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“
É fundamental você
começar a questionar
qual é a sua vivência
em relação à do outro.”
Giovanna Heliodoro
“ Eu vou ficar dando entrevista pra universitário,
sendo tema e objeto de estudo, sendo que
as minhas vão continuar nunca tendo a
possibilidade de estar numa sala de aula?” Foi uma das
primeiras frases ditas por Giovanna Heliodoro no hall
do terceiro andar do Normandy Hotel, prédio imponente
do centro da capital mineira, numa tarde quente de
sábado. Muito mais que uma entrevista jornalística,
aquele momento estava prestes a se tornar uma aula
sobre respeito, sensatez e humanidade. A belorizontina de
22 anos, de alcunha trans preta, provoca uma profunda
reflexão sobre a conquista e legitimidade de espaços
ocupados pelos seus, como ela costuma dizer ao se referir
às travestis e pessoas transgêneros.
Com uma infância bastante complexa, atravessada
por questões e vivências que compõem seu processo de
autoconhecimento, a historiadora, que se identifica como
travesti, negra e bissexual, não considera ter um marco
específico do momento em que começou a perceber
que não se encaixava nas expectativas socialmente
impostas. Uma de suas lembranças marcantes vem
do dia em que a mãe a viu, com 10 anos, vestida com
algumas de suas roupas. O episódio, impactante para
ambas, iniciou a construção de uma barreira que
impedia a possibilidade de experimentar ou se inserir
no universo dito esteticamente feminino. Isso durou
até seus 16 anos, quando considera ter iniciado o
desenvolvimento da sua identidade de gênero. Mas
ainda que alguns momentos do processo de transição
de Giovanna sejam complexos, a infância foi muito
boa para além das situações problemáticas. Algumas
de suas melhores recordações, por exemplo, são
do tempo em que brincava com a sua prima no
barracão onde morava, nos fundos da casa da avó
já falecida, pois tinha a sensação de liberdade.
Uma de suas maiores vitórias foi a aprovação,
junto com Juhlia Santos – a quem chama, com
evidente orgulho de “minha mãe travesti” – o
TransViva, primeiro festival de artistas trans de
Minas Gerais, no Fundo Municipal de Cultura de
Belo Horizonte. O festival, que acontece em janeiro,
é a solidificação dos conceitos de proporcionalidade
e alternância de poder de que Giovanna tanto fala.
Isso porque foi possível gerar oportunidades para
pessoas que possuem as mesmas vivências que ela,
uma vez que Giovanna nunca teve oportunidade no
mercado formal de trabalho.
Uma das maiores preocupações de Giovanna é com
a vida – ou a morte, mais especificamente – das suas
e dos seus. Ter que lidar com a perda de pessoas que são
muito especiais faz com que a sua percepção de mundo
esteja numa perspectiva diferente, com maior intensidade.
Quando questionada acerca do termo representatividade,
Giovanna diz que, para ela, a palavra significa o ato de
elencar apenas um ou dois indivíduos para representar um
grupo específico de pessoas. Ela propõe, então, o uso do
termo “proporcionalidade” que, em síntese, sugere que as
individualidades sejam todas vistas com a mesma proporção
daquelas que estão dentro do padrão, não só representadas.
Tais ressignificações fazem com que sejamos capazes de
começar a remodelar as concepções do que é ser humano.
Giovanna recomenda que comecemos a refletir sobre o
ser enquanto verbo, e mais especificamente sobre a filosofia,
a lógica e a potência que existem nesse “ser”. A partir disso,
será possível perceber que há milhões de possibilidades de ser,
sentir, constituir-se, apresentar-se, de estar e de ocupar espaços
e, principalmente, de compreender que existem diferenças
entre a constituição do ser que há em cada um de nós. Para
ela, existem duas ações práticas que são capazes de provocar
mudanças efetivas na inserção proporcional de todos os “corpos
e corpas” na sociedade. A primeira é a lógica da alternância de
poder, que propõe possibilidade de inclusão de corpos trans e nãobinários
nos lugares de tomada de decisão, como na política. A
segunda, uma proposição de “inversão de papéis”, transferindo
a responsabilidade de solução de situações opressoras de quem é
oprimido para quem as promove, a fim de que compreendam quais
são as opressões que aquele grupo de pessoas reproduzem e o que a
estrutura que compõem está reiterando.
Ao final da conversa, Giovanna nos convida a aplicarmos
um exercício diário que ajuda muito a entender, de fato,
a magnitude de tudo aquilo que havíamos conversado.
Encerro convidando-lhes a fazer o mesmo:
“É fundamental você começar a questionar qual é a sua
vivência em relação à do outro. Quantas pessoas travestis
e transexuais têm na sua Universidade? Quantas você tem
como amigas? Quantas já entraram na sua casa, tomaram
um café, conversaram com a sua mãe? Quantas trabalham
onde você faz estágio? Quantas você acompanha nas redes
sociais? Quantas você vê em lugares de poder, como na
política? Quando você começa a fazer esse exercício, percebe
que não tem, em lugar nenhum, e aí você começa a pensar
no que pode fazer pra solucionar isso. É importante perceber
quais são seus acessos, seus espaços, e como você pode
provocar a redistribuição de poder.”
EDIÇÃO 28 | CURINGA
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