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44 Cartas ao Mundo liquido Mode - Zygmunt Bauman

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pessoas especiais, muito determinadas e abençoadas com o dom de uma excepcional<br />

capacidade de resistência para recusar-se a fazer dívidas a fim de comprar o último tipo de<br />

MP3 e baixar os últimos sucessos musicais.<br />

Giacomo Segantini talvez faça parte dessa pequena estirpe de pessoas especiais, e não<br />

deve ter sido nada fácil tornar-se uma delas; deve ter sido doloroso e em certas ocasiões<br />

humilhante. Render-se <strong>ao</strong> fluxo da maré tem um custo monetário; nadar contra ela também tem<br />

seu preço, nem sempre monetário, mas provavelmente mais doloroso e difícil de pagar. Numa<br />

das minhas cartas escrevi que o destino determina as opções, mas o caráter faz as escolhas. A<br />

julgar pelas escolhas de Segantini, tenho todos os motivos para admirar e respeitar seu<br />

caráter.<br />

Fiquei também bastante impressionado com a insistência de Giacomo em repetir que é<br />

impossível “não pensar no futuro”. Considerando a data da carta dele (poucos meses depois<br />

do recente colapso do crédito e da consequente debacle dos mercados de trabalho), é bem<br />

provável que, desta vez, Giacomo esteja voltando <strong>ao</strong> padrão de vida da maioria dos jovens de<br />

sua geração. Ao que parece, a sucessão vertiginosa, estonteante e arrebatadora de novos<br />

produtos e prazeres que dominava o estilo de vida dos jovens, e que eles esperavam estender<br />

para sempre, cessou – ou, no melhor dos casos, vem se desacelerando e provavelmente se<br />

reduzirá ainda por um bom tempo.<br />

Como Giacomo Sagantini acertadamente escreveu: “Não são dezenas, mas centenas de<br />

milhares” de jovens recém-chegados <strong>ao</strong> mundo dos adultos e que, com ele, passaram a encarar<br />

um tipo de desafio que desconheciam seis meses antes – e que sem dúvida não tinham<br />

condição alguma de enfrentar. Eles haviam sido treinados para lidar com um excesso de<br />

opções e oportunidades; mas hoje precisam aprender, e depressa, a viver num mundo assolado<br />

pela escassez. Haverá emprego para eles? Em caso afirmativo, que tipo de emprego? O que<br />

devem fazer para ser admitidos? Alguns tipos de emprego podem ser citados, mas ninguém<br />

tem condições de garantir que ainda estarão e continuarão a estar vagos durante o tempo<br />

necessário para que as pessoas aprendam as habilidades exigidas.<br />

Muito me alegraria se Giacomo conseguisse ingressar nas fileiras dos “jovens<br />

sociólogos”, como ele mesmo diz, embora eu não possa deixar de adverti-lo (e a qualquer<br />

outro que esteja pensando em fazer igual escolha) que essa decisão não irá lhe facilitar a vida.<br />

Considerando seus traços de caráter, essa opção, <strong>ao</strong> contrário, poderá trazer-lhe problemas e<br />

reduzir ainda mais o que sobrou de sua tranquilidade espiritual. Como sociólogo, ele vai<br />

descobrir inúmeras vezes, <strong>ao</strong> longo de sua vida profissional, que “os homens só aprendem o<br />

que seria útil <strong>ao</strong>s seus avós”. Só <strong>ao</strong>s mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver –<br />

observou certa vez Fernando Pessoa, considerado “um dos escritores que definem o mundo<br />

moderno”.

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