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Revista Curinga Edição 28

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É fundamental você

começar a questionar

qual é a sua vivência

em relação à do outro.”

Giovanna Heliodoro

“ Eu vou ficar dando entrevista pra universitário,

sendo tema e objeto de estudo, sendo que

as minhas vão continuar nunca tendo a

possibilidade de estar numa sala de aula?” Foi uma das

primeiras frases ditas por Giovanna Heliodoro no hall

do terceiro andar do Normandy Hotel, prédio imponente

do centro da capital mineira, numa tarde quente de

sábado. Muito mais que uma entrevista jornalística,

aquele momento estava prestes a se tornar uma aula

sobre respeito, sensatez e humanidade. A belorizontina de

22 anos, de alcunha trans preta, provoca uma profunda

reflexão sobre a conquista e legitimidade de espaços

ocupados pelos seus, como ela costuma dizer ao se referir

às travestis e pessoas transgêneros.

Com uma infância bastante complexa, atravessada

por questões e vivências que compõem seu processo de

autoconhecimento, a historiadora, que se identifica como

travesti, negra e bissexual, não considera ter um marco

específico do momento em que começou a perceber

que não se encaixava nas expectativas socialmente

impostas. Uma de suas lembranças marcantes vem

do dia em que a mãe a viu, com 10 anos, vestida com

algumas de suas roupas. O episódio, impactante para

ambas, iniciou a construção de uma barreira que

impedia a possibilidade de experimentar ou se inserir

no universo dito esteticamente feminino. Isso durou

até seus 16 anos, quando considera ter iniciado o

desenvolvimento da sua identidade de gênero. Mas

ainda que alguns momentos do processo de transição

de Giovanna sejam complexos, a infância foi muito

boa para além das situações problemáticas. Algumas

de suas melhores recordações, por exemplo, são

do tempo em que brincava com a sua prima no

barracão onde morava, nos fundos da casa da avó

já falecida, pois tinha a sensação de liberdade.

Uma de suas maiores vitórias foi a aprovação,

junto com Juhlia Santos – a quem chama, com

evidente orgulho de “minha mãe travesti” – o

TransViva, primeiro festival de artistas trans de

Minas Gerais, no Fundo Municipal de Cultura de

Belo Horizonte. O festival, que acontece em janeiro,

é a solidificação dos conceitos de proporcionalidade

e alternância de poder de que Giovanna tanto fala.

Isso porque foi possível gerar oportunidades para

pessoas que possuem as mesmas vivências que ela,

uma vez que Giovanna nunca teve oportunidade no

mercado formal de trabalho.

Uma das maiores preocupações de Giovanna é com

a vida – ou a morte, mais especificamente – das suas

e dos seus. Ter que lidar com a perda de pessoas que são

muito especiais faz com que a sua percepção de mundo

esteja numa perspectiva diferente, com maior intensidade.

Quando questionada acerca do termo representatividade,

Giovanna diz que, para ela, a palavra significa o ato de

elencar apenas um ou dois indivíduos para representar um

grupo específico de pessoas. Ela propõe, então, o uso do

termo “proporcionalidade” que, em síntese, sugere que as

individualidades sejam todas vistas com a mesma proporção

daquelas que estão dentro do padrão, não só representadas.

Tais ressignificações fazem com que sejamos capazes de

começar a remodelar as concepções do que é ser humano.

Giovanna recomenda que comecemos a refletir sobre o

ser enquanto verbo, e mais especificamente sobre a filosofia,

a lógica e a potência que existem nesse “ser”. A partir disso,

será possível perceber que há milhões de possibilidades de ser,

sentir, constituir-se, apresentar-se, de estar e de ocupar espaços

e, principalmente, de compreender que existem diferenças

entre a constituição do ser que há em cada um de nós. Para

ela, existem duas ações práticas que são capazes de provocar

mudanças efetivas na inserção proporcional de todos os “corpos

e corpas” na sociedade. A primeira é a lógica da alternância de

poder, que propõe possibilidade de inclusão de corpos trans e nãobinários

nos lugares de tomada de decisão, como na política. A

segunda, uma proposição de “inversão de papéis”, transferindo

a responsabilidade de solução de situações opressoras de quem é

oprimido para quem as promove, a fim de que compreendam quais

são as opressões que aquele grupo de pessoas reproduzem e o que a

estrutura que compõem está reiterando.

Ao final da conversa, Giovanna nos convida a aplicarmos

um exercício diário que ajuda muito a entender, de fato,

a magnitude de tudo aquilo que havíamos conversado.

Encerro convidando-lhes a fazer o mesmo:

“É fundamental você começar a questionar qual é a sua

vivência em relação à do outro. Quantas pessoas travestis

e transexuais têm na sua Universidade? Quantas você tem

como amigas? Quantas já entraram na sua casa, tomaram

um café, conversaram com a sua mãe? Quantas trabalham

onde você faz estágio? Quantas você acompanha nas redes

sociais? Quantas você vê em lugares de poder, como na

política? Quando você começa a fazer esse exercício, percebe

que não tem, em lugar nenhum, e aí você começa a pensar

no que pode fazer pra solucionar isso. É importante perceber

quais são seus acessos, seus espaços, e como você pode

provocar a redistribuição de poder.”

EDIÇÃO 28 | CURINGA

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