OLHARES
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acabado), da mesma maneira que é necessário distinguir os princípios da justiça frente a outros princípios<br />
A interdisciplinaridade como momento na construção coletiva do pensamento complexo e como<br />
que orientam a existência coletiva.<br />
resistência à globalização dos cérebros<br />
Na esfera jurídica, é óbvio que somos filhos e filhas dos nossos tempos, classe social, raça, cultura e<br />
gênero, somos implicados – mas é também óbvio que o humano em nós é precisamente a indeterminação<br />
Criamos nossos objetos de pensamento, e esses são complexos. Portanto, eu, por exemplo, como<br />
dos nossos pertencimentos, já que podemos nos deslocar entre nossas raízes e outros mundos, “traindo”<br />
filósofo, preciso integrar, ao meu modelo do real, o ponto de vista do sociólogo, do jurista, do psicólogo,<br />
nossa classe, nosso gênero, nossa raça. Aí encontramos paradoxos gostosos e, às vezes, assustadores,<br />
do biólogo, do historiador etc. Essa integração, como vimos, não está orientada pelo projeto de um<br />
<strong>OLHARES</strong><br />
pois existir como ser humano nos leva à indeterminação dos nossos raciocínios e das nossas práticas: na<br />
relação com os outros, na interação, temos de inventar, a cada momento, o que somos. Temos de devir. É<br />
nossa profissão de viver. Às vezes, vivemos nas margens do existir, ou nos entrelugares 7 e entretempos de<br />
saber completo e certo, mais potente porque mais integrador que os saberes meramente disciplinares.<br />
Não, mesmo que mais complexo e mais integrador, nosso saber sempre ficará incompleto e cheio de<br />
incertezas. É como um dever epistêmico mantermos nossas diferenças e, eventualmente, nossos conflitos,<br />
ARTIGOS<br />
práticas diferenciadas e, até, contraditórias. A incerteza e abertura ao indeterminado são características<br />
na construção coletiva desses objetos complexos do pensamento. É o sentido da dialogicidade, segundo<br />
da existência humana, logo, da afirmação da justiça e do direito. Por essa razão, é necessária uma grande<br />
Paulo Freire (1987), que não é extinção das diferenças e contradições e, sim, compreensão do contexto<br />
firmeza sobre princípios éticos e políticos que, no mundo capitalista globalizado pós-moderno, tendem a<br />
em que falamos, do lugar ou entrelugar de onde falamos, do tempo ou entretempo de onde falamos etc.<br />
se tornar invisíveis, a desaparecer da cena ao proveito de interesses particulares auto-centrados, tanto<br />
Assumindo criticamente, graças ao olhar do outro, nossos próprios limites e subjetividade, construímos a<br />
perigosos quanto idiotas – no sentido etimológico da palavra, ou seja, que se referem a si próprio, na<br />
ciência juntos. Bom, posso afirmar, para finalizar, que no diálogo crítico e, muitas vezes - tal é meu desejo<br />
ignorância da alteridade. Nós, professores da área de direito, podemos resistir à McDonaldização e<br />
- poético, com o outro, estou procurando minha própria humildade e minha própria consciência desperta.<br />
CocaColazição do pensamento, ao interagirmos construindo juntos nossos referenciais, nosso currículo,<br />
A consciência dos limites sempre diferenciou o saber científico de outros tipos de saberes, religiosos ou<br />
nosso pensamento e nossa pedagogia. Daí a questão da interdisciplinaridade.<br />
míticos. Com o outro, posso conhecer, talvez, não somente meus limites, os da minha pele, e, sim, minhas<br />
Tenho fé, uma fé bem racional, nas nossas potências biopolíticas de resistir aos biopoderes instituídos<br />
costas e, por que não, meu avesso. Talvez, o vazio em mim... início de outras descobertas...<br />
(FOUCAULT, 1998 e 2002, NEGRI, 2003). Pois, como explica Varela (2001), existem na esfera da vida<br />
múltiplos processos auto-poiéticos, pelos quais um sistema complexo se auto-organiza, gerando<br />
REFERÊNCIAS<br />
novos seres e novos devires, criadores de novas formas de vida, de novas intensidades. Os poderes<br />
ARDOINO, Jacques. (Coord.) L’approche multiréférentielle (plurielle) des situations éducatives et<br />
mortíferos, desorganizadores por baixar o nível de informação e complexidade de um sistema, não<br />
formatives. Rev. Pratiques de Formation – Analyses, Saint Denis: Université de Paris 8, n. 25-26, abr. 1993.<br />
podem vencer as potências emergentes, que nascem de maneira, às vezes, anomal 8 e selvagem (NEGRI,<br />
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação - rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998.<br />
1993, em referência a Espinosa), do aumento de complexidade e informação frente à entropia. Aqui<br />
BARBIER, René. A pesquisa-ação na instituição educativa. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.<br />
gosto de repetir que Hugo Assmann (1998) expôs muito bem esses aspectos, em relação à educação e<br />
_____. A escuta sensível em educação. Cadernos ANPEd, Belo Horizonte: ANPEd, n. 5, 1993.<br />
à instituição educativa.<br />
_____. A pesquisa-ação. Brasília: LiberLivro, 2006.<br />
Há uma rachadura em toda coisa e a luz passa por essa rachadura - cantava um cantor beat da década<br />
BOHR, Niels. Física atômica e conhecimento humano. Ensaios 1932-1957. Rio de Janeiro: Contraponto,<br />
de 70. Tento educar quem amo ou quem me faz sonhar, devanear (como a gente devaneia, sonha com<br />
1995.<br />
nossos alunos, conforme me convenceu Winnicott, 1975) – e me educar a essa ideia, que pode resumir<br />
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mille Plateaux. Paris: Minuit, 1980.<br />
minha visão da complexidade: Há uma rachadura em toda coisa, inclusive em meu cérebro, e a luz passa<br />
DEVEREUX, Georges. De l´angoisse à la méthode dans les sciences du comportement. Paris: Flammarion,<br />
por essa rachadura.<br />
1980.<br />
Em certa dimensão do existir, luz e rachadura são a mesma e única coisa.<br />
_____. Psychothérapie d´un Indien des plaines. Paris: Ed. J-C. Godefroy, 1982.<br />
ENTRELUGARES. Revista eletrônica. Disponível em: www.entrelugares.efc.br<br />
EYSSALET, Jean-Marc. SHEN ou o instante criador. Rio de Janeiro: Gryphus, 2003.<br />
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade - Vol. I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.<br />
7<br />
Visitem o site da revista eletrônica www.entrelugares.ufc.br, que trata de complexidade, sociopoética, interculturalidade, devires e rizomas etc.<br />
8<br />
O “anomal” foi notadamente teorizado por Deleuze e Guattari em “Mille Plateaux” (1980). O adjetivo anomal não tem nada a ver com anormal.<br />
“Anomal” significa rude, áspero, como, por exemplo, o que racha e intensifica o Capitão Achab em Moby Dick, no seu devir-animal: “O anomal é uma<br />
posição ou um conjunto de posições em relação a uma multiplicidade” (DELEUZE e GUATTARI, 1980, p. 298, trad. minha). É um fenômeno de limiar, uma<br />
ponta de desterritorialização: “Os bruxos utilizam o velho adjetivo “anomal” para situar as posições do indivíduo excepcional na matilha” (Id.). É uma<br />
intensificação de afetos, entre dois lugares, uma aliança fronteiriça com o monstruoso e nunca uma filiação.<br />
______. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.<br />
FOX-KELLER, Evelyn. Le siècle du gène. Paris: Gallimard, 2003.<br />
_____. L´intuition du vivant: le vie et l´oeuvre de Barbara Mac Clintock. Paris: Tierce, 1988.<br />
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.<br />
UMA PUBLICAÇÃO DO NPPD I UNIJORGE I 18<br />
19 I UNIJORGE I UMA PUBLICAÇÃO DO NPPD