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OLHARES

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<strong>OLHARES</strong><br />

encontrar para sua prática. Esse pensador sempre age como um modelizador. Ele cria um modelo do<br />

objeto. Logo, quando as suas percepções (as quais são ligadas a intenções, conforme mostraram Varela,<br />

Thompson e Rosch (2001), pois os seres vivos percebem do jeito que o contexto da sua ação permite)<br />

vão se modificando, ele tem, sem temer, de mudar a definição do seu objeto e modelizá-lo de maneira<br />

nova. Nós, como todos os seres vivos, estamos imersos num mundo e num contexto que, por outro lado,<br />

contribuímos a formar. Assim, nossa prática cognitiva sempre é uma interação entre nossa intencionalidade<br />

e os modelos que, no presente contexto, nos parecem adequados na nossa busca da cientificidade.<br />

Um herói da ciência foi o físico Niels Bohr, que, em lugar de considerar a teoria ondulatória do elétron<br />

como um adversário da sua própria teoria, corpuscular, felicitou-se dessa concorrência teórica e criou<br />

a palavra “complementaridade” para caracterizar teorias incompatíveis e de igual pertinência teórica,<br />

sem que se possa comprovar que uma ou outra é verdadeira (BOHR, 1995). O psicanalista e antropólogo<br />

Georges Devereux (1980) transferiu a complementaridade na área das ciências humanas, vivenciando<br />

uma verdadeira esquizofrenia teórica por causa da sua dupla e complementar competência de psicanalista<br />

freudiano, acreditando na universalidade dos estágios de desenvolvimento da sexualidade e da psique<br />

humana, e de antropólogo culturalista, acreditando no relativismo das culturas 2 . E mais, ele explicou como<br />

transformar os obstáculos, conscientes e inconscientes, encontrados na atividade científica, em métodos<br />

para invenções e descobertas. Em Bohr e Devereux, dois referenciais teóricos conflituosos agem. O lugar<br />

onde se encontra a possível coerência entre teorias complementares é o próprio cérebro do cientista, que,<br />

portanto, como veremos daqui a pouco, deve analisar suas implicações na modelização do seu objeto de<br />

conhecimento. Não estamos mais na era da onipotência de modelos teóricos absolutos, transparentes e<br />

donos da verdade, que explicariam tudo (como o deus dos monoteístas), e, sim, em visões “politeístas”,<br />

multirreferenciadas (ARDOINO, 1993), multimodelizadas, da construção do saber.<br />

A busca apaixonada da pertinência opõe-se, por certo, à busca da verdade pelos cartesianos e seus<br />

seguidores. Para os teóricos do pensamento complexo, a assim chamada “verdade” de uma representação,<br />

questão básica da filosofia clássica das ciências, inexiste fora da intenção do cientista de dar um sentido<br />

pertinente a uma apresentação da realidade, em relação aos fins que ele está perseguindo 3 . Por exemplo,<br />

numa epistemologia dada, é pertinente analisar as moléculas de química orgânica que compõem uma<br />

planta para entender seu poder curativo e conhecer seus possíveis efeitos colaterais, graças ao estudo<br />

de suas interações com o sistema vivo humano. Mas, no mundo de hoje, é impossível ignorar que, numa<br />

outra concepção do saber, é pertinente curar-se com plantas medicinais indígenas através de um diálogo,<br />

que passa pelo sonho e pelas rezas, com as energias vivas da planta que, como nós, pertence à natureza<br />

e ao espírito do universo. As intenções das duas epistemologias são heterogêneas, mesmo se convergem<br />

no objetivo prático de curar. E ainda! O próprio objetivo é somente aparentemente semelhante, marcando<br />

as necessidades práticas de todo ser humano, independentemente da cultura à qual está se referindo.<br />

2<br />

E mais, quem disse que a pesquisa intercultural é construída sobre paradoxos? Devereux realizou a psicoterapia de um indígena Lakota, já pensou?<br />

A modelização freudiana do sentido dos sonhos, num face a face com a modelização lakota, sabendo que, para os indígenas de todas as Américas, o<br />

mundo do sonho como comunicação com a Ancestralidade é muito mais real que a realidade (DEVEREUX, 1982; NARBY e HUXLEY, 2002).<br />

3<br />

Foi uma revolução intelectual a enunciação por Kurt Gödel do seu famoso teorema comprovando que um sistema suficientemente potente para<br />

formalizar a aritmética não podia comprovar sua própria verdade: desde Gödel, mesmo os matemáticos dizem o verdadeiro somente em referência a<br />

seus axiomas básicos, que podem alegremente ser substituídos por outros!<br />

Mas ao olharmos de perto, num caso trata-se de mergulhar cada vez mais fundo nos segredos da matéria,<br />

no outro, de se comunicar com as energias espirituais que moram na matéria. Decidir qual é a atitude<br />

certa excede as capacidades de compreensão do ser humano. Logo, é bom dizer: “Não sei, não posso<br />

saber - e por causa dessa ignorância aceito a convivência de epistemologias heterogêneas na investigação<br />

científica!”. Tomei o exemplo da fitoterapia indígena, mas poderia ter abordado a acupuntura, baseada no<br />

taoísmo (EYSSALET, 2003), ou a homeopatia (RUIZ, 2002).<br />

Na prática jurídica, a noção de Justiça é fortemente contextualizada, a depender dos interesses de<br />

classe, de raça, de gênero, de desejo e poder em jogo. Lembro a frase do líder do protagonismo indígena<br />

Marcos Terena, no XII Congresso da ARIC 4 , que aconteceu de 29 de junho a 03 de julho de 2009, em<br />

Florianópolis: “A academia quer formar indígenas às profissões de juiz e advogado, nos ensinar o que é<br />

o Direito, mas nunca se interessou à nossa concepção da Justiça e do Direto”. Numa visão complexa da<br />

realidade jurídica, só a interação entre sujeitos enunciativos, grupos sócio-políticos e mundos culturais<br />

diferentes pode favorecer a construção dialógica e democrática da teoria e uma atuação que torne efetiva<br />

a igualdade na diferença.<br />

- O critério do globalismo: segundo os teóricos do pensamento complexo, todo objeto de pensamento<br />

deve ser considerado como imerso em um meio ambiente maior. Segundo eles, essa perspectiva é<br />

cientificamente mais relevante que querer conhecer com precisão a estrutura interna do objeto, ou seja,<br />

como pretendia Descartes, dividir o objeto em seus elementos simples (princípio de análise).<br />

Temos um exemplo contemporâneo muito forte dos limites da análise, com a genética molecular que,<br />

no período pós-guerra, pretendia descobrir o segredo da vida pela análise genética. Mas, onde tudo devia<br />

se resolver simplesmente pela aprendizagem da leitura do código da vida nas sequências de DNA, os<br />

biologistas encontraram aos poucos uma complexidade imprevista, que se pode formular em duas questões:<br />

a) a questão difícil e global das interações entre o código genético e seu meio, a célula; b) a questão das<br />

interações entre esse meio, portador do código, e o nicho ecológico do ser vivo. Conforme estabeleceu<br />

Evelyn Fox-Keller (2003), essas questões convergem em direção à dificuldade de entender certos fatos<br />

relacionados à estabilidade dinâmica: as células resistem às mutações genéticas, ao manterem a integração<br />

do DNA num sistema complexo. Por essa razão, o conceito de gene, que favoreceu avanços extraordinários<br />

na biologia, está hoje em fase de abandono pelos especialistas da área. O estudo da globalidade do ser no<br />

seu ambiente não foi tornado dispensável pelos sucessos da genética molecular, o que pode ser ilustrado<br />

pelo seguinte caso: a pesquisadora Bárbara McClintock, que resistiu ao modismo da genética analítica e foi<br />

marginalizada, considerada como louca pela sua Universidade por estudar as interações de cada grão de<br />

milho com o meio - até falar com ele, como faria um pajé indígena, numa época onde era tão fácil estudar,<br />

em laboratório fechado e descontextualizado, a genética da mosca drosófila, que se reproduz muito mais<br />

rápido que o milho! - foi recompensada pelo prêmio Nobel (FOX-KELLER, 1988).<br />

Na área jurídica, entender a globalidade de uma situação é relacioná-la ao contexto que integra, de<br />

maneira duplamente conflituosa, os parceiros humanos - sujeitos, grupos e classes em conflito - e nãohumanos<br />

- animais, plantas, natureza, terra. Com a crise do aquecimento global, tornou-se um modismo<br />

4<br />

ARIC: Association Internationale pour la Recherche Interculturelle, Associação Internacional para a Pesquisa Intercultural, cuja presidência atual é<br />

brasileira (Prof. Dr. Reinaldo M. Fleuri, da UFSC).<br />

ARTIGOS<br />

UMA PUBLICAÇÃO DO NPPD I UNIJORGE I 14<br />

15 I UNIJORGE I UMA PUBLICAÇÃO DO NPPD

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