São Jerônimo, presbítero e Doutor<br />
da Igreja (†420). Nasceu<br />
na Dalmácia e estudou<br />
em Roma. Entregou-se à<br />
vida ascética no Oriente<br />
onde foi ordenado sacerdote.<br />
De volta a Roma, foi<br />
secretário do Papa São Dâmaso<br />
e recebeu deste o encargo<br />
de traduzir para o latim<br />
as Sagradas Escrituras,<br />
dando origem à “Vulgata”.<br />
Flávio Lourenço<br />
Flávio Lourenço<br />
23. XXV Domingo do<br />
Tempo Comum.<br />
São Cornélio e São Cipriano<br />
São Januário<br />
27
Hagiografia<br />
A severidade de<br />
São Corbiniano<br />
GFreihalter (CC3.0)<br />
Precisamos ter uma visão<br />
global da Doutrina Católica<br />
e, portanto, timbrar em<br />
conhecer as verdades<br />
esquecidas. Uma delas é<br />
a que os santos de nossos<br />
dias devem ser como São<br />
Corbiniano, em muitas<br />
ocasiões de suas vidas.<br />
Pois nossa época é de<br />
extraordinária obstinação<br />
no pecado, sobretudo o<br />
de heresia, e a pior delas é<br />
a Revolução. Para vencer<br />
essa obstinação, em<br />
muitas circunstâncias, o<br />
remédio é a severidade.<br />
São Corbiniano<br />
Unterhaching,<br />
Baviera,<br />
Alemanha<br />
Segundo o Martirológio, em<br />
8 de setembro se comemora<br />
São Corbiniano, Bispo de<br />
Freising, na Baviera, falecido nesse<br />
dia, em 730.<br />
Recriminações a um príncipe<br />
Regressando de Roma, onde se entrevistara<br />
com o Papa Gregório II, São<br />
28
Divulgação (CC3.0)<br />
Cenas da vida de São Corbiniano - Unterassling, Tirol do Sul, Áustria<br />
Corbiniano, ao chegar à fronteira dos<br />
Estados pertencentes a Grimoaldo, foi<br />
detido por guardas que este duque ali<br />
postara, com ordem de não permitir a<br />
passagem do bispo, se ele não aceitasse<br />
em fazer-lhe uma visita.<br />
O Santo consentiu. Mas, ao dirigir-se<br />
ao castelo do príncipe, declarou<br />
que lá só entraria se Grimoaldo deixasse<br />
Piltrude, a viúva de seu irmão,<br />
com quem se casara. Como o príncipe<br />
não obedecesse, perseverou na recusa,<br />
admoestando-o incessantemente com<br />
suas recriminações a fim de conduzi-lo<br />
à penitência.<br />
Ao cabo de quarenta dias, Grimoaldo<br />
e Piltrude prometeram separar-se<br />
e o santo bispo mandou-os vir à<br />
sua presença. Absolveu-os, depois de<br />
terem pedido perdão de joelhos e lhe<br />
beijado os pés, impôs-lhes penitências<br />
de esmolas, jejuns e orações. Depois<br />
entrou no palácio.<br />
Jantando certo dia em companhia<br />
desse mesmo príncipe, São Corbiniano<br />
abençoou os alimentos servidos à<br />
mesa. O príncipe, que se distraíra, atirou<br />
um bocado ao seu cão favorito.<br />
Imediatamente o santo homem derruba<br />
a mesa com um pontapé, dizendo<br />
que quem atirava a um cão semelhan-<br />
te bênção não era digno dela, e que<br />
desse dia em diante não comeria mais<br />
em sua companhia.<br />
Profundamente ferida pelo fato<br />
de São Corbiniano tê-la separado do<br />
príncipe, com suas admoestações, Piltrude<br />
aproveitou a ocasião para acusá-lo<br />
de crime lesa-majestade, merecedor<br />
de morte.<br />
O príncipe, entretanto, que o tinha<br />
em grande e alta estima, mandou fechar<br />
as portas da cidade, temeroso de<br />
que o homem de Deus, em sua cólera,<br />
dela se retirasse. Acompanhado<br />
dos maiorais de sua corte, foi pedir-<br />
-lhe perdão.<br />
Noutra ocasião, quando se dirigia<br />
ao ofício da noite na Igreja de Santa<br />
Maria, o santo bispo encontrou no caminho<br />
uma camponesa, que se retirava<br />
carregada de ricos presentes. Já fora<br />
apontada como dada à prática de<br />
sortilégios. Interrogou-a sobre a razão<br />
dos presentes. Respondeu ela que<br />
curara o filho do príncipe, que estava<br />
atormentado por demônios, e que por<br />
causa disso fora presenteada. Horrorizado,<br />
o bispo desceu do cavalo, espancou<br />
a mulher com suas próprias<br />
mãos, arrancou-lhe tudo quanto carregava<br />
e distribuiu entre os pobres à<br />
entrada da cidade. Mais do que tudo,<br />
lamentava a infidelidade do príncipe. 1<br />
Para vencer a obstinação<br />
no pecado, em muitas<br />
circunstâncias o<br />
remédio é a dureza<br />
Toda virtude concebida de maneira<br />
unilateral não é autêntica virtude.<br />
Se fôssemos imaginar um santo apenas<br />
muito suave, bondoso, invariavelmente<br />
amável em todas as circunstâncias<br />
de sua vida, não estaríamos<br />
em presença de um verdadeiro santo,<br />
mas sim de um arremedo de santo.<br />
Como também se imaginássemos<br />
um santo que procedesse durante<br />
toda a sua vida explosivamente como<br />
São Corbiniano agiu nesses episódios,<br />
nós estaríamos diante de um<br />
santo muito singular, porque não se<br />
pode conceber que um bispo, mesmo<br />
na era constantiniana, para remédio<br />
de todas as situações jogue as<br />
mesas no chão, etc. Mas há situações<br />
em que o dever consiste em agir assim,<br />
como existem ocasiões em que<br />
o dever se cifra em ter um procedimento<br />
diverso.<br />
29
Hagiografia<br />
O que explica nossa insistência<br />
nesse exemplo de São Corbiniano?<br />
É que temos muitos exemplos em<br />
sentido contrário, e as virtudes “corbinianas”<br />
são extraordinariamente<br />
raras. De maneira que encontramos<br />
aí uma razão muito boa para pôr em<br />
realce essa ficha.<br />
Mas há uma razão mais profunda,<br />
evidentemente. Precisamos ter<br />
uma visão global da Doutrina Católica<br />
e, portanto, devemos timbrar<br />
em conhecer as verdades esquecidas.<br />
Uma delas é que os santos<br />
devem ser assim, como São Corbiniano,<br />
em muitas ocasiões de suas<br />
vidas, sobretudo quando se trata<br />
de santos de nossa época. Época<br />
de uma dureza, de uma obstinação<br />
no pecado – e o pior deles que<br />
é o de heresia, e a pior das heresias<br />
é a Revolução, com o laicismo a ela<br />
inerente –, uma obstinação tão extraordinária<br />
que realmente não se<br />
sabe o que dizer. É claro que, para<br />
vencer a obstinação, em muitas circunstâncias,<br />
o remédio é a dureza.<br />
Hoje, a prova de coragem<br />
consiste em enfrentar aqueles<br />
que promovem a Revolução<br />
O primeiro exemplo do procedimento<br />
de São Corbiniano com o<br />
príncipe se explica pelo fato de que<br />
este era casado com uma mulher, a<br />
qual tinha com ele um grau de parentesco<br />
por ser viúva do seu irmão<br />
e, portanto, precisava de uma dispensa<br />
da Santa Sé para contrair matrimônio<br />
com ela. Eventualmente, o<br />
príncipe não tinha pedido essa dispensa<br />
e vivia maritalmente com ela,<br />
e casou-se mesmo com ela, mas de<br />
um modo ilícito, sem a licença da<br />
Santa Sé. Ele estava, portanto, numa<br />
situação que São Corbiniano não poderia<br />
tolerar.<br />
Vimos com que extremos de severidade<br />
ele censurou a atitude do<br />
príncipe, e que humildade o Santo<br />
exigiu dele, como pedido de perdão.<br />
Quem seria um personagem equivalente<br />
ao príncipe nos dias de hoje<br />
para um santo humilhar assim? Como<br />
poderíamos imaginar um confronto<br />
entre a fortaleza da autoridade<br />
espiritual e os poderes temporais<br />
atualmente?<br />
A Revolução deslocou das mãos<br />
dos príncipes, ou ao menos da maior<br />
parte deles, o poder e a riqueza. Enfrentá-los<br />
já não é grande prova de<br />
coragem. Mas é prova de coragem<br />
enfrentar aqueles que hoje têm muito<br />
poder, ou muitos meios de subornar,<br />
de comprar. Entre esses nós temos<br />
em primeiro lugar, evidentemente,<br />
os ricos. Mas não só eles;<br />
também a imprensa, o rádio, a televisão,<br />
os instrumentos que manipulam<br />
a opinião pública, os demagogos,<br />
os chefes de correntes revolucionárias;<br />
a todos esses, se favorecem<br />
o mal, é preciso que um bispo<br />
saiba enfrentar.<br />
O exemplo do Cardeal<br />
Mindszenty<br />
Como é bonito, por exemplo, vermos<br />
um bispo proceder por essa forma,<br />
enfrentando o comunismo, a demagogia,<br />
a desordem e a Revolução!<br />
Nós temos hoje em dia um exemplo<br />
que vem a propósito lembrar<br />
porque, ao menos pelo que se conhece,<br />
não é menos belo do que o exemplo<br />
de São Corbiniano. É o Cardeal<br />
Mindszenty 2 , que está preso na Hungria,<br />
e a respeito do qual baixou um<br />
tal silêncio que quase nos esquecemos<br />
de que ele existe. Pois bem, temos<br />
aí um exemplo de fortaleza extraordinária,<br />
que lembra a fortaleza<br />
de São Corbiniano.<br />
A ficha narra outros dois episódios:<br />
um é do Santo que joga a mesa<br />
no chão porque o príncipe deu de<br />
comer alimentos abençoados a um<br />
cachorro.<br />
Alguém perguntará: “Mas ele não<br />
podia fazer de modo diferente? Por<br />
exemplo, dizer: ‘Príncipe, eu me levanto.’<br />
Ou simplesmente manter silêncio<br />
sentido, em relação ao príncipe.”<br />
Uma pessoa mais moderada indagaria:<br />
“Ele poderia simplesmente<br />
dizer: ‘Príncipe, para seu cachorrinho<br />
não seria demais um pão bento?’<br />
Assim, São Corbiniano não captaria<br />
mais a simpatia e a benevolência<br />
do príncipe?”<br />
Seriedade, respeito, confiança<br />
É preciso sempre lembrar que a<br />
arte de tratar com as almas não consiste<br />
principalmente em incutir-lhes<br />
simpatia, mas sim, antes de tudo, em<br />
lhes granjear o respeito. E o respeito<br />
se granjeia pela seriedade. E a seriedade<br />
se documenta muitas vezes<br />
pela severidade. É tomando as coisas<br />
até as últimas consequências e<br />
punindo de acordo com a gravidade,<br />
que se mostra ser sério. E, mostrando-se<br />
sério por essa forma, impõe-se<br />
respeito, inspira-se confiança e desse<br />
modo se dirigem as almas.<br />
Um erro da propaganda<br />
hollywoodiana, e que o ambiente<br />
de hoje incute nas almas de um modo<br />
terrível, é a ideia de que o perpétuo<br />
smiling, o sorrir para todo mundo,<br />
arrasta as pessoas. Arrasta coisa<br />
nenhuma. Os norte-americanos têm<br />
distribuído dólares e sorrisos à farta.<br />
Se houve uma potência no mundo<br />
que garganteou pouco o seu poderio<br />
foi a norte-americana. O grande<br />
poder temporal mundial, anterior<br />
ao norte-americano, foi o da Inglaterra.<br />
Como a Inglaterra levava a<br />
coisa de outro jeito! Antes da Inglaterra<br />
foi Napoleão. Os Estados Unidos<br />
exercem uma dominação velada,<br />
por detrás dos bastidores, com dólares,<br />
e garantindo a independência<br />
desses países, pelo menos a independência<br />
política, e amenizando o conjunto<br />
com sorrisos. Contudo, eles estão<br />
sendo gradualmente abandonados<br />
pelo mundo inteiro.<br />
Por quê? Porque os Estados Unidos<br />
não incutem admiração. E não<br />
30
Sigmund Benker (CC3.0)<br />
incutem admiração pelo fato de que<br />
não são sérios. Eles depositam toda<br />
a sua confiança no sorriso. O sorriso<br />
tem um certo papel na vida do homem,<br />
não tem dúvida. Não estou dizendo<br />
que nunca se deva sorrir. Mas<br />
que essa seja a guia régia, é um engano.<br />
O sorriso precisa ser temperado,<br />
consertado com atos de grande<br />
valor, de grande energia. Quem não<br />
é capaz de meter um pouco de medo<br />
não é verdadeiramente santo. E<br />
por isso nós temos um Santo de requintada<br />
bondade, mas que sabe impor<br />
medo, e consegue fazer o príncipe<br />
ficar quieto.<br />
Na Idade Média, a<br />
virtude e a contrição dos<br />
pecadores são encantadoras<br />
Por outro lado, é uma maravilha<br />
a atitude do príncipe. Na Idade Média,<br />
muitas coisas encantam. A virtude<br />
encanta, mas também a contrição<br />
dos pecadores é encantadora. O<br />
príncipe andou mal porque, afinal,<br />
ele devia ter prestado atenção. À sua<br />
mesa estava um Santo que ele venerava<br />
como tal; o varão de Deus dá<br />
uma bênção nos alimentos, mas ele<br />
está pensando no cão. Contudo, em<br />
comparação com as coisas que fazemos<br />
hoje, quão ingênuo, quase se diria<br />
quão gracioso!<br />
O príncipe leva uma admoestação<br />
tremenda, e sua primeira ideia<br />
é: “Segura o Santo porque eu quero<br />
pedir perdão para ele!” E como o<br />
Santo vai embora, manda fechar as<br />
portas da cidade. Depois pede perdão,<br />
ajoelha-se, o Santo se reconcilia<br />
e volta tudo à bonança. Nota-se que<br />
contrição entra nisso, que cordura,<br />
que brandura de alma, que inocência<br />
há numa atitude como essa. Não é<br />
verdade que, mesmo nessa penitência,<br />
há uma inocência mais profunda<br />
do que a falta cometida e que nos<br />
deixa maravilhados?<br />
Finalmente, a sova na mulher que<br />
era uma espécie de bruxa e feiticeira<br />
e havia usado algum feitiço para<br />
curar o filho desse homem. Qual foi<br />
a atitude do Santo com ela?<br />
Eu pergunto: há casos semelhantes<br />
atualmente? Ainda hoje eu estava<br />
lendo a seguinte notícia: Houve a<br />
inauguração de um parque municipal<br />
em São Paulo, durante a qual foi<br />
realizada uma sessão ecumênica. Falou<br />
um padre, um bispo católico, logo<br />
em seguida um espírita e depois<br />
um rabino. Numa mesma sessão, em<br />
comum com o bispo. Onde está o<br />
exemplo de nosso Santo? Como estão<br />
mudadas as coisas... v<br />
(Extraído de conferência de<br />
8/9/1969)<br />
Morte de São Corbiniano<br />
1) Cf. ROHRBACHER, René-François.<br />
Vida dos Santos. São Paulo: Editora<br />
das Américas, 1959. v. XVI, p.<br />
106-107.<br />
2) Cardeal József Mindszenty (*1892 -<br />
†1975). Opôs-se tenazmente ao regime<br />
comunista, particularmente em<br />
seu país, Hungria. Foi perseguido,<br />
preso e morreu no exílio. Seu corpo,<br />
exumado em 1991, foi encontrado incorrupto,<br />
e em 1996 foi apresentada à<br />
Santa Sé a documentação para o processo<br />
de sua beatificação.<br />
31
Luzes da Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
Lugar onde a<br />
Providência quis reunir<br />
suas maravilhas - I<br />
<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sempre teve encanto pelo mar. Eis uma<br />
das razões pelas quais apreciava sobremaneira<br />
Veneza, a cidade construída sobre as águas. A causa<br />
mais profunda do surgimento de tal maravilha é<br />
o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Quem<br />
resulta tudo quanto há de bom e de belo na Terra.<br />
Antes de comentarmos alguns aspectos de Veneza,<br />
parece-me conveniente considerarmos um<br />
pouco o que se passa no interior de nossa alma,<br />
vendo essa cidade. Externo aqui minhas reflexões ao visitá-la,<br />
pois o que vou dizer a meu respeito se dá mais ou<br />
menos com todo mundo.<br />
Fascínio pelo mar<br />
Tanto quanto me lembro, em pequeno eu tinha impulsos<br />
que me levavam a lamentar de não poder viver, não<br />
propriamente no mundo da fantasia, mas num mundo<br />
que não era aquele no qual eu vivia. Portanto, levar uma<br />
vida real numa atmosfera diferente da qual eu vivia.<br />
Assim, por exemplo, recordo-me de, muitas vezes, estando<br />
em Santos ou, muito mais modestamente, numa<br />
estação de águas hidrotermal que eu frequentava por<br />
causa de minha mãe, onde havia um riachinho um pouco<br />
nutrido, corria um pouco de água, formava uma ilhota e<br />
umas coisas assim; olhava para as águas e sentia o fascínio<br />
que esse elemento produz. A água salgada do mar me<br />
fascinava além de todo limite. Foi toda a vida o encanto<br />
de minha alma considerar o mar.<br />
Lembro-me do meu tempo de deputado, quando o prédio<br />
onde se reunia a Assembleia Constituinte ficava numa<br />
praça do Rio de Janeiro, no fundo da qual há um braço de<br />
mar. Meu gosto pelo mar era tal que, às vezes, eu estava<br />
sentado assistindo à sessão e me vinha à mente: “Como seria<br />
interessante se eu pudesse estar olhando para o mar,<br />
por exemplo, sobre uma espécie de terracinho de madeira<br />
amarrado em estacas, posto na água de maneira a acompanhar<br />
o movimento da maré!” Aquilo me distraía a ponto de<br />
ter que fazer esforço com a minha inteligência para prestar<br />
atenção nas arengas, tanto era o meu gosto pelo mar.<br />
Entretanto, nunca me passou pela cabeça imaginar<br />
um homem que, estando no mar, começasse a pensar na<br />
terra. Então, alguém se encontrando num navio, vendo<br />
a terra de longe, pensasse: “Ah, que delícia aquela terra!<br />
Pisar em solo firme…” O chão não é firme, mas duro; é<br />
diferente de firme. Para acharmos graça no chão é preciso<br />
calçá-lo com pedras bonitas, pôr um tapete para disfarçá-lo<br />
a fim de nos sentirmos à vontade em cima dele.<br />
32
Pelo contrário, no mar não. Ele é delicioso! Debaixo<br />
de certo ponto de vista, quanto mais a pessoa possa<br />
estar no mar, sem pisar em nada que lembre a terra,<br />
melhor é. Se ela estiver nadando, metida na água<br />
que exerce sobre ela uma atração extraordinária,<br />
tanto melhor. É o fascínio produzido por um elemento<br />
onde o homem realmente não vive, mas no qual ele<br />
tem a impressão de que a vida seria ideal.<br />
Pedro K.<br />
Palácios e jardins, nostalgia do Paraíso<br />
Certa ocasião, estando em Petrópolis, no Rio<br />
de Janeiro, vi pela primeira vez um homem voar<br />
em asa delta. Percebi que do local onde me encontrava<br />
até o panorama marítimo da Baía de<br />
Guanabara não levava muito tempo. E notei que<br />
lá de cima o homem estava olhando para aquela baía,<br />
realizando assim a convergência de dois sonhos: a água<br />
e o ar. Pareceu-me delicioso estar lá em cima, apesar de<br />
umas inseguranças não pequenas. Mas ele se movia com<br />
tal desembaraço no ar, que percebi estar inteiramente<br />
seguro. Então, a ideia de estar seguro, planando no ar,<br />
longe da terra e olhando o mar, era uma coisa deliciosa.<br />
De outro lado, há uma coisa que também atrai o homem.<br />
Não é propriamente a terra, mas o palácio. Folheando<br />
álbuns, vendo palácios lindamente decorados,<br />
os mais antigos com belos vitrais, os outros com pinturas<br />
lindas, ou tapeçarias bonitas, com um chão precioso,<br />
macetado com madeiras de cores diferentes, formando<br />
desenhos, com quadros, móveis luxuosos, e com o teto<br />
alto, o homem tem sedução por algo que esconde de todos<br />
os modos a realidade comum da terra onde ele vive. O<br />
palácio é uma espécie de esconderijo onde, sem sentir a<br />
instabilidade da água e da flutuação no ar, a pessoa também<br />
foge de algum modo da terra concreta e constrói um<br />
sonho dentro do qual ela entra. Este é o palácio.<br />
Ademais, para encobrir ainda de algum modo a terra,<br />
o homem elabora jardins, por vezes ornados com chafarizes<br />
que fazem a água brincar no ar, caindo depois em<br />
tanques onde o elemento líquido fica refletindo o céu, o<br />
próprio jardim e o palácio.<br />
Como se explica que o homem goste tanto de disfarçar<br />
a terra? A meu ver, porque ela é exatamente o elemento<br />
que mais traduz a punição e o desterro do homem por<br />
causa do pecado original. “Amaldiçoada será a terra por<br />
tua causa. Com sofrimento tirarás dela o alimento todos<br />
os dias de tua vida. Comerás o pão com o suor do teu rosto,<br />
até voltares à terra da qual foste tirado” (Gn 3, 17.19).<br />
A terra é apresentada como um lugar de degredo onde<br />
é duro trabalhar, é preciso regar com o suor do rosto,<br />
ou seja, é penoso obter algum resultado. Ela é prosaica,<br />
não apresenta cores lindas, nem maravilhas de nenhu-<br />
ma espécie. A meu ver, por onde mais sentimos a nostalgia<br />
do Paraíso é precisamente no contato com a terra.<br />
Palafitas para se proteger contra as feras<br />
Reportemo-nos, agora, a uma remota reminiscência<br />
para compreendermos os desígnios da Providência, e como<br />
Ela dispõe tudo de modo maravilhoso.<br />
Como demonstram as pesquisas arqueológicas, na<br />
Pré-História houve povos que, levados pelo receio dos animais<br />
ferozes, construíram as chamadas palafitas, conjuntos<br />
de estacas que sustentavam habitações construídas<br />
sobre as águas. Durante a noite, eles retiravam uma espécie<br />
de tabuleiro que lhes servia de ponte entre a palafita<br />
e a terra, e assim os animais podiam rondar em torno deles,<br />
mas não incomodavam. A água protetora os separava.<br />
Podemos imaginar a sensação de progresso experimentada<br />
por esses primitivos quando eles construíram a<br />
primeira casinha e, à noite, ouviam as feras uivar dentro<br />
do mato; ao invés de ficarem apavorados, como no tempo<br />
em que viviam em grutas ou cabanas, dentro das quais<br />
um animal feroz podia de repente irromper, eles dormiam<br />
sossegados e se abanando deliciosamente, porque<br />
a fera não constituía mais um perigo. Que “civilização”!<br />
Foi de uma situação análoga a essa que, do pânico de<br />
primitivos habitando um lugar pantanoso e inconsistente,<br />
nasceu uma das maiores belezas do universo. O local<br />
hoje ocupado por Veneza, outrora era muito pantanoso.<br />
Um dos lugares mais bonitos da Terra<br />
Em certo momento, um guerreiro terrível, Átila, desceu<br />
com seus hunos através da Hungria, invadiu a Itália e<br />
foi surrando tudo no caminho. O pavor que os latinos civilizados<br />
tinham dele era tal que se exprimiu por uma metá-<br />
33
Luzes da Civilização Cristã<br />
Gabriel K.<br />
Vicente Torres<br />
Gabriel K.<br />
fora muito poética:<br />
por onde a patas<br />
do cavalo dele<br />
pousavam nunca<br />
mais nascia erva.<br />
As populações<br />
daquelas<br />
regiões ficaram com pavor de Átila e se aprofundaram<br />
em seus pântanos, procurando lugares de mais resistência<br />
para se fixarem. Ali mais ou menos repetiram as palafitas.<br />
Esses povos depois foram batizados, e o Batismo operou<br />
em suas almas o efeito regenerador que lhe é próprio;<br />
e de primitivos, mais ou menos vagabundos, passaram<br />
a ser homens de trabalho que, seduzidos pelas<br />
águas do Mar Adriático, entregaram-se à navegação.<br />
Tornaram-se grandes navegantes e se dedicaram ao comércio,<br />
passando a ser a maior potência marítima do<br />
Mar Mediterrâneo.<br />
As riquezas voltavam para Veneza e com elas as possibilidades<br />
de trabalho, de organização. Aquelas ilhas<br />
resultantes do antigo pântano foram consolidadas, ajeitadas,<br />
fizeram correr água onde havia lodo outrora. As<br />
casas foram melhorando, as águas se tornaram de trânsito<br />
fácil e, no lugar do antigo pântano, constituiu-se um<br />
arquipélago que foi se enchendo de palácios de uma beleza<br />
famosa no mundo inteiro.<br />
E ali, em vez do jardim que Veneza não tem, nasceu<br />
para o homem este sonho que se realizava: morar num<br />
palácio à beira d’água, com um céu lindíssimo. O céu de<br />
Veneza é uma espécie de céu dos céus, o colorido e as<br />
brumas são uma beleza, os anoiteceres são lindíssimos.<br />
E realiza-se assim esse ponto de eleição que é uma espécie<br />
de paraíso feito pelo homem, pela sua fantasia, pelo<br />
seu talento, pela sua capacidade de trabalhar, pelo<br />
seu desejo do maravilhoso, coisa tão distante do homem<br />
contemporâneo.<br />
Então, realizou-se em Veneza esse ponto de encontro<br />
onde a terra feia, outrora pântano, é disfar-<br />
çada pelo chão dos palácios, o pântano é coberto pelas<br />
águas do mar que correm, o céu maravilhoso e as<br />
águas se osculam, formado um dos lugares mais bonitos<br />
da Terra.<br />
Maravilha que nasceu do Sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo<br />
No centro desta narração está o desvendar de um<br />
enigma. Como povos tão primitivos puderam realizar<br />
uma coisa tão maravilhosa? Será por que se mesclaram<br />
com outros povos? A meu ver, se eles não fossem batizados<br />
isso não saía. Pode ser que se tenham mesclado<br />
com latinos decadentes. Mas do pântano do primitivismo<br />
e da decadência das grandes cidades em decomposição<br />
sair uma coisa assim, não era preciso um terceiro<br />
elemento que fizesse uma coisa verdadeiramente<br />
mais bela?<br />
A meu juízo é evidente que sim. É o Corpo e o Sangue<br />
de Nosso Senhor Jesus Cristo, cuja imolação no alto do<br />
Calvário obteve as grandes regenerações morais. É deste<br />
Sangue, a propósito de cuja efusão Nossa Senhora chorou<br />
e do qual resulta tudo quanto há de bom, de grande,<br />
de belo na Terra, que nasceram maravilhas dessas, pela<br />
regeneração do homem. Batizou-se, ficou trabalhador.<br />
Intensificou e disciplinou o seu desejo do maravilhoso,<br />
as maravilhas começam a nascer.<br />
Foi à procura desse auge de realização do maravilhoso<br />
na Terra que me pus a sonhar sobre Veneza e a querê-la.<br />
Desde minha primeira viagem àquela cidade, meu<br />
espírito estava tomado por esta ideia: eu estava visitando<br />
uma junção incomparável e paradisíaca de coisas<br />
maravilhosas.<br />
Poder-se-ia dizer, entretanto, haver mais algo ocupando<br />
no meu espírito um grande espaço, um ponto importante<br />
que procurarei condensar: das várias obras-primas<br />
existentes em Veneza, – oh, mistério! – nenhuma é<br />
tão grande e tão maravilhosa quanto o homem.<br />
34
A “Sereníssima República de Veneza”<br />
Se Deus tivesse criado Veneza, mas a cidade houvesse<br />
ficado sozinha para ser habitada pelos pombos, que valor<br />
ela teria? Muito mais do que simplesmente aquilo, há em<br />
Veneza o estilo de vida, o estilo artístico veneziano, a cultura,<br />
as instituições venezianas, que modelaram as fisionomias<br />
dos palácios. E, no plano da Providência, o palácio é<br />
modelado pela cultura do homem, mas o auxilia a modelar<br />
depois a sua própria cultura. Ajuda-o a se requintar. O céu,<br />
o mar e a terra foram feitos para, iluminando a casa ou o<br />
palácio do homem, iluminar a alma de quem ali reside.<br />
Esta é a dignidade do ser humano. Tudo isso nos reporta<br />
ao fato de que a chamavam de “Sereníssima República<br />
de Veneza”. “Sereníssima” é quase mais bonito<br />
do que Imperial e Real. Dá a impressão de orvalhada<br />
por todas as calmas da noite. “Sua Alteza Sereníssima”,<br />
por exemplo, eu acho um título lindíssimo! E a República<br />
de Veneza, por ser soberana e querer se encaixar<br />
na hierarquia nobiliárquica e feudal da Europa, considerando<br />
que seu chefe tinha uma verdadeira dignidade<br />
de um duque, tomou para si o título de “Sereníssima”.<br />
Veneza era uma república aristocrática, dirigida por<br />
uma nobreza inscrita num livro chamado “Livro de Ouro”.<br />
As famílias promovidas à nobreza tinham seus nomes inscritos<br />
nesse livro, e pertenciam a uma classe social que elegia<br />
uma espécie de Câmara dos Lordes. Havia também, para<br />
as várias categorias da plebe, câmaras, conselhos, etc.<br />
Casamento de Veneza com o mar<br />
À testa disso estava o Conselho dos Dez, chefiado por<br />
um doge que usava o barrete frígio das repúblicas contemporâneas,<br />
cercado de uma pequena coroa. Tratado<br />
como um príncipe, eleito de dez em dez anos, podendo<br />
ser reeleito, o doge era o ponto de partida de politicagens<br />
finíssimas, rasteiras jeitosíssimas, mais elegantes<br />
do que passos de minueto; com a beleza de quem se habituou<br />
muito cedo a burilar a política como quem burila um<br />
cristal. Aliás, por uma coincidência bonita, as fábricas<br />
de cristal começaram a aparecer. Daí vem o famoso<br />
cristal Murano. Há qualquer coisa de cristalino<br />
na República de Veneza.<br />
Todo mundo conhece a festa<br />
anual de esplendor de Veneza. O<br />
doge, vestido com trajes fabulosos,<br />
ia até o alto-<br />
-mar num navio todo folheado a ouro, chamado Bucentauro,<br />
seguido de um cortejo de embarcações com gente<br />
a bordo tocando violinos e outros instrumentos. Ao chegar<br />
a certa altura, fazia-se o casamento de Veneza com o<br />
mar, lançando no fundo do Mar Adriático um anel. Nesse<br />
momento, a música dava o seu todo, o pessoal aclamava.<br />
Ao cair da tarde, todos voltavam, em meio aos reflexos<br />
da água do mar de Veneza, e a festa continuava<br />
na terra. Aqueles canais eram percorridos por gente em<br />
gôndolas, lanternas bonitas iluminavam os terraços, de<br />
fora dos palácios se percebia a luz das festas que se estavam<br />
dando ali dentro. O tilintar dos copos de cristal, os<br />
vivas, os cânticos se prolongavam<br />
pela noite afora.<br />
Se passarmos daí para as<br />
palafitas que constituíram<br />
a primeira Veneza, compreenderemos<br />
a enorme<br />
trajetória percorrida<br />
nesse lugar verdadeiramente<br />
privilegiado,<br />
onde a Providência<br />
quis reunir as suas maravilhas.<br />
v<br />
(Continua no próximo<br />
número)<br />
(Extraído de conferência<br />
de 2/12/1988)<br />
Gabriel K. TYP (CC3.0)<br />
35
Flávio Lourenço<br />
São Miguel Arcanjo<br />
combate o demônio,<br />
durante a Assunção da<br />
Santíssima Virgem - Galeria<br />
Nacional, Parma, Itália<br />
Guerreiros implacáveis contra<br />
o demônio e seus sequazes<br />
Pode-se afirmar que todas as grandes almas que combateram as diversas heresias, ao longo dos séculos,<br />
foram especialmente suscitadas por Nossa Senhora. É o que insinua de modo muito bonito o brasão<br />
dos claretianos, onde figura, além do Imaculado Coração de Maria, São Miguel Arcanjo e, no alto, a<br />
divisa: “Os seus filhos se levantaram e A proclamaram bem-aventurada.”<br />
Essa presença de guerreiros que, como soldados de São Miguel Arcanjo, levantam-se para combater os inimigos<br />
de Deus, proclamando bem-aventurado o Coração de Maria, não é também uma forma de irrupção da<br />
Santíssima Virgem, como magnífica aurora, nas tramas da História? Portanto, os verdadeiros devotos de Nossa<br />
Senhora devem desejar e pedir a Ela a graça de serem esses guerreiros de ferro, indomáveis e implacáveis contra<br />
o demônio e seus sequazes que, em nossos dias, procuram conspurcar a glória da imortal Igreja de Cristo.<br />
(Extraído de conferência de 8/9/1963)