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Estranhas aventuras da privacidade (3)<br />
É comum louvar ou acusar as inovações tecnológicas por estarem na origem das revoluções<br />
culturais; na verdade, as inovações conseguem no máximo desencadeá-las, oferecendo o elo<br />
que faltava numa cadeia completa de elementos necessários para deslocar a transformação nos<br />
costumes e estilos de vida existentes, da esfera das possibilidades para a esfera da realidade;<br />
transformação que já estava pronta há tempos e lutava para acontecer. Uma dessas inovações<br />
tecnológicas é o telefone celular.<br />
O advento do celular tornou possível a situação de alguém estar sempre à inteira<br />
disposição do outro; na verdade, trata-se de uma expectativa e de um postulado realista, uma<br />
demanda difícil de recusar, porque se supôs que sua satisfação, por fortes razões objetivas,<br />
era impossível. Pelas mesmas razões, a entrada da telefonia móvel na vida social eliminou,<br />
para todos os fins práticos, a linha divisória entre tempo público e tempo privado; entre<br />
espaço público e espaço privado; casa e local de trabalho; tempo de trabalho e tempo de<br />
lazer; “aqui” e “lá”. O proprietário de um telefone celular está sempre e em toda parte <strong>ao</strong><br />
alcance dos outros, está sempre “aqui”, sempre <strong>ao</strong> alcance da mão.<br />
A telefonia móvel no mínimo estraçalhou todas as linhas divisórias da capacidade de<br />
parar e deter, tornando fácil e plausível a eliminação ou violação dessas fronteiras – pelo<br />
menos do ponto de vista técnico. “Estar ausente” não é, não pode e não deve mais ser<br />
equivalente a “estar fora do alcance”. Claro que sempre se pode esquecer o celular em cima<br />
da mesa antes de sair, perdê-lo ou não achá-lo a tempo. Mas todas essas explicações para não<br />
atender <strong>ao</strong> chamado do telefone são agora vistas como sinais de negligência, insubordinação,<br />
indiferença condenável e ofensiva, afronta e outras falhas subjetivas, ou demonstrações de má<br />
vontade.<br />
Os telefones celulares são o fundamento técnico da suposição de constante<br />
acessibilidade e disponibilidade. A suposição de que a condição humana em geral da<br />
modernidade líquida, a condição de “lobos solitários sempre em contato”, já foi viabilizada e<br />
se converteu em “norma”, tanto no segundo quanto no primeiro aspecto.<br />
Aplicada de modo seletivo, “a disponibilidade constante” é amplamente usada hoje para<br />
organizar o espaço público: dividi-lo em áreas de “conectividade” e de “não conectividade”.<br />
Agora todo mundo pode estar sempre à disposição para qualquer contato telefônico, mas ainda<br />
é preciso se tornar disponível – e fazemos isso somente para um grupo selecionado de<br />
pessoas. Tornar-se disponível é uma ferramenta da construção de redes: de unificação e